|
|||
CAPÍTULO IIFez-se um silê ncio e Iain Huntley percebeu de repente que nã o conseguiria suportar a perspectiva de destruir o idealismo e o apreç o que a garota sentia pela Í ndia, revelando-lhe os detalhes só rdidos e revoltantes relativos aos thuggee. Devido ao fato de sentir-se um tanto surpreendido pelas revelaç õ es que Brucena havia feito a respeito de si mesma, disse em um tom de voz mais ené rgico do que desejaria: — Espero, srta. Nairn, que suas idé ias a respeito da Í ndia nã o sejam modificadas devido a sua estada em Saugar. — Acho que o lugar me parecerá muito interessante, qualquer que seja sua aparê ncia, mas ainda estou à espera de que o senhor me fale sobre os thugs. — É algo que nã o tenho a menor intenç ã o de fazer e penso que verificará que seus primos sentem o mesmo que eu. Quanto menos se falar deste assunto, melhor! Talvez o modo como ele se exprimia fosse desagradá vel ou talvez ela tivesse ficado desapontada por nã o ouvir o que queria saber, mas, Brucena sentiu que se encolerizava. Desde que encontrara aquele homem, ele se mostrava decidido a colocar obstá culos em tudo e ela ainda achava que deveria ter salvo o bebê. Só nã o o fizera porque ele a impedira, trazendo-a de volta para o trem. Era um homem bonito, para aqueles que apreciavam uma aparê ncia tã o britâ nica, mas havia nele algo de rude e decidido. Quase chegou a sentir pena dos thugs, pois ele era uma daquelas pessoas que os perseguiam e os entregavam à Justiç a. Disse em voz alta: — É ó bvio, major Huntley, que no que lhe diz respeito, nã o sou bem-vinda a Saugar. — A senhorita nã o é minha hó spede e cabe ao capitã o Sleeman e à sua esposa dar-lhe as boas-vindas. Brucena compreendeu de repente que se eles tomassem a mesma atitude do major, teria de encontrar um outro lugar que a recebesse e isso poderia ser muito difí cil. Olhou para fora da janela e certificou-se, ao contemplar a paisagem que desfilava diante de seus olhos, que desejava, com intensidade quase apaixonada, que a Í ndia lhe proporcionasse sensaç õ es que a Escó cia jamais conseguiria lhe transmitir. Havia nela algo caloroso, algo que nã o conseguia colocar em palavras. Por isso sentira-se muito bem, quando partira de Bombaim. Tratava-se de qualquer coisa que se refletia na luminosidade dos dias e na escuridã o das noites. — Isto tudo me fala ao coraç ã o — disse para si mesma. Sentia, poré m, que já havia revelado muito de seus sentimentosmais í ntimos ao major Huntley e que ele nã o os entenderia. Permaneceram em silê ncio e devido ao fato de que ela havia voltado o rosto para outro lado, ele conseguiu distinguir seu perfil. Era impossí vel deixar de admirar seu nariz pequeno e reto, as curvas delicadas de seus lá bios e o queixo voluntarioso. «Ela deveria voltar para a Escó cia, pois lá é o seu lugar», pensou, preocupado. Entã o disse a si mesmo que estava sendo desnecessariamente alarmista. Dentro em pouco ela estaria com os Sleeman e a vida social tã o restrita que havia em Saugar a receberia de braç os abertos. A exemplo do que acontecia com as garotas na Í ndia, seria convidada para partidas de tê nis e jantares, nos quais, se houvesse homens em quantidade suficiente, ela poderia danç ar. — Nã o pode lhe acontecer nada de mal se ela se limitar a este tipo de vida — disse Iain Huntley para si mesmo. Tinha, poré m, a sensaç ã o desagradá vel de que, em se tratando de Brucena, aquilo nã o seria suficiente. — Espero — disse apó s um momento de reflexã o — que o capitã o Sleeman providencie para que a senhorita visite seus amigos em outras regiõ es da Í ndia, onde apreciará paisagens bem mais belas e templos magní ficos, que em Saugar nã o existem. — Está tentando livrar-se de mim? — indagou Brucena, com uma entonaç ã o divertida. — Parece ter esquecido, major, de que preciso trabalhar. — Como babá... Nã o consigo vê -la neste papel. — No entanto, foi por esta razã o que eu vim e tenho certeza de que nã o acharei difí cil aprender o que é esperado de mim. Ao dizer essas palavras, pensava no que Amelie Sleeman tinha escrito em seu francê s tã o elaborado. Mais tarde Brucena ficou sabendo que devido ao fato de seu marido falar francê s muito bem, ela nunca chegou a dominar completamente o inglê s. «Nã o quero uma babá empertigada e rí gida, que desprezaria a mim e a meus mé todos. Quero uma moç a inglesa ou escocesa que me ajudará a cuidar de meu bebê e em quem eu confie a ponto de saber que ela nã o lhe dará ó pio a fim de mantê -lo em silê ncio, ou qualquer dessas drogas infernais que os Ayahs empregam, quando ningué m os está olhando. » Naquele momento a colocaç ã o lhe parecera bastante simples, mas agora Brucena imaginava que talvez a prima Amelie estivesse pensando em algo bem mais sinistro do que em um Ayah preguiç oso que desejasse fazer a crianç a ficar quieta. Os thugs, sem sombra de dú vida, odiavam o primo William pelo modo como ele os reprimia e os impedia de realizar aquilo que para eles era uma tarefa sagrada. Que melhor vinganç a haveria do que estrangular seu filho ou mesmo sequestrá -lo a fim de educá -lo dentro do culto que ele estava destruindo? Lera em um livro que quando os thugs matavam viajantes e eliminavam seus traç os, algumas vezes levavam em sua companhia, alé m de tudo que tivesse valor, uma crianç a especialmente bonita. Dizia-se que eles ensinavam-na a se tornar um thug ou entã o, o que era muito mais assustador, sacrificavam-na à deusa Kali. Brucena estremeceu ao pensar que pudesse acontecer uma coisa dessas ao bebê da prima Amelie e disse a si mesma que sua imaginaç ã o seguia rumos absurdos. Talvez os thugs nã o fossem tã o maus assim como pintavam. O misté rio que o major Huntley criava em torno deles apenas intensificava a sensaç ã o de que ela deveria conhecer mais coisas a seu respeito e nã o deveria ser mantida na ignorâ ncia da verdade, como ele obviamente desejava. — Tive o azar de encontrar no momento em que cheguei à Í ndia um homem que nã o tem a menor vontade de me agradar e que nã o somente coloca obstá culos em minhas tentativas de descobrir o que desejo, como també m gostaria de se ver livre de mim. Disse a si mesma que lutaria contra ele com todas as armas que estivessem a seu alcance. Tinha certeza de que ele tentaria convencer sua prima que ela nã o somente era inadequada para a profissã o que viera exercer, como també m representaria um perigo a mais em um tipo de vida que, em si, encerrava todos os perigos possí veis e imaginá veis. «Se prima Amelie consegue enfrentá -la, eu també m conseguirei», pensou Brucena. Ao mesmo tempo mostrava-se apreensiva e enquanto o trem deslizava sobre os trilhos que os levaria a Saugar, ela constatou que gostava cada vez menos do homem que se sentava diante dela. — C’est impossible! Nã o acredito que você esteja aqui de verdade — disse Amelie Sleeman naquela mesma noite, depois de terminarem o jantar à luz de velas. Os abanadores acima de suas cabeç as faziam com que as chamas se inclinassem para cá e para lá, como se estivessem a bordo de um navio. Brucena sorriu para ela e em seguida para seu primo. — Tive medo de que se zangassem comigo por eu ter vindo — respondeu. — Nã o, claro que nã o estamos zangados — respondeu a sra. Sleemen em seu inglê s precá rio e encantador -, mas nunca sonhamos, mon mari et moi, ao recebermos seu telegrama, que você viria em pessoa, em vez de mandar uma jovem escocesa. — Elas ficaram apavoradas com a idé ia de viajar para uma terra tã o pagã e para dizer a verdade senti-me muito feliz de poder me afastar do castelo. As coisas nã o tê m sido muito fá ceis depois que papai voltou a se casar. — É exatamente o que eu disse para meu marido — comentou Amelie Sleemen, com uma inflexã o de triunfo na voz. — Disse-lhe: Cette pauvre petite com toda certeza vai passar um mau pedaç o com uma madrasta que jamais poderá ser tã o bonita quanto ela! — Agora você está aqui e é só isso que importa — disse William Sleeman antes que Brucena pudesse responder. — Fico contente por Amelie ter algué m que lhe faç a companhia. Ela se sente muito só, pois tenho de ausentar-me com frequê ncia. — É verdade, sinto uma falta imensa de você, mon cher, onde quer que você vá, mas as coisas aqui se tornam piores, pois onde quer que eu vá tenho atrá s de mim soldados me escoltando. Tenho certeza de que Brucena també m achará isto muito aborrecido. — Ela acabará se acostumando — disse William Sleeman comum sorriso. — Quero deixar desde já umas tantas coisas muito claras, Brucena: você nã o deve sair do jardim sem comunicar ao sargento dos sipaios que estiver de plantã o onde é que vai. Se se afastar muito de casa, ele mandará algué m lhe fazer companhia. — Está vendo só! — exclamou Amelie, fazendo um gesto expressivo com as mã os. — É como se fô ssemos prisioneiras suas e algumas vezes sinto que c'est moi que está presa e nã o os nativos. — Penso que você acharia as masmorras de Jubbulpore e Saugar muito diferentes do conforto de que goza aqui — disse William Sleeman com secura. — Eu pelo menos nã o a marco a ferro, querida. Amelie sorriu. — Imagino que devo lhe dizer obrigada! — exclamou. Percebendo que Brucena nã o compreendia, explicou: — Uma das puniç õ es reservadas a um thug é que ele é marcado a ferro nas costas e nos ombros e até mesmo nas pá lpebras. É algo que eles nã o toleram. — Nã o me surpreende — disse Brucena. — Este castigo me parece excessivo. — Nada é excessivo, em se tratando de homens que matam por prazer — sentenciou William Sleeman. Ficaram em silê ncio durante alguns instantes e entã o Brucena disse: — Primo William, quando tiver tempo gostaria que me falasse a respeito dos thuggee. Há muito pouca coisa relativa a eles nos livros sobre a Í ndia e pelo que sei trata-se de um dos segredos mais antigos deste paí s. — É verdade, mas nã o sinto vontade de falar destas coisas na presenç a de Amelie. No estado em que se encontra, nã o deve se preocupar com assuntos desagradá veis, seja no plano fí sico, seja no plano mental. — Sim, é claro. Compreendo... Já lhe fora comunicado que a sra. Sleeman esperava a crianç a para o Ano-Novo e com sete meses de gravidez ela já estava um tanto pesada e perdera aquela graciosidade que lhe era tã o caracterí stica. Era filha do proprietá rio de um engenho de aç ú car, em Mauritius e aquele casamento entre duas pessoas de temperamentos tã o opostos e com uma diferenç a de vinte anos entre eles parecia um tanto estranho. Bastava no entanto ver os Sleeman ao lado um do outro para compreender que eram extremamente felizes. Devido ao fato de que as francesas sã o muito adaptá veis, Amelie era na realidade a esposa perfeita para William Sleemen. — Serei muito feliz com eles — disse Brucena para si mesma, enquanto se recolhia ao leito naquela noite, no pequenino quarto anexo ao berç á rio, já pronto para abrigar o bebê. Lá fora ouvia-se o pio agourento de uma coruja, os grilos, o ruflar das asas dos morcegos, cã es que ladravam, animais noturnos que deslizavam no mato e muito ao longe um som que ela sabia ser caracterí stico de toda a Í ndia: os uivos de uma matilha de chacais. Tudo aquilo era muito excitante. Tratava-se de um mundo novo e ao mesmo tempo muito antigo. Sentia que tinha surgido dali, sabia que suas raí zes se encontravam fincadas lá. — Estou tã o feliz de ter voltado para cá! — murmurou, antes de adormecer. Só trê s dias mais tarde Brucena se deu conta de que enquanto começ ava a adaptar-se à nova vida havia perdido de vista o major Huntley. Ele a trouxera para o grande bangalô, todo pintado de branco e a entregara a seus primos com o ar de um homem que nã o tinha a menor certeza se estava lhes proporcionando uma surpresa agradá vel ou desagradá vel. Brucena sabia muito bem que havia trabalho à sua espera, pois no momento em que chegaram à estaç ã o de Saugar, um sargento, comandando um destacamento de sipaios estava à sua espera a fim de lhe fazer a continê ncia de estilo. Como estava aborrecida com o major Huntley nã o se deu ao trabalho de explicar-lhe que durante as longas semanas de viagem estudara hindu e passados os primeiros dias descobrira um professor na segunda classe, o qual, em troca de uma pequena quantia de dinheiro, estava preparado para dar-lhe aulas. O comissá rio de bordo que o havia descoberto garantiu-lhe que o homem era muito bem qualificado para a tarefa e Brucena verificou que ele nã o só era um professor eficiente como també m uma pessoa muito inteligente. Inicialmente aplicou-se muití ssimo em conhecer a lí ngua, decidida a nã o chegar à Í ndia incapaz de falar qualquer outra coisa que nã o fosse o inglê s. À medida que o tempo avanç ava, descobriu com grande prazer que o professor també m poderia lhe contar muita coisa a respeito do paí s e dos costumes de seu povo. Tentou até mesmo explicar-lhe o sistema de castas e, mais importante do que tudo, as religiõ es, que variavam do budismo ao hinduí smo; dos jains aos muç ulmanos, alé m de centenas de seitas estranhas e variadas, todas elas com seus rituais, tabus e lugares sagrados, espalhados pelo vasto subcontinente. Algo em Brucena, instintivamente, fez com que ela mantivesse silê ncio em relaç ã o aos thuggee e o seu projeto de ficar hospedada com o arqü iinimigo deles, o capitã o William Sleeman. Tinha a impressã o de que se o professor ficasse a par de seu destino nã o demonstraria tanta boa vontade em lhe ensinar as coisas que ela queria saber. Nã o conseguia encontrar muitas explicaç õ es para o fato de se sentir assim, mas ao longo dos anos aprendera a confiar em seu instinto, que naquele momento lhe dizia para manter silê ncio em relaç ã o a si mesma. Apesar de se dar conta de que havia muito mais coisas a aprender, no que dizia respeito à s lí nguas indianas, compreendeu o que o major Huntley disse ao sargento que viera a seu encontro na estaç ã o. Dirigindo-se a ele em voz baixa e esperando nã o ser ouvido, indagou em urdu: — Algum problema? — Sim, major. Acho que hoje à noite deverí amos visitar... Brucena nã o conseguiu entender a ú ltima palavra, mas compreendeu o resto e divertiu-se bastante quando o major, voltando-se para ela com um sorriso enganador, comunicou-lhe: — Disse ao sargento que providencie conduç ã o para a senhorita e eu a acompanharei até o bangalô de seu primo. Ficará muito impressionada ao se ver escoltada por um regimento da Cavalaria! Brucena nã o tivera uma impressã o muito lisonjeira da cidadezinha de Saugar, a nã o ser pelo fato de que tudo na Í ndia possuí a uma beleza que ela jamais presenciara onde quer que fosse. Estava debruç ada sobre as margens de um grande lago e a seu lado havia uma construç ã o semelhante a um castelo pesadã o e sombrio, que mais tarde disseram-lhe ser a prisã o. O bangalô dos Sleeman que se encontrava fora da cidade, era grande, poré m simples e encantador. O jardim estava repleto de flores cujas cores faziam Brucena sentir que elas lhe davam as boas-vindas de um modo todo especial. Sentiu logo que nã o havia motivos para pensar que os Sleeman a mandariam de volta ou que nã o sentissem sincera satisfaç ã o em recebê -la. Achou que a inegá vel sinceridade com que Amelie a beijava, mesmo levando em conta o fato de que ainda nã o se conheciam, era uma certa forma de esnobar o major Huntley. «Talvez ele nã o queira minha presenç a aqui», pensou Brucena, «mas meus primos querem e isto é a ú nica coisa que conta». Ao mesmo tempo sabia que havia levado a melhor e desejava que para o futuro houvesse entre ambos duelos semelhantes, possuí da de um sentimento que nã o conseguia compreender com clareza. Devido ao fato de ser curiosa, fez à sra. Sleeman algumas perguntas relativas ao major Huntley. — Por que ele se ausenta? Deu-me a impressã o de que era o braç o direito de primo William. — É é sim! William está muito satisfeito com ele. Capturou mais thugs do que qualquer oficial que o regimento enviou para cá. Para falar a verdade, alguns deles sã o perfeitamente inú teis. — Pareceu-me muito evidente que o major Huntley gosta de fazer interrogató rios — comentou Brucena secamente. — É muito corajoso e apesar dos outros assistentes de meu marido nã o ousarem admiti-lo, tenho certeza de que eles, no fundo, estã o assustados. Os thugs sã o muito perigosos e graç as a Deus seu nú mero diminuiu. — E tudo isto se deve ao primo William? — Sim, é claro. Ele tem sido maravilhoso! — exclamou Amelie, entusiasmada. — Seu principal objetivo na vida é nã o só destruir os thuggee, como també m desacreditá -los. Suspirou ligeiramente. — William sempre diz que quando os homens lutam por uma causa sã o incomensuravelmente mais fortes e eficientes do que quando lutam por razõ es de dever ou satisfaç ã o pessoal. — Já ouvi este conceito muitas vezes. — E é verdade! Ele está começ ando a convencer os thugs de que nosso Deus é maior do que sua deusa. — Será que ele conseguirá levá -los a acreditar nisto? — perguntou Brucena, cheia de curiosidade. — Na semana passada, ele me contou que um thug disse-lhe: " O senhor declara que Deus está de seu lado e que Kali retirou sua proteç ã o devido à s nossas transgressõ es. Devemos ter sido negligentes em seu culto". Apó s essa conversa Brucena gostaria de ter dialogado mais com o primo William, mas quando ele voltava para casa, à noite, estava exausto na maior parte das vezes. Sabia que isso acontecia nã o só porque ele dava duro o dia inteiro perseguindo os thugs como també m porque discutia com eles, lutando contra eles com palavras e armas. Ao encontrar-se no recesso do lar, nã o queria conversar a respeito daqueles assuntos. Ela e Amelie estavam proibidas de aproximar-se da cidade nos pró ximos dias e ele nã o lhes dera nenhuma explicaç ã o para o interdito. Prestando atenç ã o em tudo o que se dizia e interrogando com muita habilidade o sargento dos sipaios, que falava bem inglê s, Brucena ficou sabendo que houvera problemas, pois seis thugs haviam sido executados e um deles era considerado heró i nacional. Um de seus simpatizantes, que ainda nã o podia ser preso sob a acusaç ã o de pertencer aos thugs, por absoluta falta de provas, conseguiu levar os indianos de outras castas a fazer manifestaç õ es de protesto e a causar desordens. Na Í ndia, acoisa mais comum era ganhar desafetos no plano polí tico e somente mé todos muito fortes de repressã o conseguiam terminar com os distú rbios da ordem pú blica. Brucena ficou sabendo que o resultado daquelas manifestaç õ es foi que a prisã o do lago ficou lotada e muitos outros prisioneiros foram confinados em Jubbulpore. Quando menos esperava, ouviu o barulho dos cavalos que se aproximavam e de repente o major Huntley estava a seu lado, na varanda deserta. Parecia acalorado e um tanto cansado, mas saudou-a com muita polidez e perguntou: — Ouvi dizer que o superintendente nã o está. Nã o saberia me dizer quando vai voltar? — Nã o tenho a menor idé ia. Antes de ir repousar, Amelie mostrava-se preocupada, pois ele nã o comunicou quando esperava estar de volta. Notou que o major Huntley franzia o cenho e perguntou: — Aconteceu alguma coisa? — Nã o, nã o, claro que nã o — ele respondeu com tamanha solicitude que ela percebeu que ele estava mentindo. — Gostaria de beber algo? — Sim, obrigado. Bateu palmas, pois aprendera que era assim que se convocava um criado, e quando ele se apresentou o major Huntley pediu um copo de laranjada. Ao sentar-se na cadeira ao lado de Brucena o vinco em sua fronte desapareceu e ele perguntou: — Como tem passado? A Í ndia ainda nã o a desapontou? — Acho cada dia mais excitante do que o anterior — replicou Brucena, — Mas é uma pena que eu sofra tantas restriç õ es em relaç ã o à quilo que posso ver e quanto aos lugares onde posso ir. Para dizer a verdade, sinto-me desapontada por seus esforç os em manter a paz nã o serem melhor sucedidos. Pretendia espicaç á -lo, achando que ele reagiria à s suas insinuaç õ es. Ele, ao invé s, simplesmente riu. — Confiava em que sua sensatez, apó s uma viagem tã o longa, a levaria a repousar durante algum tempo. Permita-me informar-lhe que as coisas quase voltaram à normalidade. Dentro em breve poderá ir onde bem entender. — Com uma escolta, é claro... — Exatamente. Com uma escolta. Brucena olhou em direç ã o ao lago e para a planí cie achatada que se estendia em direç ã o ao horizonte. — Este lugar é assim tã o perigoso como você s pretendem? Pressinto que o senhor gosta de me deixar arrepiada fazendo alusõ es a horrores sem nome, ao mesmo tempo que se recusa a apontá -los especificamente. — A srta. Nairn com certeza nã o está interessada em horrores... Alé m do que, na sua idade, deveria se interessar por coisas bem diferentes. Uma delas é o romance... Enquanto falava, contemplou o livro que estava pousado na cadeira, ao lado dela. — Pelo que sei, a leitura preferida das jovens que moram em Simla é O Morro dos Ventos Uivantes. É este o livro que está lendo? Pegou o livro com displicê ncia e notou que estava escrito em urdu. — Nã o vá me dizer que isto a interessa... Impelida por um motivo obscuro, que naquele momento nã o conseguiu compreender, Brucena decidiu nã o lhe dizer a verdade. — Nã o, claro que nã o. Acho que primo William deve ter deixado o livro aí. Lamento dizer que nesta casa há uma escassez muito grande de livros. — Terei muito prazer em mandar vir de Jubbulpore o que a senhorita desejar. — Nã o gostaria de lhe dar trabalho. E se o senhor o fizesse, teria de voltar aqui, em vez de me ignorar, como tem sido sua intenç ã o, desde que voltei. — Vejo que está me considerando um inimigo — disse Iain Huntley, em tom divertido. — E por que nã o? Durante a viagem, o senhor expressou seus sentimentos de uma maneira muito clara e desde que cheguei nã o se dignou em saber como eu tenho passado. Ele riu. — Foi uma falta de consideraç ã o de minha parte, mas a senhorita tem de aceitar minhas desculpas. É que tenho estado extremamente ocupado. — Sem dú vida, caç ando os thugs, como se eles fossem raposas a serem massacradas por um bando de caç adores excitados, auxiliados por uma matilha de cã es ferozes? — ela indagou, com uma ponta de maldade. — Exatamente! A imagem é muito feliz. Infelizmente, havia raposas demais e cã es de menos. Brucena estava pensando em algo incisivo para lhe dizer quando William Sleeman surgiu na varanda. — Ah, você está aí! — exclamou. — Descobri o paradeiro daquele homem. — É mesmo? E para onde é que ele foi? — Será preciso indagar? Para Gwalior, é claro. — Imaginei que ele poderia esconder-se por lá — observou Iain Huntley. — Como, aliá s, seria de se esperar — comentou William Sleeman com amargura. — Aquele lugar tornou-se o esconderijo dos thugs. Um assassino pode refugiar-se lá com a mesma seguranç a com que um inglê s procura uma taberna. Brucena acompanhava o diá logo prestando o má ximo de atenç ã o. Sabia que Gwalior era uma proví ncia situada perto dali eque um residente inglê s tinha sido nomeado pelo governador-geral a fim de aconselhar o marajá, a exemplo do que acontecia em vá rias cortes de prí ncipes reinantes e independentes. — É intolerá vel, mas nã o tenho certeza do que posso fazer em relaç ã o ao assunto — declarou William Sleeman, extremamente nervoso. — Deve haver uma soluç ã o — insistiu o major Huntley. — Gostaria que houvesse mesmo, mas o sr. Cavendish opô s-se decididamente a mim desde que vim para cá e tornou meu trabalho mais á rduo do que deveria ser. — É uma lá stima! — exclamou Iain Huntley. — Está querendo dizer que o residente é um inglê s que aprova os atos dos thugs? — indagou Brucena. Sua voz pareceu assustar os dois homens e ela percebeu que eles haviam ignorado completamente sua existê ncia. — Ele jamais admitiria uma coisa destas — respondeu William Sleeman, apó s uma pausa -, mas ao bloquear minhas investigaç õ es e nã o permitir que meus homens penetrassem na proví ncia de Gwalior ele tornou aquela regiã o um esconderijo onde todo thug poderá refugiar-se, quando se vir perseguido. — Que situaç ã o mais incrí vel! — exclamou Brucena. — Sobretudo quando o governador-geral nomeou-o para eliminar os thugs... — Pois é — disse William Sleeman -, mas com ou sem Gwalior pretendo destruir a seita mais temí vel e extraordiná ria de toda a histó ria da raç a humana. Havia um tom apaixonado em sua voz e seus olhos azuis ostentavam um brilho que lhe conferia naquele momento um ar de visioná rio. Mais tarde, naquela mesma noite, sentaram-se em torno da mesa de jantar, em companhia de meia dú zia de vizinhos. «Era difí cil acreditar», pensou Brucena, «que fora do conforto civilizado da sala, repleta de vozes alegres e das risadas dos convidados, houvesse homens de tocaia, dispostos a matar viajantes inocentes, sem a menor idé ia do que estava para ocorrer e em seguida se vangloriassem de seus crimes». Brucena se deu conta de que aquele assunto nã o deveria ser abordado em um jantar e ouviu os mexericos locais e algumas histó rias sobre os criados indianos. Mostraram-lhe algumas bijuterias adquiridas no bazar da regiã o, alé m de tecidos muito belos, que poderiam ser usados como lenç os por uma senhora inglesa ou entã o como sá ris. Tudo aquilo era muito feminino e frí volo, mas sabia que os rapazes presentes naquele momento olhavam-na com um brilho nos olhos. Os mais velhos brincavam com William Sleeman, por ele ter em sua casa uma hó spede tã o atraente, nã o os tendo prevenido de que se tratava de uma beldade. Tudo aquilo era muito trivial e nã o apresentava grandes complicaç õ es, mas quando Brucena se recolheu permaneceu durante algum tempo olhando pela janela, sentindo que a Í ndia era um enigma, um misté rio e ao mesmo tempo um encantamento. Tinha a sensaç ã o de que o conhecimento que buscava, tudo o que queria saber estava lá fora, poré m muito alé m de seu alcance. Tudo se escondia por detrá s de milhares de anos de tradiç ã o, oculto por uma complexidade de rituais e costumes que os europeus jamais poderiam compreender. Acima de tudo havia um segredo tã o profundamente arraigado na mente e no coraç ã o do indiano, que ele preferia morrer a revelar aquilo que para ele era sagrado. Brucena passeava pelo jardim. Percebeu que somente uma irrigaç ã o constante, feita quase de hora em hora, poderia impedir os pequenos canteiros verdejantes de murchar, devido ao calor, protegendo a muito custo as flores plantadas ao longo dos anos por todos aqueles que haviam ocupado o bangalô. Era o ú nico modo de nã o deixar que fossem subjugadas pelas ervas daninhas. As flores eram maravilhosas. Primaveras escarlates e rosadas subiam por todos os muros e os jardineiros empreendiam uma batalha interminá vel contra as parasitas que se enrolavam nos troncos das á rvores, à semelhanç a de um polvo. As palavras nã o conseguiam exprimir o quanto tudo aquilo era belo e Brucena sentiu que era impelida por uma mú sica oculta, que fazia parte da beleza e da majestade da alvorada indiana. Apesar de já estarem quase no fim de outubro, ainda fazia muito calor por volta do meio-dia e William Sleeman aconselhou Brucena a levantar-se o mais cedo possí vel, quando o ar ainda estava fresco. Algumas vezes ele a convidava para saí rem a cavalo antes do café da manhã, mas naquele dia teve de ir à cidade e ela resolveuandar pelo jardim carregando uma sombrinha debaixo do braç o, que a protegeria assim que o sol se levantasse. Tudo aquilo era profundamente má gico. Nã o se cansava de contemplar as flores e a paisagem sem deixar de sentir que elas encerravam uma mensagem muito especial, que ela ainda nã o conseguia compreender inteiramente. Chegou até o fim do jardim e ficou contemplando uma cerca de hibiscos ao longo da qual corria uma estradinha comprida e poeirenta, dirigindo-se para as terras secas e arenosas, ponteadas à distâ ncia por uma ou outra á rvore. Teve a sensaç ã o de que se percorresse aquela estrada acabaria encontrando o que procurava, mas nã o tinha certeza do que se tratava. Ficou a contemplá -la sentindo que simbolizava algo que ela deveria entender mas cuja significaç ã o no momento lhe escapava. Ouviu entã o um barulho e olhando à sua direita viu algumas pessoas acampadas à sombra de algumas á rvores raquí ticas. Os sá ris das mulheres, de cores brilhantes, destacavam-se contra aquela terra á rida onde nada cresceria até que as chuvas chegassem. Notou que eles embrulhavam seus pertences, que haviam usado durante a noite. Suas muitas pulseiras brilhavam à luz do sol que se levantava. «As mulheres eram muito belas e possuí am uma graciosidade que dava inveja», pensou Brucena. Sabia que à forç a de carregarem câ ntaros de á gua na cabeç a haviam adquirido aquele andar que as tornava semelhantes à s deusas. Os homens arreavam alguns cavalos de patas curtas e um burrico de aspecto velho e cansado. Eram numerosos e havia també m crianç as brincando felizes. Uma delas brincava com um pedaç o de pau e um menino divertia-se com um pano colorido, tentando insuflar nele um vento que naquele momento nã o existia. Desde que chegara à Í ndia, Brucena desejara desenhar ou pintar a beleza das crianç as. Jamais havia imaginado que aquelas criaturinhas pudessem ser tã o magní ficas em todos os aspectos. Aqueles olhos enormes, emoldurando rostos delicados, possuí am um apelo imenso, que lhe atingia o coraç ã o e faziam-na recordar invariavelmente o bebê que nã o conseguira salvar na plataforma da estaç ã o. Estava perdida em sua contemplaç ã o, quando viu um garotinho de uns cinco anos de idade separar-se dos demais e caminhar em sua direç ã o. Trazia uma flor na mã o e ao chegar perto dela entregou-a com um sorriso nos lá bios que a fez sentir vontade de tomá -lo nos braç os. Aceitou a flor que ele lhe oferecia. — Obrigada! — disse em urdu. — Muito obrigada. Ficou imaginando se tinha algo a lhe dar em troca e vasculhou instintivamente o bolso da saia. Achou que talvez tivesse guardado um lenç o. Ao sentir algo macio e sedoso compreendeu que se tratava de um novelo de seda que encontrara na varanda, quando saí ra de casa. Pertencia a Amelie, que estava bordando para o nenê uma roupa em tons de azul e rosa. — Azul e rosa? — indagou Brucena, admirada, ao ver sua prima entregue à tarefa. — Nã o me importo que seja menino ou menina e portanto estou aplacando os deuses, fazendo-os acreditar que nã o tenho nenhuma preferê ncia. Brucena riu. — Tenho certeza de que William deseja um filho. Isto acontece com todos os homens. Nã o conseguiu deixar de controlar um certo tom de amargura enquanto falava, lembrando-se do quanto sofrera toda a vida por ter sido uma menina em vez do menino que seu pai desejara com tanto fervor. — William disse que se for uma menina e se parecer comigo, ele ficará tã o maravilhado por ter mais uma francesa para amar, que nã o sentirá falta de mais nada. — Espero que ele esteja dizendo a verdade, mas rezo, prima Amelie, para que sua primeira crianç a seja um menino. — Pensando em William, eu deveria desejar um menino. Ao mesmo tempo, seria divertido ter uma menina com quem eu pudesse conversar, como acontece com nó s duas. — De tudo o que você acaba de dizer deduzo que nascerã o gê meos... — Claro, e o azul será para o menino e o rosa para a menina. Ela sorriu e seu rosto todo se iluminou. — Seja quem for, pertencerá a mim e é só isso que importa. Brucena retirou do bolso o pequeno novelo de seda cor-de-rosa. Esperava que Amelie tivesse o suficiente para poder acabar aroupa, mas nã o conseguia resistir ao encanto do garotinho que lhe dera a flor. Debruç ou-se sobre a cerca e colocou o novelo em sua mã o. O menino parecia nã o acreditar no que via e tomando o novelo em suas mã os soltou uma exclamaç ã o de alegria. Apertou-o em seguida contra o peito, como se quisesse assegurar-se de que aquilo era real e que ela o destinava para ele. — É para você, sim! — ela disse em urdu. — É para você brincar. Ele deu um grito de felicidade e saiu correndo em direç ã o à sdemais crianç as, segurando o novelo acima da cabeç a e gritando: — É meu! É meu! É meu! «Era a alegria de se possuir alguma coisa», pensou Brucena «e em se tratando de Amelie ou do garotinho, o que toda pessoa queria era algo que lhe pertencesse com exclusividade». «Nada tenho! Nada me pertence verdadeiramente! », pensou, entregando-se subitamente a um acesso de autopiedade. Olhou para a estrada que se estendia horizonte afora e disse para si mesma que possuí a algo mais importante do que os bens materiais. A sabedoria que ela reconhecia em tudo aquilo que a rodeava era mais excitante do que uma jó ia, mais valiosa do que qualquer fortuna. — Isto me pertence! — ela exclamou com ar de desafio. — Trata-se de algo que ningué m poderá roubar de mim! Quando William Sleeman veio almoç ar encontrava-se de muito bom humor. — Hoje, de tardezinha, quando o calor diminuir, você e Brucena talvez gostem de sair comigo a passeio — disse para sua mulher. — William, querido, que idé ia esplê ndida! — respondeu sua mulher. — Você está querendo dizer que agora nã o corremos mais perigo? — Espero que nã o! Nossa ú ltima aç ã o, que aliá s só foi levada a cabo mediante extraordiná rias dificuldades, provou ser tã o eficaz que tenho certeza de que se sobrou algum thug na vizinhanç a, ele neste momento está fugindo com toda a rapidez que suas pernas lhe permitirem. Brucena ouvia atentamente. Tinha a impressã o de que se fizesse perguntas o primo William mudaria imediatamente de assunto. — Você mal vai acreditar, mas um homem a quem ví nhamos perseguindo há seis meses revelou-se um espiã o e estava a serviç o da Companhia das Í ndias Orientais! — Fantá stico! — exclamou Amelie. — É verdade, e todos os que trabalhavam com ele juravam que confiavam nele a tal ponto que seriam capazes de lhe entregar sua pró pria vida, que é, aliá s, o que estavam fazendo! — Como é possí vel que eles atinjam postos tã o altos sem despertar a suspeita de quem quer que seja? — indagou Amelie. — É o que me pergunto, sempre que viramos uma pedra administrativa e encontramos um thug escondido debaixo dela — respondeu seu marido. — Bem, o indiví duo está na prisã o, à espera do julgamento. Acho que o fato de tê -lo prendido é uma ameaç a extraordinariamente eficaz para aqueles que o julgavam invencí vel. Amelie suspirou. — O que me deixa mais apavorada é que eles acreditam que seus poderes má gicos os salvarã o. — Estã o começ ando a compreender que somos mais fortes do que eles — replicou William Sleeman. — Como me disse um deles: ao ouvir o som de seus tambores, os feiticeiros, as bruxas e os demô nios fogem. Como poderiam, entã o, os thugs sobreviver? — É mesmo! — concordou Amelie. — Mas, querido, você precisa se cuidar. Se algo lhe acontecesse, esses demô nios voltariam com forç a total. — Claro que voltariam! Mas acredito que Deus me protege, pois até mesmo os thugs admitem que estou a Seu serviç o, e nã o a serviç o do diabo. Mais tarde, quando o sol havia perdido um bocado de sua forç a e começ ava a refrescar, acomodaram-se em uma carruagem aberta e puseram-se a percorrer a beira do lago. Apesar de se saber que nã o havia perigo em sair desacompanhados de escolta, Brucena viu vá rios cavaleiros seguindo-os e chegou à conclusã o de que tudo aquilo fazia parte da aura de importâ ncia que primo William considerava essencial para seu cargo. Nã o estava disposta a discutir o assunto, pois a perspectiva de visitar a regiã o pela primeira vez a deixava empolgada. Os pequenos santuá rios à beira da á gua, as mulheres com seus saris maravilhosamente coloridos, trazendo à cabeç a pesadas cargas, menininhos guiando bú falos nos arrozais, um rebanho de cabras brancas e negras possuí am uma atraç ã o irresistí vel. O pró prio lago era um encantamento, à medida que o sol que se punha transformava-se em uma esfera de ouro e as crianç as das aldeias mergulhavam nuas e felizes na á gua morna. Aquilo, sim, era a Í ndia que ela queria ver e até mesmo a visã o dos urubus batendo suas asas negras e pesadas, ao se verem perturbados quando consumiam carcaç as devoradas pela metade, nã o conseguiam dissipar aquela sensaç ã o de magia. Percorreram vá rios quilô metros antes que William Sleeman ordenasse que a carruagem voltasse e seguiram por outra estrada, que percorria uma regiã o toda ondulada, cheia de á rvores. Como se aquilo fosse um pensamento constante, William Sleeman apontou para as á rvores e disse: — Todos esses sã o lugares de abominaç ã o, onde infelizes viajantes que acampam procurando refú gio durante a noite sentem a respiraç ã o de um thug por detrá s das costas e logo em seguida o cordã o de seda que se aperta em torno de suas gargantas. Amelie gritou, aterrorizada: — William, você está me assustando! Ele estendeu a mã o e segurou as dela. — Sinto muito, querida, nã o era minha intenç ã o. Para dizer a verdade, eu estava pensando em voz alta. Brucena mostrou-se enormemente interessada em tudo o que ele dissera. Ficara sabendo que o lugar onde ocorria um estrangulamento era denominado bele, de que pola era o sinal secreto que um thug deixava para outro e que kburak era o barulho feito pelo instrumento com que cavavam uma sepultura. Aos poucos compilava um vocabulá rio pró prio, relativo a tudo aquilo que dizia respeito aos thuggee. Já ficara sabendo atravé s de seu primo e do major Huntley que era um erro solicitar abertamente informaç õ es. Era preferí vel ouvir. Prosseguiram seu trajeto e agora conseguiam ver à distâ ncia a cidade de Saugar. Havia muita gente saindo da cidade e Brucena contemplou-os interessada, ao ver que voltavam para suas casas com suas cestas vazias, as quais sem dú vida continham legumes que haviam vendido no mercado. Antes que eles se aproximassem, notou dois homens de aparê ncia muito distinta, que usavam turbantes e dhotis brancos, bem como pantalonas e sandá lias. Pareciam mais pró speros e certamente muito mais bem vestidos do que os demais indianos com quem cruzavam e ela ficou a imaginar se eram pessoas de fora, talvez até mesmo viajantes. Estava para perguntar ao primo William o que ele pensava quando notou que entre os dois homens havia um garotinho. Assim que o notou, sentiu que já o tinha visto em algum outro lugar, apesar das crianç as indianas se parecerem muito umas com as outras. Aquele menino, no entanto, era diferente e ela teve certeza de que se tratava do garoto a quem havia dado o novelo de seda aquela manhã, em troca da flor. A carruagem aproximou-se e os homens afastaram-se, a fim de deixá -la passar. Notou entã o que o menino chorava. As lá grimas escorriam-lhe rosto abaixo e no entanto ele nã o emitia o menor som, dando apenas vazã o à sua infelicidade. Agora tinha certeza de que se tratava da mesma crianç a que encontrara pela manhã. No momento em que o homem que o segurava pela mã o largou-o e juntou as palmas, no antigo gesto do nameste, a fim de saudar os sakibs ingleses, Brucena constatou que o menino ainda segurava cuidadosamente o novelo cor-de-rosa que ela lhe havia ofertado.
|
|||
|