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A Força do Desejo 4 страницаQuando Helen abriu a porta da sala. Dominic estava deitado no sofá, com os olhos fechados. Ao ouvir seus passos, abriu os olhos e tentou levantar-se. Um espasmo de dor atravessou o rosto e ele deixou-se cair em cima das almofadas, com a mã o na cabeç a. Helen colocou a bandeja em cima da mesa e aproximou-se dele. — O que foi? Está sentindo alguma coisa? Dominic retirou a mã o da testa e fitou-a um instante com a fisionomia deformada pela dor. — Nã o, nã o é nada. Já passou. Muito obrigado. Helen ficou parada no meio da sala, esfregando as mã os com nervosismo. Dominic estava tã o pá lido e sem forç as que sentiu vontade de fazer alguma coisa por ele. Embora fossem inimigos, nã o sentia prazer no mal que o abatia. Experimentava antes uma sensaç ã o perturbadora de compaixã o, e a consciê ncia mais aguda da atraç ã o que ele exercia sobre ela. — Pelo amor de Deus! — exclamou Dominic com impaciê ncia. — Nã o olhe para mim com essa cara! Eu sofro de enxaqueca... entre outras coisas. Helen aproximou-se sem jeito e notou que ele suava pelo esforç o de levantar-se do sofá. — Posso fazer alguma coisa por você? — indagou, hesitante. — O quê, por exemplo? Um tiro na cabeç a ou uma facada no peito? O que você sugere? — Nenhum dos dois — respondeu Helen, enquanto olhava em volta à procura de alguma coisa. — Você nã o tem nenhum comprimido? Um analgé sico? Ou prefere que chame o Bolt? — Eu tenho comprimidos — disse Dominic, fechando os olhos. — Onde estã o? — Você nã o precisa se incomodar. Bolt pode apanhá -los para mim. — Eu vou! — exclamou Helen. — Basta me dizer onde estã o. Ele entreabriu os olhos e apoiou a cabeç a nas almofadas de veludo. Durante um instante, observou-a em silê ncio, por baixo dos cí lios compridos. Helen sentiu as pernas moles diante do olhar insistente e seu coraç ã o disparou dentro do peito. Dominic tornou a fechar os olhos. — Estã o num vidrinho em cima da mesa ou numa gaveta. Helen deu um passo em frente e parou, na dú vida. Que mesa? Seria a escrivaninha no canto da sala, em cima da qual estava a fotografia do acidente? No momento em que atravessou a sala nessa direç ã o, Dominic disse com a voz cansada: — Minha mesa no escritó rio. No escritó rio! Helen ficou na dú vida. Onde era o escritó rio? Abriu a boca para perguntar e tornou a fechá -la. Devia dar no hall e nã o havia muitas outras portas ali. Lembrava-se de qual era a porta da cozinha, do quartinho embaixo da escada, onde Bolt pendurava os casacos, e da saia de jantar. Dirigiu-se rapidamente ao hall e olhou em volta. Felizmente Sheba nã o estava por perto. Havia apenas uma outra porta que nã o conhecia. Helen sorriu de satisfaç ã o, virou a maç aneta e entrou. Era ali o escritó rio. Só podia ser. Uma mesa comprida de mogno dominava a á rea central. Estava literalmente empilhada de livros e papé is, sem falar na má quina de escrever, empurrada para o lado. Mas nã o foi a mesa que chamou sua atenç ã o. Ao lado da janela, no canto da sala, escondido atrá s de uma cortina pesada de veludo, estava o telefone! Seu primeiro impulso foi discá -lo e pedir socorro. Os acontecimentos recentes, poré m, tornaram-na mais precavida. Se demorasse muito tempo ali, Dominic podia desconfiar de alguma coisa... Sem falar que Bolt podia passar na sala para apanhar a bandeja do café. Se descobrissem que ela sabia da existê ncia do telefone, nã o teria outra oportunidade de usá -lo. Mas se fingisse nã o ter visto nada... Apó s afastar os olhos do ví nculo tentador com o mundo lá fora, Helen aproximou-se da mesa e sentou-se na poltrona de couro. A lembranç a do rosto moreno, contorcido pela dor, levou-a a abrir rapidamente a primeira gaveta da direita. Nã o podia ignorar os sofrimentos dele, por mais revoltada que estivesse com sua situaç ã o na casa. Percorreu com a vista a gaveta aberta e certificou-se de que nã o havia nenhum vidrinho de analgé sico ali. Tornou a fechá -la e abriu a gaveta da direita. Estava cheia de papé is mas, lá no fundo, encontrou o que estava procurando: o pequeno vidro de comprimidos. Lanç ou um olhar rá pido para a massa de papé is que estava em cima da mesa, fechou a segunda gaveta e levantou-se. Tinha chegado à porta quando Bolt saiu da cozinha. Helen sentiu as pernas bambas ao pensar que, se tivesse usado o telefone, teria sido apanhada em flagrante. Bolt franziu a testa ao vê -la sair do escritó rio. — Está procurando alguma coisa? Helen corou repentinamente. Sentia-se culpada de sua intenç ã o. Sem jeito, como se fosse apanhada fazendo uma coisa proibida, mostrou o vidrinho que levava na mã o. — Seu patrã o está com enxaqueca — explicou caminhando em direç ã o à sala. — Fui apanhar o analgé sico no escritó rio. — Ah, bom — disse Bolt, muito preocupado. — Vou buscar um copo d'á gua. — Seria ó timo. Bolt voltou à cozinha e ela entrou na sala. Dominic continuava deitado no sofá, com os olhos fechados e ela forç ou-se a lembrar que aquele homem era o inimigo que a prendia ali contra sua vontade. Aproximou-se do sofá e estendeu o vidrinho. — Olha, eu trouxe os comprimidos — disse em voz baixa. — Bolt foi apanhar um copo d'á gua na cozinha. Dominic abriu os olhos, marcados por olheiras fundas. — Muito obrigado — disse, erguendo-se e segurando o vidrinho. — A culpa é minha. Passei muitas horas trabalhando. Tirou a tampa do vidro e apanhou dois comprimidos. — Trabalhando? — perguntou surpresa, sem poder esconder a curiosidade. — Pois é. Você pensa que eu passo os dias sem fazer nada? Ela afastou-se do sofá, ligeiramente ferida com suas palavras. — Nã o tinha pensado nisso. No instante seguinte, Bolt entrou na sala com um copo e uma garrafa nas mã os. Foi diretamente ao sofá e olhou para Dominic com uma certa reprovaç ã o. — Pronto, aqui está a á gua. Seria bom você descansar um pouco no quarto. Dominic engoliu os dois comprimidos com um pouco d'á gua. — Estou bem aqui — disse, secando a boca com as costas da mã o. — Por que nã o deita um pouco? — insistiu Bolt. Dominic lanç ou um olhar em direç ã o a Helen. — E vou deixar minha hó spede tomar café sozinha? — Depois do café, entã o — disse Bolt. No entanto, Dominic limitou-se a fechar novamente os olhos, como se o esforç o de mantê -los abertos o esgotasse. — Eu chamo você, se for preciso. Bolt deu um suspiro e olhou para Helen com um gesto de resignaç ã o. Ela se sentiu ridiculamente cú mplice na preocupaç ã o do criado pelo bem-estar do homem que estava deitado no sofá. — Pelo amor de Deus! — exclamou Dominic de repente, como se tivesse surpreendido o que se passava entre os dois. — Parem de fazer sinal um para o outro como se eu fosse um invá lido! — Volto dentro de uns quinze minutos — disse Bolt, saindo da sala. Depois que ele saiu, Helen ficou na dú vida se nã o devia sair també m. Talvez Dominic fosse para a cama quando se visse sozinho na sala e isso era a melhor coisa para uma crise de enxaqueca. Ao imaginá -lo deitado na cama, de pijama, sentiu um arrepio no corpo. Sua vulnerabilidade era perigosamente atraente para ela e tinha que lembrar a todo instante que Dominic era seu adversá rio, que a mantinha ali como se ela fosse um animal de estimaç ã o. Ao vê -lo abrir a camisa no alto do peito, sentiu o desejo incontrolá vel de tocá -lo. Gostaria de fazer massagem na testa dolorida com as pontas dos dedos e ver a tensã o diminuir sob o tratamento. Ele abriu os olhos de repente e surpreendeu seu olhar. — Sente-se — disse em voz baixa. — Está passando. Logo vou estar bom... Helen procurou ocultar a preocupaç ã o que sentia. Aproximou-se da cadeira defronte da lareira e sentou-se na beira, esfregando as mã os diante das chamas. A coisa mais importante no momento era poder usar o telefone, pensou. Estava começ ando a se interessar demais por Dominic e a esquecer-se de seus interesses. Ao pensar no telefone, refletiu no que devia fazer para usá -lo sem perigo de ser surpreendida. O melhor momento seria depois de todos estarem dormindo, embora a idé ia que Sheba pudesse estar solta dentro de casa representava um risco sé rio. — Você nã o quer servir o café? Helen levou um susto quando a voz de Dominic a acordou do seu devaneio. — O quê? Ah, sim! — Voltou-se para a mesinha e apanhou as xí caras. O aroma forte do café era confortador, mas sua mã o tremeu ligeiramente quando segurou o bule. — Com creme e aç ú car? — Isso — disse Dominic erguendo-se no sofá para segurar a xí cara que ela lhe estendeu. — Obrigado. Helen serviu-se uma xí cara, acrescentou apenas aç ú car e mexeu vigorosamente. Estava consciente de que era observada com o canto dos olhos e tinha receio de saber o que ele estava pensando. — Por que você mudou de idé ia? — Mudei de idé ia? — repetiu Helen, intrigada com a pergunta. — Em que sentido? — Você nã o queria tomar café antes. Ela deu um suspiro fundo. — Ah, sim. Talvez eu queira aproveitar a oportunidade e convencê -lo a me deixar partir. — Você acha que pode me convencer? — indagou Dominic, recostando a cabeç a no encosto do sofá. — Nã o sei — disse Helen, colocando a xí cara vazia na mesa. — Mas você gostaria de tentar? — Talvez eu consiga despertar seu sentimento de honra. — Sentimento de honra? Que idé ia mais antiquada! É isso que você quer? Que eu me sinta grato a você? — Nã o sei o que você quer dizer. — Claro que sabe. Sua atenç ã o há pouco foi proposital, naturalmente. Helen, que evitara encontrar seus olhos, encarou-o fixamente. — Você acha que eu faria uma coisa dessa? — Por que nã o? Você quase me convenceu com sua falsa atenç ã o. Mas achei que devia avisá -la que nã o me iludo com essa facilidade. Eu nã o gostaria que você chegasse a um ponto em que tivesse dificuldade de voltar atrá s. — O que você quer dizer com isso? — Simplesmente isso: nã o atire seu charme feminino em cima de mim para conquistar minha simpatia. Helen levantou-se bruscamente. — Como você pode ser tã o convencido? — Eu nã o sou. É por isso exatamente que estou deixando as coisas bem claras. Por uma questã o de decê ncia... depois do que você fez por mim. A ironia estava evidente na voz dele e ela fechou os pulsos com raiva. Estava disposta a berrar que tinha visto o telefone no escritó rio, para mostrar que nã o era uma mentirosa como ele. Em vez disso, achou mais prudente guardar o silê ncio. O que a feria profundamente era Dominic ter percebido o interesse que despertava nela, embora o interpretasse da forma mais errada possí vel. Ele imaginava, pelo visto, que Helen pretendia persuadi-lo com sua juventude e beleza, enquanto nada era mais falso. Nã o queria sentir-se seduzida por ele. Nã o queria sofrer a atraç ã o de sua personalidade inquietante. E, acima de tudo, nã o desejava imaginar que essa atraç ã o podia concretizar-se fisicamente um dia. — Você é odioso com suas suspeitas! — exclamou por fim, com os lá bios trê mulos. — Você é um deformado mental. Você deixou que seu defeito fí sico influenciasse seus pensamentos! Ele arregalou os olhos amarelados, como duas pedras de topá zio. — Você tem toda a razã o. E é bom nã o se esquecer nunca disso! Helen lanç ou um olhar rá pido na direç ã o dele e caminhou para a porta. Sentiu enjô o ao subir a escada e as tê mporas latejavam horrivelmente. Durante um instante, Dominic parecera ser uma pessoa humana e generosa, e ela cometera o erro de responder a essa falsa impressã o. CAPÍ TULO IV Helen passou o resto da manhã no quarto. Pendurou os vestidos nos cabides e arrumou as roupas nas gavetas. Embora repetisse que nã o adiantava desfazer as malas porque contava partir o mais cedo possí vel daquela casa, continuou mesmo assim a tirar as saias das malas e a pendurá -las no armá rio. À uma da tarde Bolt bateu na porta e disse que o almoç o estava pronto. Quando ela desceu, alguns minutos depois, encontrou-o na cozinha. — Servi o almoç o aqui. Dominic nã o vai comer nada. Você nã o se importa? — Pelo contrá rio, é um prazer lhe fazer companhia. Mas eu també m nã o estou com muita fome. Helen sentou-se na mesa comprida da cozinha diante dos pratos apetitosos que Bolt tinha preparado. Tudo que ele fazia tinha um aspecto saudá vel e gostoso. Naquele dia Bolt fez um bife de panela com cogumelos e um creme de tomate para esquentar o corpo. Havia ainda algumas fatias da torta de maç ã que sobrara da vé spera. Bolt serviu a torta acompanhada de uma colher de creme de leite que parecia um requeijã o, de tã o grosso que era. Helen comeu tudo com muito apetite, mas nã o aceitou repetir, quando Bolt lhe ofereceu uma segunda fatia. — Estava ó tima, Bolt — disse por fim, satisfeita, ao tomar a segunda xí cara de café. — Você vai me engordar como uma baleia. Bolt deu um sorriso de satisfaç ã o. — Ah, nã o tem perigo! — comentou, observando os seios pequenos que marcavam os contornos do pulô ver branco. — Você ainda pode engordar um pouquinho em certas partes... Helen sorriu sem querer. Sentia-se bem pela primeira vez desde que acordara. Bolt era uma simpatia, muito diferente nesse ponto de Dominic. Ao pensar nele, uma parte de sua alegria sumiu repentinamente. Nã o podia esquecer que estava ali contra sua vontade e, por mais simpá tico que fosse seu carcereiro, ela nã o tinha liberdade de fugir de sua tutela. — Seu patrã o está deitado? — perguntou apó s um momento, mexendo a colherinha no pires de café. Bolt balanç ou a cabeç a afirmativamente, enquanto rodava a caneca nas mã os grandes. — Está. Faz uma hora que ele foi para o quarto. Helen devia ter deixado o assunto nesse pé, mas nã o controlou sua curiosidade. — Que trabalho ele faz? — Está escrevendo um livro. — Um livro? — repetiu Helen, imediatamente interessada. — Sobre o quê? — Olha, isso eu nã o sei dizer. Por que você nã o pergunta pessoalmente a ele? — Boa idé ia... Bolt colocou a xí cara em cima da mesa. — Agora é minha vez de fazer uma pergunta. O que aconteceu exatamente hoje de manhã? Helen concentrou-se na borra de café que estava no fundo da xí cara. — Nada muito especial — disse por fim. — O que você disse a ele? — insistiu Bolt. — Eu nã o disse nada. Simplesmente fui buscar os comprimidos no escritó rio. — Eu pensei que você tinha dito alguma coisa que ele nã o gostou. — Essa é boa! Eu faç o um favor e ele ainda reclama! Seu patrã o e um perfeito chato! — exclamou Helen indignada. Bolt levantou-se e começ ou a recolher os pratos e talheres sujos. — Você precisa entender... — Por que eu tenho sempre que entender tudo? Bolas! Por que ele també m nã o procura compreender o que eu sinto? Eu nã o pedi para ficar aqui. E nã o faç o a menor questã o, se você quer saber! Bolt contemplou-a com a fisionomia preocupada. — Eu nã o gostaria que você saí sse ferida... — Eu sair ferida? — exclamou Helen furiosa. — Por que você acha que isso ia acontecer? Na minha opiniã o, ele é um homem antipá tico, rude, completamente egoí sta! Por que haveria de sair ferida? Bolt levantou as sobrancelhas espessas. — Bem, você é quem sabe... Embora Bolt protestasse que nã o era preciso, Helen insistiu em ajudá -lo a lavar a louç a e os talheres. Mais tarde, depois que estava tudo areado e a cozinha um brinco, Helen deu um suspiro de satisfaç ã o. — Dominic vai ficar de cama o resto da tarde — disse Bolt para ela. — Você nã o gostaria de dar uma volta lá fora para conhecer o resto da casa? Helen olhou para a janela. O sol claro da manhã estava parcialmente encoberto e parecia que ia nevar de novo, mas a tentaç ã o de respirar o ar fresco era irresistí vel. — Eu gostaria muito — disse com sinceridade. — Ó timo. Você tem botas impermeá veis? E um capote bem grosso para vestir? — Trouxe minhas botas de borracha, vim prevenida para andar na neve. E se meu casaco forrado estiver seco... — Ah, sim. Ele está pendurado no corredor. — Ó timo. Eu volto num minuto — disse Helen, caminhando animadamente em direç ã o à porta. Ao subir correndo a escada que levava ao quarto, pensou se devia aproveitar a oportunidade para usar o telefone. Bolt estava ocupado na cozinha, aprontando-se para sair, e Dominic estava de cama, dormindo provavelmente. Mas era melhor nã o arriscar. A perspectiva de estragar o bom relacionamento que mantinha com Bolt nã o era nada agradá vel e odiaria ser surpreendida por ele fazendo algo proibido. Podia esperar até a noite, depois que todos estivessem dormindo. Depois de calç ar as botas por cima da calç a e vestir o pulô ver grosso, tornou a descer a escada, apanhou o casaco forrado no cabide do corredor e examinou-o detidamente para ver se estava em ordem depois da aventura na neve. Finalmente, enfiou os cabelos compridos para dentro do capuz e saiu à procura de Bolt. A tarde estava deliciosa, o tipo de tarde que Helen só se recordava vagamente de ter visto em crianç a. Em Londres, os invernos eram terrí veis: com as calç adas sempre sujas de lama, nã o sentia o menor prazer em andar a pé e correr o risco de escorregar. Ali, entretanto, era tudo uma beleza. A neve era limpa e branca, o ar tã o puro que intoxicava. E nã o sentia frio, afinal. Era jovem, saudá vel, acabara de almoç ar divinamente e o corpo inteiro exalava um sentimento de bem-estar e de disposiç ã o. Bolt estava cuidando das vacas no está bulo. Limpou os cochos e colocou braç adas de feno para os animais comerem. Helen ajudou-o na medida do possí vel, mas sentiu-se mais à vontade no galinheiro coberto, onde apanhou os ovos frescos do dia, ainda quentes do ninho. Entã o, avistou sem querer um trenó, encostado na parede de uma casinha e apontou-o com o queixo para Bolt. — Eu uso esse trenó à s vezes para levar o capim dos animais — explicou Bolt. — Encontrei-o quando nos mudamos. Provavelmente era das crianç as que moravam aqui. — Vamos dar uma volta? — perguntou Helen, com os olhos brilhantes de excitaç ã o. — Como? Empurrando? — Ué, podemos escorregar do morro! — Ah, sim, como se fosse um escorregador — comentou Bolt com um sorriso de condescendê ncia. — Isso mesmo! Bolt olhou para a paisagem em volta. — Tem um morro do outro lado da casa. Termina num riacho, que está coberto de neve no momento, mas nã o agü enta o peso de um trenó e de uma pessoa em cima. Você nã o pode descer até lá. — Eu tomo cuidado. Sei manobrar o trenó. Ah, vamos! Bolt concordou finalmente e os dois deram a volta na casa. Ali a neve estava absolutamente imaculada e Helen sentiu um prazer infantil em andar em cima do tapete fofo e deixar a marca dos pé s visí vel na superfí cie branca. O trenó era suficientemente grande para duas pessoas, mas Bolt preferiu aguardar perto do rio, embaixo do morro, para evitar qualquer imprevisto. Entretanto, apó s certificar-se de que Helen podia manobrar facilmente o trenó, concordou em descer com ela e os dois escorregaram a toda velocidade pelo morro abaixo, rindo à s gargalhadas quando o trenó virou e atirou-os sobre a neve macia. A parte mais difí cil era arrastar o trenó morro acima e as pernas dela estavam doendo quando Bolt sugeriu que era hora de encerrar a brincadeira. Voltaram para casa conversando animadamente, como dois velhos amigos, e Helen lembrou-se de que, nas duas ú ltimas horas, nã o lhe ocorrera nenhuma vez a idé ia de fugir. Tomou um banho de imersã o antes do jantar e escolheu o vestido longo de lã, estampado com tonalidades de azul e verde-escuro. A cor combinava com o tom azul-esverdeado dos olhos, e a saia comprida chamava atenç ã o para a curva redonda das cadeiras. Embora nã o confessasse isso no momento, queria fazer-se bonita para Dominic e arrumou-se com o má ximo cuidado. Adoraria que ele fizesse algum comentá rio sobre sua aparê ncia e que ela pudesse salvar seu orgulho ferido anteriormente. Sua esperanç a, poré m, nã o se concretizou. A sala de estar estava vazia quando entrou ali alguns minutos depois. Ficou parada, balanç ando o corpo de um lado para o outro, sem saber o que fazer. Logo depois Bolt apareceu. — Dominic nã o vem. Vou trazer seu jantar num minuto. — Você vai me fazer companhia? — perguntou Helen com vivacidade. — Eu gostaria muito. Bolt olhou para as mangas arregaç adas da camisa, para a calç a amassada. — Assim, desse jeito? — Nã o faz mal. Ningué m vai ao teatro depois. Bolt deu uma risada. — Tudo bem. Sente-se entã o que eu volto num instante. Bolt serviu aquela noite frango xadrez com molho de cebola, champignon e cenoura cortada em rodelinhas. Na sobremesa, pudim de chocolate com calda. Ele abriu també m uma garrafa de vinho rose e os dois beberam vá rios copos. Depois do jantar, Helen recostou-se na cadeira e sorriu de satisfaç ã o. — Você é um cozinheiro estupendo, Bolt! Onde aprendeu a cozinhar? No Exé rcito? — Na Marinha, você quer dizer? — Ué, pensei que você tinha servido o Exé rcito! Mas como você aprendeu a cozinhar? — Sozinho. Como lhe disse antes, eu faç o um pouco de tudo. — E agora está trabalhando para Dominic Lyall... — Pois é. — Você trabalhava com ele antes do acidente? — Hummmm. — Ah, você era o mecâ nico da equipe? — Exatamente. — Foi um acidente horrí vel, pelo que ouvi contar. — Dois homens morreram na hora. — Você os conhecia? — Um deles era irmã o de Dominic. — Nã o! Isso eu nã o sabia! — Muita gente nã o ficou sabendo — explicou Bolt. — Ele corria com outro nome. Para nã o ser confundido com o irmã o... — Que horror! — Pois é. — Bolt colocou a garrafa de vinho vazia na bandeja e começ ou a recolher os pratos. — Você devia ser uma adolescente na é poca. — Eu tinha dezesseis anos. Meu pai adorava as corridas e tinha todas as fotografias, bem como as reportagens que saí am nas revistas. Ele ficou muito abalado com o acidente. — Todos nó s ficamos — murmurou Bolt com um suspiro. — Mas vamos conversar sobre algo mais alegre. Conte-me como está Londres. Faz anos que nã o vou lá. — Londres? — repetiu Helen batendo com a ponta do dedo nos braç os forrados da cadeira. — Londres continua na mesma... — Você nã o gosta de lá? — Nã o muito — disse com um sorriso. — Por quê? Nã o é sua casa? — Bem, eu moro lá — corrigiu com delicadeza. — Mas seus pais estã o lá? Seu pai, pelo menos. — Meu pai e minha madrasta. A madrasta tradicional, chata e implicante. — Você nã o gosta dela? — De quem? De Isabel? Deus me livre. Ela lá e eu aqui. A gente se tolera uma à outra porque nã o tem outro jeito. — Ela tem outros filhos? — Nã o. — E seu pai? — També m nã o. Sou a filha ú nica, infelizmente. — Torceu o nariz. — Para desgosto de Isabel. — Por quê? — Ah, isso é uma histó ria muito comprida... que nã o iria interessar a você. — Quem sabe? Helen franziu a testa, como se nã o lhe agradasse falar nesse assunto. — Eu tinha doze anos quando papai casou pela segunda vez. Com Isabel. Ela queria naturalmente ter filhos, mas nã o houve jeito. Papai, por sua vez, nã o quis adotar uma crianç a. — Helen deu uma risadinha. Eu devia dar graç as a Deus, mas nã o dou... — Seu pai dirige uma companhia de engenharia? — Exatamente. A Thorpe Engenharia. Ele é o diretor executivo. Ele teve muita sorte nos negó cios, porque nó s está vamos à beira da falê ncia quando mamã e morreu. — Como ele fez para ter sucesso? — Casou-se com Isabel Thorpe. — Ah, entendo. Com a filha do só cio... — Exatamente. — Helen fez uma careta. — E eu fui mandada para o colé gio interno, onde fiquei até terminar o giná sio. — Seu pai julgava, naturalmente, que seria melhor para você... — Melhor para mim? — Para todos você s, em suma. — Nã o, nã o foi isso. Meu pai era... e continua sendo... um homem muito ambicioso. Mamã e o mantinha na linha enquanto estava viva... — Helen deu um suspiro. — Ele ainda tem ambiç õ es, só que agora precisa da minha colaboraç ã o. — Foi por isso que você fugiu de casa? — Hummm. — 0 que ele pretendia desta vez? Casá -la com um homem rico? — Exatamente! Como você adivinhou? — Bem, só podia ser isso — disse Bolt com um risinho. — Quem é o felizardo? — Algué m cujo pai é dono de uma companhia à qual meu pai tem interesse em associar-se. Sem falar que o avô dele é da aristocracia rural, como eles dizem. — Annn! — murmurou Bolt com um movimento da cabeç a. — Um partido e tanto! Helen fez um gesto de condescendê ncia. — Mike é legal. Eu gosto dele. Nó s nos divertimos muito na companhia um do outro. Mas nã o sinto amor por ele. — Nem um pouquinho? — Nã o, nem um pouquinho. Conheci muitos rapazes até hoje... e alguns homens maduros.. mas nunca encontrei ningué m com quem quisesse casar. Alé m disso... alé m disso... acho que nã o estou interessada nisso, no momento. — Verdade? — Juro por Deus! — disse Helen com um risinho. — Ah, a culpa é deste vinho que nó s tomamos. Ele me soltou a lí ngua. Eu nã o costumo me abrir desse jeito com os outros... — Talvez esteja na hora — disse Bolt calmamente. — Você nunca conversa com sua madrasta? — Com Isabel? Deus me livre! Nã o falaria nunca dessas coisas com ela. — Porquê? — Primeiro porque ela nã o se interessa a mí nima! Ela é uma egoí sta de marca maior... — E seu pai? — Papai conversa comigo, é verdade, mas nunca ouve o que eu digo. Especialmente quando é alguma coisa que ele nã o deseja ouvir.
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