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A Força do Desejo 3 страницаDominic afastou-se para lhe dar passagem e fechou a porta atrá s de si. Trocara de roupa e estava com uma camisa encarnada de seda, calç a bege de couro, justa no corpo, e um colete marrom. Parecia bem disposto, completamente recuperado da fadiga anterior. Bolt, pelo visto, era um excelente massagista. Helen dirigiu-se à lareira, sem desviar os olhos de Sheba, que a seguia de perto. O fogo consumia os troncos grandes e a mesa onde tinham tomado chá estava coberta agora com uma toalha xadrez. Dominic apontou para a cadeira de braç os onde ela sentara antes. — Sente-se, por favor. Você toma alguma coisa antes do jantar? Ele se comportava como se ela fosse uma convidada habitual da casa, pensou Helen furiosa. Esperava, porventura, que ela aceitaria de boa vontade seu papel? Como ele podia ter a audá cia de supor que ela nã o ia se pronunciar sobre o assunto? — Escute — começ ou Helen, dizendo a primeira coisa que lhe passou pela cabeç a. — Eu nã o desci do quarto para lhe fazer companhia... Eu quero as chaves, as chaves das minhas malas. Você nã o tem o direito de guardá -las. Eu nã o pude nem trocar de roupa! Dominic franziu a testa, enfiou a mã o no bolso e retirou o chaveiro. Examino u detidamente as chaves e falou em voz baixa: — Desculpe, nã o tinha pensado nisso. Quais sã o as chaves das malas? Helen encarou-o em silê ncio durante um instante, com a fisionomia tensa. Em seguida, sem pensar nas conseqü ê ncias, deu um passo à frente e tentou arrancar o chaveiro da mã o dele. Ela nã o sabia exatamente o que pretendia fazer quando o tivesse consigo. Talvez saí sse no meio da noite, desse partida no carro que estava afundado na neve, fugisse dali e nunca mais voltasse... fantasias bastante remotas e irrealizá veis no momento. Mas ela tinha que fazer alguma coisa, qualquer coisa, para mostrar ao homem arrogante e autoritá rio que nã o era tã o indefesa quanto parecia à primeira vista. Seu esforç o contudo nã o teve ê xito. Os dedos dele apertaram o chaveiro com forç a quando ela avanç ou sobre ele e a tentativa frené tica para abrir os dedos contraí dos foi inteiramente inú til. Apesar do defeito na perna, Dominic tinha uma forç a descomunal nas mã os, como Helen percebeu imediatamente. Quando saltou sobre ele, pensou que ia fazé -lo perder o equilí brio, mas ele nã o perdeu, e ela encontrou apenas a resistê ncia rija do corpo musculoso. Ela nã o percebeu que o guepardo acompanhava a cena com as orelhas em pé, os olhos atentos, e que só nã o a atacou graç as a uma ordem do dono pronunciada em voz baixa. Enquanto lutava para arrancar o chaveiro dos dedos fechados, Helen tomou consciê ncia do seu adversá rio, pela primeira vez, de uma forma í ntima. Sentiu o calor do corpo moreno e seu perfume penetrante. Entretanto, quando levantou a cabeç a e encontrou o sorriso irô nico nos lá bios finos, recuou um passo com uma exclamaç ã o de ó dio. — Seu bruto! Essas chaves sã o minhas. Eu as quero de volta! — Você está se comportando como uma crianç a — disse Dominic levantando as sobrancelhas. — Eu me ofereci para lhe dar as chaves das malas. Helen balanç ou a cabeç a de um lado para o outro com um gesto de desâ nimo. — Por que você está fazendo isso? Por que nã o me deixa ir embora? — Agora? — Nã o. Amanhã cedo. — Encarou-o com os olhos suplicantes. — Por favor. — Nã o insista! — exclamou Dominic com impaciê ncia. — Eu nã o gosto de fraqueza. Helen teve a sensaç ã o exata de receber um tapa no rosto. Com a mã o na garganta, afastou-se dele e apoiou-se no encosto do sofá, procurando recompor-se da humilhaç ã o. As lá grimas ardiam no fundo dos olhos e estava prestes a explodir no choro. Sentia-se tremendamente sozinha e perdida naquela casa, incapaz de qualquer pensamento coerente. Nem mesmo o olhar maldoso de Sheba foi capaz de despertar um sentimento de agressividade no seu í ntimo. — Tome. Beba isso! Dominic colocou um copo na mã o dela. Helen olhou para a bebida com os olhos arregalados, sem saber o que era. — O que é isso? — Conhaque. É bom para os nervos. Ela se sentiu tentada a atirar o copo no chã o, mas precisava urgentemente de um gole de á lcool. Levou o copo aos lá bios trê mulos e provou a bebida com hesitaç ã o, depois virou o resto com um movimento repentino da cabeç a. O conhaque ardeu na garganta e ela tossiu, enquanto as lá grimas umedeciam os olhos, mas podia sentir o calor gostoso que começ ava a circular pelas veias. Dominic deu a volta no sofá e, sem esperar por ela, sentou-se na cadeira de braç o defronte da lareira. Serviu-se do uí sque que estava na bandeja eapanhou uma cigarrilha preta na caixa de metal. Tirou uma brasa da lareira e fumou a cigarrilha com verdadeiro prazer. Helen observou-o em silê ncio, atrá s do sofá. Era incrí vel como ele se punha a vontade sabendo que ela estava um trapo! Depois de puxar duas ou trê s tragadas, Dominic deixou a cigarrilha presa entre os dentes e enfiou novamente a mã o no bolso, para pegar o chaveiro. Examinou-o cuidadosamente, retirou duas chaves do anel e atirou as outras na direç ã o dela. Helen, poré m, nã o foi suficientemente rá pida para apanhá -las no ar e elas caí ram a seus pé s. Com um sentimento de humilhaç ã o, abaixou-se para pegá -las e notou que ele havia retirado a chave do carro e a chave menor que abria o porta-malas. — Está satisfeita agora? — perguntou, esticando as pernas. — Vai sentar-se aqui? Helen apertou os lá bios com despeito. — Nã o. Eu vou para o quarto. Espero que você mude de idé ia amanhã. — Nã o conte muito com isso — disse Dominic com um sorriso de zombaria. — Você é odioso! —Suas palavras nã o me ferem. — Observou-a afastar-se em direç ã o à porta. — Você nã o ouviu dizer que a guerra é travada no estô mago das tropas? Se você nã o jantar hoje, estará morta de fome amanhã cedo. Helen levantou o queixo como se aceitasse o desafio. Nesse ponto pelo menos ela era livre. Ningué m podia forç á -la a comer. — Eu nã o conseguiria engolir sua comida! — disse com raiva. — Você me enjoa. Antes que saí sse dignamente, apó s pronunciar essas palavras teatrais, Bolt entrou com a bandeja na mã o. Ela nã o podia. ver o que havia, mas o cheiro do franguinho assado era inconfundí vel. Com á gua na boca, viu també m o pote de creme de leite que acompanhava a torta de maç ã. Bolt fitou-a com surpresa. — Achei melhor servir o jantar na sala, que está mais quente. — Boa idé ia — disse Dominic alegremente. — Você me faz companhia, Bolt? Bolt olhou boquiaberto para Helen. Ela estava parada perto da porta, hipnotizada pelo cheiro da comida. Nã o fazia idé ia, até aquele minuto, que estava morta de fome, e arrependeu-se amargamente das palavras á speras de antes. — Nã o vai jantar conosco? — perguntou Bolt por fim. — Ela nã o está com fome — disse Dominic. — Está meio enjoada, pelo visto. Dominic voltou-se para Helen, que estava na dú vida se ia ou nã o voltar atrá s, mas a crueldade do comentá rio levou-a a tomar uma decisã o imediata. — Muito enjoada, por sinal — disse com um ligeiro tremor na voz. — Nã o costumo comer com qualquer um! Saiu da sala e bateu a porta com toda a forç a atrá s de si. Parou um momento no corredor, com o coraç ã o batendo. Esperava que Dominic saí sse ao seu encalç o e a punisse pelas palavras rudes que dissera. Tudo que ouviu, poré m, foi a gargalhada sonora, inconfundí vel, e ela sabia que o segundo copo na bandeja seria usado por Bolt...
CAPÍ TULO III A cama era muito confortá vel e as garrafas de á gua quente lembravam sua infâ ncia, quando a mã e se sentava na beira da cama e lhe contava uma histó ria antes de dormir. Só que agora ningué m lhe fazia companhia... Ela achou que ia passar a noite em claro, mas acabou sucumbindo ao cansaç o e. ao abrir novamente os olhos, o quarto estava inundado pelo brilho intenso do sol refletido na neve. Durante alguns segundos, nã o soube onde estava. Logo depois, no entanto, as recordaç õ es da vé spera acudiram atropeladamente na sua cabeç a. Estava na regiã o dos laç os, ao norte da Inglaterra, hospedada na casa de um homem que mancava e que tinha um guepardo de estimaç ã o. Passou o braç o para fora do cobertor e olhou para o reló gio de pulso. Quase nove e meia. Nã o era possí vel! Dormira quase doze horas! Jogou para o lado as cobertas, pulou da cama e correu até a janela. Com a luz do dia podia enxergar onde estava, ter uma idé ia melhor da casa. A vista da janela, contudo, era bastante limitada. Avistava apenas o gramado coberto de neve e o fundo do quintal. Bem embaixo da janela uma á rea fora limpa recentemente, talvez por Bolt, e havia passos visí veis sugerindo que algué m saí ra de casa. Helen soltou a cortina e examinou o quarto com atenç ã o. Era tã o gostoso durante o dia quanto à noite, embora as roupas que saí am para fora da mala aberta dessem uma impressã o desagradá vel de bagunç a. Estava tã o cansada na vé spera, e tã o preocupada com os acontecimentos recentes, que só tivera â nimo para procurar a roupa de dormir e cair na cama. Helen achou preferí vel ignorar a desordem no momento e foi diretamente ao banheiro. Gostaria de tomar um banho de chuveiro, mas nã o havia boxe no banheiro e levaria muito tempo para encher a banheira com á gua quente. Contentou-se em escovar os dentes e lavar o rosto na á gua fria. Voltou em seguida para o quarto, à procura de uma roupa para vestir. Tinha acabado de puxar o zí per da calç a quando ouviu uma batida na porta. Imediatamente seu coraç ã o disparou. Permaneceu um momento em silê ncio, com a respiraç ã o presa, pensando quem podia ser. — Você está acordada? — perguntou Bolt do outro lado. — Sim, estou. O que você quer? — Trouxe seu café. Achei que você devia estar com fome. Helen hesitou um segundo. Sentiu a tentaç ã o de agradecer ao criado e recusar o café, como se estivesse numa greve de fome até receber a liberdade definitiva. No ú ltimo instante, poré m, achou que a tá tica nã o ia dar certo com um homem indiferente como Dominic Lyall. Ele a deixaria morrer de fome sem mexer um dedo. — Num minuto! — exclamou, vestindo um pulô ver e ajeitando os cabelos enquanto abria a porta. Bolt estava do lado de fora, alto, forte, simpá tico. Com a camisa xadrez de algodã o, cujas mangas estavam enroladas na altura dos cotovelos mostrando os mú sculos desenvolvidos dos braç os, e a calç a folgada de flanela, Bolt nã o tinha absolutamente a aparê ncia de copeiro, mas a bandeja que trazia nã o podia estar mais bem arrumada e apetitosa. — Cereais, ovos fritos com bacon, torradas, gelé ia e café — enumerou ele em voz alta, como se recitasse uma liç ã o. — Você quer mais alguma coisa? Helen arregalou os olhos para a bandeja, como se fosse um sonho. Voltou-se em seguida para Bolt, com o rosto levemente corado. — Que maravilha! Eu estava faminta. — Foi o que o patrã o disse. — Ah. é? Bolt deu um suspiro. — Você nã o vai querer comer por causa disso? Helen hesitou um instante. — Bem que gostaria — disse com rebeldia. — Que adianta você passar fome por causa dele? Helen levantou os ombros. — Pois é. Eu sei que nã o adianta nada. — Entã o, seja compreensiva. Tome seu café com calma. Venho buscar a bandeja depois. Helen fitou o criado na dú vida. — Escute, Bolt. Quanto tempo eu vou ficar presa aqui? Bolt caminhou para a porta. — Tome seu café primeiro. Depois a gente conversa sobre isso. Ele fechou a porta atrá s de si e Helen olhou com frustraç ã o para as almofadas na sua frente. Por que Bolt sentira pena de sua situaç ã o? Ele era um criado submisso que jamais desobedeceria à s ordens do patrã o! No momento, poré m, o cheiro do bacon torrado fez Helen esquecer sua resoluç ã o anterior. Levantou a tampa da bandeja e comeu tudo o que havia com enorme apetite. Em geral, torradas com gelé ia eram suficientes para ela, mas aquela manhã estava morta de fome. Raspou o prato e terminou com trê s fatias grossas de pã o com manteiga. O café estava excelente e, depois da segunda xí cara, sentiu-se gente de novo. Limpou os dedos e a boca no guardanapo de papel, levantou-se e foi mais uma vez à janela. O que faria agora? Bolt dissera que voltaria para apanhar a bandeja. Isso queria dizer que devia ficar trancada no quarto? Sua natureza rebelde revoltou-se contra essa idé ia. A despeito dos aspectos desagradá veis de sua situaç ã o, a manhã estava linda e adoraria dar um passeio lá fora. Pensou no pequeno hotel onde pretendia hospedar-se. Tinha planejado fazer passeios a pé e de carro, desfrutar ao má ximo a liberdade absoluta, longe das exigê ncias paternas, mas agora estava numa situaç ã o ainda mais delicada e tinha menos liberdade do que na sua pró pria casa... Ao pensar no pai, ficou curiosa em saber se recebera o bilhete que escrevera. Ela o pusera no correio em Londres, na vé spera de viajar para o Norte. Nã o queria dar uma pista carimbando a carta numa cidadezinha do interior. Agora, poré m, preferia que nã o tivesse ocultado tã o bem seu paradeiro. Ningué m iria procurá -la nessa regiã o e, mesmo que a procurassem, como a encontrariam naquela casa isolada? Se Dominic morara ali durante anos numa solidã o completa, era pouco prová vel que algué m fosse encontrá -la tã o cedo. Sobretudo porque, para todos os efeitos, ele era dado como morto. Helen franziu a testa. Mas algué m devia saber que ele estava vivo. Algué m fornecia mantimentos para a casa, leite, ovos, sem falar no correio. Ela se animou com essa idé ia. Se Dominic tinha a intenç ã o de prendê -la ali, teria que aumentar as provisõ es da casa e talvez o fornecedor desconfiasse de alguma coisa ao notar o aumento nos pedidos. Deu um suspiro. Bolt podia contar na cidade que eles tinham uma hó spede em casa. Quem iria duvidar ou suspeitar de alguma coisa? Sua ú nica chance era algué m passar pela casa. O carteiro, por exemplo. Mais animada com essa idé ia, Helen pensou numa maneira de chamar a atenç ã o do possí vel visitante. Dominic, naturalmente, faria todo o possí vel para ela nã o ser vista na casa, por isso tinha que usar de algum artifí cio para chamar algué m em seu socorro. Quem sabe jogar um bilhete da janela? Nã o, isso nã o! O bilhete podia afundar na neve ou ser levado pelo vento. Mas quem sabe essa nã o era uma boa idé ia? Se tivesse seu nome e endereç o... Um sentimento de desespero apoderou-se dela. Como podia pô r o endereç o se nã o fazia idé ia de onde estava? Onde ficava a casa? Nã o sabia. Nã o se lembrava nem mesmo do nome da cidadezinha onde pedira informaç õ es sobre o caminho a seguir. Uma outra onda de esperanç a inundou-a. Os moradores da cidadezinha. O chefe do correio! Ele se lembrava certamente da moç a que tomara informaç õ es. Afinal, nã o havia muitos turistas passando por ali naquela é poca do ano. Sim, se fosse interrogado, ele certamente se recordaria da moç a de cabelos pretos e botas de cano longo que descera do carro, defronte, do correio, e pedira informaç õ es para chegar em Bowness. E ele indicaria a direç ã o que ela tomara. Helen apertou as mã os com forç a. Quanto trabalho para encontrar esperanç a numa situaç ã o desesperada! Quem ela estava querendo iludir? A si mesma? No fundo, tudo dependia do pai procurá -la, mas ele podia, em vez disso, esperar calmamente ela voltar para casa. Mas se procurasse por ela, se vasculhasse todos os lugares onde ela podia estar, se lembrasse das fé rias que os dois passaram na regiã o dos lagos, se viajasse para o Norte e encontrasse a cidadezinha onde ela pedira informaç õ es... Ah, tudo dependia de tantos ses! Era impossí vel. E à medida que os dias — as semanas! — passassem, o chefe do correio, naquela minú scula cidade perdida no mapa, iria certamente esquecê -la. E, mesmo que lembrasse, ela dera tantas voltas ao sair dali que podia estar em dezenas de outros lugares. Restava finalmente a notí cia nos jornais. O pai podia perder a cabeç a e divulgar o caso. Se o retrato dela saí sse na primeira pá gina dos jornais, era possí vel que algué m... Uma batida na porta interrompeu seu devaneio. — Pode entrar! Bolt abriu a porta e passou a cabeç a pelo vã o. — Já terminou o café? — Já, muito obrigado, Bolt. Estava uma delí cia. Acho inclusive que comi demais. Bolt deu um sorriso de satisfaç ã o. — Ainda bem! Tudo se torna mais fá cil com a barriga cheia. — Você acha? — Tenho certeza. Você vai descer? — Eu posso? — Você pode fazer o que tiver vontade. — Ah, é? Onde está o patrã o? Helen se recusava a chamar Dominic pelo nome. — Está no escritó rio — disse Bolt, apanhando a bandeja na mesinha de cabeceira. — Ele está ocupado? Bolt balanç ou os ombros como se nã o quisesse se pronunciar a respeito. Avistou entã o as malas abertas no chã o. — Vou arrumar sua roupa quando voltar para fazer a cama. Helen ficou horrorizada com a idé ia. — Pode deixar! Nã o precisa se incomodar. — Isso nã o me dá trabalho nenhum. Num instante eu arrumo tudo no armá rio. — Prefiro arrumar pessoalmente — insistiu Helen. Bolt nã o respondeu. Caminhou diretamente para a porta. — A manhã está linda. Você nã o gostaria de dar uma volta lá fora? — Lá fora? — exclamou Helen excitada. — O que ele vai dizer? Eu posso fugir. — Olha, acho bom você nã o arriscar — disse Bolt com um sorriso. — Sheba foi treinada para caç ar veados. Ela poderia correr atrá s de você. — Ah, você nã o sabe o que aconteceu ontem! — exclamou Helen com um calafrio, ao se lembrar de sua aventura no dia anterior. — Me contaram — disse Bolt. saindo do quarto com um leve movimento da cabeç a. Helen lanç ou um olhar rá pido para a cama desarrumada e acompanhou Bolt pelo corredor sombrio. Desceram para o andar té rreo, atravessaram uma porta e foram dar numa cozinha enorme. O chã o de azulejos estava imaculadamente limpo e brilhante. Embora a cozinha tivesse sido modernizada recentemente, com pias de aç o inoxidá vel e escorredores de metal, havia ainda o fogã o enorme que tinha sido no passado a peç a principal da cozinha e uma lareira de ferro fundido, onde a lenha seca crepitava alegremente. Uma porta estreita comunicava com a despensa, mas nã o havia pernil pendurado no gancho, nem fieiras de cebolas, somente um congelador enorme que parecia um caixã o de defunto. Mesmo assim, a cozinha era muito jeitosa e Helen examinou-a com interesse. Bolt colocou a bandeja em cima da pia e começ ou a lavar os pratos sujos embaixo da torneira. Lanç ou um breve olhar para Helen. — Você acha que o serviç o de copeiro combina comigo? Helen balanç ou os ombros e aproximou-se da mesa que ocupava o centro da peç a. Correu a ponta do dedo entre os grã os que estavam espalhados em cima da tá bua. — Nã o sei... Talvez nã o combine muito com seu tipo fí sico. Você parece mais um atleta... Bolt deu uma risada. — Eu també m acho. — Mas você tem outras ocupaç õ es alé m dessa, nã o é mesmo? — Eu faç o um pouco de tudo — disse Bolt esfregando as mã os na á gua morna com detergente. — Servi o Exé rcito quando era moç o, depois lutei boxe durante algum tempo, mas desisti. Nã o leva a nada, pode crer. Depois trabalhei uns tempos como mecâ nico. — Fez uma pausa. — Agora sou copeiro e arrumadeira... — Você deve gostar muito do seu patrã o... — Nã o posso me queixar. Ele é um camarada muito legal. — Acredito. Faz muito tempo que você o conhece? — Uns vinte anos, mais ou menos. — Mas você trabalha para ele todo esse tempo? — Para ele... com ele... que diferenç a faz? Seu pai foi meu comandante quando estava no Exé rcito. — Ah, é? Helen aproximou-se da pia onde estava o escorredor. Janelas grandes davam para o pá tio nos fundos da casa, onde havia á rvores desfolhadas e as demais dependê ncias. — Diga uma coisa, Bolt. Onde você s fazem as compras para a casa? Os mantimentos frescos, como leite, ovos, verduras... Sem falar no correio, naturalmente. — Bem, nosso correio é mandado para a caixa postal — respondeu Bolt desfazendo as esperanç as que Helen podia ter nesse sentido. — Fora isso, temos algumas vacas e galinhas. No verã o, plantamos frutas e legumes que congelamos para o resto do ano. Somos bastante auto-suficientes, para falar a verdade. Eu asso inclusive o pã o aqui. — Ela está querendo passar a perna na gente — disse uma voz irô nica atrá s deles. Helen voltou-se bruscamente e viu Dominic encostado no batente da porta. Estava novamente todo de preto e, apesar do tom claro dos cabelos, tinha uma aparê ncia terrivelmente satâ nica! Inclinou a cabeç a com um leve movimento em direç ã o a Helen. — Bom dia. Dormiu bem? Nã o estranhou a cama? Bolt me contou que você já tomou café. Gostou de nossa cozinha? Helen preferia dizer que nã o tinha tocado na comida, mas era impossí vel. Em vez disso, assumiu uma posiç ã o de defesa. — O que você acha que meu pai vai fazer quando souber que você me prendeu aqui contra minha vontade? — Eu acho que isso só criaria dificuldades para você. — Para mim? — exclamou Helen, apanhada de surpresa. — Para você, isso sim! — Por que haveria de criar problemas para mim? Eu nã o estarei mais no paí s. Você sim, estará. — Você acha mesmo que ele vai deixar as coisas ficarem nesse pé? Ele vai encontrá -lo, nem que seja no fim do mundo! — Nã o diga! — zombou Dominic. — Se os jornalistas nã o descobriram meu paradeiro durante anos, nã o preciso me preocupar muito com os esforç os do seu pai. — Ele pode divulgar a histó ria nos jornais! Pode pagar investigadores particulares! — Ah, é? — Dominic balanç ou a cabeç a pensativamente. — Isso é interessante. E dizer que ainda ontem você jurou que nã o ia revelar nada a ningué m. — Ontem era diferente — disse Helen sem jeito. — Mas agora você mudou de idé ia? — Sim, mudei. Ou melhor, estou lhe prevenindo apenas para nã o brincar com meu pai. Ele é uma fera quando se irrita. — Isso é uma ameaç a, porventura? — É, é isso mesmo! — exclamou Helen, perdendo a paciê ncia. — Se você me deixar ir embora, vou esquecer que estive aqui. Se nã o me deixar... bem, eu nã o me responsabilizo pelas conseqü ê ncias. — Entendo. É bom você avisar. — Voltou-se para Bolt: — Você me faz um café? Vou descansar um pouco na sala. — Pois nã o — disse Bolt com um sorriso. Helen sentiu-se absolutamente ridí cula e sobrando no meio dos dois homens. Dominic observou seu rosto tristonho com condescendê ncia. — Você toma um cafezinho comigo? — Nã o, muito obrigada! — Bem, como você preferir. Ele balanç ou os ombros e saiu da cozinha, deixando a porta fechar sozinha nas suas costas. Logo depois Helen arrependeu-se de sua indelicadeza. Sua ú nica chance de fugir era persuadi-lo a mudar de idé ia e nã o iria conseguir isso enquanto se comportasse como uma crianç a mimada. Sentou-se na beira do banquinho diante da mesa comprida, onde estavam espalhados os grã os de feijã o e observou Bolt passar o café no coador, depois encher um pote com creme de leite fresco. Arrumou tudo numa bandeja de prata. — Você quer levar para mim? — perguntou. Helen levantou a cabeç a. — Levar o quê? — Levar a bandeja à sala. — Como você quiser — disse Helen com o rosto abatido. — Posso dar uma sugestã o? - Qual é? — Nã o fique triste. Leve a coisa na esportiva. Meu patrã o nã o gosta de ser contrariado. — Essa é boa! — exclamou Helen, sem conter por mais tempo sua irritaç ã o. — E o que você quer que eu faç a? Que fique de braç os cruzados até ele me mandar embora? — Talvez. — Você está sonhando! — Por quê? Dominic nã o é menos homem por causa de seu defeito na perna. Ele continua saudá vel e forte como antes... — Onde você quer chegar? — disse Helen, levantando-se da cadeira. — Seja compreensiva — disse Bolt, despejando o café no bule escaldado previamente. — O fato dele viver sem mulher nã o significa que ele nã o tenha as necessidades normais de um homem viril. Helen apertou as unhas na palma da mã o. — Ah, é? Pois eu pensava que você satisfizesse as necessidades dele! — exclamou com raiva. — Nã o, nã o é bem assim — disse Bolt sem se abalar. — Dominic nã o é desse tipo. Helen nã o sabia onde se enfiar. Ela nunca se comportara tã o mal na vida e o fato de despejar em cima de Bolt a raiva que sentia por Dominic encheu-a de vergonha e de desprezo por seu comportamento injusto. — Ah, desculpe o que eu disse, Bolt! —- exclamou, levando as mã os ao rosto vermelho. — Foi sem querer! Bolt colocou a tampa no bule e empurrou a bandeja na direç ã o dela. — Nã o foi nada. Você está um pouco nervosa. Procure relaxar. Nada é tã o mau quanto a gente imagina. Agora leve o café para Dominic. Ele está na sala. Eu pus duas xí caras no caso de você querer lhe fazer companhia. Helen deixou as mã os caí rem ao lado do corpo e torceu a boca. — Você nã o volta atrá s, nã o é mesmo? — Sou otimista por natureza — comentou Bolt, fazendo massagem nos mú sculos dos ombros. — Sabe qual é a porta da sala? — Acho que sim. — Helen apanhou a bandeja e caminhou em direç ã o à porta da cozinha. Voltou-se de lá. — Muito obrigada pela sugestã o, Bolt. — Isso faz parte do serviç o — disse Bolt balanç ando a cabeç a.
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