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CAPÍTULO I



 

— Apraz ao sahib major conceder sua permissã o para que o trem parta?

O indiano, chefe da estaç ã o, exprimia-se com respeito. Ao mesmo tempo em que falava olhava por cima dos ombros para a confusã o que se desenrolava naquele momento na plataforma.

Momentos de enorme excitaç ã o haviam precedido a chegada do trem, o qual, recé m-introduzido na Í ndia, era tido como um dragã o terrí vel, que expelia fogo pelas ventas.

Indianos revestidos de dhotis, sá ris, trapos e panos que caí am cintura abaixo, encontravam-se em um estado muito pró ximo da histeria coletiva. Vendedores que apregoavam seus produtos com vozes superagudas espiavam atravé s das janelas dos vagõ es superlotados e, com uma expressã o de sú plica no olhar, ofereciam chipattis, doces coloridos, laranjas e bebidas avermelhadas.

Monges ostentando trajes amarelos, soldados em uniformes escarlate, carregadores com pesadas bagagens acotovelavam-se em meio à confusã o geral.

Havia os inevitá veis adeuses apaixonados e recomendaç õ es feitas, quase aos berros, à queles que viajavam, por parte de quem ficava e acreditava que os passageiros iriam arriscar suas vidas no bojo daquele monstro perigoso.

O major Iain Huntley contemplava vá rios homens reunidos em torno de uma pilha de bagagem, possuí do da firme convicç ã o de que eles se encontravam ali com o ú nico propó sito de armar alguma confusã o.

No momento em que o chefe da estaç ã o afastou-se dele, desdobrando sua bandeirola vermelha, o pandemô nio explodiu.

Os indianos começ aram todos a correr, aos gritos e aos berros, abanando os braç os e sacudindo seus bastõ es. Quase como em um passe de má gica, numerosos soldados apareceram empunhando seus mosquete, deslocando-se rapidamente a fim de conter a multidã o ameaç adora.

Eles eram poucos, em comparaç ã o com os baderneiros que, dispostos a armar a maior confusã o, perturbavam e empurravam as famí lias que nã o iriam viajar naquele trem e estavam sentadas ou dormindo na plataforma, ao lado de seus bens, os quais, na maior parte, consistiam em frá geis pacotes amarrados com corda. Cada famí lia possuí a numerosas crianç as, alé m das inevitá veis cabras.

Toda aquela confusã o tomou-os de surpresa e puseram-se a gritar, em meio ao choro generalizado das crianç as e aos balidos dos animais, o que aumentou consideravelmente o tumulto.

Os chipattis voavam em todas as direç õ es, os recipientes de vidro que mantinham as bebidas coloridas estilhaç avam-se no chã o e um bode livrou-se do laç o que o prendia e saiu em carreira desabalada plataforma afora, perseguido de perto por seu desesperado dono.

Possuí do de uma sensaç ã o de alí vio, o major Huntley achou que os soldados seriam perfeitamente capazes de controlar a situaç ã o assim que o trem partisse e andou sem pressa em direç ã o à sua cabine, onde se encontrava seu criado ao lado da porta aberta, esperando por ele.

As rodas começ avam a girar e o vapor e o resfolegar da má quina superavam qualquer outro barulho. A enorme locomotiva, fabricada na Inglaterra, parecia sobrepor-se a tudo e a todos.

Quando estava para chegar à cabine, notou, para sua grande surpresa, que a porta do vagã o se abria e uma mulher vestida de branco descia para a plataforma.

Certificou-se imediatamente, com a rapidez de um homem habituado ao inesperado, que ela pretendia socorrer uma crianç a que, empurrada por aqueles que haviam armado toda aquela confusã o, estava caí da na plataforma, sem ningué m que a socorresse e na iminê ncia de ser pisoteada pela pequena multidã o. Apesar de muito pequena, chorava a plenos pulmõ es.

Um segundo antes que os braç os da desconhecida pudessempegá -la, o major Huntley agarrou a mulher pela cintura e colocou-a à forç a no vagã o.

O trem começ ava a deslocar-se com velocidade cada vez maior e como ele nã o tinha tempo de entrar em seu pró prio vagã o, seguiu a desconhecida, trancando imediatamente a porta.

Olhou para a plataforma que ficava para trá s e viu dezenas de punhos levantados e gritos irados dos baderneiros, que pareciam um bando de chacais a quem a presa acabava de ser roubada.

A velocidade aumentava cada vez mais e a estaç ã o já se perdia de vista. O major Huntley voltou-se para contemplar a mulher que ele tinha empurrado para dentro do vagã o sem a menor cerimô nia.

Para sua grande surpresa ela era jovem e excepcionalmente bela. Havia retirado o chapé u e seus cabelos negros emolduravam um rosto muito alvo. Seus olhos, grandes, escuros, poré m pontilhados de dourado, olhavam-no carregados de có lera.

— Graç as à sua interferê ncia — comentou com rispidez -, aquela crianç a, sem a menor dú vida, será morta!

— Quem é a senhora e o que está fazendo aqui? — perguntou sem maiores rodeios.

Sentou-se e olhou à sua volta, com uma expressã o incré dula no olhar, como se esperasse descobrir algué m na cabine, fazendo-lhe companhia. Notou, poré m, que ela estava vazia. Voltou-se para a desconhecida e antes que ela pudesse responder sua primeira pergunta, indagou:

— Quem foi que a colocou neste trem? Nã o tinham o menor direito de fazer uma coisa destas!

— Parece-me que qualquer pessoa tem o direito de viajar de trem, contanto que disponha de meios para comprar a passagem!

— Mas nã o especificamente neste trem, que se dirige para Saugar.

— Sim, eu sei e é para lá que quero ir.

— Para Saugar?

Ela, que era pouco mais do que uma garota, levantou-se.

— Será que o senhor tem alguma autoridade para me interrogar?

— Autoridade plena — retrucou o major Huntley com firmeza. — Dei ordens no sentido de que nenhum europeu viajasse para Saugar que, no momento, é á rea proibida.

— Por quê?

A pergunta exigia resposta, mas ele retrucou um tanto evasivamente:

— Por razõ es oficiais. A senhorita ainda nã o respondeu minha pergunta.

Enquanto falava, adivinhou que ela nã o tinha a menor intenç ã o de fazê -lo e, dominando o tom autoritá rio com que se exprimira até entã o, disse:

— Acho que devemos apresentar-nos. Sou Iain Huntley e, como pode notar por meu uniforme, pertenç o aos Lanceiros de Bengala. No momento, poré m, exerç o tarefas especiais nesta regiã o.

O major Huntley acabou de falar e esperou por uma resposta. Enquanto se exprimia, pensava que aquela garota era por demais bela e jovem para viajar sozinha em qualquer parte que fosse da Í ndia e sobretudo naquela regiã o especí fica e naquele preciso momento.

Fez-se uma pausa estudada, como se ela se ressentisse com o fato de ter de lhe dar informaç õ es. Entã o, como se tivesse chegado à conclusã o que nã o fazia o menor sentido mostrar-se difí cil, declarou, com ó bvia relutâ ncia:

— Meu nome é Brucena Nairn.

— E está viajando para Saugar?

— Sim.

— Posso saber por quê?

— Vou ficar lá com meus amigos.

— Perdoe minha curiosidade, pois há uma explicaç ã o para ela, mas gostaria de saber seus nomes.

Teve novamente a sensaç ã o de que ela gostaria de desafiá -lo e dizer-lhe que nã o se metesse onde nã o era chamado.

Ainda estava zangada. Podia notar esse fato em seus olhos, que agora reconhecia como expressivos e pareciam, apesar de escuros, estar irradiando aquele sol que dentro de algumas horas transformaria as planí cies atravessadas pelo trem em um inferno de calor.

— Vou ficar com o capitã o e a sra. Sleeman.

O major Huntley olhou-a sem acreditar no que acabava de ouvir.

— Com os Sleeman? Mas como é possí vel?

— Por quê? Parece-lhe tã o pouco prová vel?

— Mal posso crer que William Sleeman esperaria uma hó spede como a senhorita sem participar-me sua chegada e sem tomar as devidas providê ncias para recebê -la.

Brucena Nairn deu de ombros.

— Se é este o seu modo de pensar, nã o há razã o para que eu lhe diga mais nada.

Levantou o queixo, com ar de desafio, e olhou ostensivamente pela janela, como se a conversa tivesse chegado ao fim.

Quase a despeito de si mesmo, Iain Huntley pô s-se a sorrir.

Havia qualquer coisa de divertido no antagonismo daquela criaturinha que nã o tinha o menor direito de estar naquele trem e muito menos discutindo com ele.

Achou que seria uma boa medida mostrar-se conciliató rio.

— Devo pedir-lhe desculpas, srta. Nairn, mas, francamente, tomou-me de surpresa. Desde a semana passada que Saugar está proibida para todos os europeus. Como acaba de ver na estaç ã o, tem havido alguma perturbaç ã o da ordem e se tivesse ficado por lá poderia encontrar-se em uma situaç ã o muito desagradá vel.

— Mas qual foi a razã o de toda aquela confusã o?

— Estas coisas costumam acontecer nesta é poca do ano — respondeu o major, um tanto evasivo -, mas ainda nã o consigo compreender por que o capitã o Sleeman nã o me contou que estava à sua espera.

Enquanto falava notou, muito surpreendido, que um ligeiro rubor apoderava-se do rosto da garota e durante alguns segundos ela mostrou-se ligeiramente perturbada.

— Ele e a srta. Sleeman estã o de fato à sua espera? — indagou, exprimindo-se em um tom diferente.

Fez-se uma ligeira pausa antes que Brucena Nairn dissesse em voz baixa:

— Eu... espero que sim.

— Espera que sim! Pois ficaria muito grato se me contasse exatamente o que aconteceu e por que está aqui.

— Nã o há a menor razã o... — começ ou a dizer.

Nesse preciso momento seu olhar cruzou com o do major Huntley e quase contra sua vontade ela capitulou.

— Bem... acontece que... acontece que o capitã o Sleeman é meu primo.

— Entã o ele sugeriu que a senhorita deveria vir ficar com ele aqui na Í ndia? — indagou o major Huntley, como se estivesse começ ando a compreender o que havia acontecido.

— Nã o... exatamente...

Ela se exprimia com hesitaç ã o e ele olhou para Brucena Nairn fixamente, antes de prosseguir:

— O que quer dizer com isto?

— Sua mulher, a sra. Sleeman, escreveu-me pedindo que encontrasse uma babá para sua crianç a. Está esperando... um nenê para o ano que vem.

Brucena ficou levemente ruborizada, como se sentisse constrangimento em abordar assunto tã o í ntimo e o major Huntley apressou-se em dizer:

— Sim, tenho conhecimento deste fato. — Tentei de todos os modos encontrar uma pessoa confiá vel que quisesse vir para a Í ndia, mas todas se recusaram.

Enquanto falavam, Brucena pensava que fora uma tarefa impossí vel convencer as moç as escocesas de Invernessshire de que a Í ndia era um lugar interessante para se trabalhar.

A relutâ ncia nã o partia somente delas, mas també m de suas mã es.

— Nã o vou permitir que minha filha se case com algum pagã o — diziam repetidas vezes. — Vã o ficar por aqui mesmo, onde eu possa ficar de olho nelas.

— Mas a senhora precisa levar em conta que seria uma aventura e tanto, alé m de representar uma oportunidade de se educar— dissera Brucena, batalhando por sua causa tendo recebido de uma das mã es, aliá s uma senhora muito abespinhada, a seguinte resposta:

— Minha filha nã o vai viver esse tipo de aventura na idade em que se encontra. Se a coisa lhe parece tã o atraente, srta. Brucena, por que entã o nã o vai?

Foi a partir dessa sugestã o que Brucena começ ou a acalentar a idé ia. No momento apenas rira, poré m mais tarde, quando sua missã o de encontrar uma babá para a prima Amelie revelava-se cada vez mais impossí vel, começ ou a sentir que a Í ndia lhe acenava e que seria tolice recusar o convite.

Nã o se sentia feliz em casa a partir do momento em que tivera idade suficiente para compreender que fora um grande e irremediá vel desapontamento para seu pai, pois ele queria um filho.

O general Nairn tinha apenas dois interesses na vida: seu regimento e a perpetuaç ã o de seu nome.

Sua maior alegria consistia em abrir os livros nos quais podia seguir a histó ria dos Nairn desde as é pocas mais remotas e provar que todos eles tinham sido audazes guerreiros.

Brucena costumava pensar que ele havia sonhado desde crianç a com o dia em que teria um ou mais filhos a seu lado, combatendojunto a ele, acrescentando trofé us das guerras em que tomariam parte à queles que já pendiam das paredes do castelo de Nairn.

— Sou um desapontamento para papai — dizia a si mesma, antes mesmo de completar nove anos.

Nos anos que se seguiram ela começ ou a se dar conta da extensã o de seu ressentimento em relaç ã o a ela, pois havia fraudado a maior de suas ambiç õ es.

Se nã o houvesse outras maneiras de relembrar o fato, ela o evocaria toda vez que ouvia seu nome ser pronunciado.

Bruce era um nome de famí lia entre os Nairn e seu pai a batizara quase como se estivesse desafiando os deuses que lhe tinham aplicado um golpe baixo, nã o lhe dando o filho que ele desejara tã o ardentemente.

Há dois anos, logo apó s a morte de sua mã e; seu pai, com pressa quase indecente, aproveitara a primeira oportunidade para voltar a se casar.

Escolhera uma jovem apenas trê s anos mais velha do que sua filha, mas que era muito diferente na aparê ncia e que poderia ser considerada como " uma boa criadeira".

Desajeitada, pesadona, sem a menor pretensã o a uma bela aparê ncia, Jean sentira-se orgulhosa e excitada por casar com o senhor do castelo de Nairn, poré m ficou perturbada com a aparê ncia de sua enteada a partir do momento em que a viu.

Era inevitá vel que a beleza de Brucena e a atraç ã o que os homens sentiam por ela nã o contassem pontos a seu favor junto a uma madrasta, sobretudo em se tratando de algué m tã o jovem.

A tensã o que sempre existira entre ela e seu pai acentuou-se rá pida e violentamente, em tudo o que dizia respeito à sua nova esposa. Quando, há seis meses, Jean dera a luz à quele filho tã o esperado, Brucena constatou que sua posiç ã o no castelo tornara-se insustentá vel.

Seu pai a censurava por qualquer pretexto. Tentava ignorar o ó dio estampado no olhar de sua madrasta e tinha certeza de que assim que o herdeiro mimado e adorado pudesse ver e pensar acabaria por odiá -la també m.

— Preciso ir embora daqui — pensou dezenas de vezes, mas nã o tinha a menor idé ia de para onde ir.

Seus parentes nã o somente nã o a queriam, como també m se sentiriam muito constrangidos em lhe oferecer um lar sem serem solicitados a tal pelo general.

Apesar de Brucena nunca ter abordado o assunto com ele, achava que o orgulho de seu pai jamais lhe permitiria pedir ou aceitar favores de seus parentes, a maior parte dos quais achava aborrecidos, convidando-os raramente para ir ao castelo.

Tudo o que Brucena possuí a eram trezentas libras, deixadas a ela em testamento por sua avó.

Recebera orientaç ã o no sentido de nã o gastá -las e sabia que seu pai considerava aquela quantia como parte de seu dote o que até certo ponto, o dispensava de maiores esforç os, no sentido de completá -lo.

Compreendia agora que aquilo era uma dá diva dos deuses, que lhe permitiria pagar sua viagem à Í ndia.

Debateu durante muito tempo consigo mesma se deveria contar a seu pai o que pretendia fazer e decidiu pela negativa.

Sentia que, apesar de ele nã o gostar dela, apreciava no fundo ter algué m que pudesse repreender e com quem pudesse brigar.

Brucena se encontrava sempre por lá e o general podia despejar sua có lera sobre ela, sempre que alguma coisa o desagradava, e isso de um modo violento, que ele teria hesitado em empregar com qualquer outra pessoa.

Subitamente, pareceu a Brucena que tudo se harmonizava enquanto lhe passava um plano pela cabeç a e ela nã o encontrou a menor dificuldade em pô -lo em prá tica.

Uma garota, sua ú nica amiga depois que ela se tornara uma mocinha, convidou-a para fazer companhia a ela e a seus pais, em uma viagem a Edimburgo.

— Papai e mamã e vã o estar muito ocupados — disse a jovem para Brucena. — Papai tem de receber todas as pessoas importantes que vê m do sul para a inspeç ã o das tropas. Acharam que eu me sentiria muito só e sugeriram que eu a convidasse para viajar conosco. Podemos visitar as lojas e quem sabe até mesmo sermos convidadas para ir a um baile! De qualquer modo, seria divertido viajarmos juntas.

— Muito divertido! — concordou Brucena.

Achou que seu pai criaria dificuldades, mas, para sua grande surpresa, ele declarou que achava a idé ia muito boa, contanto que ela nã o se ausentasse por muito tempo.

A seu modo de ver, ele estabelecera aquela condiç ã o porque, em princí pio, nã o lhe permitia nenhuma diversã o, mas há um anoa recusa teria sido peremptó ria. Porque naquele momento ainda nã o lhe nascera o herdeiro, o filho que perpetuaria seu nome.

Ao despedir-se do pai e da madrasta com forç ada cordialidade de ambas as partes, Brucena teve certeza de que eles, no fundo, sentiam-se alegres em livrar-se dela por algum tempo.

Achou que isto a eximia de quaisquer sentimentos de culpa em relaç ã o à quilo que pretendia fazer.

Permaneceu durante uma semana em Edimburgo, comprando à s escondidas tudo aquilo que achava que iria necessitar na Í ndia.

Era suficientemente inteligente para nã o ir para um novo paí s antes de aprender algo a respeito e fora muito difí cil localizar em casa livros que lhe revelassem o que queria saber.

Havia, entretanto, numerosas informaç õ es sobre a Í ndia nas livrarias de Edimburgo e ela logo reuniu uma pequena biblioteca. Sabia que teria tempo de ler e reler aqueles livros durante a viagem.

Disse a seus amigos de Edimburgo que precisava voltar para casa, pois seu pai estava à sua espera e quando eles, com relutâ ncia, despediram-se dela, tomou um trem para Londres.

«Era agora que a verdadeira aventura começ ava», pensou, enquanto viajava para o sul.

Por mais estranho que parecesse, Brucena tinha plena confianç a em que saberia tomar conta de si mesma e que chegaria à Í ndia sem que nada de mal lhe acontecesse.

A sra. Sleeman mandara-lhe instruç õ es completas sobre as providê ncias que deveriam ser tomadas em relaç ã o à viagem da babá, se acaso encontrasse uma que quisesse ir.

Ao ler todas aquelas pá ginas preenchidas pela caligrafia elegante de prima Amelie, Brucena pensou, com um sorriso, que suas recomendaç õ es mais se assemelhavam ao despacho de uma encomenda valiosa que nã o deveria ser danificada durante a viagem.

Certificou-se de que a companhia P. & O. tomaria todas as providê ncias e que uma acompanhante para a jovem seria encontrada entre as passageiras que viajavam na segunda classe.

Haverá missioná rias ou senhoras cristã s pertencentes a alguma organizaç ã o e que estarã o viajando para Bombaim.

Prima Amelie escrevera:

«Tenho certeza de que nã o aceitariam dinheiro por seu trabalho, pois o considerariam um ato de caridade. Você deve dar à pessoa que escolheu umpresente adequado, a fim de que ela recompense aquelas senhoras por sua bondade.

No escritó rio da companhia, P. O. Brucena relatou uma histó ria um tanto diferente.

— Tenho de viajar até a Í ndia para ficar com meus parentes, mas infelizmente a senhora que deveria me acompanhar adoeceu. Os senhores nã o fariam a gentileza de encontrar algué m que pudesse tomar conta de mim durante a viagem?

O funcioná rio olhou para o rostinho bonito de Brucena e achou que era absolutamente necessá ria a presenç a de uma acompanhante para uma garota tã o atraente.

Havia sempre oficiais de volta à pá tria, de licenç a. Lidar com romances nascidos a bordo era uma das tarefas menos á rduas com que um comissá rio se via a braç os...

Algumas vezes, no entanto, a situaç ã o tornava-se traumatizante quando os passageiros se envolviam demais e entã o surgiam dificuldades inesperadas...

Ele, entretanto, dispô s-se a colaborar no que pudesse, vindo portanto de encontro à s expectativas da sra. Sleeman.

— Acho que tenho precisamente a pessoa de que necessita, srta. Nairn. O pastor Grant e sua mulher estã o de regresso a Bombaim e tenho certeza de que a sra. Grant colaboraria de muito bom grado, quando eu lhe explicar as circunstâ ncias.

— Seria muita bondade de sua parte.

Notou pela expressã o do funcioná rio que ele removeria cé us eterras a fim de ajudá -la.

A sra. Grant e o pastor revelaram-se pessoas extremamente prestimosas, poré m muito aborrecidas... Cercaram Brucena com uma aparê ncia de respeitabilidade, mas nã o interferiram em sua vida e ela passou grande parte da viagem lendo.

També m apreciava os divertimentos a bordo e à noite transformava-se no centro de atraç ã o dos homens que queriam todos danç ar com ela, para grande despeito das outras passageiras.

Era a primeira vez na vida que se sentia livre e sem ser continuamente censurada, como acontecia o tempo todo em casa.

Sentia uma grande alegria em poder exprimir uma opiniã o semser reprimida e uma alegria ainda maior em saber que, quaisquer que fossem os sentimentos de seu pai em relaç ã o ao que ela acabara de fazer, nã o havia nenhuma atitude que ele pudesse tomar.

Havia gasto uma quantia apreciá vel com as roupas e a passagem, mas ainda lhe sobrava algum dinheiro.

Agora que havia tomado a decisã o e deixado sua casa, sabia, no fundo do coraç ã o, que jamais regressaria, e se os Sleeman nã o a quisessem, encontraria alguma outra casa onde pudesse trabalhar.

Havia telegrafado para eles antes da partida do navio, dizendo:

«Encontrei pessoa solicitada. Seguem detalhes. Afetuosamente, Brucena. »

Omitiu deliberadamente a data da chegada e deixou de explicar que ela pró pria iria, em lugar da babá que prima Amelie havia pedido.

Era uma precauç ã o necessá ria, pois sentia que talvez eles nã o a quisessem e nã o poupariam esforç os para enviá -la de volta para casa, assim que chegasse a Bombaim.

— Haverã o de pensar que a babá chegará dentro de um mê s e que na certa, que aliá s nã o tenho a menor intenç ã o de escrever, explicarei quem é ela e por que penso que é uma pessoa recomendá vel.

Voltou a refletir profundamente sobre o assunto e certificou-se de que quando chegasse disposta a fazer tudo aquilo que se esperava de uma babá, os Sleeman achariam extremamente difí cil mandá -la embora.

— Vã o ter de manter-me em sua companhia pelo menos durante alguns meses — pensou Brucena.

Ao mesmo tempo, a despeito de ter certeza de que seria uma babá muito mais competente do que aquelas rudes moç as escocesas, nã o podia deixar de sentir que estava se impondo junto a pessoas que talvez nã o a quisessem.

O primo William tinha sido sempre muito gentil com ela. Lembrava-se de que quando crianç a ele lhe inspirava um grande respeito e até mesmo um certo receio, pois lhe parecia um jovem muito inteligente.

Tinha cabelos alourados, olhos azuis e uma fronte ampla. Quando ele os visitou pela segunda vez, anos mais tarde, tinha domí nio do á rabe, do persa e do indu.

Nascera na Cornualha, a exemplo de sua mã e, e suas famí lias tinham sido vizinhas durante anos a fio. Devido a sua inteligê ncia, por volta dos trinta anos foi dispensado de seu regimento, ingressando na administraç ã o pú blica. O general Nairn ficara impressionado com o fato de que ele havia se tornado um magistrado e um administrador regional na Í ndia Central muito antes dos homens de sua idade.

Há trê s anos, uma carta do capitã o Sleeman dirigida ao general comunicava que ele tinha sido nomeado pelo novo governador-geral, lorde William Bentick, para ocupar um cargo muito importante.

— É o homem certo para o posto certo — dissera o general sentenciosamente enquanto lia a carta durante o café da manhã.

— E de que cargo se trata, papai?

— O tí tulo dele é superintendente para a Supressã o da seita Thuggee, mas você nã o entenderia se eu lhe dissesse do que se trata.

Ele se exprimia em tom peremptó rio, nã o somente como um homem que acha que o intelecto de uma mulher nã o pode se expandir alé m dos limites da cozinha ou do quarto das crianç as, mas també m porque nã o apreciava a curiosidade de Brucena, que a levava a formular perguntas que ele teria apreciado ouvir de um rapaz e nã o de uma menina.

— Já li a respeito dos thugs, papai — replicou Brucena. — Trata-se de uma sociedade secreta que cultua Kali e acha que é um dever sagrado estrangular as pessoas.

— Você nã o devia se informar a respeito dessas coisas — disse o general com profundo desagrado -, mas, dentro em breve, William controlará essa gente abominá vel.

— E como pretende agir?

— Deram-lhe cinqü enta soldados da Cavalaria e quarenta sipaios, pertencentes à Infantaria. É mais do que suficiente. Gostaria eu mesmo de empreender esta tarefa, se fosse mais jovem.

Havia dezenas de perguntas que Brucena queria fazer a seu pai, mas ele saiu do quarto levando a carta de William Sleeman e ela sabia que sua curiosidade nã o seria satisfeita.

Assim sendo, tentou averiguar tudo o que pudesse a respeito dos thuggee, mas sem grande sucesso. Mesmo em Edimburgo os livros que conseguiu comprar nã o lhe disseram muito mais do que aquilo que ela já sabia.

Enquanto o major Huntley a encarava com um brilho de suspeita no olhar, ela disse:

— Meu primo pediu que arranjasse uma babá, mas como nã oconsegui encontrar a pessoa de que eles necessitavam... resolvi me apresentar.

O major Huntley sorriu.

— E sem lhes dar a oportunidade de rejeitá -la?

— Sim.

— Agora estou começ ando a entender. A senhorita nã o viajou desde a Inglaterra sem ter a companhia de algué m, nã o é mesmo?

— Nã o. Fui assistida com muita dedicaç ã o pelo pastor Grant e sua senhora, até Bombaim. Chegaram até mesmo a encontrar algué m que tomasse conta de mim de lá até a cidade de Bhopel, mas infelizmente minha acompanhante ficou doente no ú ltimo momento e em vez de esperar que eles providenciassem mais algué m decidi vir sozinha.

— Vejo que é uma jovem cheia de iniciativa. Sabe, poré m, que é fora de todo e qualquer propó sito uma mulher, seja ela casada ou solteira, viajar sozinha na Í ndia?

— Pensei que os ingleses tinham os indianos sob controle... — ela retrucou, em tom de provocaç ã o.

— Fazemos o que podemos. Ao mesmo tempo, mal posso acreditar que a senhorita viajaria pela Inglaterra sem uma governanta ou uma criada.

— Sei tomar conta de mim mesma.

— Nã o duvido, mas é algo que nã o deve tentar fazer neste paí s.

Brucena lembrou-se dos revoltosos e da cena tumultuosa queeles haviam aprontado na estaç ã o. Nã o daria ao major Huntley a satisfaç ã o de saber que eles, na verdade, haviam-na deixado terrivelmente assustada e nã o duvidava de que algo terrí vel havia acontecido com o bebê.

— Agora que se encontra aqui, posso cuidar da senhorita até o fim da viagem, mas acho que o capitã o ficará muito surpreendido.

— Está trabalhando com ele?

— Estou, sim.

— Entã o por que tem um posto mais alto do que o dele?

O major Huntley sorriu.

— Seu primo é um funcioná rio pú blico nomeado diretamente pelo governador-geral. Administra um territó rio muito extenso, enquanto eu comando os soldados.

Brucena haveria de descobrir mais tarde que ele estava subestimando suas funç õ es, mas naquele momento limitou-se a sorrir.

— Já que está trabalhando com primo William, nã o quer me falar a respeito dos thuggee? Fiquei muito interessada no assunto desde que o primo William foi nomeado para este cargo, há trê s anos, mas é muito difí cil saber o que quer que seja a respeito deles.

— E por que está tã o interessada?

— Tudo o que diz respeito à Í ndia me interessa. Na realidade, nasci aqui e apesar de nã o me lembrar de nada sempre tive vontade de regressar.

O major Huntley pareceu ter ficado muito surpreendido.

— Meu pai serviu durante alguns anos na fronteira noroeste. Partimos da Í ndia quando eu tinha um ano de idade e apesar de ele regressar mais tarde, permanecendo aqui durante alguns anos, minha mã e e eu ficamos na Escó cia.

— E ainda assim o paí s a atrai?

— É estranho — disse Brucena, apó s uma pausa -, mas desde que cheguei a Bombaim tenho a sensaç ã o de me encontrar em casa.

Ele a encarou com uma certa reserva, como se achasse que ela estava se exprimindo daquele modo para conseguir um certo efeito.

Ela entretanto, nã o o olhava e sim para a paisagem, achando que aquelas terras secas e quentes, as aldeiazinhas perdidas em meio à s á rvores e os bú falos que aravam a terra eram algo que ela já vira algum dia. Nã o tinha a menor idé ia dos motivos que a levavam a sentir-se daquele jeito.

— A senhorita me faz uma pergunta a respeito dos thuggee — disse o major Huntley e imediatamente ela voltou-se para ele, repleta de interesse.

O major prosseguiu:

— Espero que durante sua permanê ncia na Í ndia nã o venha a travar conhecimento com eles. Na realidade, é muito importante que todas as pessoas que vivem nesta regiã o estejam sempre de sobreaviso.

Enquanto falava lembrava-se do que havia visto no templo de Kali, em Bindhaghel, à beira do rio Ganges.

Tratava-se de um santuá rio procurado no fim da estaç ã o chuvosa por todos os peregrinos da Í ndia, que iam até lá a fim de fazer oferendas à deusa.

Os caminhos que conduziam ao templo estavam atulhados de carros de boi, de mendigos e de peregrinos de. pé s descalç os.

Ao redor das muralhas do templo sentia-se o cheiro de incenso, de flores e nuvens de pó turbilhonavam em torno da construç ã o. No ar pairava també m o odor da morte. Noite e dia sacrificavam-se bodes e seu sangue escorria pelos degraus do templo. Seus balidos assustados misturavam-se aos gritos dos devotos faná ticos, que se flagelavam enquanto suplicavam a bê nç ã o dos deuses.

Para Iain Huntley aquela deusa sanguiná ria, a terrí vel esposa de Shiva, o Destruidor, negra, furiosa e nua, com sua clava adornada de crâ nios humanos, era o sí mbolo de tudo contra o qual ele lutava.

A lí ngua que saí a para fora, os olhos injetados de sangue daquele í dolo grotesco, aquele chã o fumegante onde a morte e o terror eram festejados, este era o quadro de abominaç ã o-a que se entregavam os thugs.

Aquele era o seu lugar sagrado e dali a irmandade de estranguladores partia há centenas de anos para aterrorizar aqueles que viajavam pela Í ndia.

Os adeptos do culto tinham seus rituais pró prios, bem como sua tradiç ã o e hierarquia e acreditavam, ao estrangular algué m, que estavam matando em defesa da causa de Kali.

Imaginando como poderia falar sobre os thuggee para aquela garota inocente sentada diante dele, Iain Huntley mergulhou novamente em seus pensamentos e lembrou-se de que a polí tica tradicional da Companhia das Í ndias Orientais baseava-se na nã o interferê ncia nos costumes religiosos da Í ndia.

Na realidade, o governo fazia vista grossa sobre as lendas e os feitos sanguiná rios dos thuggee, mas as autoridades inglesas, cuja presenç a na Í ndia começ ava a aumentar, possuí das de um zelo reformista, ficavam horrorizadas com os costumes locais, que até entã o permaneciam inalterá veis.

Os ingleses estavam determinados a eliminar os costumes mais crué is, por mais antigos ou ligados à s divindades. O infanticí dio e os sacrifí cios humanos foram proibidos, bem como o suttee, a prá tica que consistia em se queimar as viú vas nas fogueiras.

Era evidente que algo deveria ser feito em relaç ã o a Bindhaghal, sede da sociedade secreta dos estranguladores.

O culto nã o tinha sido profundamente estudado e nem suas ramificaç õ es observadas, até que o capitã o William Sleeman, que fazia parte do Exé rcito de Bengala, tornou-se interessado em seus tenebrosos misté rios.

Ficou sabendo que os thugs operavam dentro do mais absoluto segredo, de acordo com rituais escrupulosamente obedecidos. Ficavam de tocaia, à beira das estradas, e todos eles eram treinados para matar, estrangulando suas ví timas por meio de um lenç o de seda amarelo.

Em seguida, faziam profundas incisõ es rituais nos cadá veres, enterravam-nos ou jogavam-nos em poç os profundos; queimavam os pertences desprovidos de valor e levavam o resto.

Nenhum traç o dos infortunados viajantes era deixado no local do crime. A exemplo do que acontecia com a maior parte das atividades na Í ndia, pertencer aos thuggee era algo hereditá rio. Os meninos eram iniciados gradualmente naquelas horrendas prá ticas: primeiro, como aprendizes, em seguida cavavam as sepulturas, depois, davam assistê ncia nos assassinatos e, finalmente, desde que demonstrassem grande ferocidade, tornavam-se blurtote qualificados ou estranguladores, aristocratas entre os thugs.

Foi William Sleeman que identificou a sede e as enormes ramificaç õ es da sociedade, que se espalhava como uma teia venenosa sobre a Í ndia inteira.

Estabelecendo seu quartel-general em Saugat, uma cidadezinha acanhada, situada à s margens de um lago no coraç ã o da regiã o dos thuggee, ele pô s-se a organizar sua campanha.

Iain Huntley recordava-se agora de que alguns oficiais mais velhos, a serviç o dos prí ncipes indianos, eram estranguladores experientes, o mesmo acontecendo com um determinado sargento a serviç o do marajá de Hockar.

Alguns eram criados de europeus, que neles depositavam cega confianç a. Outros haviam passado quase toda a vida a serviç o das Forç as Armadas da Companhia das Í ndias Orientais e um deles até recentemente fora informante da polí cia no que dizia respeito a outros campos do crime.

Era assustador pensar que o homem em quem se havia confiado durante anos a fio, um soldado que obedecia suas ordens, seu pró prio criado pudesse ter feito um juramento secreto e pertencesse à temí vel seita thuggee.

Para os thugs seu trabalho era sagrado e eles acreditavam que seus poderes eram sobrenaturais.

Tinham uma ligaç ã o oculta com seu parceiro do mundo animal, o tigre.

Um estrangulador famoso informou, ao ser interrogado:

— Aqueles que escapam dos tigres caem nas mã os dos thugs, e aqueles que escapam dos thugs sã o devorados pelos tigres!

Pensando bem, talvez os tigres fossem menos assustadores!

O major Huntley ouvira um prisioneiro gabar-se de que tinha estrangulado novecentos e trinta e uma pessoas.

Havia um bando de thugs composto por trezentos homens que se vangloriavam de ter cometido mais crimes do que seria crí vel admitir.

Iain Huntley sabia que aqueles dois ú ltimos anos em que estivera trabalhando ao lado de William Sleemen tinham sido os mais inacreditá veis, os mais assustadores e ao mesmo tempo os mais excitantes de toda a sua existê ncia.

Como poderia explicar tudo aquilo para aquela jovem recé m-chegada da Inglaterra e que tudo desconhecia daÍ ndia?

Como se tivesse consciê ncia do que ele estava pensando, Brucena disse:

— Quero compreender tudo isto e sei perfeitamente que se trata de uma idé ia muito ambiciosa, mas mesmo assim tenho de começ ar por algum lugar.

— Sinto apenas que, tendo vindo à Í ndia, comece pelos thuggee — replicou o major Huntley.

Ela sorriu.

— De certo modo a coisa fica mais interessante. Tem gente que vem aqui e só sabe fazer elogios ao Taj Mahal o ao brilho da administraç ã o da Companhia das Í ndias Orientais...

Havia um certo sarcasmo no tom com que ela se exprimia, o que fez com que o major Huntley a encarasse fixamente.

— Nossa administraç ã o é brilhante em certos aspectos, mas em um paí s tã o grande e tã o densamente povoado como a Í ndia, há inevitavelmente muitas coisas que ainda deverã o ser feitas.

— Acredito, mas de certo modo acho uma grande presunç ã o de nossa parte tentar mudar um povo cuja civilizaç ã o é muito anterior à nossa. Quem somos nó s para julgar se suas crenç as sã o certas ou erradas?

Iain Huntley olhou-a muito surpreendido.

Aquela nã o era a atitude convencional tomada pelas jovens que vinham à Í ndia.

A maior parte delas preocupava-se apenas com as diversõ es que encontrariam no Palá cio do Governo, nos chá s, nas partidas de pó lo, nos bailes e nos mexericos.

As demais eram missioná rias dedicadas, firmemente resolvidas a pô r um ponto final nas prá ticas dos indianos, pois divergiam frontalmente dos conceitos de Bem e de Mal, que lhes haviam sido inculcados em sua pá tria.

Iain Huntley sentia profunda aversã o por aquele imperialismo evangé lico combinado com um grande fervor moral. Considerava medí ocres e de mentalidade estreita aqueles que haviam feito daquelas teorias o objetivo de suas vidas.

Pensava com frequê ncia que preferia a superstiç ã o e a selvageria da Í ndia, o costume de queimar as viú vas, o infanticí dio à carolice e ao zelo estreito e mesquinho daqueles que nã o apreciavam nem mesmo a beleza do paí s, pois ele exercia um efeito sedutor sobre suas pessoas.

— Acho que a primeira coisa que tem a fazer é compreender os indianos como indiví duos e nã o como um todo, pois cada um deles pertence a uma casta diferente, tê m pontos de vista diversos e obedecem a regras que eles mesmos se impuseram e que nenhum governo, por melhor administrado que seja, poderá alterar.

— E se agí ssemos assim nó s os estragarí amos — comentou Brucena, como se estivesse falando consigo mesma. — É por isso que quero compreender tudo o que diz respeito à Í ndia.

— Por quê?

A pergunta fora muito brusca e ela sabia que o homem que a formulara suspeitava que suas motivaç õ es estivessem ligadas a uma mera curiosidade.

— A resposta a isto é o fato de eu sentir que tenho muito o que aprender da Í ndia e que tenho muito a receber dela.

Iain Huntley ficou novamente surpreendido. Enquanto imaginava o que dizer, Brucena prosseguiu:

— O senhor disse que na Í ndia todos sã o diferentes. Compreendo sua afirmaç ã o, no que diz respeito à s castas, mas, com certeza, todos eles acreditam em algo.

— No quê?

— Em seu Karma pessoal. Todos os livros que li se referem ao Karma como algo que impregna e abrange tudo, algo a que quase todos os indianos aderem nã o somente com sua mente mas també m com seu coraç ã o.

O major Huntley contemplou-a durante alguns segundos e disse em seguida:

— Tem razã o, srta. Nairn. É claro que tem razã o. Apenas fico surpreendido que tenha chegado a esta conclusã o ou que ela tenha sido dita pela senhorita atravé s de uma fó rmula tã o simples.

— Já li a respeito, mas sinto que sempre levei isto dentro de mim, pois trata-se de algo em que també m acredito.

 



  

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