Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





COLEÇÃO JARDIM DAS FLORES4



COLEÇ Ã O JARDIM DAS FLORES4

ESCRAVA DO AMOR

 

Violet winspear

                                                 Argelia

 

Lorna morel

 

 


 

 

                          Violet Winspear

         ESCRAVA

         do Amor

 

                                    CAPITULO I

 

A moç a tinha um ar pensativo no terraç o do hotel, ao admirar distraidamente as estrelas que cintilavam entre as altas palmeiras. Embora estivesse com um vestido longo de crepe, parecia indiferente à mú sica ani­mada que vinha do salã o de baile.

Respirou fundo o ar da noite, impregnado com o perfume de jasmim e com o aroma forte que a brisa noturna trazia do deserto.

Aquele era o Oriente misterioso que seu pai conhecera e co­mentara tantas vezes! Aterra que planejaram visitar juntos! Alé m dos muros do hotel, ficavam as areias douradas de seus sonhos...

No dia seguinte de manhã, iria sozinha a cavalo até o oá sis de Fadna, onde o pai havia morado e pintado as paisagens que o tornaram conhecido como artista. Eram pinturas tã o vibrantes e cheias de vida que despertaram na aluna do in­ternato de freiras o desejo ardente de conhecer a realidade.

" Um dia iremos até lá ", prometera o pai. " Logo que eu estiver em condiç õ es de viajar, iremos morar nos limites do deserto. "

O pai apanhara uma doenç a na ú ltima viagem que fizera ao Oriente, e Lorna cuidara dele, dedicadamente, durante o ano que passaram em Paris. Lentamente, poré m, Peter Morel sucumbiu à febre maligna e deixou a filha sozinha no mundo. Era verdade que nã o ficara sem dinheiro, as obras de arte do pai garantiam a ele uma boa renda, mas nada compensava a perda de um homem tã o querido e excê ntrico!

Mesmo naquele momento, podia vê -lo, sorrindo, enquanto trabalhava numa tela, ou esboç ava um rosto original, com al­guns traç os rá pidos de carvã o.

Estremeceu instintivamente quando ouviu o ruí do de passosna outra extremidade do terraç o e pensou em afastar-se rapi­damente dali e refugiar-se no jardim. Ao sair da sombra, con­tudo, um rapaz a abordou.

— Ah, você está aí! — exclamou, com uma risada irritante. — Prometeu-me uma danç a, Lorna.

A mú sica invadiu o terraç o, saindo pela porta aberta do salã o de baile. O calor, a fumaç a dos cigarros, as conversas desinteressantes, tudo contribuí ra para expulsá -la dali. Agora Rodney Grant saí a a sua procura, quando havia tantas outras moç as no salã o que disputavam sua companhia.

— Estou cansada de danç ar, Rodney — explicou, com o rosto impassí vel. — Prefiro respirar o ar puro da noite e olhar para as estrelas lá no alto, que parecem estar ao alcance de minha mã o.

—Mas elas nã o estã o, Lorna — disse o rapaz, com uma entonaç ã o prosaica, que tinha o dom de irritá -la. — Por que nã o se conforma com as coisas possí veis?

—Como o casamento e as obrigaç õ es banais da vida?

— Com você, a vida nunca seria banal — replicou o rapaz, corando ligeiramente.

Lorna nã o entendia por que os rapazes daquela idade fica­vam sem jeito e gaguejavam diante de uma jovem bonita.

Ela tinha cabelos cor de ouro, olhos azul-escuros e o rosto oval. Como aprendera no internato das freiras que os atributos fí sicos nã o tinham valor na vida, ouvia com indiferenç a os elogios que os rapazes Lhe faziam. Preferia saber que possuí a uma saú de de ferro e que podia andar a cavalo e partir a galope sem correr o risco de ser derrubada no chã o.

Subitamente, o som langoroso de uma flauta de bambu veio do jardim, obsessivo e dolente, contrastando com a mú sica fre­né tica que cessara naquele momento.

— Quem está tocando flauta? — perguntou Lorna, aproxi­mando-se com curiosidade do parapeito e prestando atenç ã o na melodia, com os olhos brilhantes. — Ouç o essa mú sica todas as noites desde que cheguei a Ras Jusuf.

— Deve ser um dos jardineiros — respondeu Rodney, apro­ximando-se dela.

Ao sentir o contato do braç o dele em seu corpo, Lorna afas­tou-se e desceu rapidamente os degraus da escada.

— Vou descobrir o flautista que está tocando entre as á rvores!

—Você tem cada idé ia! — exclamou Rodney, seguindo-a em direç ã o à s palmeiras e aos pé s de jacarandá, que estavam com os ramos cobertos de flores.

— Ah, que perfume maravilhoso! — disse Lorna, abaixando um galho e levando-o ao nariz. — Nã o tem vontade de cometer uma loucura ao respirar esse ar da noite?

— O que entende por loucura? — indagou Rodney, com um risinho malicioso. —Sinto-me bem só de estar com você...

— Nã o é disso que estou falando! — Lorna respondeu, com impaciê ncia. —A vida deve ter um certo encanto, uma certa magia, alé m dos beijos e das promessas vazias.

—Já se apaixonou por algué m, Lorna? É muito bom na­morar, e eu daria tudo para ser seu namorado.

— Pois eu nã o — disse ela, com voz fria. — Ouç a, Rodney, ao contrá rio das outras moç as que estã o hospedadas no hotel, nã o vim aqui para arrumar um marido.

— Nã o me diga que veio conhecer o deserto!

— Por que nã o? O deserto é um lugar muito misterioso... Afastou-se dele e prestou atenç ã o na mú sica da flauta, que

absorvia, no momento, todo seu interesse. A presenç a de Rod­ney era algo desagradá vel naquela circunstâ ncia, mas nã o que­ria ser indelicada e pedir ao rapaz para deixá -la sozinha.

— O baile vai terminar, e você perderá sua ú ltima danç a — lembrou-o, na esperanç a de que o rapaz compreendesse a indireta.

—Eu nã o vou deixá -la aqui sozinha... com esse á rabe to­cando flauta no meio das á rvores.

— Nã o há perigo — disse Lorna, com um sorriso. — Amanhã, vou passear a cavalo sozinha no deserto...

— Está falando sé rio? — questionou Rodney, pegando em sua mã o.

Ela se soltou com um gesto brusco e afastou-se alguns passos, como se nã o pudesse tolerar o contato fí sico de um homem. O ú nico homem com quem tivera intimidade fora o pai e, mesmo assim, somente no ú ltimo ano de vida, porque antes ele estava sempre viajando, à procura de paisagens originais para seus quadros.

Sua mã e morrera havia tantos anos que mal se lembrava dela, e Lorna passara a maior parte da infâ ncia e da adoles­cê ncia trancada no internato das freiras.

" Quando você crescer, vamos viajar pelo mundo inteiro", dissera o pai.

Era o sonho que ela cultivara durante todos os anos de solidã o, mas que, infelizmente, nã o estava destinado a se concretizar. Agora, aos vinte anos, viajara sozinha para o Oriente, a fim de conhecer o oá sis de Fadna, numa espé cie de romaria ao local que o pai amara em vida e onde residira durante muitos anos.

— Já arrumei um bom cavalo e pretendo conhecer o deserto de que falam tanto — explicou para Rodney.

— Vou com você — disse o rapaz, com firmeza. — Uma moç a de sua idade nã o pode andar sozinha por aí. Há regiõ es que sã o inteiramente isoladas, e me contaram que algumas moç as foram sequestradas e nunca mais ningué m ouviu falar delas!

Lorna deu uma risada que ecoou pelo jardim silencioso.

— Nã o sou Dolly Featherton! — exclamou, com voz desde­nhosa. — Você nã o me assusta com histó rias de á rabes mal-encarados que sequestram moç as desacompanhadas, a fim de levá -las para seus haré ns! Meu pai morou muitos anos no de­serto, e ele conhecia bem os beduí nos. Eles preferem as mu­lheres á rabes e acham as europé ias muito magras e sem graç a...

— Nã o seja teimosa! Pode ser pega apenas para que paguem um resgate... Nã o estou brincando! Os beduí nos pensam que todos os turistas sã o milioná rios.

—Nesse caso, ficarã o decepcionados se me sequestrarem. Vivo com a renda que meu pai me deixou, e nã o sou nenhuma milioná ria...

Lorna voltou-se em direç ã o à s á rvores ao ouvir o som da flauta se aproximando de onde estavam. Prestou atenç ã o du­rante um momento e correu para trá s de um tronco. Avistou dali o brilho do lago, onde os nenú fares flutuavam, e, junto à margem, o vulto de um á rabe.

O capuz do albornoz branco estava caí do sobre os olhos, mas podia avistar a flauta que estava presa em seus lá bios. O homem estava voltado em sua direç ã o, e a aparê ncia dele era sinistra, com o capuz de monge.

Lorna apertou com forç a a bolsinha que segurava na mã o. O flautista, naturalmente, pediria a gorjeta de praxe. Em vez disso, poré m, ele guardou a flauta no bolso do manto e lhe dirigiu, um cumprimento cerimonioso.

—A lella está querendo saber a sorte? — perguntou em francê s, com os olhos brilhantes por baixo do capuz. — Vi a lella no bazar esta manhã e, mais tarde, passeando no jardim. A moç a está procurando alguma coisa na terra do vé u?

Lorna parecia fascinada, enquanto fitava o á rabe. Rodney murmurou:

—Ler a sorte... Isso é bobagem! Nã o gaste seu dinheiro com esse sujeito.

— O roumi tem medo de ser excluí do de sua vida — prosseguiu o á rabe, pelo visto compreendendo o comentá rio de Rodney.

Com o rosto impassí vel, o homem tirou um saquinho do bolso do albornoz, soltou o nó que o amarrava e despejou o conteú do na frente dela. Em seguida, espalhou a areia fina com a palma da mã o e traç ou alguns desenhos na superfí cie lisa, com a ponta do dedo.

—Sopre a areia levemente — disse por fim.

Lorna ia ajoelhar-se no chã o, diante do adivinho, quando este, com a cortesia tradicional dos á rabes, retirou o lenç o de seda do pescoç o e estendeu-o em sua frente.

—Muito obrigada — ela agradeceu, soprando de leve os desenhos traç ados na areia. Depois, com a respiraç ã o presa, aguardou com ansiedade que o á rabe examinasse os traç os formados na areia.

Mektub — murmurou o homem. — Estou vendo uma casa construí da num local isolado. A areia do deserto avanç ou sobre os muros e os canteiros de flores. A lella nã o deve ir a este lugar, mas está escrito que irá, mesmo assim.

— Por que nã o devo ir lá? — indagou Lorna, olhando com certa desconfianç a para o á rabe.

Naquela manhã, ao alugar um cavalo para o passeio que pre­tendia dar, informara-se també m sobre a casa construí da pelo pai no oá sis de Fadna. Algumas pessoas no hotel estavam perfeita­mente a par de seu plano. Era possí vel que o á rabe tivesse ouvido alguma coisa a esse respeito e se aproveitasse da informaç ã o.

—Sei apenas que a moç a irá até lá e que será perseguida por um homem de cabelos negros.

Lorna deu uma risada nervosa e olhou para os cabelos loiros de Rodney.

— Bem, nesse caso você está excluí do!

—O que ele disse? — perguntou Rodney, sé rio.

— Nã o entende francê s?

— Nã o, nã o entendo nada dessa lí ngua.

— Ele falou que vou ser perseguida por um homem de ca­belos negros — explicou Lorna, com animaç ã o.

— Quanta besteira! — exclamou Rodney, olhando com des­prezo para o á rabe. Sob a sombra do capuz, os olhos escuros brilharam. — Dê -lhe uma gorjeta, e vamos embora.

— Antes, quero fazer mais uma pergunta... Pode ser boba­gem, mas é tremendamente divertido!

Ao avistar o rosto dela em sua direç ã o, o adivinho tornou a inclinar a cabeç a sobre os desenhos traç ados na areia.

—Quem é esse homem moreno? Eu o conheç o, ou é um estranho?

— Há pessoas que a gente encontra nos sonhos, lella. Pessoas que sã o estranhas sem serem desconhecidas.

— Nã o sonhei ultimamente com nenhum homem de cabelos negros e perigoso — disse Lorna, com um sorriso irô nico. — Nã o pode me dizer algo mais interessante?

—Há alguma coisa mais interessante que os segredos do coraç ã o, lella?

Havia uma entonaç ã o maliciosa na voz rouca do homem que a desagradou. Com um movimento brusco, ela se inclinou para a frente e soprou com forç a os desenhos formados na areia.

— Pronto! Agora afastei esse homem moreno de meu caminho!

— Nã o, lella, nã o afastou. — O á rabe apontou para a bainha do vestido azul, onde havia alguns grã os de areia fina. — Se a moç a quer fugir dele, deve afastar-se do deserto... Se per­manecer aqui, será perseguida, e as mã os dele vã o cair sobre a lella, como esses grã os de areia.

Lorna levantou-se bruscamente e tirou a areia do vestido. Era bobagem levar aquilo a sé rio, mas, mesmo assim, sentiu-se subitamente angustiada e atrapalhou-se toda quando apanhou uma moeda na bolsa. O á rabe aceitou a gorjeta e guardou-a no bolso do albornoz. Inclinou a cabeç a cerimoniosamente e murmurou uma palavra de agradecimento.

Ela se voltou com nervosismo e sugeriu a Rodney que se di­rigissem rapidamente ao salã o, antes da ú ltima danç a. O lamento da flauta de bambu acompanhou-os durante alguns momentos, e Lorna pensou que era uma tola por se perturbar com as palavras do adivinho. Felizmente, ningué m podia prever o futuro!

Meia hora antes, ela fugira do barulho e das conversas en­joadas do salã o. Agora, poré m, ouviu com agrado a mú sica frené tica que encobria o lamento insistente da flauta no jardim.

— Você danç a divinamente — Rodney falou, estreitando-a nos braç os. —Por que nã o queria danç ar?

— Prefiro andar a cavalo... Nã o há nada como galopar em disparada! E por isso que estou sempre na frente dos outros.

— Ah, entendi! Nã o gosta de ser passada para trá s. Sobre­tudo pelos homens...

—Exatamente.

Ela se soltou dos braç os dele quando a mú sica terminou e as luzes do salã o aumentaram de intensidade. Perto dali, um rapaz beijava uma moç a no pescoç o, e Lorna dirigiu um olhar frio ao casal, como se nã o pudesse entender o motivo daquele gesto.

— Boa noite, Rodney. Pretendo me levantar de madrugada e vou dormir mais cedo hoje.

— Está realmente decidida a passear pelo deserto? — ele perguntou, caminhando a seu lado em direç ã o à escada.

—Mais do que nunca! Por que haveria de modificar meus planos?

— A resposta é evidente — Rodney respondeu, com impa­ciê ncia. — E muito jovem e bonita para andar sozinha por aí, quanto mais no deserto! Vou com você!

— Muito obrigada, mas prefiro ir sozinha.

Ela parou ao pé da escada e encarou-o. Rodney corou e segurou com forç a o corrimã o.

—Quer dizer que nã o gosta de minha companhia?

— Eu nã o disse isso. Desculpe-me, Rodney, mas o preveni de que nã o vim aqui para encontrar um marido, nem mesmo um namorado. Vim para fazer o que me agrada. Alé m disso, sei tomar conta de mim mesma. Agradeç o sua boa vontade, mas nã o sou tola como Dolly...

Ele a olhou atentamente. Nã o se cansava de admirar os cabelos dourados, os olhos grandes e azuis, o corpo esguio no vestido longo de crepe...

—Ouç a bem o que lhe digo, Lorna. Se nã o tomar cuidado, algué m vai ferir seu orgulho. Mesmo que seja fria, o deserto acabará por derretê -la.

Ela deu uma risada e, ao se voltar, avistou a famí lia Fea-therton, que se aproximava do saguã o. Dolly, uma garota desua idade, tinha cabelos crespos e lá bios finos. A mã e andava com o nariz empinado. O marido, que ia um pouco atrá s, lanç ou um olhar cheio de desejo para Lorna, que a esposa felizmente nã o percebeu, porque ele era um desses homens que tinha o costume de fazer as coisas à s escondidas.

Como nã o simpatizava nem um pouco com a famí lia Feat-herton, Lorna despediu-se rapidamente de Rodney e subiu a escada depressa.

Rodney provavelmente tinha razã o. Ela era orgulhosa e nã o gostava de andar na companhia de outros, embora fosse a primeira a ajudar algué m num momento de dificuldade, espe­cialmente crianç as ou algum animal indefeso.

Lorna acendeu a luz do quarto e aproximou-se do espelho. Mirou-se detidamente e sorriu para si mesma. Rodney a acusara de ser fria e indiferente. O que ele queria dizer com isso? Que nã o apreciava os beijos e as carí cias gratuitas? Uma coisa era verdade: ela nã o desejava namorar com ele, muito menos com qualquer homem que encontrasse. Nã o sentia o menor interesse pelos rapazes que conhecera até entã o. Todos pareciam muito banais, sem imaginaç ã o, sem vitalidade ou gosto pela aventura.

Rodney oferecera-se para acompanhá -la no passeio ao de­serto, mas ela sabia perfeitamente que ele preferia passar a manhã toda bebericando na piscina do hotel. Da mesma forma que os outros rapazes de sua idade, Rodney nã o ouvia o apelo do deserto e só se sentia seguro nas imediaç õ es de Ras Jusuf.

Ela se deitou na cama, embaixo do cortinado, e pensou no passeio que daria na manhã seguinte. Desejava intensamente conhecer os locais onde seu pai estivera, o vasto oceano dourado e cintilante do deserto, com suas dunas e colinas que se es­tendiam a perder de vista.

" O deserto pode ser cruel, tó rrido e inclemente, mas há uma grande beleza nele para os que sabem enxergá -la... ", dissera o pai.

Entã o, lembrou-se das palavras do adivinho... O á rabe re­velara que seria perseguida por um homem de cabelos negros...

Com certeza, era tudo bobagem, mas, mesmo assim, ela nã o conseguiu evitar o arrepio que lhe percorreu o corpo. Como se voltasse a ser crianç a, puxou o lenç ol sobre a cabeç a, com medo do escuro a sua volta.

 

 

CAPITULO II

D e calç a caqui, camisa de mangas compridas e chapé u de explorador na cabeç a, Lorna atra­vessou rapidamente o saguã o do hotel. Levava uma garrafa té rmica e um pacote de biscoitos na bolsa, e estava tã o contente quanto os passarinhos que cantavam no jardim.

O sol nascia no horizonte, quando caminhou até as cocheiras, onde Ahmet segurava as ré deas do cavalo arisco e resistente que alugara no dia anterior.

Ela cumprimentou o menino com o rosto sorridente e exa­minou mais uma vez o belo cavalo alazã o que estava com as orelhas em pé. Arrumou os biscoitos e a garrafa té rmica com café no alforje passado por cima do arreio e montou no cavalo, com um movimento á gil. Ahmet lembrou-a da recomendaç ã o que ouvira no dia anterior:

—O patrã o disse para a lella nã o ir alé m do oá sis.

— Eu sei, Ahmet — Lorna falou, com um sorriso. — Se eu me perder, seu patrã o nã o será responsá vel por mim. Mas prometo que nã o farei nenhuma loucura. Darei uma volta pelo oá sis e estarei de volta para o almoç o. Até logo, Ahmet.

— Bom passeio, lella.

Lorna moveu os calcanhares, e o alazã o partiu no trote em direç ã o à estradinha de terra, cercada de palmeiras, que atraves­sava o povoado. Num dos lados do caminho, estendiam-se os muros do hotel, cobertos de heras floridas. No outro, um pequeno riacho serpenteava até se perder de vista nas ondulaç õ es do terreno.

Ela guiou o cavalo para fora do povoado, e, quase imedia­tamente, o ar quente e penetrante do deserto a envolveu. So­zinha, sem ningué m à vista, trotou algum tempo sobre a areiamacia, com uma sensaç ã o de euforia maior do que tudo que já experimentara na vida. Nem mesmo os bazares do Oriente a excitaram tanto. Barulhentos e cheios de animaç ã o, atraí am a atenç ã o dos turistas com as alcovas sombrias, onde os cortes de seda brilhavam em cima dos balcõ es, os objetos de prata eram trabalhados sob a vista dos compradores e os perfumes misturados ao gosto de cada um. Pungentes e pitorescos, ti­nham seu ar de misté rio... Lorna havia adorado as escadas em caracol, os perfumes, as lembranç as que comprara nas lojas minú sculas e escuras... mas ali, no deserto, estava ainda mais perto do misté rio eterno que emanava do Oriente.

Interrompeu a marcha do cavalo e contemplou a vastidã o plana e interminá vel, repleta de ondulaç õ es e de colinas que se estendiam até o horizonte.

— O deserto pode ser cruel, tó rrido, inclemente... — repetiu, em voz baixa, as palavras de seu pai.

Agora o sol resplandecia atravé s da né voa amarelada, e cristais brilhavam no areal, como pedras preciosas. O vento que soprava nos espaç os abertos polira as rochas desnudas, tingindo-as de uma tonalidade avermelhada, enquanto o cé u, em qualquer direç ã o que se olhasse, estava incrivelmente azul, como um torrã o de anil.

Esse era o jardim dourado de Alá, onde os viajantes procu­ravam a paz, a aventura... ou o destino.

Lorna nã o sabia exatamente o que procurava. Desde que perdera o pai, sentia-se inquieta e solitá ria. Esperava que essa estada no deserto lhe desse um sentido novo de direç ã o... Tal­vez, se vivesse concretamente seu sonho, conseguisse tomar uma decisã o mais acertada para o futuro.

Ela soltou a ré dea e deixou o alazã o ir a galope, sentindo o vento bater-lhe no rosto enquanto se aproximava de uma colina. O cavalo saltou com agilidade por cima das pedras ro­ladas até que as areias amareladas ficaram lá embaixo, ofus-cantes, sob a luz intensa da manhã. O sol começ ava a castigar o local desabrigado. Lorna parou um segundo para beber um pouco de á gua do cantil que levava na bolsa. Em seguida, cobriu os olhos com o chapé u e sentou-se ereta na sela, en­quanto o cavalo á rabe, habituado ao terreno pedregoso, desciaaos solavancos o outro lado da colina, em direç ã o à s á reas verdes que marcavam os limites do oá sis de Fadna.

Lorna saltou do animal à sombra das palmeiras e tirou o chapé u. O suor espalhara-se por seus cabelos e peia testa.

Ah, que delí cia sair daquele sol inclemente! Ouviu um bando de pombas-rolas arrulharem perto dali e aproximou-se, com emoç ã o, da casa onde os passarinhos faziam seus ninhos.

Nã o havia outro ruí do a nã o ser o canto das aves. Era como se o oá sis tivesse prendido a respiraç ã o, como se guardasse o grito abafado que ela deu quando avistou as ruí nas da casa onde seu pai morara por muitos anos.

A pequena casa, caiada de branco, estava caindo aos pedaç os, invadida pela vegetaç ã o, que avanç ava por entre os muros e as paredes rachadas.

Lorna apoiou-se numa palmeira e olhou, decepcionada, para o que sobrara de seu sonho. Naquele momento, as palavras do adivinho soaram terrivelmente reais. A areia avanç ava, de fato, sobre a casa e cobrira os canteiros de flores. Como seu sonho de um dia morar ali continuava muito vivo. ficou du­plamente desiludida com a cena que presenciava.

Se fosse de chorar facilmente, teria despencado em lá grimas, de pura frustraç ã o. Podia, decerto, construir outra casa naquele local, mas nunca seria a mesma. O ar e a atmosfera nã o seriam os mesmos que o pai amara e conhecerá.

Foi com o coraç ã o apertado que se afastou dali, apó s colher uma flor branca que se agarrara obstinadamente à vida, mas nã o olhou para trá s nenhuma vez ao se dirigir, por entre as á rvores, ao local onde deixara o cavalo. O oá sis agora lhe parecia muito triste e desolado, apesar das palmeiras e da vegetaç ã o. Desejava cavalgar para longe dali e deixar que as areias afastassem tem­porariamente a lembranç a de seu querido pai. Somente uma flor branca, agarrada ao muro em ruí nas, restara de sua presenç a, e Lorna a guardou no bolso da camisa, com um suspiro.

Voltou para a entrada do oá sis e procurou seu cavalo. Os rastros do animal ainda estavam fundos na areia, mas nã o havia sinal dele em parte alguma!

Lorna assobiou, gritou, chamou-o pelo nome, mas nada acon­teceu. Tomada de pâ nico, correu por entre as palmeiras à pro­cura do cavalo alazã o. Estava tã o ansiosa para descer do cavalo

e ver a casa que se esquecera completamente de amarrá -lo numa á rvore pelo cabresto. O alazã o á rabe nã o era manso como seu cavalo na Franç a, que a seguia por toda parte, como um cachorrinho. Era um animal arisco, fogoso. Ao ver-se livre, galopara para longe e a deixara ali, sozinha. Agora, teria de voltar a pé para o hotel, afundar as botas na areia quente e enfrentar o morro de pedras soltas.

A perspectiva era desanimadora, e Lorna teve vontade de chorar de desâ nimo e frustraç ã o. A garrafa de café, o pacote de biscoitos, o cantil de á gua... ficara tudo na sacola que levava presa no arreio. Seu ú nico consolo era o riacho que corria por entre as á rvores. Pelo menos nã o passaria sede enquanto es­perasse ali o sol descer no horizonte. Seria loucura atravessar o deserto debaixo daquele calor abrasador. Somente ao entar­decer, poderia voltar com seguranç a para Ras Jusuf.

— Sua estú pida! — exclamou, sentando-se, desanimada, à sombra de uma palmeira.

As pombas-rolas continuavam arrulhando perto dali, e nã o havia a menor brisa soprando no ar. Era meio-dia, o sol bri­lharia com intensidade brutal durante vá rias horas. Ao entar­decer, a brisa fresca do deserto sopraria, e, se a lua estivesse visí vel, nã o teria dificuldade em encontrar o caminho de volta.

Entã o, preparou-se para a longa espera, ainda irritada com seu descuido. O cavalo voltaria sozinho para a cocheira, e os conhecidos de Lorna, no hotel, teriam a satisfaç ã o de comentar que uma moç a imprudente como ela nã o podia andar sozinha no deserto.

Franziu o cenho ao pensar no que Dolly diria e balanç ou os ombros ao se lembrar da advertê ncia de Rodney. " Algumas moç as foram sequestradas e nunca mais ningué m ouviu falar delas. "

Deixou a areia escorrer por entre os dedos das mã os e pensou que nenhum beduí no se daria ao trabalho de raptar uma mu­lher magra e de pele clara. Os á rabes gostavam de mulheres opulentas e submissas, bem femininas e que sabiam satisfazer seus menores caprichos. Riu ao imaginar que nunca na vida obedeceria à s ordens de um homem. Preferia morrer. Nã o en­tendia como as moç as de sua idade, em geral, nã o pensavam em outra coisa senã o no dia do casamento. Ela, no fundo, só gostava realmente de uma coisa: de sua pró pria Uberdade. De andar por aí e fazer o que lhe desse vontade no momento...

Ah, seria tã o bom fumar um cigarro! Na pressa de sair do hotel, de manhã cedo, deixara o maç o de cigarros e o isqueiro sobre a penteadeira do quarto.

Apoiou a cabeç a no tronco da palmeira e descansou um momento, de olhos fechados, até que o desejo de tomar uma xí cara de café tornou-se tã o intenso que se levantou depressa e dirigiu-se ao riacho.

Ajoelhou-se, umedeceu os lá bios e molhou o rosto. Gotas de á gua rolaram por seu pescoç o e molharam a camisa de cam­braia, que colou em sua pele. Olhou para as palmeiras em volta e desejou que fossem tamareiras, carregadas de frutos.

Entã o, subitamente, endireitou-se, com a sensaç ã o estranha de que estava sendo observada. Alarmada, permaneceu imó vel durante alguns segundos, até que se ergueu e olhou em volta.

Lorna nã o se enganara. Havia de fato um vulto embuç ado entre as á rvores, olhando fixamente para ela. Era um homem moreno, mal-encarado e de barba crescida. No momento em que ela o fitou, aterrada de medo, o homem retirou o pano que trazia no pescoç o e aproximou-se lentamente, pé ante pé, como um felino.

— O que deseja? — ela gritou, em pâ nico.

Dois olhos penetrantes a analisavam em silê ncio, e, no mes­mo instante, ela compreendeu o que o homem queria. Voltou-se para fugir e berrou de dor quando o braç o comprido enlaç ou-a com violê ncia e os dedos morenos a agarraram pelos cabelos. O pano sujo foi passado rapidamente sobre a boca de Lorna, abafando o grito histé rico que brotava de sua garganta. Com uma impressã o de pesadelo, assustada, sentiu suas mã os serem amarradas nas costas com as pontas do pano.

Deu pontapé s, debateu-se, tentou correr, mas foi agarrada com forç a e atirada violentamente ao chã o. De novo, os olhos maldosos e frios a observaram atentamente. Em seguida, o á rabe levantou-a com um safanã o e obrigou-a a caminhar em direç ã o ao outro lado do oá sis, onde um belo cavalo preto es­pantava as moscas com o rabo.

O animal estava amarrado a uma á rvore e, quando eles se aproximaram, espinoteou de nervosismo, e Lorna enxergoumarcas visí veis de esporas em seus pê los suados. No momento seguinte, foi jogada de lado sobre a larga sela.

O cavalo corcoveou, empinou e deu um relincho no instante em que o á rabe se sentou na sela e puxou com brutalidade as ré deas, voltando o animal na direç ã o do deserto.

Lorna foi tomada de pâ nico quando o á rabe a cobriu com o albornoz e a segurou com forç a nos braç os, enquanto o cavalo galopava na areia. Era um abraç o doloroso, e as dobras do manto cobriam seu rosto, afogando-a e cegando-a. Sua cabeç a estava girando confusamente, mal podia entender o que estava acontecendo...

Provavelmente, o homem a seguira até o oá sis e era terri­velmente verdade o que Rodney dissera a respeito de moç as sequestradas. Ela devia ter ouvido o conselho dele, em vez de zombar de sua advertê ncia. A culpa era dela, por ser teimosa e imprudente, mas jamais poderia imaginar que aquilo pudesse acontecer com algué m!

Para onde estavam indo?

O cavalo continuava galopando sobre o areal e só fizera uma pequena pausa quando o á rabe parou para beber á gua. Ela aproveitou a oportunidade para pô r a cabeç a para fora do albornoz muito sujo e cheirando a suor.

O deserto estendia-se a sua frente a perder de vista, um oceano silencioso e abrasador. Sentiu um nó na garganta ao pensar no ú nico amigo que tinha em Ras Jusuf... o rapaz que se oferecera para acompanhá -la ao oá sis e cuja companhia ela recusara com palavras rudes. Agora sentia saudade dele, rezava para que sur­gisse de repente e terminasse com aquele pesadelo!

O cavalo voltou a galopar, e ela tornou a ser apertada contra a roupa suja e grosseira do á rabe. Vez por outra, ele resmun­gava em voz baixa, como se estivesse impaciente e irritado sob o sol inclemente. Esporeava com fú ria o cavalo suado, que estremecia e sacudia a cabeç a como se nã o estivesse habituado com aquele tratamento.

Era incompreensí vel que um á rabe tã o mal-encarado possuí sse um cavalo como à quele. Provavelmente, nã o era dele, pensou Lorna, admirando os pê los sedosos do animal, a crina comprida e bem-tratada. Roubara-o, decerto, como fazia agora com ela.

Lorna estava com muito calor sob o albornoz, vendo tudoconfuso a sua frente quando, de repente, avistou um bando de cavaleiros no alto de uma duna, como figuras de um sonho. As silhuetas galopavam sobre o fundo claro do horizonte, com as tú nicas esvoaç antes chicoteando as ancas dos cavalos.

Quando desceram a galope do morro, o á rabe parou o cavalo com um puxã o brusco e resmungou algo em voz baixa. Em seguida, virou o animal no sentido contrá rio ao do bando de cavaleiros e, sem perder um segundo, partiu a toda velocidade, obrigando Lorna a segurar-se com forç a em seu manto para nã o ser atirada ao chã o. Diante da reaç ã o sú bita do á rabe, imaginou que os cavaleiros fossem certamente uma patrulha do deserto que corria a seu encalç o para salvá -la das mã os de seu sequestrador.

Animada com essa esperanç a, Lorna esticou o pescoç o para fora do albornoz e viu que um dos cavaleiros se aproximava, correndo na frente dos outros. O cavalo preto era tã o veloz quanto o do á rabe, mas galopava com mais desenvoltura porque levava apenas uma pessoa em cima. Daquela distâ ncia, enxer­gava apenas um vulto coberto com uma capa preta, agachado na sela, segurando alguma coisa na mã o direta.

Ela pensou que fosse uma espingarda, mas, quando a dis­tâ ncia diminuiu entre os dois, viu o homem arremessar alguma coisa no ar com toda a forç a. Ouviu um zumbido, e, no instante seguinte, algo escuro e brilhante se enroscou em volta do á rabe que a apertava nos braç os. Ele deu um berro de dor, soltou as ré deas e rolou pesadamente no chã o. Imediatamente, o ca­valeiro de capa preta emparelhou os dois cavalos na disparada, e ela foi enlaç ada pelos braç os dele antes de ser atirada ao solo. Tudo levou apenas alguns segundos.

Tonta e muito assustada, ouviu um brado alto de comando que fez o cavalo parar alguns metros adiante, ofegante e com o corpo coberto de suor.

Os outros cavaleiros aproximavam-se a galope. Lorna, ainda zonza, foi passada sem cerimó nia para um deles, como se fosse uma boneca de pano. O chefe do bando desmontou com um movimento amplo da capa e examinou com atenç ã o o cavalo que fora tã o judiado pelo á rabe. Acariciou o pescoç o do animal, passou a mã o embaixo do focinho e murmurou-lhe algo, com voz carinhosa. Ao ver as feridas das esporas e o sangue fresco que escorria dos flancos do cavalo, ele voltou o rosto irado nadireç ã o do á rabe. Nunca na vida Lorna vira uma fisionomia tã o surpreendente, tã o altiva, tã o autoritá ria! Com os lá bios cerrados, a cabeç a erguida, o cavaleiro aproximou-se do á rabe caí do no chã o e aç oitou-o impiedosamente. Lorna soltou uma exclamaç ã o abafada e levou a mã o à boca quando viu o homem contorcer-se sob os golpes do chicote.

Feito isso, o cavaleiro de capa preta recuou um passo e voltou-se para ela, que sentiu um arrepio de medo ao encontrar os brilhantes olhos castanhos fixos nos seus.

O homem observou-a de alto a baixo em silê ncio. Em se­guida, deu um passo à frente e soltou o pano que tapava sua boca e prendia seus braç os. Ela respirou aliviada, com o rosto molhado de suor. Nã o conseguiu, poré m, dizer nada durante alguns segundos, porque estava ainda confusa com a rapidez dos acontecimentos.

— Muito obrigada — sussurrou por fim, em francê s, com a voz tré mula. Apontou para o á rabe que estava caí do no chã o, como se fosse uma trouxa de roupa. — Esse homem me se­questrou... para receber dinheiro, imagino.

— Ah, é?

Os olhos castanhos observaram com atenç ã o os cabelos revoltos que cintilavam ao sol. Uma brisa leve soprou os cachos que caí am sobre o rosto suado, revelando os olhos grandes e azuis.

— Alé m de roubar o cavalo, esse vagabundo sequestrou tam­bé m uma moç a! O bandido nã o perdeu tempo!

O homem de capa preta, com botas de cano alto e turbante, falava um francê s impecá vel.

—Esse cavalo é meu — ele prosseguiu, apontando para o animal exausto. — Pensei que nunca mais fosse encontrá -lo! Muito menos com um prê mio extra em cima!

Deu um sorriso, e os dentes brancos brilharam no rosto bronzeado pelo sol. Apesar do sorriso, contudo, as linhas da face continuaram severas e autoritá rias como antes. Parecia terrivelmente seguro de si e nã o dava a impressã o de ser al­gué m que aceitasse um pagamento em dinheiro. O coraç ã o de Lorna começ ou a bater de maneira alarmante.

— Meu nome é Kasim ben Hussayn — ele se apresentou, com uma pequena inclinaç ã o de cabeç a. — E você, como se chama?

— Lorna Morel — murmurou. — Ficaria muito agradecidase um de seus homens me acompanhasse até o hotel de Ras Jusuf, em Yraa, onde estou hospedada. Pagarei generosamente

por esse incô modo.

— Ah, sim? — Kasim indagou, com um brilho malicioso nos olhos. — Quanto está disposta a pagar por eu tê -la salvado das mã os desse bandido? Alguns milhares de francos?

Ela observou em silê ncio os olhos castanhos que refletiam a cor do deserto. Embora se sentisse agredida pela entonaç ã o irô nica da pergunta, foi forç ada a reconhecer que estava diante de um homem educado, que falava francê s perfeitamente. Seu pai tivera muitos amigos durante o ano em que moraram em Paris, e alguns deles, inclusive, tentaram conquistá -la com o charme tradicional dos franceses. Ela se divertira muito na companhia deles, mas nã o passara disso.

— Estou com muita sede e nã o tenho â nimo no momento para pensar nesse assunto. — Afastou os cabelos da testa. — Só desejo um guia que me acompanhe até o hotel. Prometo pagar bem.

— Nã o vai me agradecer por tê -la ajudado?

— Já agradeci antes... De qualquer maneira, muito obrigada mais uma vez. Você foi muito gentil em me socorrer.

— Pensou que eu fosse um oficial francê s encarregado de patrulhar o deserto? — Jogou a capa em cima do ombro, com um gesto arrogante. — Pareç o-me com um francê s, por acaso?

— Nã o sei. Eu queria muito beber um pouco de á gua — disse Lorna, em voz baixa, desviando o olhar do homem alto e moreno.

Sem atender seu pedido, Kasim deu uma ordem em á rabe a um de seus homens, que saltou ao chã o imediatamente e aproximou-se do cavalo ferido. Segurou as ré deas com firmeza, pô s o pé esquerdo no estribo e sentou-se na sela vermelha.

Lorna, que presenciava a cena em silê ncio, recuou instinti­vamente quando Kasim deu um passo em sua direç ã o. Com um movimento brusco, levantou-a nos braç os e a colocou na sela do cavalo alazã o, antes ocupada pelo cavaleiro que agora

guiaria o cavalo ferido.

— Pode beber — ele falou, apontando para o cantil que estava pendurado no arreio. — Temos uma longa caminhada

pela frente.

Ela bebeu sofregamente, tampou o cantil e tornou a guardá -lo. — Nã o preciso de uma escolta — disse por fim, com umsorriso nervoso. — Basta um homem... apenas para me indicar o caminho de volta.

— Que caminho? — questionou Kasim, arqueando as so­brancelhas. — Nã o vamos em direç ã o a Yraa... estamos vol­tando para meu acampamento.

Lorna arregalou os olhos, aturdida e perplexa. Observou-o montar em seu cavalo preto em silê ncio, com a capa passada em volta do corpo, como uma asa enorme. Subitamente, en­tendeu o significado verdadeiro de suas palavras... Ele nã o a levaria para o hotel, como era seu desejo, mas para um acam­pamento no deserto! Seria sequestrada novamente, só que des­sa vez nã o parecia ser por dinheiro! Os trajes dele, a comitiva e suas maneiras denunciavam ser um homem importante... Bastava um ú nico olhar para perceber que era o chefe do bando e que todos lhe obedeciam cegamente. Estavam acostumados a satisfazer seus menores caprichos, mas ela nã o!

Movendoos calcanhares nos flancosdo cavalo, Kasim partiu em disparada entreos outros cavaleiros. Lorna nã o se subme­teria a nenhum homem, muito menos a essedemô nio alto e zombador, de olhos castanhos, como a areiado deserto.

                                            CAPÍ TULO III

 

 

Lorna galopou na frente de Kasim por mais de umquiló metro. Entã o, com uma facilidade es­tupenda, ele se aproximou, enlaç ou-a pela cintura e depositou-a

na frente de sua sela.

Ao ouvir a gargalhada de Kasim, Lorna começ ou a lutar com um desespero quase primitivo, dando socos em seus om­bros. Os dentes dele, muito brancos, destacavam-se na pele bronzeada, e, somente com as pernas, ele dominava e guiava o cavalo adestrado, enquanto a envolvia com a capa ampla. Ela estava ofegante, zonza e irritada diante de sua fraqueza.

—Seu bruto! — exclamou Lorna, com fú ria. — O que está fazendo?

— Adivinhe — ele murmurou, estalando a lí ngua para sossegar o cavalo, que estava inquieto com a luta que se travara em seu lombo. — Sossegue, Califa... estamos levando uma gata selvagem para casa... Pois é, menina, teria arrancado meus olhos se pudesse...

Tornou a dar uma sonora gargalhada e dominou-a com tanta facilidade como se ela fosse uma crianç a indefesa.

— Sua bobinha, está se cansando à toa... ou acha que Kasim ben Hussayn pode ser vencido por uma pirralha como você?

Tirou-lhe uma mecha de cabelos loiros de cima dos olhos e fitou-a de modo tã o intenso que ela ficou repentinamente pá lida

e imó vel.

— Seus cabelos sã o realmente desta cor? — ele perguntou, com um olhar que nã o era apenas de admiraç ã o, como Lorna estava habituada a receber, mas de um homem que apanha o que deseja sem pedir licenç a. — Seda selvagem — murmurou, fascinado pelos fios cor de ouro, enrolados entre os dedos com­pridos. — Seda natural. Dourada como o deserto.

Lorna procurava evitar ao má ximo o contato com o peito má sculo.

— Você... aç oitou aquele homem por ter roubado um cavalo! Os olhos azuis refletiam um terror que nunca experimentara

antes. Kasim a assustava ainda mais que o á rabe mal-encarado que a sequestrara no oá sis. Nã o fazia diferenç a que a capa dele fosse limpa como o ar do deserto e que tivesse um leve aroma de tabaco turco, cheiro que ela reconheceu no primeiro instante, porque seu pai fumava cigarros turcos. Nã o fazia diferenç a que as mã os compridas que a cingiam fossem limpas como suas roupas. A pró pria beleza dele gelava seu coraç ã o.

— Meus cavalos sã o de estimaç ã o e nã o admito que sejam maltratados! — Fitou-a nos olhos, e ela se lembrou de um leopardo, arrogante e seguro do temor que inspira aos outros. — Nã o me canso nunca de meus cavalos. Sã o belos, submissos e leais. Nã o posso dizer o mesmo de muitas mulheres...

Enquanto o cavalo dele galopava sob a luz ofuscante que do­minava o deserto, os outros cavaleiros seguiam em fileiras atrá s.

Lorna fechou os olhos para nã o ver o rosto de Kasim, depois tornou a abri-los e procurou na fisionomia severa algum sinal de compaixã o... mas nã o havia nenhum.

Aquilo era real, e nã o um pesadelo. Estava presa pela capa e pelo braç o forte daquele homem, duplamente imobilizada. Sentia os movimentos do cavalo, mas, exausta e sem forç a, tinha apenas uma leve consciê ncia da situaç ã o quando o sol desapareceu, e a noite rapidamente se apossou das primeiras estrelas que brilhavam no cé u da Ará bia.

O tilintar do freio e das argolas de prata que enfeitavam o arreio do cavalo acabou por adormecê -la. Algum tempo depois, no entanto, o ritmo dos passos do animal se alterou, e Lorna acordou do estranho sono que tivera.

Era noite avanç ada.

Estava embrulhada confortavelmente na grande capa de montaria quando os cavaleiros chegaram a um acampamento de tendas pretas, iluminadas pelo luar. Ela viu as formas ajoe­lhadas dos camelos e a chama da lenha que ardia nas fogueiras. Ouviu vozes e ordens ditas em á rabe, enquanto era levantada da sela e colocada no chã o. Estava com os braç os e as pernas dormentes e tinha apenas uma vaga consciê ncia da beleza exó tica do ambiente e da agitaç ã o de homens e mulheres em sua volta.

Estremeceu, mas nã o de frio. A lua, bem no alto, era umafoice prateada, e o perfil do chefe dos cavaleiros estava deli­neado no cé u enquanto dava ordens a seus homens.

Em seguida, voltou-se bruscamente para Lorna. Ela perce­beu o sorriso arrogante nos lá bios finos. Dividida entre a fú ria e o medo, acordou de sua sonolê ncia, ergueu a mã o e lhe deu um tapa no rosto. Uma vez... duas vezes... como se necessitasse extravasar o terror que sentia por ele.

Kasim deu uma gargalhada e levantou-a nos braç os. Os outros observaram a cena em silê ncio, os rostos semelhantes a má scaras douradas à luz da fogueira. Viram o chefe carregá -la no colo para a grande tenda dupla que estava armada num ponto isolado do acampamento, alé m do cí rculo das fogueiras. Com um movimento do ombro, Kasim levantou o pano caí do na porta da tenda e entrou, carregando-a nos braç os, O ruí do das botas foi silenciado pelos tapetes espessos que cobriam o chã o.

— Selvagem! —exclamou Lorna, com raiva, encarando o olhar arrogante do á rabe, embora se sentisse mole e assustada. — Se pensa que pode me manter prisioneira aqui, está muito enganado. Sou uma cidadã inglesa!

— Sei disso — respondeu Kasim, com indiferenç a. — Estou em meu territó rio e nã o sou sujeito a nenhuma autoridade. O que acha que vou fazer com você?

O olhar dele era de uma ironia cruel, e ela notou cada detalhe do rosto moreno à luz das lâ mpadas de cobre, que exalavam um cheiro forte de sâ ndalo. O desenho das sobrancelhas e do nariz era reto, impecá vel. As narinas eram finas e estreitas, e a linha do queixo tinha uma curva dura e acentuada. Olhou para a boca... que esboç ava imperiosamente um sorriso que nã o levava em consideraç ã o os sentimentos de Lorna.

— Tenho dinheiro — ela sussurrou. — Prometo pagar bemse me libertar.

—Nã o preciso de seu dinheiro — Kasim falou, com uma risada desdenhosa, e colocou-a no chã o. — Nã o é com seu dinheiro que vai comprar sua liberdade. Só há uma maneira de obter isso... e você sabe qual é.

— Nã o sei qual é — disse Lorna, com os olhos vermelhose inchados.

— Jura? — perguntou Kasim, observando-a de alto a baixo.

— O que um homem pode querer quando leva uma bela mulhercomo você para sua tenda? Tenho certeza de que sabe! Nã o se faç a de ingê nua...

Quando o sentido das palavras penetrou em sua cabeç a, ela recuou instintivamente alguns passos e esbarrou no sofá. Aper­tou a capa ampla contra o corpo e olhou em volta, assustada, à procura de algum meio de escapar de seu sequestrador. Avis­tou a cortina de contas que levava a outra parte da tenda dupla, mas, no momento em que examinou com atenç ã o aquele aposento, percebeu, alarmada, que era ali o haré m do sheik.

Voltou bruscamente a cabeç a e encontrou os olhos dele fixos nos seus.

— Nã o sou uma mulher da vida! — exclamou, furiosa. — Vim passar as fé rias aqui, e meus conhecidos vã o me procurar... Será punido se me acontecer alguma coisa!

— Nã o diga!

Kasim deu um passo à frente e arrancou a capa que a cobria, deixando-a apenas com a camisa leve de verã o e a calç a com­prida justa no corpo. Nunca ningué m a olhara com tanta avidez. Nunca se sentira tã o consciente de ser uma mulher desejá vel.

— Uma moç a como você nã o deveria circular sozinha por ai, como uma cigana... É uma loucura ser jovem, nã o? Seguir os impulsos do momento, em vez de ouvir os conselhos dos mais experientes. Tenho certeza de que foi advertida sobre os perigos do deserto. Mas nã o ouviu os avisos... Foi muito imprudente, mocinha!

Um tremor percorreu o corpo indefeso. Cada palavra dele era uma chicotada emseu coraç ã o.. Recuou no momento em que Kasim pô s a mã o em sua nuca e forç ou-a. a encará -lo.

— Você é bela como uma rosa selvagem... e tem espinhos que ferem as mã os — ele acrescentou, agora acariciando, a linha sinuosa do pescoç o de Lorna. — Nã o gosta de ser tocada por um homem... Onde adquiriu esse comportamento frio e distante... num convento?

—E você, onde adquiriu sua crueldade? — ela replicou, com voz fria. — É um monstro!

—Sou apenas um homem. — Havia um sorriso perigoso em seus lá bios. — Acredito que tudo depende do destino, e foi ele que nos aproximou... comprenez-vous?    

— O destino nã o justifica os crimes —Lorna respondeu, com o coraç ã o batendo aceleradamente no peito, enquanto en­carava o rosto belo. — Há o respeito pelos outros...

— Sua sú plica nã o me comove, minha cara. — A mã o desceu pelo ombro, e ela sentiu o contato por cima do tecido leve da camisa. — O que o respeito tem a ver com o sentimento de om homem por uma mulher? — Deu uma risada, inclinou a cabeç a e beijou-a na curva do pescoç o. — Como sua pulsaç ã o está rá pida! Tem medo de mim?

— Você é odioso!

O beijo fora bem leve, mas, mesmo assim, ardia como fogo.

— Pois eu a acho terrivelmente excitante. —Enlaç ou-a como se fosse uma planta inclinada para trá s sob um golpe de vento. — Seus cabelos sã o dourados como o sol do deserto, seus olhos sã o da cor de jasmim-azul e sua pele é clara como a madrugada. Eu a desejo e prefiro possuir as coisas à forç a a recebê -las

espontaneamente.

— Nã o pode fazer isso.

As palavras morreram nos lá bios de Lorna e deixaram ape­nas a sú plica muda dos olhos.

— Você sabe que sim. As mulheres sã o instintivas por na­tureza... Seu instinto nã o lhe disse ainda por que a trouxe a

minha tenda?

Kasim tocou os cabelos compridos, passou os dedos sobre o pescoç o delicado, que se perdia na gola aberta da camisa, e, quando ela tentou defender-se, quando lutou desesperadamente contra seus braç os fortes, agarrou-a com brutalidade e aper­tou-a contra si com uma violê ncia que podia tê -la sufocado,

— Bela e rebelde! Um filhote de pantera que nã o foi do­mesticado pelo homem. Trè s bien, vamos brigar primeiro... e depois fazer as pazes!

Ao dizer essas palavras, soltou-a e saiu rapidamente da tenda. Quando o pano da entrada voltou a seu lugar, Lorna caiu, exausta, no sofá e pô s a cabeç a entre as mã os. Estava trê mula e sem ar, mas o alí vio das lá grimas lhe foi negado. Aliá s, de que adiantava chorar? Nã o poderia esquecer que es­tava nas mã os de um homem brutal, impiedoso e cruel, como nunca imaginara encontrar no Oriente.

Os á rabes que avistara na cidade eram homens pacatos e obesos, Kasim, no entanto, tinha a aparê ncia de um prí ncipe... que saí ra diretamente de algum conto á rabe da é poca do califa

Harun al-Rachid.

Lorna arrependeu-se amargamente de nã o ter ouvido os conselhos de Rodney para nã o passear sozinha no deserto. Rodney a avisara... O adivinho vira seu destino traç ado na areia... Caprichosa, teimosa e imprudente, ela nã o ouvira os conselhos de ningué m e deixara-se seduzir pelo encanto do deserto.

Estremeceu ao sentir a presenç a de algué m na tenda. Levantou a cabeç a, assustada, com o rosto muito pá lido, e avistou um criado. Ele tocou na testa, nos olhos e nos lá bios, com a ponta dos dedos, para indicar que todos os trê s estavam a seu serviç o.

— Trouxe á gua para a lella tomar banho — o criado disse, em francê s. — Trouxe roupas també m para a lella vestir. Meu senhor vai jantar com sua convidada.

Lorna corou repentinamente com a inflexã o do homem. Ficou de pé e exclamou, com desespero na voz:

—Preciso sair daqui! Se me arrumar um cavalo, eu lhe pagarei generosamente!

— O dinheiro nã o tem valor para mim, lella. Eu seria punido com a morte se fizesse o que pede.

Retirou-se da tenda com uma inclinaç ã o de cabeç a, e Lorna compreendeu amargamente que nã o teria nenhum aliado no acampamento, pois ningué m correria o risco de desobedecer as ordens do sheik.

Levou a mã o ao pescoç o, tocando o ponto onde fora beijada por Kasim. A lembranç a do beijo, tã o recente e ardente, fez com que saí sse correndo em direç ã o à outra parte da tenda dupla... o haré m.

Olhou em volta e reconheceu que o local era mobiliado com incrí vel bom gosto. Havia um sofá coberto por uma colcha bor­dada com fios de ouro. Os motivos eram ramagens e flores de jasmim-azul. Ao lado do sofá, havia uma mesinha com uma lâ mpada de cobre e uma caixinha de madeira entalhada con­tendo cigarros e alguns fó sforos. Lorna passou a lí ngua sobre os lá bios secos. Os nervos suplicavam o gosto de fumo na boca e, esquecendo-se momentaneamente de que eram de Kasim, ajoelhou-se no sofá e apanhou sofregamente um cigarro.

Os cigarros eram turcos e tinham gosto forte e á spero. A primeira tragada causou-lhe uma tosse instantâ nea, mas em seguida a sensaç ã o de ardor passou. Lorna acomodou-se no sofá, cansada e ao mesmo tempo tensa, prestando atenç ã o nos ruí dos que vinham de fora.

Uma pele de leopardo estava estendida em cima do tapete.

As lâ mpadas de cobre exalavam um perfume delicado, e havia uma mesinha esmaltada com espelho e objetos de uso pessoal.

O aposento, como seu dono, era imaculadamente limpo e arrumado. As tapeç arias bordadas à mã o e as almofadas enor­mes nã o apresentavam uma mancha sequer. Num banquinho, ao pé do sofá, ela avistou um roupã o de seda e um pijama.

A intimidade do aposento era envolvente. Era ali que Kasim dormia. Era ali que descansava no fim do dia e lia os livros com tí tulos em francê s que estavam enfileirados numa estante

no alto da cama.

Lorna apagou o cigarro no cinzeiro de cobre, e todos os nervos do corpo se contraí ram quando a cortina de contas se abriu para deixar passar uma jovem com um vé u no rosto.

— Sou Zahra — a moç a se apresentou, olhando curiosamente para Lorna, examinando os cabelos compridos, a roupa justa e as botas de cano alto.

Zahra retirou o vé u do rosto e desapareceu atrá s da cortina. Voltou no instante seguinte, com duas chaleiras de á gua quente nas mã os. Colocou as vasilhas de cobre em cima da mesinha e, apó s afastar uma cortina de brocado, apontou para um quar­tinho minú sculo onde havia uma bacia enorme, bastante grande para uma pessoa acomodar-se em seu interior.

— A lella quer tomar banho? — a moç a perguntou, em francê s. Lorna meneou a cabeç a afirmativamente. Um banho quente era a coisa que mais desejava no momento. Zahra encheu a bacia de cobre com a á gua das duas chaleiras, apanhou em seguida uma toalha e despejou um ó leo aromá tico na á gua fumegante. O vapor tinha um cheiro forte e cativante, e Lorna respirou, aliviada, quando a jovem saiu pela cortina de contas, dizendo que ia buscar alguma coisa lá fora.

Despiu as roupas cobertas de poeira e entrou na bacia, que

era suficientemente grande para ajoelhar-se lá dentro. Lavou-se

com os sais de banho e embrulhou-se na toalha enorme que lhe

batia nos pé s. Estava se enxugando quando Zahra voltou trazendo

algumas roupas nos braç os. Mostrou cada uma delas para Lorna.

0 robe era bem fino, quase transparente, as calç as turcas de seda

tinham bordados na cintura, a tú nica era de veludo e os chinelos,

muito macios e forrados de penas, tinham as pontas levantadas.

Lorna olhou, assombrada, para a coleç ã o. Eram trajes tí picos

de haré m!

—Nã o, isso nã o! — exclamou, balanç ando a cabeç a com firmeza. Zahra observou-a, espantada e sem jeito.

—Nã o vou usar isso! — repetiu Lorna, apanhando suas roupas caí das no chã o.

Com os dedos trê mulos, Lorna tornou a vestir a camisa e a calç a sujas, que pareciam tã o pouco femininas ao lado das roupagens orientais, leves e esvoaç antes.

Ela nã o era mulher de haré m! Por mais apavorada que estivesse, nã o se submeteria ao tal sheik sem primeiro lutar para defender sua liberdade.

Levantou o queixo e encontrou os olhos grandes e escuros de Zahra.

—Sinto muito, Zahra, mas nã o posso usar as roupas que me trouxe...

—O prí ncipe Kasim vai ficar zangado — disse a moç a, assustada.

—Diga que fui eu que nã o quis — Lorna falou, decidida. — Nã o me importo nem um pouco com a raiva desse prí ncipe.

Mirou-se no espelho em cima da mesinha e notou que os cabelos estavam emaranhados e revoltos. Apanhou com relu­tâ ncia o pente de tartaruga que encontrou na penteadeira e desembaraç ou os cabelos compridos.

Ela levava sempre consigo um estojinho com batom no bolso da calç a e, ao passá -lo nos lá bios, sorriu para si mesma- O batom era a arma predileta das mulheres nos momentos de crise.

Ao virar-se, percebeu que Zahra havia saí do do aposento. As roupas de seda e de veludo estavam arrumadas em cima de uma arca, juntamente com os chinelos vermelhos.

— Prefiro morrer a usar essas roupas de odalisca — mur­murou, com desdé m.

Tomou coragem, passou pela cortina de contas e voltou para a parte principal da tenda. A mesinha baixa estava servida para dois, diante do sofá coberto de almofadas. Havia talheres com cabos incrustados de pé rolas e copos com frisos de prata.

O homem que morava naquele lugar era um demô nio im­piedoso e belo, que vivia como um prí ncipe. Mordeu os lá bios com despeito. Aliá s, era exatamente isso, segundo Zahra. Um prí ncipe arrogante... que logo entraria na tenda, com seu andar imponente de felino.

 

 

CAPÍ TULO IV

Lorna parou no meio da tenda e respirou o cheiro forte, proveniente dos objetos de couro, dos mó ­veis de sâ ndalo e do tabaco turco. O interior do local era repleto de tapeç arias, e as lâ mpadas de cobre forneciam uma luz difusa e dourada ao ambiente. Os tapetes eram persas, e, sobre uma mesa de é bano, havia uma bela caixa de madeira, toda trabalhada. Lorna abriu a caixa e soltou uma exclamaç ã o de surpresa ao avistar o belí ssimo jogo de xadrez de marfim. As peç as eram tã o bem esculpidas que pareciam transparentes. Estava admirando o cavalo, que tinha na mã o, quando ouviu um leve

movimento as suas costas.

Ela. se voltou rapidamente, com um aperto no coraç ã o. Kasim entrara silenciosamente na tenda e estava parado junto à porta. Trocara a roupa de montaria. e vestia uma tú nica branca, aberta no peito, presa com um cinto largo de tachas. Os cabelos pretos estavam descobertos, e havia uma insolê ncia visí vel no homem que olhava fixamente para ela, ao perceber que estava de calç a comprida e botas de cano alto.

Os olhos dele se estreitaram, e Lorna preparou-se para o ataque.

— Você joga xadrez? — Kasim indagou.

A pergunta foi tã o inesperada que ela sentiu um tremor na mã o quando colocou a peç a de volta no interior da caixa. Ao fechar a tampa, respondeu, com frieza:

— Um pouco.

—Esses jogos de estraté gia foram inventados pela mente sutil dos orientais — ele disse, avanç ando um passo em sua direç ã o. — Está nervosa como um pá ssaro no deserto... — acres-

centou em seguida, inclinando-se para apanhar uma amê ndoa num pratinho de louç a.

A tú nica alva acentuava a pele morena do rosto, do pescoç o descoberto e dos braç os dele. No dedo indicador da mã o direita, tinha um anel pesado, gravado com letras douradas. Sem dú ­vida, Kasim era um homem terrivelmente belo.

— Você olha para mim como se eu fosse devorá -la... — falou, com um sorriso, apó s um instante. — Por que nã o vestiu a roupa que lhe dei? Iria se sentir mais à vontade se tirasse essa calç a e essas botas grosseiras dos pé s!

— Prefiro usar minhas roupas — murmurou Lorna, enfiando as mã os nos bolsos da calç a, com um ar aparente de seguranç a.

— Nã o sou mulher de haré m, prí ncipe Kasim!

— Quando estou acompanhado, prefiro usar o tí tulo de sheik

—informou, com ironia.

— Quantos tí tulos você tem, afinal? — ela perguntou, com insolê ncia. — Para mim, é pior do que aquele ladrã o de cavalos. Ele, pelo menos, era pobre e só queria dinheiro...

— Como sabe? — Kasim questionou, comendo outra amê ndoa.

—Sou muito branca e muito magra para agradar a um beduí no — respondeu Lorna, com sarcasmo. — Nã o tenho as curvas que os á rabes admiram nem os olhos de gazela...

Ele deu um sorriso abafado.

— Quanta modé stia! Preferiria, naturalmente, que eu a jul­gasse branca e magra. — Os olhos castanhos a percorreram de alto a baixo, insolentes. — É uma pena você ter vestido essas roupas de homem. Os trajes orientais combinam muito melhor com seu corpo esguio...

Ao ouvir o comentá rio, dito em voz baixa, Lorna teve a impressã o de estar completamente nua diante dele. Respirou, aliviada, quando o criado entrou na tenda, com uma bandeja na mã o, contendo diversas travessas cobertas.

O criado arrumou os pratos sobre a mesa e serviu uma bebida esverdeada em dois copos compridos, com frisos de pra­ta. Nã o olhou nenhuma vez para Lorna. Os olhos dele estavam discretamente abaixados no momento em que inclinou a cabeç a e saiu da tenda, deixando-a sozinha na companhia de Kasim.

—Sente-se, por favor — disse ele, apontando para o sofá.

—Nã o estou com fome.

— Nã o é possí vel. Você tem de estar, mon enfant! — Le­vantou-a no colo como uma crianç a e sentou-a entre as almo­fadas do sofá. Ajeitou-se a seu lado e estendeu-lhe um dos copos compridos. — Isto é limoon, uma bebida feita com limã o, hortelã e uma gota de mel. Prove, vai gostar!

—Nã o conhece meus gostos, prí ncipe Kasim. Para você,

sou apenas um objeto...

—Muito decorativo, por sinal. — Levou o copo aos lá bios dela, e sua voz se tornou mais carinhosa. — Você é rebelde e voluntariosa, como um potro que vê seu reflexo na á gua e foge de sua pró pria imagem. Nã o tem pena de sua beleza?

Lorna fitou-o. Os olhos, muito grandes, estavam cor de vio­leta naquele momento.

— Beba — insistiu ele.

— Você só sabe mandar! — Lorna exclamou, com raiva. — Seus criados morrem de medo de você!

— Por que diz isso? Zahra e Hassan nã o quiseram ajudá -laa fugir? — Deu uma risada, encostando o copo nos lá bios dela, Lorna segurou-o nas mã os e bebeu um gole, com relutâ ncia,

enquanto Kasim despedaç ava com a mã o uma perna da codornaassada, que vinha acompanhada de arroz e de legumes.

— Se nã o está acostumada a comer com as mã os, há talheres aí — ele disse, apontando para o garfo e a faca com cabos in­crustados de pé rolas. — Passou o dia inteiro no deserto e deve estar faminta. Hassan é um excelente cozinheiro e vai ficar triste se você nã o provar as iguarias que preparou para nosso jantar. Nosso jantar! Lorna ferveu de raiva ao ouvir o comentá rio, mas, sob o olhar insistente de Kasim, serviu-se de um pedaç o de cuscuz e forç ou-se a comer.

—Prove també m uma perninha de codorna — ele falou, pondo uma coxinha assada em seu prato,

— É sua comida favorita? — perguntou Lorna, sabendo que as codornas eram criadas no deserto devido a sua carne tenra

e saborosa.

— Exatamente! Nã o há carne mais saborosa, digna de um rei,.

— De um prí ncipe — ela o corrigiu, observando a maneira como Kasim enrolava o cuscuz nos dedos e levava uma pequenabola à boca.

Lorna tinha a impressã o de que ele comia com as mã osunicamente para mostrar que era um verdadeiro beduí no do de­serto, porque suas maneiras eram absolutamente educadas e finas.

Hassan voltou pouco depois com o café, que serviu em duas delicadas xí caras de porcelana. A bebida fora preparada à francesa, e Lorna a teria apreciado devidamente se nã o estivesse tensa e apreensiva. Kasim disse alguma coisa ao criado antes de ele sair, e ela compreendeu com ansiedade que, a partir daquele instante, estariam sozinhos e nã o seriam perturbados por ningué m.

Ficou surpresa, portanto, quando o pano da tenda se abriu mais uma vez, e um cachorro grande, de pê los castanhos, entrou correndo e colocou as patas nos ombros de seu dono.

Kasim alisou a cabeç a do animal e olhou de relance para Lorna.

— Gosta de cachorros? Os ingleses, pelo que sei, adoram animais...

—Sim, gosto muito. — ela respondeu, embora observasse o cã o com a mesma desconfianç a que nutria pelo dono.

O cachorro examinou-a com atenç ã o e aproximou-se dela, abanando o rabo.

—Ele é manso — Kasim informou, reclinando-se nas al­mofadas do sofá. — E é muito carinhoso, sendo um verdadeiro filho do deserto.

Lorna nã o entendeu o significado daquelas palavras. Em sua opiniã o, Kasim simbolizava o deserto melhor do que nin­gué m, no que tinha de rude e perigoso.

Tomando coragem, ela estendeu a mã o e alisou o focinho macio do animal. O cachorro cheirou os dedos e apoiou a cabeç a nos joelhos dela, com os olhos muito meigos voltados em sua direç ã o.

—Você é novidade na casa — Kasim falou, inclinando-se para apanhar um cigarro na mesinha. — Quer fumar, Lorna?

Ela ficou furiosa ao ouvir seu nome ser pronunciado com tanta intimidade.

—Nã o, muito obrigada! Nã o estou acostumada com esses cigarros turcos!

—Com o tempo a gente se habitua a tudo — ele disse, observando-a fixamente, enquanto acendia o fó sforo e aproxi­mava a chama do cigarro.

Ele deu uma tragada e contemplou-a com indolê ncia. Lorna continuava tensa como antes. O fascí nio daquele homem es­tranho, sentado nas almofadas do sofá, estava mais presente do que nunca.

— No que está pensando? — Kasim indagou.

— Num amigo que deixei em Yraa — respondeu, com a voz trê mula, e os cí lios compridos projetando sombras sobre a palidez do rosto. — Ele deve estar preocupado com meu paradeiro...

— Um rapaz?

— Sim. — Levantou a cabeç a e encontrou os olhos castanhos fixos nos seus. — Provavelmente, ele organizará uma expediç ã o para me procurar... Sabia que eu ia ao oá sis de Fadna e cer­tamente vai contratar alguns á rabes para me localizar.

— Precisam ter olhos de lince para encontrá -la aqui — disse Kasim, com um bocejo. — Todas as manhã s, depois que o vento sopra, as areias do deserto sã o lisas como a pele de um bebê!

— Pois tenho certeza de que Rodney vai me encontrar!

— Ele gosta de você? — A fumaç a do cigarro formava rolos azulados em volta dos olhos castanhos, indolentes como os de

um leopardo.

—Sim... ele gosta muito de mim. Você nã o tem o direito

de tirar a mulher que pertence a outro homem.

— Um homem que a deixou sair sozinha no deserto? — Kasim fitou longamente os cabelos compridos e o rosto claro, ligeiramente pá lido. — O deserto é um lugar fascinante, e, pelo visto, você nã o queria dividir seu encanto com esse homem...

— Tivemos uma pequena discussã o, e eu saí sem falar nada

a ele...

— E ele nã o correu a seu encalç o?

—Ele nã o é como você! Nã o sai galopando atrá s das mu­lheres e nã o as arrasta à forç a para seu quarto!

—Que homem frouxo deve ser esse seu amigo! É por issoque nã o o ama...

— Nã o? Pois eu daria tudo para estar com ele agora!

—Por que ele é pacato? Mas eu també m tenho sangue civilizado nas veias... Minha mã e nasceu em Cadiz, na Espa­nha. Ela tinha a pele branca e os olhos negros.

Lorna respirou, aliviada, ao saber que a mã e dele era es­panhola, como se esse traç o no sangue abrandasse a ferocidadedo temperamento á rabe.

— Ela també m foi sequestrada e levada para um haré m?

—Nã o, minha querida. Ela era enfermeira num hospitaldo Marrocos. O homem que tenho a honra de chamar de pai a conheceu ali e pediu-a em casamento.

—Casou-se com ela? — Lorna perguntou, surpresa.

—Ele gostava muito dela. — Uma pequena chama ardeu nos olhos castanhos. — O amor do deserto surpreende uma jovem criada na Inglaterra?

— Morei um ano em Paris.

— Ah, sim? O que achou daquela cidade? Fascinante, nã o?

— Já esteve lá?

— Fui criado em Paris.

Os olhos dela se arregalaram de curiosidade.

— Ah, entã o é por isso que fala francê s perfeitamente! — Você també m fala muito bem, ma petite blonde. Lorna encostou-se nas almofadas, numa atitude de defesa,

ao ouvir a inflexã o possessiva desse homem chamado prí ncipe Kasim, belo, que vivia no deserto e que se apoderava das coisas de que gostava.

O teto parecia rodar lentamente sobre a cabeç a de Lorna quando o cachorro pulou do sofá e correu para fora da tenda. O acampamento recolhera-se para a noite, e os ú nicos ruí dos que escutava, de tempos em tempos, eram os gritos dos camelos, o tilintar dos sinos pendurados no pescoç o dos animais ou o latido distante de um cachorro. Ela sentiu um arrepio de frio quando um golpe de vento balanç ou o pano da entrada e fez tremer as chamas das lâ mpadas. Sombras movimentavam-se atrá s das tapeç arias, e a cortina de contas se movia, como se fosse tocada por dedos invisí veis.

Lorna olhou fixamente para a cortina e, com uma exclamaç ã o repentina de susto, levantou-se e correu para fora da tenda, no meio da noite.

Mã os impiedosas a seguraram com forç a. Foi erguida pelos braç os de Kasim e levada para o aposento separado pela cortina de contas. Ali, à luz tê nue da lâ mpada de ó leo, avistou os olhos castanhos que a observavam com intensidade.

— Está se cansando à toa, sua bobinha — ele disse, aper­tando-a nos braç os. Os lá bios quentes enxugaram as lá grimas que rolavam pela face dela, — Para que resistir? Sabe que nã o pode fugir de mim.

— Eu te odeio! — ela exclamou, com raiva. — Eu te desprezo!

— Pois eu gosto de seu temperamento. — A voz era baixa, quase um sussurro, como se zombasse dela. — Você é rebelde, excitante... Você me mataria se pudesse, nã o é verdade?

No momento em que foi deitada na cama e coberta com uma colcha de seda, Lorna queria se esquecer de tudo, morrer... Kasim ajoelhou-se para tirar as botas de seus pé s, e ela ficou paralisada de medo. Os braç os e as pernas pareciam entorpe­cidos. Ele tirou primeiro um pé, depois o outro, e atirou as duas botas para o lado.

— Nã o precisa de um criado para despir-se. Vou apagar a lâ mpada.

Ela continuou imó vel, mordendo os dedos, como se quisesse abafar o grito que lhe subia na garganta, e viu Kasim atra­vessar a cortina de contas, que balanç ou e tilintou levemente durante alguns segundos. Entã o, Lorna avistou a faca que es­tava ao lado da fruteira, sobre a mesinha-de-cabeceira. Um punhal ricamente trabalhado, com uma lâ mina curva.

Ela o segurou pelo cabo, sem hesitaç ã o. No momento em que Kasim voltou, Lorna saltou sobre ele, rá pida como um felino, tentando atingi-lo no coraç ã o, mas rasgou apenas a tú ­nica fina de linho, antes de ser dominada. Ele quase quebrou seus dedos, quando a forç ou a soltar o punhal. A faca caiu em cima do tapete, e ela deu um grito quando ele a inclinou para trá s sobre seu braç o. Fitou-a, com os olhos ardendo de ó dio, enquanto o sangue do pequeno corte manchava a tú nica branca.

—Agora você me deixou com raiva — Kasim murmurou, com os dentes cerrados.

—Por favor, nã o...    

As lá grimas rolavam dos olhos que pareciam flores regadas

pela chuva.

— Nã o vou bater em você — zombou, afundando os lá bios na cavidade do pescoç o dela.

Lorna debateu-se para se soltar dos braç os dele e, de repente, caiu do bolso da camisa a flor branca que colhera naquela manhã no oá sis de Fadna, na parede da casa em ruí na onde seu pai morara. Sem soltá -la, Kasim agachou-se para apanhar a flor caí da no chã o. As pé talas estavam amassadas, mas ainda exalavam o perfume forte de flor silvestre.

—Por que estava com esta flor no peito?

— É minha! — exclamou, tentando tirá -la dele.

— Quem lhe deu esta flor? — perguntou Kasim, estreitando os olhos. — Aquele mesmo idiota que a deixou andar sozinha pelo deserto?

— Sim, ganhei esta flor do homem que amo — respondeu, com firmeza. — Você nã o pode me obrigar a dizer o nome dele.

— Pensei que ele se chamasse Rodney.

— Ah, é?

Ela tirou a flor da mã o de Kasim, com um gesto brusco.

— Seus segredos nã o me interessam. — Soltou-a e levou a mã o ao peito, como se o corte o incomodasse. Apontou para a cama. — Você precisa dormir bem, depois de um dia passado no deserto. Boa noite, minha bela prisioneira.

Ele parou junto à cortina e afastou com a mã o as fileiras de contas que desciam até o chã o.

— Vou dormir na sala. Lembre-se de que estou sempre de prontidã o, mesmo dormindo.

Lorna deu um suspiro quando ele saiu finalmente do quarto. Em algum lugar do deserto, um chacal uivou. Vencida pelo cansaç o e pelas emoç õ es do dia, ela se deitou na cama e afundou o rosto no travesseiro. A flor branca estava apertada contra seu rosto, e uma lá grima escorria lentamente sobre ela no momento em que Lorna mergulhou no sono profundo, momen­taneamente esquecida de suas preocupaç õ es.

 

CAPITULO V

Odia amanheceu, e, no acampamento, haviauma grande atividade em torno das fogueiras onde as mulheres preparavam a refeiç ã o da manhã. O som dos sininhos dos camelos misturava-se aos berros aflitos dos meninos ao serem acordados. Vultos embuç ados selavam os cavalos, e dois potros brigavam no cercado, até serem separados pelo encarregado das cocheiras.

A algazarra da manhã penetrava na grande tenda dupla, mas Lorna continuou dormindo. Moveu-se na cama, poré m nã o acordou. Sua fisionomia estava serena como a de uma crianç a. Os guizos dos camelos entraram em seu sonho e se trans­formaram nos sinos que tocavam no convento onde estudara, chamando as alunas para as aulas.

Quando ela finalmente acordou do sono profundo em que mer­gulhara na noite anterior, a atividade matutina do acampamento havia cessado, e o sol clareava o interior da tenda. Abriu os olhos e viu o cortinado que algué m colocara sobre a cama para protegê -la das moscas, que apareciam quando o sol esquentava.

Sentou-se na cama e afastou o cortinado. Olhou em volta, com as pá lpebras pesadas de sono. O ambiente era, ao mesmo tempo, terrivelmente estranho e assustadoramente familiar.

A caixa de cigarros estava aberta sobre a mesinha-de-cabe­ceira, como se algué m houvesse apanhado um cigarro de manhã e esquecido de fechá -la. A tú nica branca estava jogada em cima do banquinho, e Lorna estremeceu instintivamente ao compreender que Kasim entrara no quarto enquanto estava dormindo. Ele puxara a colcha de seda sobre o corpo dela e pusera o cortinado em cima da cama. Ele a vira enquanto estava dormindo, inconsciente do olhar de Kasim.

Sentiu um arrepio. Os acontecimentos da vé spera eram tã o reais quanto o sol que brilhava lá fora, com os gritos que vinham do terreiro.

Ela estava no deserto, presa na tenda do prí ncipe Kasim ben Hussayn, um homem misterioso, que era ao mesmo tempo educado e impiedoso. A personalidade dele era tã o forte que Lorna podia recordar todas as palavras trocadas durante o jantar, as menores inflexõ es de voz. Ao lembrar-se do pavor que sentira na noite anterior, tinha vontade de esconder-se embaixo das cobertas, como uma crianç a, e nã o pensar no que a esperava naquele dia.

A cortina de contas moveu-se quando Zahra entrou no quar­to. Ela levantou o vé u do rosto e sorriu para Lorna, isso indicava que Kasim nã o estava na tenda. Zahra aproximou-se da cama e perguntou se ela dormira bem à noite.

— Dormi como uma pedra — Lorna respondeu, com um bocejo. Um raio de sol incidiu sobre seus cabelos revoltos, e Zahra

pareceu fascinada com o brilho, como se nunca houvesse visto cabelos daquela cor. Os olhos desceram para o lenç ol que Lorna apertava contra o corpo, e, com agilidade, Zahra correu para a arca de cedro e apanhou um robe. Lorna vestiu-o sem pro­testar. Estava levemente perfumado e era macio como seda.

— De quem é? — perguntou, apalpando a fazenda. — De alguma mulher?

Zahra parecia surpresa com a pergunta.

— Nã o, lella. Uma caravana passou há uma semana, e meu amo comprou roupas e perfumes para dar de presente a Turqeya.

—Turqeya?

O nome exó tico evocava em sua imaginaç ã o uma jovem muito bela, de cabelos negros, e o robe pareceu, repentinamente, quei­mar sua pele.

—Meu amo disse para vestir-se com essa roupa — Zahra informou, apontando para a arca. — Elas nã o lhe agradam? Sã o tã o lindas...

— Ouç a, Zahra, no momento, prefiro tomar um copo de suco e depois um banho quente.

— Um banho quente? — Zahra indagou, confusa. — A lella tomou banho quente ontem à noite!

— Pois eu gostaria de tomar outro agora de manhã!

Lorna lembrou-se de que nã o estava no hotel. Talvez a á gua nã o fosse abundante ali.

— Você s economizam á gua?

— Nã o. Estamos acampados perto de um poç o. Temos á gua de sobra. Vou apanhar o suco e depois esquento a á gua.

— Muito obrigada — Lorna agradeceu, com um sorriso. Zahra era muito gentil.

Ao lembrar-se de Kasim, no entanto, Lorna sentiu-se angus­tiada novamente, sobretudo ao saber que ele comprara o robe de seda para dar de presente a uma mulher. Estava tã o aflita com a idé ia de que estivera indefesa nos braç os dele na noite anterior que se assustou quando ouviu algué m entrar na tenda.

— O que foi? — perguntou Zahra, passando pela cortina de contas, com uma bandeja na mã o. — Você se assustou?

— Nã o, nã o foi nada.

Zahra ajeitou a bandeja no colo de Lorna, que estava com muita sede, mas nã o tinha apetite para comer os bolinhos que

Zahra trouxera,

—Nã o estou com fome, Zahra. Tenho apenas sede. Acho

que é o ar do deserto que me deixa assim.

—A lella nã o está acostumada com o sol? — perguntou Zahra, apanhando a tú nica jogada em cima do banquinho, o que fez Lorna corar de vergonha.

A jovem, com toda a certeza, pensaria que Kasim dormira

no mesmo quarto que ela.

— Venho de um paí s onde o sol nã o é tã o forte quanto o daqui, e onde somente no litoral existe areia.

Lorna lembrou-se, emocionada, da Inglaterra, do internato das freiras, do ano que passara em Paris com seu pai. Como poderia imaginar que sua viagem ao Oriente terminaria daquele jeito? Ela, que desprezava os homens que tomavam liberdades exces­sivas, estava agora privada de sua liberdade por um que nã o se importava nem um pouco com seus sentimentos!

—Você precisa comer, senã o meu amo vai ficar zangado comigo — disse Zahra, levantando a tampa do prato. — Nã o

gosta desta comida?

O aroma apimentado dos bolinhos de carne despertou seu ape­tite, e Lorna sentiu-se tentada a provar, mesmo contra a vontade.

— Pelo visto, todos aqui tê m medo do sheik — Lorna falou, experimentando uma almô ndega.

Zahra fitou-a em silê ncio, sem saber o que dizer, como se nunca houvesse ouvido algué m falar mal do sheik.

—Zahra, você precisa me ajudar a sair daqui — Lorna implorou de repente, com o coraç ã o batendo, acelerado.

A moç a afastou-se da cama, com a fisionomia alarmada, da mesma maneira que o criado no dia anterior. E a doç ura ha­bitual transformara-se subitamente em hostilidade.

—Vou apanhar a á gua quente para o banho — disse, retirando-se.

Lorna observou-a partir em silê ncio e despediu-se triste­mente de sua esperanç a de fuga.

Todos tinham medo de Kasim! Seu poder era tã o grande que ningué m estranhava a presenç a de uma moç a inglesa em sua tenda. Talvez imaginassem que ela se sentia honrada com isso!

Tirou a bandeja do colo e desceu da cama. Nervosa, andou de um lado para o outro do quarto, com os pé s descalç os afun­dados na pele de leopardo que cobria o tapete. Estava presa ali como um animal... ferida e traí da pelo deserto que desejava tanto conhecer!

Sentou-se, desanimada, sobre a pele de leopardo e apoiou a cabeç a numa almofada. Seus cabelos cobriam-lhe o rosto.

Foi assim que Zahra a encontrou quando voltou com as panelas de á gua quente.

—Está chorando? — a moç a perguntou, tocando de leve sua cabeç a.

Lorna voltou-se e encarou-a, com os olhos azuis encobertos pela tristeza.

— Acha que eu deveria estar contente?

— Meu amo é um homem muito bom.

Zahra, aparentemente, fora criada com a idé ia de que os homens eram criaturas superiores. Nã o podia compreender a revolta de algué m que fora sequestrada e submetida à vontade de um estranho, sem poder protestar.

— Pois, para mim, ele é o homem mais cruel que já conheci. Desejo que ele sofra muito na vida, e digo isso de todo meu coraç ã o.

Zahra a observava com uma expressã o de horror.

—Meu amo nã o é cruel com sua gente...

— Mas eu o vi aç oitar um homem — disse Lorna, trê mula. —O homem deve ter merecido esse castigo. As leis do desertosã o diferentes das leis da cidade, Lella.

—Sei disso. Os homens do deserto sã o crué is.

Zahra meneou a cabeç a, como se a idé ia de crueldade de Lorna fosse diferente da sua. Encheu a bacia com á gua quente e derramou o ó leo perfumado, que fazia espuma como sabã o. Em seguida, apanhou uma esponja em cima da mesinha e olhou em silê ncio para Lorna,

—Pode deixar, Zahra. Tomarei banho sozinha.

— Vou ensaboá -la e fazer sua pele ficar brilhante e sedosa, como fazem no hamman. É bom... relaxa o corpo...

— Muito obrigada, mas nã o é necessá rio — Lorna recusou-se, ligeiramente chocada com a sugestã o. — Prefiro me ensaboar

sozinha.

— A lella nã o precisa ter vergonha — insistiu Zahra, como se falasse com uma crianç a. — A gente nã o deve ter vergonha quando tem o corpo limpo...

Lorna corou, sem saber o que responder. Despiu o robe e

entrou na á gua perfumada.

Zahra ensaboou seu corpo dos pé s à cabeç a. A esponja era á spera, mas dava uma sensaç ã o agradá vel de limpeza. Zahra abai­xou a vista quando a esponja tocou num ponto dolorido do braç o de Lorna, que recuou instintivamente. Era uma mancha azulada sobre a pele clara, a marca da raiva do sheik no momento em que ela o ferira com o punhal. Lorna tocou na mancha com a ponta do dedo e sorriu ao se lembrar que ela també m deixara uma marca no peito dele. A cicatriz nã o iria desaparecer tã o cedo!

Depois de tomar banho e de se enxugar, Lorna hesitou um instante, pensando se vestiria ou nã o suas pró prias roupas novamente. A calç a poderia ser escovada, as botas engraxadas, mas a camisa estava imunda e precisava ser lavada.

Ajoelhou-se diante da arca de cedro e examinou seu con­teú do. Entre as vestes de seda e de veludo, havia uma tú nica de brocado azul, que poderia servir de blusa, se a colocasse para dentro da calç a comprida. Era melhor do que vestir a calç a turca que combinava com a tú nica.

Zahra tentou em vã o convencê -la a usar a roupa completa.

— Nã o sou odalisca! Nã o vou vestir essas roupas transpa­rentes, e ningué m irá me obrigar!

—Meu amo vai ficar zangado — Zahra falou, abaixando os olhos. — Os homens nã o gostam de ser contrariados!

— Claro! Eles gostam que as mulheres lhes faç am todas as vontades!

Apó s se vestir, Lorna calç ou as botas. O tecido da tú nica era muito leve e bonito, com suas diversas tonalidades de azul.

— Zahra, você ainda é muito jovem para conhecer os homens...

— Sou casada — a moç a respondeu, com timidez. — Meu marido é o encarregado das cocheiras. É uma posiç ã o muito importante, porque meu amo tem muito ciú me dos cavalos que possui.

Lorna olhou, surpresa, para ela. Zahra tinha apenas dezes-sete anos e já estava sujeita à vontade do marido.

— Ah, agora entendo por que estava de vé u ontem à noite. Os homens nã o gostam que as mulheres descubram o rosto na frente de estranhos, e você é muito bonita, Zahra.

A moç a corou, sem jeito, e o rosado da pele morena acentuava seu encanto.

— Yusuf é muito bom para mim.

—Só podia ser! Ele tem sorte de tê -la como mulher.

Ao virar-se para escovar os cabelos diante do espelho, Lorna surpreendeu-se com sua pró pria imagem. A tú nica sem mangas acentuava a pele clara dos braç os e, com os cabelos molhados, parecia um pajem de uma corte bá rbara. No momento em que colocou a escova em cima da mesinha, notou o anel que Kasim deixara ali. Recuou, assustada, como se houvesse visto uma cobra. Esquecera-se completamente dele durante algum tempo, mas agora tinha de sair do quarto e, mais cedo ou mais tarde, acabaria encontrando-o.

Ao passar pela cortina de contas, voltou-se para Zahra.

— Essa bacia é muito pesada para carregá -la sozinha. Vou pedir a Hassan para ajudá -la.

— Ah, seria bom — Zahra disse, com um sorriso. — A lella é muito gentil.

— A lella é uma tola, Zahra! Eu devia ter ouvido os conselhos de um amigo, que me avisou para nã o andar sozinha no deserto.

Soltou a cortina de contas que segurava e entrou na outra parte da tenda. O pano da entrada estava levantado de umlado, e o sol realç ara as cores delicadas dos tapetes persas espalhados pelo chã o. Hassan surgiu logo depois e cumprimen­tou-a com uma leve inclinaç ã o de cabeç a.

Lorna olhou detidamente para a abertura da tenda. Poderia fugir por ali e ir para bem longe de Kasim ben Hussayn.

Em vez disso, pediu a Hassan que ajudasse Zahra a carregar a bacia do banho e saiu da barraca. Perto dali, um homem estava sentado ao lado de uma pilha de arreios. Tinha o rosto magro e anguloso e, quando Lorna se afastou da tenda, em direç ã o ao centro do acampamento, o homem a seguiu a dis­tâ ncia. Instantes depois, ela parou perto de uma fogueira, onde havia vá rios bules de café, encardidos pelo uso.

—Por que está me seguindo? —perguntou para o á rabe em francê s, quando ele se aproximou.

O homem abaixou a cabeç a em silê ncio. O albornoz estava imaculadamente limpo, e ela notou que os traç os da fisionomia dele eram nitidamente á rabes.

— Nã o quero ser seguida como se fosse uma prisioneira! — exclamou, irritada.

— Recebi ordens, lella.

—Estou vendo. O sheik adora dar ordens!

— A moç a pode passear pelo acampamento, se quiser.

—Posso andar a cavalo?

—Isso nã o.

Lorna mordeu o lá bio de despeito. O ó dio que sentia por Kasim aumentava cada vez mais. Continuou andando lenta­mente, com a cabeç a erguida, consciente dos olhares que lhe dirigiam. As crianç as pequenas se agarravam à s saias das mã es quando a avistavam, e ela notou que as tendas pretas estavam todas voltadas para o oriente. As partes da frente eram remo­vidas durante o dia, como se fossem barracas de caç a.

Avistou alguns cã es deitados à sombra das tendas e o cercado onde os cavalos eram guardados. Eram animais ariscos, de pê los brilhantes, extremamente velozes, e Lorna desejou poder apoderar-se de um deles. Ah, se tivesse essa oportunidade, fugiria em disparada do homem que a mantinha cativa naquele

acampamento!

Como se lesse seus pensamentos, o á rabe se dirigiu para a sombra das palmeiras que nasciam em volta do poç o. As tamareiras estavam carregadas de frutos. Lorna caminhou embaixo das folhas sussurrantes e lembrou-se de que, no dia anterior, à quela hora, estava livre como um passarinho. Jamais imaginara que o oá sis de Fadna seria um lugar maldito para ela.

Fadna... Deveria ter pensado antes no perigo, mas nã o aca­tara os conselhos que ouvira, fascinada pelo encanto que seu pai encontrara ali.

— Vamos voltar ---disse para o á rabe. Havia uma ansiedade na voz dela que o á rabe interpretou como o desejo de estar de novo na tenda do sheik. Sorriu com malí cia, como se quisesse dizer que os desejos dela eram ordens. Ao entrar na fenda dupla, Lorna sentou-se no sofá e examinou detidamente cada objeto que havia ali, cada peç a do mobiliá rio. As tapeç arias, os tapetes persas, as almofadas, os mó veis e os objetos de cobre e de bronze eram verdadeiras peç as de colecio-nador, sem falar no pequeno armá rio com livros e na escrivaninha que estava num canto afastado da tenda. Era incrustada de pé ­rolas, com um desenho muito elegante e cheia de gavetas peque­nas, que chamaram imediatamente sua atenç ã o.

Lorna levantou-se do sofá e foi até o canto da tenda, para examinar de perto a escrivaninha. Acompanhou com a ponta do dedo as letras douradas gravadas em relevo num livro grande, encadernado com couro. Em seguida, tentou abrir as diversas gavetas, mas notou que estavam fechadas à chave... exceto uma. Abriu-a e abaixou-se para examinar o que havia em seu interior. Avistou diversos objetos brilhantes, entre os quais um medalhã o preso numa correntinha de ouro e um crucifixo de marfim na ponta de um rosá rio de contas minú sculas. Lorna abriu o medalhã o e viu a miniatura de uma mulher jovem, com um penteado antigo e olhos maravilhosos.

Lembrou-se de que a mã e de Kasim era espanhola. A mã e dele, essa criatura adorá vel, com uma boca bem-feita e bondosa... A mulher que aceitara espontaneamente a vida enclausurada do haré m. A mã e que adorava o filho pequeno, mas que nã o vivera o suficiente para vê -lo crescer e se trans­formar num homem belo e impiedoso.

Lorna fechou o medalhã o e tornou a guardá -lo na gaveta, juntamente com o crucifixo. Permaneceu um instante ali, pen­sativa. O fato de Kasim ser um homem educado e de boa famí lia nã o justificava sua conduta condená vel. Pelo contrá rio, tornava ainda mais odiosa sua atitude tirâ nica e desumana. Ela voltou a cabeç a tristemente para a entrada da tenda, que estava iluminada pela luz do dia. Lá fora estava a liberdade, mas ningué m do acampamento a ajudaria a fugir.

A qualquer momento, Kasim entraria na tenda com seus passos rá pidos, e Lorna podia visualizar em detalhes os traç os altivos do rosto, o corpo á gil e elegante, a voz autoritá ria. Estremeceu ao pensar que iria encontrar de novo os olhos cas­tanhos que a fitavam com insolê ncia, como se ela fosse um objeto desejá vel. As forç as a abandonaram. Deixou-se cair sem â nimo no sofá e afundou a cabeç a numa almofada.

— Gostaria que ele caí sse do cavalo e quebrasse o pescoç o — murmurou para si mesma, como se fosse uma prece.

 

 

CAPITULO VI

 

Os sininhos dos camelos despertaram o acampa­mento da letargia produzida pelo calor da tarde.

Lorna adormecera entre as almofadas do sofá. Acordou com o ruí do e passou as mã os sobre os olhos sonolentos. A tenda estava escura, e ela notou que o dia quase terminara. Levan­tou-se do sofá e foi até a entrada contemplar o pô r-do-sol.

Mulheres em trajes longos estavam ocupadas em acender as fogueiras do acampamento. Homens passavam a cavalo, a galope, acrescentando uma repentina vivacidade à cena. Um menino pequeno correu em direç ã o ao pai, que desmontou e o segurou no colo, e o murmú rio das vozes confundia-se com o tilintar dos arreios, enquanto o sol avermelhado banhava o acampamento com sua luz dourada.

Lorna observou a cena, fascinada. A fumaç a subia dos galhos secos e misturava-se ao cheiro do café e das comidas apimen­tadas que cozinhavam sobre as chamas. Algué m dedilhou um instrumento de cordas, e a mú sica espalhou-se pelo local, com uma toada estranha e triste.

Numa outra circunstâ ncia, Lorna ficaria encantada de estar hospedada num acampamento, em pleno deserto. O cair da tarde, no entanto, causou-lhe uma sú bita depressã o... Kasim surgiria a qualquer momento. Procurou nã o pensar nisso, pres­tando atenç ã o na conversa das mulheres que carregavam mo­ringas de á gua na cabeç a. Andavam graciosamente em direç ã o à s tendas, requebrando os quadris, com seus passos leves.

Os ú ltimos raios de sol brilharam no poente, com uma ex­plosã o torturante de cores vivas... simbolizando a paixã o, a beleza, a tristeza...

A noite caiu quase repentinamente, e uma estrela isoladacintilou no firmamento.

Entã o, Lorna avistou trê s cavaleiros que se aproximavam, vindos do deserto, envoltos nas capas compridas. Os cavalos eram altos e de crinas longas e tinham freios de prata que brilhavam à luz das fogueiras.

Ela sentiu um aperto no coraç ã o. Durante segundos inter­miná veis, permaneceu ali, imó vel, na entrada da tenda, com o olhar fixo no cavaleiro que vinha na frente e que desmontou do cavalo com um movimento amplo. Era uma figura autori­tá ria, mais alta que os outros dois, que estendeu a mã o para acariciar o pescoç o do animal suado que o transportara leal­mente sob o sol abrasador. O cavalo deu um relincho e em­purrou o ombro do homem com o focinho, num gesto de amizade. Onde Kasim fora? O que fizera durante as horas em que se ausentara do acampamento? Cuidava das povoaç õ es vizinhas e ditava suas leis à s comunidades que dependiam de sua au­toridade? Leis que ningué m discutia, decerto!

Lorna retirou-se para o interior da tenda, e, no momento seguinte, Hassan apareceu para acender as lâ mpadas de ó leo. Quando projetaram sua luz amarelada, a palidez do rosto dela se tornou mais visí vel. Os olhos azuis estavam apreensivos, e o coraç ã o batia mais depressa. Foi o orgulho que a impediu de fugir para a outra parte da tenda. Nã o queria fugir diante dele. Nã o queria lhe dar a satisfaç ã o de descobrir que ela se sentia aterrorizada com sua presenç a.

— Vou trazer uma limonada — disse Hassan, em voz baixa.

— Meu patrã o gosta muito.

Lorna voltou-se em silê ncio para o criado e teve vontade de dizer que os gostos do sheik tinham tã o pouca importâ ncia para ela quanto as mariposas que voavam em torno das lâ mpadas.

— Ele deve estar com sede — ela falou por fim, com voz fria. Hassan inclinou a cabeç a e se afastou, deixando-a sozinha

na tenda. Ela pô s as mã os nos bolsos da calç a e aguardou com ansiedade a chegada de Kasim. Mal respirava, imó vel no meio da barraca como uma figura pá lida e sem vida. Ouviu o tilintar das esporas, e um calafrio lhe percorreu a espinha no momento em que ele apareceu. Estava com a capa comprida jogada para trá s, o forro vermelho-sangue contrastando com a brancura do

manto. As botas de cano alto eram da mesma cor do forro. Parecia um rei bá rbaro quando parou na entrada da barraca e lanç ou um olhar em sua direç ã o.

— Demorei muito? — perguntou, com uma inflexã o que fez os nervos dela vibrarem. — Sentiu minha falta?

Lorna observou-o em silê ncio, com um olhar insolente.

— Gostaria que tivesse caí do do cavalo e quebrado o pescoç o!

— Ah, uma mulher irritada! Sinal de que se sente sozinha

—disse Kasim, em tom de zombaria.

—Queria que eu estivesse em prantos?

Ele sorriu maldosamente e atirou para longe o chicote com­prido, a arma que sabia usar com tanta habilidade.

— E muito orgulhosa para chorar.

—Que pena, nã o?

Kasim tirou a capa e jogou-a em cima do sofá.

— Pelo contrá rio, isso me leva a pensar que, esta noite ou amanhã cedo, irá tentar me apunhalar de novo.

— A faca nã o o perfurou — disse, com desdé m. — Tem o coraç ã o de pedra.

— Meu coraç ã o de pedra se compadece de você, querida, — Examinou os cabelos soltos que emolduravam o rosto pá lido.

— Tive dú vidas, durante o dia, se eu nã o havia sonhado com esses cabelos cor de sol, com esses olhos azul-escuros, com essa boca suplicante...

Nesse instante, Hassan entrou na tenda com um jarro de li­monada e dois copos grandes. O criado colocou a bandeja em cima da mesinha e perguntou ao sheik a que horas gostaria de jantar.

—Daqui a uma hora, Hassan. Prepare carneiro assado e panquecas de carne.

— O carneiro já está na brasa, sidi, e a á gua está esquen­tando para o banho a vapor.

Lorna arregalou os olhos ao ouvir as palavras do criado. Kasim vivia como um prí ncipe no acampamento, em pleno deserto. Até mesmo um banho a vapor era preparado para seu prazer... o prazer que sentia em manter-se perfeitamente limpo e bem vestido.

—Por favor, sirva a limonada.

—Seu criado já saiu — respondeu Lorna, ainda com as mã os nos bolsos da calç a.

— Vamos, nã o seja desobediente, querida — falou, em tom suave, mas perigoso.

Contrariada, Lorna dirigiu-se à mesinha e serviu um copo de limonada, que vinha acompanhada de uma folhinha de hortelã.

— Agora, traga-o para mim.

— Pois nã o, meu senhor. — Deu a volta na mesa, caminhou na direç ã o dele e, sem pestanejar, atirou o conteú do do copo no rosto arrogante.

Em seguida, ficou parada, com os braç os caí dos ao longo do corpo, observando as gotas que escorriam pelo rosto de Kasim. Um brilho surgiu nos olhos castanhos.

— Está se sentindo melhor agora? — ele perguntou, impassí vel. — Muito melhor, obrigada. Mas preferia que fosse á cido...

para marcar seu rosto cruel para sempre!

— Logo você falando de crueldade?

Ele apanhou um lenç o no bolso da calç a e enxugou o rosto lentamente. Em seguida, antes que ela pudesse esquivar-se, deu urn passo rá pido em sua direç ã o, segurou-a pelo pulso e estreitou-a nos braç os. Todas as curvas do corpo de Lorna es­tavam coladas contra o corpo forte e musculoso.

— Por que me odeia tanto? — Kasim indagou, em voz baixa, com os lá bios roç ando nos dela, os olhos brilhando perigosa­mente, — Primeiro tentou me esfaquear, agora desperta minha fú ria na esperanç a de que eu reaja. Seu pescoç o é muito delicado para eu torcer, querida. Prefiro beijá -lo...

Assim que aqueles lá bios se apoderaram de seu pescoç o, ela fechou os olhos e afastou o rosto, mas nã o podia deixar de sentir a pressã o da boca quente sobre sua nuca, seus olhos, sua testa. Lorna tremeu dos pé s à cabeç a quando os lá bios de Kasim tocaram os seus, forç ando-a a inclinar a cabeç a para trá s até ser consumida pelos beijos dele.

— Solte-me, solte-me! — implorou, quando conseguiu final­mente falar.

—Pronto! — ele exclamou, com um sorriso de zombaria.

— Está livre.

—Você é um monstro! — gritou, com os olhos azuis por entre os fios soltos dos cabelos loiros. — Por que nã o me deixa voltar para Yraa? Nã o direi a ningué m que estive aqui!

—Muito obrigado por sua gentileza — disse Kasim, comvoz divertida, servindo-se de um copo de limonada e bebendo-o de uma vez. — Mas, na verdade, acho que tem vergonha de confessar que encontrou um homem do deserto. Quantos ra­pazinhos já assustou com sua frieza?

— Antipá tico! — exclamou Lorna, com o rosto em brasa. — Aquele ladrã o de cavalos era menos insultante que você, com seus banhos a vapor, seus livros franceses, sua mã e espanhola!

—Vamos deixar minha mã e em paz — Kasim falou, com frieza. — Ela, pelo menos, tinha um coraç ã o de ouro.

— Se sou tã o fria assim, por que me prende aqui? Por que nã o sequestra uma mulher mais ardente?

—Uma mulher mais livre, você quer dizer? Como sabe, querida, crio cavalos e tenho uma grande paixã o por essa ati-vidade. De vez em quando, nasce um potro mais selvagem que os outros, e sinto um prazer todo especial em amansá -lo.

— Você gosta de judiar deles, isso sim!

— Somente um de meus cavalos foi maltratado por algué m, e aç oitei o responsá vel!

—E sequestrar moç as no deserto nã o é um crime? Sei que, em sua opiniã o, um cavalo vale muito mais que uma mulher, mas nã o sou uma moç a á rabe e nã o suporto ser mantida presa aqui. Tenho direitos e nã o posso admitir isso. Nã o sou um objeto.

— Ainda bem que nenhuma á rabe é tã o lú cida quanto você, querida. Infelizmente, nã o penso dessa forma.

— Quer dizer que nã o tem intenç ã o de me soltar? — Lorna questionou, com voz aflita, prestes a chorar. — Vai me manter presa aqui pelo resto da vida?

— Por enquanto, sim — Kasim respondeu, com indiferenç a. — Todo homem aprecia certas distraç õ es no final do dia, e nã o sou exceç ã o. Você é muito divertida, ma chè re. Tem um temperamento violento que me agrada sobremaneira. Sinto apenas que seja um pouco fria para meu gosto, mas até isso,

no fundo, é um desafio para mim.

— Você é um homem sem coraç ã o!

— E você é uma mulher que desconhece as exigê ncias do corpo!

—Você é um demó nio! — exclamou Lorna, com os nervos à flor da pele.

— E você, o que é, com esses olhos azuis tentadores, esses lá bios macios e esse corpo cheio de curvas? E uma tentaç ã o ambulante, minha cara. Ele puxou o pano da entrada e permaneceu um instante ali, voltado para ela, com o olhar insolente, arrogante.

—Onde estã o as roupas que mandei você vestir?

—Para que escrava comprou aquelas roupas?

— Turqeya é minha irmã, e nã o uma escrava.

Ele se afastou da tenda com uma inclinaç ã o de cabeç a. Lorna ouviu-o conversar com algué m do lado de fora e levou a mã o ao pescoç o, como se quisesse acalmar a pulsaç ã o acelerada. Kasim provavelmente recomendara ao guarda que ficava na entrada da tenda que nã o a deixasse fugir...

Até o momento em que se cansasse dela! Até esse dia, seria vestida e enfeitada com roupas de seda, vigiada a cada instante do dia ou da noite e teria de suportar as carí cias do sheik...

Ela se refugiou no haré m, e foi ali que Zahra a encontrou quando entrou, alguns minutos depois. Lorna estava tranquila e submissa. Nã o protestou quando a moç a lhe vestiu a tú nica de veludo, com botõ es de pé rolas que iam do pescoç o ao umbigo, nem a calç a turca de seda, presa por um cinto do mesmo tecido. Colocou os chinelos que tinham as pontas viradas para cima e deixou que Zahra lhe escovasse os cabelos, até ficarem bri­lhantes e sedosos, como o tecido do vestido.

Entã o Turqeya era a irmã de Kasim... Ele comprava presentes para ela, sinal de que gostava muito da irmã. Como era possí vel, no entanto, um homem cruel gostar de algué m? Amor, afeiç ã o, ternura indicavam a presenç a de um bom coraç ã o, e, na opiniã o de Lorna, Kasim era desprovido de qualquer sentimento humano.

—Zahra.

—Sim, lella.

—A irmã do sheik é bonita?

—A princesa Turqeya é uma boneca de ouro. Tem cí lios compridos, e os cabelos negros batem na cintura. Muitos ho­mens ricos a pediram em casamento, mas o prí ncipe recusou todos os pretendentes.

—O pai nã o se pronuncia sobre isso?

— O emir é um homem muito ocupado e nã o se ocupa com a filha. O prí ncipe Kasim é o grande orgulho do emir. Ele lhe dá inteira Uberdade de fazer o que bem entende.

— Faç o idé ia! — Lorna exclamou, mordendo o lá bio de despeito. Mesmo diante de Zahra tinha vergonha de revelar a angú stia e o medo que sentia na companhia de Kasim. Irri­tada com sua pró pria imagem, afastou-se do espelho, com um gesto de impaciê ncia.

—A lella nã o está satisfeita com sua aparê ncia? — per­guntou Zahra, ansiosa. — Gostaria de ter colares no pescoç o, braceletes no pulso, argolas nas orelhas?

— Nã o, de jeito algum — Lorna respondeu, com uma gar- galhada. — Já me sinto uma odalisca sem esses enfeites. Pareceaté que estou fantasiada para o carnaval!

—O que é carnaval? — Zahra indagou, espantada com a moç a loira que ocupava a tenda proibida do prí ncipe poderoso e que nunca estava contente com nada.

— O carnaval é uma festa popular, em que as pessoas vestem má scaras e fantasias. É muito semelhante à vida. Todas riem para esquecer as má goas. Dã o gargalhadas para nã o chorar.

— A vida é assim — disse Zahra, sé ria. — Nã o se pode modificar o destino. Está escrito!

— Essa idé ia nã o me consola muito — falou, despedindo-se

da moç a.

Lorna atravessou a cortina de contas em direç ã o à outra parte da tenda, onde Hassan servia a mesa do jantar. Kasim ainda nã o voltara, e o criado a seguiu com os olhos quando Lorna foi respirar o ar puro da noite e admirar as estrelas. Um vulto embuç ado moveu-se entre as sombras, e ela sabia que era o guarda que a observava em silê ncio, ao luar, enquanto ela aspirava os cheiros fortes que vinham do acampamento e o aroma pungente do deserto distante.

Tinha muita vontade de poder contemplar sossegadamente aquela bela paisagem, mas voltou para a tenda com um suspiro. Zahra e Hassan tinham partido. Na mesa baixa, defronte do sofá, havia uma travessa redonda, com uma tampa. Uma garrafa de vinho francê s fora aberta para acompanhar a refeiç ã o, e Lorna surpreendeu-se, mais uma vez, com o gosto requintado de Kasim.

Sentiu uma contraç ã o no estô mago quando ele entrou na tenda. Parecia mais animado depois do banho a vapor. Vestia uma tú nica de linho aberta no peito. A presenç a dele era tã o marcante que ocupava todos os pensamentos de Lorna. Parecia um animal pe­rigoso e fascinante, que criava um ambiente tenso a sua volta.

Caminhando sobre o tapete, ele se aproximou dela e segurou-a pelas mã os. Sob seu olhar avaliativo, Lorna sentiu-seainda mais assustada.

— O destino quis que fosse bela — disse, beijando-a na ponta dos dedos, à maneira francesa. — Sorria para mim.

Ela estava imó vel, inanimada, como uma está tua, fria e sem vida, mas o coraç ã o batia rapidamente no peito.

— Nâ o sabe sorrir?

— Só as pessoas felizes sorriem.

— E você nã o se sente feliz, quando algué m elogia sua beleza, minha Dinarzade? — O sorriso irô nico traç ou uma linha funda no rosto bronzeado. — Dinarzade era a jovem que nã o sabia nada a respeito do amor. Era muito inocente, a pobrezinha.

—Você naturalmente preferiria que eu fosse Scherazade! Ou já se enjoou de todas as que conheceu? Kasim limitou-se a rir. — Vamos jantar. É minha convidada de honra. Andei o dia

inteiro e estou com muita fome.

Dirigiram-se ao sofá, onde Kasim reclinou-se com a graç a de um leopardo e descobriu a travessa de carneiro assado, que tinha um cheiro apetitoso de ervas aromá ticas. Os talheres estavam postos diante de Lorna. Como no jantar da noite an­terior, ele a observou com atenç ã o, como se achasse graç a em sua maneira de comer com garfo e faca.

— Vivi mais tempo no deserto que na cidade e conservo os há bitos dos beduí nos, embora beba vinho.

— Eu me admiro que nã o se lambuze todo quando come — disse Lorna, tomando um pouco de vinho francê s.

—E muito bom comer com as mã os... Por que nã o experimenta?

— Nã o, muito obrigada. — Meneou a cabeç a com vivacidade

e evitou seu olhar.

Ela estava muito consciente da masculinidade dele. A pele tinha cor de bronze, à luz da lâ mpada. Seus olhos a contem­plavam com indolê ncia, entre os cí lios espessos.

— Em que está pensando, querida? — perguntou, ao mer­gulhar os dedos na salva de prata para lavá -los.

— Nem pensar eu posso?

—Claro que sim. Se bem que leio facilmente seus pensa­mentos. — Fitou-a com um sorriso irô nico no canto dos lá bios e, depois, dobrou uma panqueca e deu uma mordida. — Prove esta panqueca. Está divina.

— Já comi bastante — Lorna falou, mergulhando os dedos na lavanda. — Nã o andei a cavalo hoje de manhã e nã o estou com muito apetite. Por falar nisso, quando saí um pouquinho da tenda, um de seus guardas me seguiu, como uma sombra.

—Que horror! Vou chamar a atenç ã o dele. — Voltou-se para ela. — Gostaria de dar um passeio a cavalo?

— Por que pergunta? Vai permitir?

Havia uma nota de ansiedade nas palavras dela que o fez sorrir.

— Se vou permitir? — ele repetiu, mirando-a com atenç ã o. Os olhos azuis estavam cor de violeta à luz da lâ mpada de ó leo. — Posso deixá -la fazer muitas coisas, querida, mas nã o vou permitir que fuja de mim.

—Ah, eu gostaria tanto de dar um passeio a cavalo! — Lorna exclamou, com olhos suplicantes.

— Você vai dar — Kasim afirmou, com um sorriso, ao vê -la ajeitar-se nas almofadas do sofá.

 

CAPÍ TULO VII

Há uma selvageria em minhas terras que você precisa conhecer — pros­seguiu Kasim. — Vamos sair juntos amanhã, e, nos outros dias, quando eu nã o estiver no acampamento, poderá passear com um de meus homens. Agora você sabe que é perigoso andar sozinha no deserto e nã o preciso mais lembrar...

— Você sabe que eu fugiria de novo! Se tiver oportunidade, vou fugir daqui, ainda que morra no meio do deserto!

— Que ameaç a dramá tica! — Kasim exclamou, acariciando a pele macia do rosto dela. — Prefere sofrer os tormentos do calor e da sede a me fazer companhia? Lembre-se de que es­tamos a muitos quiló metros de Yraa.

— Você nã o se preocupa com minha famí lia? Gostaria de ver sua irmã numa situaç ã o semelhante?

—Turqeya nã o anda sozinha no deserto. Ela nã o é louca a esse ponto. Ela tem a sabedoria do Oriente nas veias.

— Talvez Turqeya seja bem-comportada porque julga todos os homens por você. E fui imprudente porque julguei todos os homens por meu pai. Ele era muito bondoso e delicado comigo.

— Era? Seu pai nã o vive mais?

Lorna apertou a almofada com nervosismo... Deixara trans­parecer sem querer que o pai morrera e que nã o podia preo­cupar-se com ela.

—Nã o se importa em ser odiado por mim?

— Eu me importaria se você se mostrasse indiferente. — Ele segurou a mã o de Lorna que apertava com forç a a almofada. — O ó dio é uma emoç ã o curiosa. Prefiro isso ao amor fingido e interesseiro. Há mulheres que pensam somente em si mesmas...

— Você, pelo jeito, é um especialista no assunto! — exclamou Lorna, furiosa, tentando soltar-se.

—Eu nã o diria isso. — Havia um sorriso em seus lá bios quando Kasim balanç ou uma sineta de bronze que estava em cima da mesa. No instante seguinte, Hassan apareceu com a bandeja do café.

— A lella vai servir o café — disse Kasim para o criado. Hassan inclinou a cabeç a e retirou-se em silê ncio, Lorna

lanç ou um olhar cheio de ressentimento para o homem a seu lado. Com um suspiro de resignaç ã o, segurou o bule de café. Kasim reclinou-se sobre as almofadas, os olhos fixos no rosto dela, desafiando-a em silê ncio a repetir com a xí cara de café o que fizera com a limonada.

Lorna abaixou a cabeç a e serviu o café nas duas xí caras de porcelana.

—Gosta de nossa cozinha? — ele perguntou, recebendo a xí cara da mã o dela.

— Foi uma surpresa para mim.

Tomar o café, escuro e aromá tico, reclinada ao lado de Ka­sim, no sofá, era uma intimidade inquietante. A noite havia descido como um manto sobre o acampamento, abafando o bur­burinho que vinha de fora. As mariposas voavam em torno das lâ mpadas, até encontrar um fim repentino.

Ela bebeu o café rapidamente e levantou-se, nervosa, do sofá. Andou de um lado para o outro da sala, tocando nos objetos, apalpando as tapeç arias, procurando deliberadamente evitar os olhos castanhos que a seguiam. Seus nervos se con­traí ram quando ele perguntou, com voz insinuante:

— Por que nã o fuma um cigarro? Ajuda a passar o nervosismo.

— Meus nervos estã o bem. Foi até a porta da tenda e abriu o pano, desejando poder escapar da atmosfera í ntima durante alguns minutos.

Estremeceu quando Kasim aproximou-se e parou atrá s dela.

— Você está inquieta. Gostaria de dar um passeio lá fora, até a beira do oá sis?

— Ah, gostaria muito! — exclamou, dando um passo à frente.

—Espere. A noite está fria. É melhor pô r um agasalho. Ele apanhou a capa comprida, forrada de vermelho, e pas­sou-a em volta do corpo de Lorna.

— Pronto, agora está vestida de novo como um rapazinho encantador — acrescentou, ajudando-a a prender a capa na frente do peito.

No meio do acampamento, havia homens sentados em volta das fogueiras, ouvindo a mú sica de um instrumento de cordas, o lamento obsessivo e gutural que se fundia com as formas pretas das barracas e dos camelos deitados, com os pescoç os esticados sobre a areia.

Os homens inclinaram a cabeç a quando os dois passaram diante das fogueiras, mas nã o olharam fixamente para o vulto envolto na capa, em sinal de respeito pela convidada do sheik.

A mú sica triste ficou para trá s. As palmeiras balanç avam len­tamente as folhas compridas, e, quando chegaram à s areias finas, Lorna tinha a impressã o de caminhar num leito de algodã o. Som­bras violeta se formavam nas ondulaç õ es das dunas, e as estrelas pareciam faí scas prateadas no cé u. O ar estava frio e puro. Sombra e misté rio, uma imensidã o que tranquilizou os nervos tensos de Lorna, grata por estar apreciando a magia do deserto ao luar.

—O deserto é como uma mulher — murmurou Kasim. — Sedutor e desafiante, repleto de profundidades nas quais os ho­mens podem se perder para sempre. Eu o conheç o em todos os seus momentos, mas cada dia sua imensidã o me oferece alguma novidade. Um desafio, com um certo tormento da alma. Depois vem a carí cia da noite ou da lua crescente... a garra da amante.

O vento soprava entre os espaç os ilimitados. Lorna olhou de relance para o homem a seu lado e viu o perfil aquilino traç ado ao luar. Ele era parte de tudo aquilo, como os falcõ es e os gatos selvagens que se escondiam entre as rochas.

— Está ouvindo o chamado do deserto?

— Estou fascinada com tudo isso. Se bem que essa vastidã o me assusta à s vezes... Tenho a impressã o de contemplar a eternidade...

— Ah, estou vendo que já foi contagiada pelo deserto. Vamos dar um passeio amanhã cedo. Quando conhecer o deserto de madrugada, ficará fascinada.

— Já estou encantada sem isso — Lorna sussurrou, aper­tando a capa em volta do corpo quando a brisa da noite soprou seus cabelos soltos.

Ele a observou com atenç ã o, os cabelos dourados, os olhosvioleta da cor do jasmim, o rosto muito branco ao luar. Enlaç ou-a com delicadeza, e os dedos dela tocaram seu peito descoberto.

— O deserto do amor — Kasim disse, com um sorriso irô nico, enquanto ela tentava se libertar de seus braç os. — Vamos, nã o seja rebelde. Nã o pode resistir a mim.

— Quando me deixará partir?

— Tã o cedo? Faz apenas uma noite que você está aqui — ele falou, beijando-a nos lá bios. Era cruel e carinhoso ao mesmo tempo. — Você é fria como a neve — murmurou, junto a seu ouvido. — Um dia o deserto vai derreter esse gelo...

— Antes o deserto que você! — exclamou Lorna, procurando afastar-se, mas ele a segurou pelo queixo e a obrigou a sub­meter-se a seus olhos intensos.

— Você olha para mim como se eu fosse devorá -la... Kasim inclinou a cabeç a para a frente e fechou os olhosdela com beijos. Depois, ergueu-a nos braç os e carregou-a de volta para a tenda, passando entre as palmeiras graciosas, as barracas escuras e as fogueiras acesas.

O tempo possuí a uma qualidade diferente no deserto. Fluí a sem o movimento dos reló gios e sem os sinais de agitaç ã o caracterí sticos da cidade. Os beduí nos sabiam as horas pela posiç ã o do sol e levavam uma vida tranquila.

No iní cio, Lorna contou os dias de seu cativeiro, mas logo perdeu a conta. Durante esse perí odo, ela descobriu que o do­mí nio de Kasim sobre as tribos vizinhas era absoluto. Uma lideranç a que se baseava na firmeza da vontade, na persona­lidade magné tica e no interesse constante pela vida de todos. As vezes, surgiam brigas de famí lia, e Kasim intervinha antes que a situaç ã o se agravasse. Numa ocasiã o, um homem foi procurá -lo para queixar-se da filha, que era desobediente e rebelde. Kasim conversou a só s com a moç a e arrumou um marido para ela entre seus homens.

Lorna ficou perplexa quando soube do ocorrido.

— Os dois mal se conheciam...

—Ela precisava de um marido — disse Kasim calma­mente. — Logo vai se curar de sua rebeldia e tornar-se uma esposa exemplar.

—Você é um tirano insuportá vel! — Lorna exclamou, batendo com o leque numa vespa. — Trata as mulheres como criaturas sem vontade pró pria.

— A mulher tem de ser domada, como um potro selvagem. Deve sentir a tensã o das ré deas, para nã o perder a cabeç a. — Ele se reclinou no sofá e estendeu as pernas. A fumaç a do cigarro formava nuvens no ar parado da tenda.

— Depois vem o chicote...

— Nã o aprendeu nada nessas semanas que passou aqui? A mulher verdadeira gosta de sentir que é dominada. Ela aprecia o temor que o homem lhe inspira. As mulheres sã o criaturas misteriosas, minha querida, embora haja homens que morrem de medo do sexo frá gil. Você, por sinal, conheceu um desses homens e foi por isso que se tornou tã o arrogante...

— Eu, arrogante? — Lorna indagou, boquiaberta. — Como se você tivesse motivo para dizer isso. Domina a vida de centenas de pessoas, governa suas famí lias, casa as moç as com homens que mal conhecem e depois vem me acusar de arrogâ ncia?

— Você seria menos excitante se nã o fosse rebelde e orgu­lhosa... Mas tem de admitir que nunca lhe judiei, nem ofendi seu orgulho.

Lorna foi até a entrada da tenda e contemplou, por um instante, a atividade do acampamento, sempre mais visí vel quando o sheik estava presente. Como Kasim tinha a coragem de acusá -la de arrogante? Ela nunca conhecera ningué m mais antipá tico e convencido do que ele!

Apertou as mã os com raiva, ao pensar nas coisas que soubera dele durante as semanas passadas no acampamento. Os ho­mens morriam de medo de Kasim, embora fosse extremamente carinhoso com as crianç as e com os animais. Essa atitude am­bí gua deixava-a inteiramente confusa. Nã o sabia o que pensar. À s vezes, Lorna o admirava. Em outras, morria de ó dio.

Absorta nesses pensamentos, nã o o ouviu se aproximar. De repente, sentiu um braç o em volta de sua cintura.

— Ainda me odeia muito? — Kasim sussurrou no ouvido dela.

—O que acha?

Quando ele a segurava, nã o havia maneira de soltar-se, mas podia peio menos enfrentá -lo com as palavras. Ela de­monstrava a cada instante que suas carí cias lhe eram odiosas.

—O que me aconselha fazer? — indagou, com um sorriso, beijando-a na nuca. — Pô r todos os meus crimes nas costas de um bode e enxotá -lo para o deserto, a fim de expiar minhas culpas?

—Um bode só nã o bastaria...

Kasim riu e virou-a de frente para ele. Seus olhos castanhos fitaram com admiraç ã o os cabelos cor de sol, a curva delicada da boca e a pele macia.

— As palavras nã o ferem. Posso silenciá -las com um beijo. Segurou-a pela cintura e beijou-a na boca. O beijo tinha

gosto de tabaco turco, e a proximidade dele ardia no corpo de Lorna como uma chama.

— Vou visitar o acampamento de um amigo meu amanhã cedo. Você pode me acompanhar por uma parte do caminho... Prometeu comportar-se bem enquanto eu estivesse fora, está lembrada?

— Seu guarda é muito esperto e nã o se deixa enganar. Ele tem muito medo de você.

—Meus homens sabem que eu nã o gostaria de perdê -la. Kasim soltou-a e caminhou até a escrivaninha no canto datenda. Sentou-se no banquinho e começ ou a escrever num livro grande, encadernado com couro. Lorna observou-o em silê ncio, vendo a pena traç ar as letras á rabes que faziam de cada pá gina uma obra de arte. Ele també m era um desenhista talentoso e fazia muitos esboç os com carvã o de seus cavalos prediletos. O que seu pai acharia dos trabalhos dele?, Lorna indagou-se em pensamento. Ela nã o falava nunca do pai com Kasim. Recusava-se a confiar a um estranho as lembranç as que lhe eram tã o preciosas. Quando Kasim desviou a atenç ã o do papel e fitou-a, Lorna afastou os olhos e foi apanhar um livro na estante, um exemplar de A Taç a de Prata, a histó ria de Cadiz, a cidade espanhola onde a mã e dele nascera e passara sua infâ ncia. A assinatura dela estava no livro. Seu nome era Elena.

Lorna sentou-se no tapete e procurou distrair-se com a leitura do livro, mas a presenç a de Kasim impedia sua concentraç ã o. De soslaio, ela observava o contorno do corpo musculoso por baixo da tú nica branca de linho. Quando ele a deixaria partir?

Tinha receio de perguntar... Tinha medo de ouvir a resposta. Loma percebera que Kasim, como muitos prí ncipes á rabes, levava uma vida solitá ria. Nã o podia perder sua autoridade misturan­do-se com os homens do acampamento. Descansava, na intimidade da tenda, das preocupaç õ es e dos trabalhos do dia, e sentia prazerna companhia dela. Como se adivinhasse seus pensamentos, Kasim falou, colocando a pena no tinteiro de estanho:

— Você deve se dar por feliz de nã o estar no haré m de um sheik tradicional... com quatro esposas e uma dú zia de amantes.

— Ah, é?

— Sou um homem moderno, minha querida. Só tenho você em meu haré m, o que surpreende muito meus homens.

—E as mulheres que guarda no palá cio?

—Infelizmente, o palá cio está vazio.

— Você se enjoou de suas mulheres?

— Se está querendo saber se vou me enjoar de você, a res­posta é nã o — respondeu, com um sorriso. — Já imaginou dividir minha companhia com outras mulheres?

— Seria um sossego — Lorna murmurou, com os olhos afas­tados dos ombros largos, do perfil aquilino, dos cabelos negros que ficavam azulados à luz da lâ mpada de ó leo. — Por que nã o arruma outras mulheres para distraí -lo?

— Mal tenho tempo para me ocupar de uma!

—Como se elas fossem sentir sua falta!

— Claro que sim. A mulher sente saudade quando o homem que ela gosta se ausenta, ainda que seja por algumas horas.

—Pois eu daria graç as a Deus!

— Você é ingrata — Kasim falou, voltando a escrever no livro grande.

Pouco depois, enquanto Lorna meditava sobre a personali­dade complexa do sheik, ouviu gritos e vozes que vinham do lado de fora da tenda.

— Veja o que está acontecendo — Kasim ordenou, sem le­vantar a cabeç a do papel.

Ela abriu o pano da entrada e avistou Ahmed, o homem que a acompanhava pelo acampamento. Ao ver o chefe ocupado na escrivaninha, Ahmed iniciou um falató rio animado, incom­preensí vel para Lorna. Kasim, poré m, levantou-se imediata­mente, com um brilho de alegria nos olhos.

— Venha comigo — pediu, segurando-a pela mã o. — O amigo que vou visitar amanhã mandou-me um presente. Vamos ver o que é.

Os homens do acampamento já estavam habituados com a presenç a de Lorna e a cumprimentaram com sorrisos e exclamaç õ es de alegria, enquanto as crianç as corriam a seu encontro para ganhar as balas que ela levava no bolso.

O grupo abriu passagem para o sheik, que se aproximou do meio do acampamento, onde dois homens seguravam pelo ca­bresto o potro mais bonito que Lorna já vira na vida. Tinha o pê lo avermelhado e a crina muito comprida, que faiscava à luz do sol. Era muito fogoso e irrequieto, e nã o parava de dar coices nos homens que o seguravam.

— Que animal lindo! — exclamou Kasim, encantado coro a beleza do potro castanho.

Ele caminhou a passos largos em direç ã o ao animal, e todas as pessoas que estavam em volta, presenciando a cena, emu­deceram repentinamente. Lorna estava com as duas mã os na cintura, em parte por excitaç ã o diante do espetá culo, em parte també m por apreensã o. Sabia que Kasim iria montar no potro, que ainda nã o fora domado.

Ele segurou o cabresto, e os dois á rabes recuaram alguns passos, deixando-o sozinho no meio do acampamento. Kasim falou em voz baixa com o animal, procurando ganhar sua con­fianç a e obrigou-o a virar a cabeç a em direç ã o ao sol, para que nã o se assustasse com nenhuma sombra no chã o. O potro empinou, relinchou, saltou para o lado, mas foi dominado por um forte puxã o do cabresto. No instante seguinte, Kasim saltou no lombo do animal, que tornou a saltar, corcovear, empinar, movimentando as patas no ar e relinchando tã o alto que as­sustou os cavalos no cercado.

Lorna acompanhou a cena com ansiedade, vendo Kasim de­monstrar sua perí cia contra a violê ncia do animal selvagem. Ele mantinha o potro constantemente com a cabeç a voltada para o sol e apertava os calcanhares em sua barriga, enquanto o animal saltava de um lado para o outro, tentando derrubá -lo no chã o. Era um combate de duas forç as em jogo, e os dentes brancos do cavaleiro brilhavam no rosto moreno toda vez que o animal tentava derrubá -lo com um corcovo repentino. A partida, poré m, estava ganha, e o potro tinha de reconhecer a forç a superior do cavaleiro, mesmo que a luta continuasse durante toda a noite! Tanto o cavalo quanto o cavaleiro estavam cobertos de suor quando, inesperadamente, o potro resfolegou alto, sacudiu o pescoç o e parou, exausto, no meio da nuvem de poeira que se 64

Escrava do Amor

levantara do solo. Com uma risada, Kasim pulou no chã o e fez uma das coisas mais emocionantes que Lorna já presen­ciara... Segurou a cabeç a do animal entre as mã os e olhou fixamente para os olhos saltados. O potro poderia tê -lo mordido, desfigurando seu rosto... Mas, em vez disso, abanou as orelhas, balanç ou a crina e, com um movimento do focinho, quase des­locou o ombro de seu dono.

Um grito de aclamaç ã o elevou-se do grupo que assistia ao espetá culo. Os rostos morenos se iluminaram num sorriso de alegria. O chefe havia feito amizade com o potro alazã o!

Depois que o animal foi levado para o cercado, enquanto os homens discutiam em voz alta os lances do rodeio, Lorna ca­minhou, sem ser vista, em direç ã o ao oá sis, onde se apoiou numa palmeira para acalmar sua respiraç ã o ofegante.

Kasim nã o fizera aquilo para exibir-se. Nem fora por arro­gâ ncia que aproximara o rosto da cabeç a do animal. Ele sim­plesmente dominara o potro com sua forç a, e o animal selvagem compreendera isso... submetera-se à magia estranha que ema­nava daquele homem dominador.

Lorna permaneceu alguns minutos sob a palmeira, banhada pela luz avermelhada do sol poente. Subitamente, um tremor a sacudiu da cabeç a aos pé s. Nã o se sentia tã o ansiosa assim desde a primeira noite, quando fora arrastada à forç a para o acampa­mento! Kasim tinha forç a, energia, beleza fí sica que levavam as pessoas a adorarem-no... Mas ela só sentia ó dio por ele!

CAPÍ TULO VIII

 

Na grande tenda, depois do jantar, Lorna parecia fascinada pela bela figura do sheik. O

prazer de ter sido presenteado com o potro alazã o brilhava nos olhos castanhos, e havia um sorriso de indulgê ncia em sua fisionomia quando ele se dirigiu a ela.

— Eu també m tenho um presente para você — disse Kasim, aproxim ando-se.

Lorna desviou os olhos da revista francesa que estava lendo e viu na mã o dele um colar comprido de pé rolas.

—Venha cá. Deixe a revista de lado e ponha este colar. Aquela era a primeira vez que Kasim a presenteava com

uma jó ia, embora houvesse ocasiõ es em que ele acariciava o ló bulo de suas orelhas e o pescoç o delicado como se desejasse vê -los cobertos de pedras preciosas.

— Nã o uso colares — Lorna falou, com nervosismo. — Sin­to-me esquisita com jó ias no pescoç o.

Os olhos dele a examinavam. A tú nica de veludo e a calç a de seda tornavam-na ainda mais atraente. Como nã o se acostumara a andar com chinelos de bico levantado, os pé s estavam descalç os sobre o tapetes macio, onde ela estava reclinada lendo a revista.

—Quero vê -la com este colar! — repetiu Kasim, em voz alta, e o cachorro que estava deitado a seus pé s levantou a cabeç a, assustado.

— E o que pretende fazer? Vai passar uma corda em volta de meu pescoç o para me puxar como se eu fosse um cavalo? — Lorna indagou.

—Uma corda de pé rolas, querida. Você prefere que Fedjr vá apanhá -la? Ele pode confundi-la com uma gazela...

— Antipá tico! — exclamou Lorna, jogando a revista no chã o e caminhando na direç ã o de Kasim.

Ela parou como uma está tua diante do sofá, mas foi puxada para baixo e forç ada a suportar o contato das mã os dele, en­quanto Kasim colocava o colar de pé rolas em seu pescoç o. As pé rolas tinham o lustro de cetim.

— Pedras cultivadas? — murmurou Lorna, com insolê ncia.

— Um dia irá se arrepender de seu pouco caso, minha cara. Cada uma destas pé rolas daria para alimentar uma famí lia á rabe durante meses.

— Entã o por que nã o dá o colar para essas famí lias pobres? — replicou Lorna, fazendo menç ã o de retirar o colar-As mã os dele, poré m, seguraram imediatamente seu braç o

no ar. O olhar divertido desapareceu dos olhos castanhos, que brilhavam com a ferocidade de um leopardo.

—Se você tirar o colar, vai se arrepender — sussurrou entre os dentes. — É um presente meu para você, e irá me insultar recusando-se a usá -lo.

Ela també m estava tensa de raiva, enquanto os dedos dele apertavam cruelmente seu braç o.

— Você é realmente insuportá vel! Todos tê m de fazer sua vontade!

—Exatamente. Acha que daria a minha escrava um colar de contas?

— Nã o me chame assim! — Lorna gritou, fora de si, como se estivesse sufocada pelo colar em seu pescoç o.

—Por que nã o? Você nã o é minha escrava?

— Você me fez ser, e eu o odeio por isso!

—O mel atrai a abelha. A chama, a mariposa. A mulher bela, a cobiç a do homem. Conheç o muitas mulheres que fica­riam encantadas em ser amarradas com colares de pé rolas.

—Nã o sou como as outras mulheres!

Os lá bios dela tremeram quando olhou para as pé rolas e perguntou a si mesma de que pescoç o aquele colar fora arran­cado. O desenho era muito antigo. Era tã o comprido que poderia passá -lo em volta dos cabelos, do pescoç o, inclusive da cintura.

—Nã o, realmente você nã o é como as outras mulheres. Muitas exibem seus encantos à primeira vista. Mas estou des-cobrindo-a lentamente, arrancando uma a uma as pé rolas de

seu coraç ã o secreto. — Tocou no peito dela e correu os dedos vibrantes pelo pescoç o.

Lorna levantou o braç o para defender-se de seu contato, e entã o Kasim enxergou a mancha azulada na pele clara.

—Fui eu que fiz isso?

— Quem mais poderia ser?

—Você se fere facilmente, como uma flor. — Ele deu um beijo na mancha azulada. — Vou apagá -la com uma pulseira.

Kasim levantou-se e apanhou uma caixinha de madeira, onde estava um bracelete largo de ouro, incrustado de pedras azuis.

— Sã o lá pis-lazú lis — ele murmurou, colocando o bracelete no braç o de Lorna.

Examinou-a com atenç ã o, vestida de seda e com as jó ias das mulheres orientais.

—Há um ditado que diz que a rosa se recorda da terra onde nasceu — murmurou Kasim no ouvido dela. — Nó s todos somos primitivos por natureza, inclusive você, com essa pele clara e esses olhos azuis...

Ela sentiu o contato leve da mã o dele sobre a seda que a cobria. Os olhos castanhos estavam mergulhados nos seus, ar­dentes como o fogo do deserto que sua frieza nã o podia apagar.

— E uma pena que seja uma mulher tã o fria, posso avivar sua chama, amiga?

Era a primeira vez que Kasim empregava essa palavra ca­rinhosa, dita em espanhol. Com o rosto pró ximo ao dela, fitou-a com desejo, enquanto um sorriso brincava na boca, ao mesmo tempo, apaixonada e cruel. Lorna nunca tocara nele esponta­neamente e foi assaltada pela vontade repentina de tocar no rosto moreno que parecia uma escultura de bronze. Fechou os olhos para nã o enxergar a cabeç a altiva que estava debruç ada sobre ela, sentindo-se traí da pelo desejo que a dominava tam­bé m. No instante seguinte, os lá bios dele pousaram sobre seus olhos. Ela o ouviu murmurar palavras de ternura em francê s e estremeceu sob o abraç o apertado.

— Vou verificar se guardaram meu potro para a noite — disse Kasim bruscamente, levantando-se do sofá. — Gostou do presente que ganhei? Poderá andar nele quando estiver mais manso. Você s. dois combinam muito bem... ambos sã o rebeldes e odeiam obedecer — acrescentou com um sorriso, afastando-se da tenda.

Algumas estrelas ainda brilhavam no cé u quando Kasim e sua comitiva se prepararam para partir em viagem, na manhã seguinte. As palmeiras do oá sis estavam escuras e imó veis sob o cé u da madrugada.

Lorna estava agasalhada com uma capa comprida de mon­taria e caminhava ao lado de Kasim, alguns passos na frente dos outros cavaleiros. Ao cavalgar pelo deserto sombrio, ela estremeceu com um arrepio de frio. Nã o era a primeira vez que passeava a cavalo de madrugada com Kasim, mas nesse dia daria adeus a ele... talvez para sempre.

Kasim estava muito absorto na contemplaç ã o do deserto que se estendia a sua frente para notar que, naquele momento, os olhos dela estavam cor de violeta por baixo do capuz. Ahmed cavalgava entre os cavaleiros embuç ados que iam atrá s. Ele fora encarregado de acompanhar Lorna de volta ao acampa­mento, e era de sua vigilâ ncia que ela pretendia fugir. Tinha um plano que poria em execuç ã o no momento oportuno. No dia seguinte, diria que estava com febre e que nã o tinha dis­posiç ã o para levantar-se da cama. A tarde, no momento em que todos se recolhiam para a sesta, abriria a parte detrá s de sua tenda com a tesoura que guardara consigo e fugiria no primeiro cavalo que encontrasse livre. Agora, estava acostu­mada aos cavalos á rabes, ariscos e velozes como o vento, e tinha a esperanç a de fugir para sempre do homem que a man­tinha presa... que a tratava como uma escrava.

— Você está muito calada — Kasim disse, em dado momento. — O que está planejando?

O coraç ã o dela disparou dentro do peito. Ele tinha o dom de ler seu pensamento, de invadir a intimidade que ela tanto preservava.

— O nascer do dia no deserto sempre me deixa pensativa. É tã o misterioso... Talvez tenha sido assim que Adã o e Eva viram o mundo pela primeira vez.

— O deserto é eternamente o mesmo, mas nunca enjoa. Nisso ele se parece com algumas mulheres... Vai sentir falta de mim?

— Deseja ouvir uma resposta sincera?

— Nã o — respondeu, com um risinho. — Sei que nã o sofre por mim... E você, nã o tem curiosidade de saber se vou sentir sua falta?

—Seu amigo Kaid lhe oferecerá distraç õ es que sã o muito mais de seu agrado. Você nã o é um homem de emoç õ es, é um homem de aç ã o. Para você, sou uma criatura que deve ser domesticada. Depois de conseguir abaixar minha cabeç a...

—Sabe muito bem por que a guardo comigo — Kasim in­terrompeu-a. — Com esse manto branco, você se parece com o nascer do dia... Veja como ele surge lentamente, banhando a areia de um tom avermelhado...

A visã o era realmente sublime. O sol nascente parecia uma bola de fogo no horizonte, lanç ando um clarã o avermelhado que acentuava as ondulaç õ es do terreno e projetava sombras violá ceas sobre as partes mais escuras. As estrelas haviam desaparecido do cé u, com exceç ã o de uma.

Os olhos de Lorna brilharam. Lembrou-se de que seu pai costumava pintar aquela mesma paisagem durante os anos em que morara no deserto. A lembranç a foi tã o viva que ela deu, sem querer, um suspiro profundo.

— O que foi? — perguntou Kasim, voltando-se na sela.

— Estava pensando como seria bom tomar café em mi­nha casa!

— Você é uma graç a! — disse ele, com uma risada alta. Kasim levantou a mã o, e todos os cavaleiros pararam. O

sheikinformou que iriam descansar durante uma hora e apon­tou para algumas rochas pró ximas dali, esculpidas pelo vento em formas curiosas.

—A lella deseja tomar café no deserto — ele explicou a sua comitiva.

Os outros olharam, surpresos, para o chefe. Normalmente, nã o costumavam descansar antes do meio-dia, e Lorna notou que estavam contentes e agradecidos com a sugestã o dela. Mais de uma vez, ela ouvira o comentá rio dos homens de que o sheik estava " enfeitiç ado" pela moç a de cabelos cor de ouro.

Ela acompanhou Kasim com o olhar enquanto galopavam em direç ã o à s rochas e lembrou-se confusamente de alguns episó dios ocorridos durante sua permanê ncia no deserto. Ka­sim, à s vezes, era um homem encantador, gostava de conversar, de jogar xadrez e de brincar com os cachorros na tenda, sem falar que adorava as crianç as e que aparecia muitas vezes com um garotinho sentado sobre seus ombros...

— També m estou com fome — disse ele de repente, inter­rompendo os pensamentos de Lorna. — É o ar do deserto...

Quando chegaram ao morro de pedras, todos desmontaram e juntaram galhos secos de tamarindo para fazer uma fogueira. Um dos homens retirou uma frigideira das bagagens e assou costeletas de cabrito na fogueira. Um outro, enquanto isso, esquentava á gua para fazer café.

Kasim reclinou-se numa pedra a uma pequena distâ ncia do acampamento improvisado. Com a tú nica branca, o turbante e a capa comprida jogada para trá s, sobre os ombros, repre­sentava uma figura tí pica do deserto.

Lorna sentiu o cheiro apetitoso da carne assada e o aroma penetrante que vinha do areal. As dunas que se estendiam a perder de vista, o ilimitado cé u azul e o homem alto apoiado contra a pedra fundiam-se na paisagem e criavam um quadro colorido, que ela lembraria sempre.

Atirou o chicote no chã o e olhou atentamente para a forma escura e contorcida que saí a lentamente de um buraco, na pedra onde Kasim estava reclinado, fumando distraidamente um cigarro. Ele nã o vira o animal que se arrastava a seu lado e que Lorna identificou corretamente como sendo um escorpiã o, cuja mordida poderia ser mortal.

O veneno do animal poderia libertá -la para sempre, pensou no primeiro instante. Toda a energia e a vitalidade seriam drenadas daquele corpo esplê ndido pela picada do animal.

—Kasim! — gritou, chamando-o pela primeira vez, desde que estava no acampamento, pelo nome. — Um escorpiã o está se arrastando a seu lado!

Ele viu o animal no mesmo instante e atirou o cigarro aceso em cima do escorpiã o. O bicho escuro caiu no chã o e foi pisado pelo sheik até ficar completamente esmigalhado. Mesmo em sua agonia mortal, a picada de escorpiã o poderia causar uma dor lancinante.

Kasim ergueu a cabeç a lentamente e encarou-a por um mo­mento, em silê ncio.

— Por que me avisou? — perguntou por fim. — Esse bicho poderia me matar mais rapidamente que o punhal que você levantou contra mim.

— Nã o desejo essa morte a meu maior inimigo.

— Seu maior inimigo agradece, comovido. — Aproximou-se dela com dois passos largos e segurou-a pelos braç os.

O incidente do escorpiã o nã o fora notado pelos homens, que estavam entretidos em volta da fogueira, mas muitos pares de olhos se voltaram para Kasim e Lorna, surpresos, quando ouviram o grito dela.

— Solte-me!

O bule de café caiu das mã os do á rabe que o segurava em cima do fogo. Ningué m desobedecia a um desejo do prí ncipe, muito menos uma simples mulher! Naquele momento, poré m, o sheik aceitou a rejeiç ã o e deu um sorriso irô nico de resignaç ã o.

Depois de tomarem café e comerem as costeletas de cabrito, Kasim anunciou que iria continuar com sua comitiva. Ahmed levaria Lorna de volta para o acampamento.

—Você me prometeu que nã o tentará fugir — o prí ncipe lembrou-a, antes da despedida. — Nã o sabe andar sozinha nesses lugares perigosos, e tudo pode acontecer.

—Pois nã o, meu senhor — murmurou Lorna, com o rosto impassí vel.

— Nã o seja tola! — ele a repreendeu, com impaciê ncia. — Se você nã o reiterar sua promessa, vou ser obrigado a levá -la comigo, e nã o gostará de ser trancada com outras mulheres, enquanto eu estiver caç ando com meu amigo. Vamos, escolha!

—Está bem. Prometo que vou me comportar.

— Tenho minhas dú vidas — disse Kasim, erguendo o queixo dela e fitando-a demoradamente nos olhos. — Você é muito impulsiva...

— Aprendi que sua vontade é lei. Ou quer exibir sua escrava na casa de seu amigo?

— Nã o me faç a perder a paciê ncia! — exclamou, agora aper­tando com forç a o pulso de Lorna. — Há um momento, você salvou minha vida, e eu lhe sou grato por isso. Volte com Ahmed. Passeie com ele por onde desejar. O resto é com o destino.

Ele se afastou alguns passos e ajeitou as dobras da capa. Sua fisionomia estava tranquila, como se a raiva momentâ nea houvesse cedido lugar à resignaç ã o. Os homens do deserto acre­ditavam piamente no destino, e Kasim nã o era exceç ã o.

Deu o sinal de partida para os membros da comitiva e mon­tou em seu cavalo. Percorreu com o olhar a vastidã o de areia, um oceano ondulante que se estendia a perder de vista.

—O deserto nã o é sempre calmo assim — ele falou para Lorna. —Muitas vezes este sossego é sinal de tempestade.

—Será? Ele me parece maravilhoso no momento...

— As coisas boas sempre tê m um elemento de perigo. — Os olhos castanhos a fitaram. — Adeus, nã o faç a nenhuma loucura!

Cavalgou para longe, sem olhar para trá s, deixando-a aos cuidados de Ahmed. As capas compridas esvoaç avam sobre o lombo dos animais, e uma nuvem amarelada acompanhou a

partida dos cavaleiros.

—Vamos! — disse Lorna para Ahmed, que a observava com o rosto sombrio, como se nã o estivesse satisfeito com a incumbê ncia de acompanhá -la de volta ao acampamento.

 

CAPÍ TULO IX

Ao leve toque dos calcanhares, o cavalo de Lornapartiu a galope, mas o tordilho de Ahmed nã o

ficou para trá s, e os dois mantinham uma pequena distâ ncia quando entraram no acampamento e estancaram os animais diante da grande tenda do sheik.

Lorna desmontou primeiro e retirou o capuz da cabeç a. Os cabelos soltos brilharam ao sol quente do meio-dia.

— Por favor, Ahmed, leve meu cavalo para o cercado. Estou um pouco cansada.

Quando Hassan surgiu na entrada da tenda, ela exclamou:

—Como está quente, meu Deus! — Levou a mã o ã testa. — Espero que eu nã o esteja com febre...

Entrou na tenda com a cabeç a baixa, e Hassan a seguiu com a fisionomia preocupada.

— A lella deseja tomar alguma coisa?

— Nã o, muito obrigada, Hassan. — Deixou-se cair no sofá e reclinou a cabeç a na almofada. — Logo vou estar melhor. Acho que tomei sol demais.

—Um mé dico chegou de Sidi Kebir esta manhã. Ele nã o sabia que o prí ncipe havia viajado. A moç a deseja consultá -lo?

— Um mé dico? —repetiu Lorna, espantada. — Um mé dico francê s?

— Nã o, um mé dico á rabe. Ele mora em Sidi Kebir, onde o pai do prí ncipe é o emir. Ele vem aqui de tempos em tempos para tratar dos doentes.

Lorna olhou para a ponta da bota afundada no tapete es­pesso. Inventara que estava com febre e ficou momentanea­mente embaraç ada com a sugestã o de consultar o mé dico. Talvez ele nã o soubesse que uma moç a inglesa estava hospedada ali e achou preferí vel nã o o ver. Alé m disso, nã o estava pre­parada para encontrar algué m que morava na mesma cidade que o pai de Kasim.

— Nã o preciso de mé dico — disse por fim. — Vou me deitar um pouco e nã o gostaria de ser incomodada por ningué m.

Hassan inclinou a cabeç a e saiu da tenda em silê ncio. Lorna deu um suspiro profundo, apanhou um cigarro em cima da mesinha e acendeu-o distraidamente. Ao sentir o gosto forte de tabaco, lembrou-se imediatamente de Kasim. Por que o avi­sara da presenç a do escorpiã o? A picada do animal significaria sua liberdade. No entanto, ela hesitara, apavorada com a idé ia de que o escorpiã o pudesse matar o homem arrogante que a mantinha cativa no deserto. Deu uma tragada e pensou que era sensí vel como todas as mulheres, que nã o suportavam fazer mal aos outros, embora aguentassem em silê ncio, resignada-mente, os maus-tratos dos homens.

Cansou-se de ficar sozinha a tarde inteira na tenda. Depois do jantar, embrulhou-se na capa comprida de lã e deu um passeio até o oá sis. Sabia que estava sendo seguida por um homem magro e procurou controlar o desespero que a assaltava. Por que Kasim nã o a deixava partir? Era apenas uma boneca de luxo que ele enfeitava com roupas de seda e sua coleç ã o de jó ias. Uma simples diversã o no fim do dia. Logo seria es­quecida, como as outras mulheres que tivera...

Lorna aproximou-se de sua palmeira favorita e apoiou-se no tronco liso. A noite estava escura, sem a luz da lua, e tudo parecia silencioso, com exceç ã o do farfalhar das folhas balanç adas pelo vento. Eram muito compridas e tinham a forma de mã os.

Quando sentiu o aroma de cigarro e viu o brilho do albornoz branco a seu lado, imaginou que fosse Ahmed, o homem que a guardava no acampamento. Por isso, surpreendeu-se quando o homem lhe dirigiu a palavra em francê s, com a pronú ncia tã o impecá vel quanto a de Kasim:

— Boa noite. Queria visitá -la antes, na tenda, mas Hassan me disse que nã o queria ser incomodada. Sou mé dico e me chamo Omair ben Zaide. Só fiquei sabendo hoje que estava hospedada no acampamento de meu amigo Kasim.

Nã o havia ironia em suas palavras, mas Lorna corou violentamente. No primeiro instante, pensou em afastar-se dali, mas controlou seu embaraç o e respondeu, com voz animada:

— Imagino que deva ter sido uma surpresa! Nã o é todo dia que uma moç a inglesa é encontrada no acampamento de um sheik á rabe. Da ú ltima vez que esteve aqui, provavelmente havia uma moç a á rabe na tenda do prí ncipe...

O mé dico nã o comentou nada no primeiro instante, e Lorna notou que os traç os do rosto dele eram bem-feitos e regulares. Omair ben Zaide tinha as feiç õ es mais caracterí sticas da raç a do que Kasim, se bem que parecia menos autoritá rio e arro­gante que seu amigo.

—Na ú ltima vez que estive aqui, nã o encontrei nenhuma moç a na tenda de Kasim. Um de meus pacientes me contou que seus cabelos sã o dourados como a areia do deserto. Os á rabes raramente vê em mulheres que sejam realmente belas. Por isso foi uma surpresa encontrá -la...

—E lhe contaram també m que estou aqui contra minha vontade? Ou acha que estou adorando morar nessa barraca?

— Bem, ouvi dizer que Kasim gosta muito de sua companhia, que você s andam juntos a cavalo e jogam xadrez. Isso é sinal de que ele a trata com muito respeito.

Lorna deu uma risada.

— Imagino como ele deve tratar as outras mulheres!

— Que outras mulheres?

— Ah, nã o me diga que ele nã o tem outras mulheres?!

— Kasim tem um gosto muito difí cil...

—Faç o idé ia! Mas esse homem de gosto requintado nã o hesitou em me atirar em cima de uma sela e me trazer para cá, como se eu fosse uma escrava...

— À s vezes os homens se deixam cegar pela beleza... Kasim é o filho ú nico do poderoso emir de Sidi Kebir. Ele está acos­tumado a ser obedecido em tudo.

— Como se isso fosse desculpa!

— Eu també m, se nã o fosse mé dico, roubaria a mulher que amo! — Omair jogou o cigarro no chã o, onde brilhou um ins­tante, antes de se apagar completamente. — Para as pessoas que vivem no deserto, que sã o governadas pelo destino e pelo fatalismo, nã o há amanhã. Há somente o dia de hoje, o momento presente, que deve ser colhido como se fosse um fruto. Os

homens do deserto sã o chamados os filhos das estrelas... e eles ardem com a mesma luz incandescente.

— Mas isso nã o é razã o para maltratar os outros. Kasim aç oitou um homem que roubou um cavalo em minha frente, mas a mesma lei se aplica ao homem que sequestra uma mulher...

— Nã o, nã o se aplica — Omair falou, com um sorriso irô nico. — Kasim nã o deve obediê ncia. Ele governa muitas tribos sel­vagens e julga natural dominar uma mulher jovem e bonita como você. Ele foi cruel?

— Bem, ele nã o me aç oitou, felizmente, mas há outras ma­neiras de ser cruel... Estou aqui, neste acampamento, contra

minha vontade!

—Eu entendo — concordou Omair, com uma entonaç ã o bondosa. — Para os homens de todos os paí ses, as mulheres tê m uma funç ã o decorativa, alé m de ser a alegria dos olhos, o consolo das afliç õ es habituais. As preocupaç õ es de Kasim sã o grandes. Seu pai é um homem de idade, e Kasim será obrigado, mais dia menos dia, a abandonar a vida do deserto. Deverá ocupar o lugar do pai e talvez tenha procurado sua companhia para se esquecer dessas tristezas...

— E sou obrigada a pagar por isso... a levar uma vida que me é inteiramente estranha?

Lorna lembrou-se das estrelas que vira entre as palmeiras no jardim de Ras Jusuf... Parecia que isso fora muito tempo antes, poré m acontecera havia somente algumas semanas. Das tendas do acampamento vinha uma mú sica á rabe, repetida monotonamente, que a fez lembrar a flauta no jardim, entre as á rvores. As palavras do adivinho voltaram a sua memó ria... — O deserto torna as pessoas primitivas — falou Omair, com um movimento expressivo das mã os. — Já observou o deserto ao entardecer, o brilho das estrelas e o acender das fogueiras? O deserto nos revela toda a beleza que se esconde no coraç ã o dos povos primitivos...

Os olhos redondos do mé dico a fitavam com curiosidade. O albornoz caí a em dobras sobre o corpo magro, e o turbante branco acentuava a cor morena da pele. Omair era um perfeito á rabe, ao contrá rio de Kasim, que tinha a pele clara, com exceç ã o dos braç os, do rosto e do pescoç o, bronzeados pelo sol. Kasim apreciava o prazer de beijar as mulheres nos lá bios, eLorna sabia que esse gesto de ternura era desconhecido dos á rabes autê nticos. Sentiu um calafrio ao se lembrar dos lá bios quentes e possessivos do sheik.

—Concordo com tudo que acabou de dizer, mas nã o posso aceitar que ele faç a de mim uma escrava!

— Uma escrava? — repetiu Omair, com uma expressã o de incredulidade. — Você nã o é uma escrava. Diz tudo o que pensa, anda livremente pelo acampamento e conversa com to­dos. Por sinal, os á rabes gostam muito de você. Eles disseram que é graciosa como a lua. É muito natural que Kasim també m aprecie sua companhia.

— Ah, você nã o entende! Ele me manté m aqui à forç a, contra minha vontade, como se eu fosse um filhote de tigre que deseja domesticar!

Omair respirou fundo, como se lhe ocorresse finalmente que Lorna era uma moç a inglesa, que nã o estava habituada com os costumes do Oriente.

— Serviria de consolo eu dizer que todos nó s somos presos de certa forma e que somos governados pelo destino? Ningué m faz o que quer. O tempo passa, e percebemos, finalmente, que uma mã o invisí vel nos conduz pelos caminhos da existê ncia. — Omair fez uma pausa e examinou-a em silê ncio com seus olhos negros. — Você foi atraí da pelo deserto. Deixou-se seduzir, e o destino conspirou para prendê -la aqui. Pense nisso. Aqueles que ouvem o chamado do deserto correm sempre esse perigo.

Era verdade. Ela seguira o apelo estranho e cativamente que a levara para longe de Ras Jusuf... mas nunca imaginara que esse chamado iria conduzi-la à companhia de um homem que a privaria de sua liberdade. Que exigia uma obediê ncia cega. Que a encantava com suas narrativas do deserto e que se mostrava inflexí vel, em outras horas, como se ela nã o tivesse vontade pró ­pria. Ah, nunca iria perdoá -lo por sua ignorâ ncia e crueldade!

—Está ficando tarde — Lorna disse, com voz cansada.

— Vou acompanhá -la até a tenda.

Caminharam em silê ncio pelo acampamento e pararam dian­te da grande tenda dupla. Ela convidou o mé dico para entrar um pouquinho e tomar um café, mas Omair recusou o convite, com um sorriso sem graç a.

— Muito obrigado, mas nã o posso aceitar. Kasim nã o gostaria que eu tomasse café sozinho em sua companhia, espe­cialmente à noite. Nã o é comum entre nó s...

— Mas ele pode fazer tudo que tem vontade! E se eu ficar doente, você nã o pode me atender?

— Nesse caso, sim. No mais, sou um á rabe perfeito.

— Quer dizer que você acredita no vé u e no haré m?

—Acredito no respeito que devo à casa de meu amigo. — Inclinou a cabeç a, com cerimonia. — Foi um prazer conhecê -la, Lorna. Espero que sejamos sempre bons amigos.

— Eu també m gostei de sua companhia, Omair. Boa noite.

Emshi besselema.

Omair afastou-se em silê ncio, envolto pelo manto branco que brilhava entre as tendas pretas, e desapareceu de vista. Fora um encontro estranho. Os dois haviam conversado com intimidade, porque a noite dava maior liberdade à expressã o dos sentimentos profundos. Seria por isso que as mulheres á rabes se cobriam com vé u?

Lorna demorou-se um instante na entrada da tenda, sem ne­nhuma vontade de voltar para sua prisã o solitá ria. Por fim, com um suspiro de resignaç ã o, dirigiu-se para seu aposento, que exa­lava, como sempre, o perfume de sâ ndalo e de tabaco turco.

Hassan deixara o bule de café em cima do pequeno fogareiro, e, na bandeja, havia doces e bolinhos de amê ndoas com mel. Ela mordeu distraidamente um doce enquanto folheava a re­vista francesa que apanhou em cima da cama. As pá ginas de culiná ria tinham algumas fotografias dos lugares que visitara com seu pai, no ú ltimo ano que passara em Paris. Uma noite, os dois foram jantar no restaurante La Tour d Argent, e foi ali que ela tomou uma taç a de champanhe pela primeira vez na vida. " Que cada bolhinha seja um dia de felicidade! ", ex­clamara o pai, levantando o copo num brinde.

Lorna deu um suspiro e levantou-se da cama. Andou algum tempo pelo interior da tenda, que lhe parecia repentinamente vazia sem a presenç a de Kasim. Ele era tã o vital que, mesmo ausente, atraí a todos os pensamentos dela para sua pessoa. Podia vê -lo reclinado no sofá, movendo as peç as no tabuleiro de xadrez, acariciando os cabelos compridos dela, com o ar indolente.

Apagou as lâ mpadas uma a uma e, ao passar pela cortina de contas, ouviu o leve tilintar no silê ncio da noite. O quartoestava frio, e ela colocou uma pele de leopardo em cima da cama. Um camelo gritou lá fora, um graveto seco estalou na fogueira, que ficava acesa a noite inteira, depois o acampa­mento voltou ao silê ncio.

Lorna continuou acordada por algum tempo, encolhida sob a pele do leopardo, procurando apagar o rosto belo e moreno de sua lembranç a, tentando esquecer a voz melodiosa que cantaro­lava uma canç ã o francesa e que se despedia dela todas as noites, com uma palavra carinhosa. Outras vezes, ele se debruç ava sobre o rosto dela para ver se estava dormindo, tocava com a ponta do dedo uma lá grima que rolava da face de Lorna, secava-a com os lá bios e deixava uma impressã o de calor na pele dela.

Deu um suspiro e afundou a cabeç a no travesseiro. Tinha de fugir dali! Aproveitaria a oportunidade na manhã seguinte... Sairia de madrugada, antes que Ahmed acordasse. Seu coraç ã o bateu mais depressa, excitado com a idé ia. Fugiria ao nascer do dia, quando ningué m estivesse acordado para impedi-la.

Abriu os olhos e avistou a escuridã o em volta. Respirou fundo o perfume de sâ ndalo das madeiras. No dia seguinte, a essa hora, estaria novamente em Yraa, a muitos e muitos qui­ló metros do acampamento no deserto.

Estava impaciente para a noite passar... para a madru­gada entrar furtivamente na tenda e balanç ar de leve a cortina de contas.

 

 

CAPITULO X

Lorna corria a todo galope para longe! Fora fá cil sair furtivamente da tenda, como uma sombra, e apanhar um cavalo, qualquer um, porque todos os cavalos do acampamento eram resistentes e velozes. O ani­mal, uma é gua marrom de patas brancas, mostrara-se assus­tado em princí pio, mas depois de alguns minutos cavalgava num ritmo perfeito, num galope longo e compassado.

O ar da madrugada inebriava como o vinho, misturava-se com a sensaç ã o de liberdade e fazia sua cabeç a girar. Atravessou a galope as pequenas colinas de areia, procurando afastar-se o mais rá pido possí vel do acampamento, na esperanç a de que o vento da manhã apagasse os rastros que o animal deixava.

A brisa fria batia contra seu rosto e fazia seus olhos arderem, pois já estavam irritados por causa da noite maldormida.

Sorriu de alegria. Estava livre e nã o esquecera nada essen­cial. Tinha á gua no cantil, mantimentos na bolsa, uma capa de lã para abrigar-se do frio que fazia ao anoitecer e um lenç o comprido de musselina passado em volta da cabeç a, para se proteger dos inclementes raios do sol.

Sabia que estava indo na direç ã o certa, rumo à s montanhas de Yraa, que avistava como pontinhos brilhantes na distâ ncia. Nã o estava assustada. Galopava rapidamente para longe do ho­mem que a aterrorizava, com sua fisionomia severa, mais do que toda a vastidã o de areia e de rochas que sumiam no horizonte. A luz que banhava o areal tinha uma tonalidade esverdeada, e Lorna acelerou o galope da é gua. Sua fuga logo seria desco­berta. Zahra levaria o café no quarto e nã o a encontraria na cama. Daria o alarme, e Ahmed partiria a sua procura. Motivado pelo medo que tinha de Kasim, revistaria todas as pedras do caminho, seguiria todas as pegadas e examinaria cada moita com seus olhos de lince. Mataria o cavalo de tanto correr na determinaç ã o de encontrá -la.

O vento aç oitava a capa comprida e atirava areia sobre os rastros que o animal deixava atrá s de si. O vento era amigo. Estava cobrindo sua partida, e, na alegria do momento, ela nã o percebeu que ele soprava com mais forç a naquela manhã, e o sol tinha um tom estranho e ameaç ador.

A medida que as horas passavam, a vastidã o do deserto exercia um efeito hipnó tico sobre seus nervos. No momento em que fez uma breve parada, para beber um pouco de á gua e descansar o animal resfolegante, estava sentindo-se muito calma e descontraí da. Fumou um cigarro e nã o largou um só instante as ré deas... Dessa vez, o animal nã o fugiria, e ela nã o correria o risco de ser deixada sozinha no deserto!

Olhou em volta de si e percebeu que as dunas estavam escurecendo em certos lugares. Voltou a cabeç a para o cé u encoberto e notou que tudo estava muito calmo e parado, em­bora o assobio do vento sobre a areia tivesse se tornado mais alto nos ú ltimos minutos.

" Uma mulher é como o deserto", dissera Kasim, num dos pas­seios que deram juntos. " Muitos segredos moram no coraç ã o dos dois. Ambos dã o paz, mas a agitaç ã o nunca está muito distante... " Um lugar secreto, sem dú vida alguma. Uma pessoa poderia morar a vida inteira no deserto e nã o encontrar jamais seu coraç ã o. Segurando com firmeza as ré deas da é gua, Lorna olhou para a cordilheira que pretendia transpor antes do anoitecer. Estava azulada pela atmosfera do deserto, tã o pró xima e, ao mesmo tempo, tã o distante! Subiu na sela, e a é gua levantou as patas da frente, empinando como um animal de circo. Lorna puxou a ré dea levemente e murmurou algumas palavras que Kasim cos­tumava usar para tranquilizar os animais fogosos. Apó s um res­folegar alto, a é gua colocou as patas no chã o e partiu a galope. Meia hora depois, as primeiras gotas de chuva caí ram sobre seu rosto. Alguns minutos mais tarde, estava chovendo tor­rencialmente, e, vez por outra, a trovoada murmurava ao longe, alé m das colinas de Yraa.

Uma tempestade no deserto seria terrí vel, mas preferia enfrentar qualquer coisa a ser apanhada e levada de volta para o acampamento. Tudo, menos enfrentar a fú ria de Kasim! Ele nã o gostava dela... Lorna era simplesmente um brinquedo de luxo para ele... Quando a novidade passasse ou quando os deveres o chamassem de volta para Sidi Kebir, Kasim se des­cartaria dela sem o menor escrú pulo.

Ao fugir dessa forma, ela mantinha pelo menos o orgulho intacto. Ele nã o a humilhara moralmente, e ela poderia reco­meç ar uma vida nova em algum lugar bem distante da beleza traiç oeira do deserto.

O temporal cessou repentinamente, mas o cé u continuou encoberto e a atmosfera estava muito pesada e opressiva. A areia começ ou a girar em volta dela em pequenos redemoinhos, e, na distâ ncia, uma né voa seca encobria as colinas de Yraa. Lorna sentiu uma contraç ã o nervosa no estô mago. Se uma tempestade de areia se iniciasse, tudo ficaria confuso em sua frente durante horas, talvez a noite inteira.

Nã o podia perder nem mais um minuto. Deitou a cabeç a sobre o pescoç o do animal e deixou que galopasse a toda velocidade.

A atmosfera tornou-se mais sufocante com o passar dos mi­nutos, e Lorna sentia a cabeç a pesada. Ouviu o ruí do estranho da ventania que fustigava a vastidã o do deserto... um uivo assustador que gelou seu coraç ã o.

Seus instintos a advertiram de que o vendaval se iniciaria de um instante para o outro, e ela procurou com nervosismo um lugar para se abrigar do furacã o impiedoso, que arrastaria tudo em sua passagem.

Pouco adiante, avistou um morro de pedras e rumou naquela direç ã o. Lorna estava agradecendo sua sorte por ter encontrado um abrigo, quando um raio iluminou violentamente a paisa­gem, assustando terrivelmente a é gua e a amazona.

O animal, alarmado com o estrondo do trovã o que se seguiu, encolheu o corpo e empinou repentinamente as patas da frente. Lorna, apanhada de surpresa, foi jogada para longe, antes que pudesse se agarrar nas crinas da é gua. Tonta, ofegante e com a cabeç a latejando, ela viu o animal afastar-se a galope, em direç ã o à s nuvens de poeira que se levantaram no deserto.

Ergueu-se, cambaleante, e levou a mã o ao ombro dolorido. Gritou para a é gua, mas seus gritos se perderam no vento, e, logo depois, perdeu o animal de vista, que arrastava as ré deasno chã o e levava consigo a sacola preciosa onde estavam a á gua e os alimentos.

Refeita do susto, Lorna percebeu que deveria se abrigar rapidamente entre as pedras. Ali, pelo menos, estaria protegida da forç a impiedosa do vento, que começ ava a levantar nuvens de poeira que faziam seus olhos arderem.

Com o rosto contraí do pela dor que lhe causava o ombro deslocado, sob o clarã o intenso de um novo relâ mpago que cortou o cé u, ela se dirigiu com dificuldade para o abrigo no meio das rochas. Estava muito tré mula e muito abalada para chorar. De sú bito, a advertê ncia de Kasim surgiu em sua mente. " Você nã o sabe se defender sozinha num lugar vasto e perigoso como o deserto. "

As palavras sinistras misturavam-se aos sons aterrorizantes das trovoadas e do vento que soprava. A luz intensa dos re­lâ mpagos no cé u escuro, Lorna teve a impressã o de avistar de novo o brilho dos olhos castanhos, e, no momento em que entrou no abrigo, no rochedo, tudo começ ou a girar a sua volta, ela se sentia subitamente fraca e indefesa. Mergulhada na escu­ridã o total do abrigo, a ú ltima coisa que sentiu foi a areia aproximar-se de repente de seu rosto.

 

 

No primeiro instante, apó s abrir novamente os olhos, o ar pa­receu-lhe coberto de uma poeira sufocante, e Lorna sentiu um gosto de cinza na boca. Um gosto horrí vel de coisa seca e queimada.

Lembrou-se vagamente de que caí ra quase sem sentidos na areia. Agora, poré m, estava apoiada contra uma pedra, e al­gué m estava ajoelhado a seu lado... O rosto do homem estava coberto por um lenç o de linho branco, e seus olhos tinham um brilho intenso.

Estava morta de sede, e o ombro machucado latejava ter­rivelmente. Parecia um pesadelo, mas o gargalo do cantil era bastante real. Bebeu sofregamente alguns goles de á gua e, quando voltou completamente a si, percebeu que o braç o do homem estava passado em volta de seu corpo. Afastou-se dele instintivamente, assustada.

— Que loucura! — murmurou o homem, retirando o lenç o do rosto. Ela reconheceu, assombrada, as feiç õ es familiares.

— Você enfrentou a tempestade para fugir de mim! Quando Ahmed me disse que você apanhara um cavalo e partira a galope, saí a sua procura do acampamento de meu amigo. Eu sabia que rumaria diretamente para as colinas de Yraa, pois estava hospedada em Ras Jusuf. E, na correria, eu teria pas­sado direto daqui, se nã o visse seu vé u enroscado na moita de espinhos, do lado de fora do rochedo.

Ele a observou em silê ncio durante um longo momento. Os olhos dela estavam inchados e vermelhos.

— Sua maluquinha, pensou que eu iria deixá -la fugir? Que nã o partiria a seu encalç o?

— E impossí vel fugir de você — Lorna respondeu, com uma careta de dor. — Meu ombro está doendo terrivelmente. Um relâ mpago assustou a é gua, e fui jogada ao chã o...

Kasim segurou-a pelo braç o e apalpou atentamente o ombro

machucado.

— O osso saiu do lugar — disse por fim, — Posso recolocá -lo,

mas vai doer um pouco.

— Nã o faz mal — Lorna falou, como se nada mais tivesse importâ ncia. — Você já me machucou antes de saber...

Kasim tirou um cigarro do bolso e colocou-o entre os lá bios dela. Ele estava com o rosto impassí vel, como uma má scara de bronze. Riscou o fó sforo e acendeu-o.

— Fume o cigarro para se distrair... Está pronta?

Ela deu uma tragada e meneou a cabeç a afirmativamente. O gemido de dor perdeu-se em meio aos uivos do vento no instante em que Kasim colocou o osso no lugar, com um mo­vimento há bil das mã os. Lorna estremeceu com a dor, e um suor frio escorreu por sua testa. Sentiu dormê ncia no braç o depois que a dor passou, mas Kasim explicou que era devido à pressã o sobre o nervo distendido. Depois, ele massageou o ombro até a circulaç ã o voltar ao normal.

— Procure flexionar o braç o — ele disse.

— Ainda está doendo um pouco, mas sinto que voltou para

o lugar.

— Você foi corajosa — Kasim falou, limpando a areia gru­dada no rosto dela. — Logo a ventania vai transformar-se num furacã o, e podemos ser soterrados na areia. Você nã o tem medode morrer aqui? Nã o teme que estas rochas sejam nossa se­pultura no deserto?

Lorna balanç ou a cabeç a afirmativamente e terminou de fumar o cigarro. O cavalo preto de Kasim estava preso e abri­gado ali perto e abaixava a cabeç a para evitar a ventania forte que soprava. Kasim ajoelhou-se ao lado dela e amarrou o lenç o comprido em volta de seu rosto.

— Foi uma loucura você ter fugido hoje, logo hoje, correndo o risco de ser apanhada por uma tempestade de areia.

— Loucura maior foi achar que poderia escapar de você. — Ela levantou a cabeç a e ouviu o barulho do vento lá fora. — O deserto protege seus filhos, e você é tã o implacá vel quanto essa ventania que está soprando.

— Você feriu meu coraç ã o — disse Kasim, com um sorriso triste. — Eu a encontrei como um pedaç o de gelo no meio do inferno, e você nã o tem uma palavra de ternura para mim.

— E desde quando aprecia uma palavra de ternura? Desde quando está disposto a ceder em alguma coisa?

Kasim franziu a testa e desviou o olhar, seu perfil estava contornado sobre uma paisagem nevoenta.

—Nã o há ternura numa tempestade no deserto... Tudo é perigoso, e estamos indefesos no meio dela.

— Quanto tempo vai durar? — Lorna indagou.

— Quem pode saber? Somente o destino.

— E depois que terminar? — Ela apagou o cigarro na areia. — Um dia, terá de me libertar... Pretende me humilhar com-pletamente antes disso?

Ela nã o ouviu a resposta, pois foi encoberta por um terrí vel rugido. No momento em que a areia rodopiou em volta deles, soprada fu­riosamente pelo vento, Kasim protegeu Lorna com sua capa.

Ela dominou o temor que sentia por ele e afundou o rosto no ombro largo, abraç ada a ele sob a sufocante nuvem de areia.

A ventania parecia um furacã o, e Lorna ouviu uivos furiosos que ensurdeciam e que lhe davam vontade de explodir no choro.

—Coragem! — Kasim falou, procurando confortá -la.

Ele mudava de posiç ã o constantemente, porque a areia se acumulava depressa em volta deles. Uma ú nica vez Lorna deu uma exclamaç ã o de angú stia, e Kasim estreitou-a nos braç os e beijou-a na testa como se ela fosse uma crianç a alarmada.

Os lá bios dele estavam quentes e á speros por causa da areia, e, quando ela fechou os olhos, sentiu uma fraqueza que nã o tinha nada a ver com a tempestade. Deixou-se estar nos braç os dele, abandonada, enlaç ada, sufocada, com o coraç ã o explodindo de alegria. A areia podia enterrar os dois juntos. Podiam per­manecer abraç ados para sempre... como os amantes da lenda.

—Lorna? — murmurou Kasim, em seu ouvido. — Está

respirando... está bem?

— Ah, tive uma sensaç ã o tã o estranha... Parecia um sonho!

— Você nã o pode dormir agora! — Sacudiu-a pelos braç os, e a areia escorreu sobre os dois.

Lufadas furiosas de vento sopravam, quentes e sufocantes como uma fornalha.

Lorna forç ou-se a abrir os olhos e encontrou o rosto dele

colado ao seu.

— Você nã o pode dormir agora — ele repetiu.

— Kasim... quanto tempo isso vai durar?

— Vai passar logo. Seja corajosa.

Ela estava abraç ada contra seu peito e podia ouvir o coraç ã o

dele batendo.

—Estou tentando.

— Sei disso. Tem o costume de levantar a cabeç a e encarar os homens nos olhos. Ah, meu Deus, que ventania! Que tem­pestade maldita!

—Coitado de seu cavalo!

—Espero que ele nã o enlouqueç a com a tempestade e ar­rebente o cabresto.

—Ficarí amos perdidos aqui.

—Para sempre. — Ela sentiu um arrepio quando as mã os dele apalparam seu corpo por baixo da capa. — Nã o sou um monstro egoí sta, como deve estar pensando. Estou apenas sol­tando os botõ es de sua blusa para você respirar mais à vontade...

Ela nã o podia falar. Estava dominada pelas sensaç õ es con­fusas que a assaltavam. Entendeu, naquele momento, que res­pondia a seu contato porque pertencia a ele. 0 coraç ã o, a alma, o corpo, tudo pertencia a esse homem do deserto, e nã o era dele que fugira, mas do amor que sentia por ele.

Acabara apaixonando-se por Kasim! Ele invadira seu coraç ã o e a cativara com a perí cia de um domador.

Amava-o... odiava-o por fazer dela o que queria, como um domador brincava com o filhote de tigre. Em vã o, lutou com a fascinaç ã o que a dominava.

No momento seguinte, sentiu o aperto de seus braç os e per­cebeu confusamente que ele a estava protegendo de uma grande lufada de areia que avanç ava sobre ambos, cegando-os comple-tamente. Estavam mudos e surdos pela violê ncia da tempestade. Durante segundos... minutos... horas... continuaram mergu­lhados no furacã o de areia. Depois, lentamente, ouviram o si­lê ncio pesado em volta, uma tranquilidade ameaç adora, mais terrí vel que o rugido do vento, e Lorna sentiu o pâ nico domi­ná -la com a repentina Falta de ar.

Kasim conseguiu levantar-se com um esforç o sobre-humano e remover a areia que os cobria. Gotas de suor brotavam na testa dele e rolavam por seu rosto. Ela procurou ajudá -lo, com a res­piraç ã o ofegante, até que conseguiram romper a barreira de areia que se formara em volta deles e respiraram de novo o ar puro. Kasim abriu mais espaç o com o braç o, e saí ram finalmente.

Permaneceram um instante parados, respirando com difi­culdade, com areia nos olhos, na boca, no nariz, descendo pela garganta. Ao redor, reinava uma tranquilidade estranha... um silê ncio assustador depois da fú ria da tempestade. Lorna sentiu um tremor percorrer-lhe o corpo, e, em seguida, lá grimas ro­laram livremente por seu rosto, formando pequenos sulcos na areia grudada em sua pele.

Kasim caminhou em direç ã o ao cavalo. Falou em voz baixa com o animal assustado e escovou a areia que estava grudada

no focinho.

— Graç as a Deus, ainda temos o cavalo. Já imaginou ficar­mos perdidos no deserto, com um cantil de á gua para nó s dois?

— ele perguntou.

Lorna enxugou as iá grimas sem prestar atenç ã o no signi­ficado de suas palavras. Pela vastidã o do deserto, soprava o vento frio da noite. O cé u continuava escuro como antes, e, do alto de uma duna, veio o uivo prolongado de um chacal.

Kasim inclinou-se sobre ela com o cantil na mã o. A á gua lavou a areia dos dentes e aliviou o ardor que Lorna sentia na garganta. Em seguida, ele també m tomou um pouco de á gua enquanto a observava de soslaio.

— Acho melhor passarmos a noite aqui e partirmos amanhã cedo para o acampamento.

—Para o acampamento? — ela indagou.

— Exatamente. Vou levá -la de volta para lá. Ela retirou o pano do rosto, e a brisa noturna agitou os cabelos soltos e refrescou seu rosto e os olhos vermelhos.

— Por que me levará de volta? Só dei trabalho... Estraguei sua caç ada na casa de Kaid... Sou apenas uma mulher, facil­mente substituí vel.

— Sim, você é apenas uma mulher, mas nã o estou preparado para deixá -la partir... nem um pouco, meu pedacinho de neve. Ainda nã o tive o prazer de derreter seu gelo. Até lá, vamos ficar juntos... com a graç a de Deus.

—Deus nã o tem nada a ver com isso! Você só faz o que

tem vontade...

— Fala como se fosse minha escrava. Por que nã o me chama

pelo nome, como antes?

—Porque a tempestade passou. Se eu disse seu nome, foi

por medo.

— Diga-o de novo... agora que a brisa esta soprando e que nã o corremos mais o risco de sermos enterrados na areia.

— Kasim...

— Ele soa estranho com sua pronú ncia inglesa.

Sorriu e passou os braç os em volta da cintura de Lorna. Ela estava tensa, procurando controlar o prazer que sentia. Homem impiedoso! Nã o fazia sentido o coraç ã o dela disparar ao menor toque de seus dedos.

— Vamos descansar algumas horas — Kasim informou. — Nã o precisa tirar a capa. Nosso clima no deserto é muito es­tranho... Um calor insuportá vel num minuto e um frio medonho no instante seguinte... exatamente como uma mulher. O há lito quente soprou no rosto de Lorna.

— Nã o... por favor — ela pediu, com receio da reaç ã o que

poderia ter com o beijo.

— Um dia, minha querida, vou ouvir um pedido diferente de você. As mulheres tê m o coraç ã o mole... acabam gostandode seus inimigos.

— Amando inimigos? Como ousa mencionar um sentimentoque nã o tem nenhum significado para você?

—Se eu a amasse, meu anjo, você morreria de medo. Nã o faz idé ia do que é o amor violento entre o homem e a mulher...

—Como pode saber? Nunca amou ningué m!

—Só o deserto, nã o é mesmo?

Soltou-a com uma risada e foi recolher alguns galhos que foram partidos pela tempestade. Instantes depois, chamas crepitavam alegremente. Feito isso, tirou o arreio do cavalo e lhe deu a metade da á gua que levava no cantil. Em seguida, voltou para junto da fogueira e sentou-se. Lorna virou a cabeç a, nervosa, quando ouviu novamente o uivo do chacal, mais pró ximo dessa vez.

— Nã o tenha medo. Os chacais nã o se aproximam do fogo.

—Eles devem estar famintos — disse Lorna, apertando a capa de lã contra o corpo. — O deserto é tã o escuro à noite...

—As nuvens de pó encobriram as estrelas. Deite junto de mim e procure dormir um pouco. Vamos levantar cedo amanhã.

Ela estava muito cansada, com as pá lpebras pesadas e os olhos ardendo. Seria bom dormir algumas horas junto da fo­gueira. Apó s uma rá pida hesitaç ã o, encostou a cabeç a nos joe­lhos dele e deitou-se. Estava com sono e, ao mesmo tempo, consciente da solidã o total que os cercava. As folhas de tama­rindo, sendo queimadas, exalavam um cheiro forte... O calor do corpo de Kasim começ ou a aquecer o dela lentamente.

Em dado momento, ele abaixou a cabeç a e surpreendeu seus olhos sonolentos.

— Nã o parece estranho? Poderí amos ser as ú nicas pessoas vivas no mundo hoje. Como Adã o e Eva no paraí so. O deserto foi chamado o Jardim de Alá... e há algo de Eva na maior parte das mulheres.

—A tentaç ã o... — Lorna acrescentou.

—Hummm... Se você nã o dormir logo, vou achar que está me provocando... que está querendo meus beijos.

Ela prendeu a respiraç ã o e afastou rapidamente a cabeç a, como se quisesse evitar o contato de seus lá bios. Ele deu uma risada.

Kasim estava com as costas apoiadas numa pedra, e sua capa cobria Lorna. Sonolenta, ela avistou os galhos secos que crepitavam no fogo e, logo depois, adormeceu ao lado do homem de quem fugira... para encontrar-se novamente em seus braç os.

 

 

CAPÍ TULO XI

 

Aviolenta tempestade de areia modificara os contornos da paisagem. Parecia que um gi­gante havia removido as dunas para outras partes.

Kasim percorreu com os olhos aquela vastidã o desolada, a fim de localizar a direç ã o que deviam tomar em relaç ã o ao sol nascente, Para o norte estavam as colinas de Yraa e o hotel onde Lorna pretendia chegar no dia anterior. Ela inclinou a cabeç a, e o sol iluminou os cabelos dourados.

—Nossa direç ã o é para o sul — disse Kasim finalmente,

com voz firme.

Qual seria a reaç ã o dele se Loma dissesse que desejava ir para o sul e nunca mais voltar para o norte? Mas ela nã o podia lhe revelar esse segredo.

— Tem certeza? Nã o há perigo de nos perdermos no deserto?

— Nã o me importo de me perder com você — respondeu, com um sorriso. — Seus cabelos estã o roubando a luz do sol... e você está com uma aparê ncia fantá stica depois da tempestade de ontem.

Ela olhou para o rosto moreno, com a barba crescida, e deu um sorriso de superioridade.

— Nã o se aproveite disso! — exclamou Kasim. Deu um passo à frente, mas ela recuou instintivamente, fazendo Kasim cho­car-se contra o cavalo, que sacudiu o corpo e fez tilintar as argolas de prata. Lorna sorriu, com a cabeç a inclinada para trá s, quando Kasim apertou-a nos braç os.

— Eu poderia quebrá -la e jogar os pedaç os na areia — ele murmurou junto a seu ouvido. — Ou poderia amansá -la, como

um potro selvagem.

—Só porque nã o tomei café e estou me sentindo fraca.

Ele sorriu e beijou-a nos olhos, que pareciam duas flores azuis abertas ao sol. A vida agitada que levava no acampamento tinha alguns momentos de descanso na companhia dela e podia fugir das barreiras sociais que sua posiç ã o lhe impunha. Nã o desejava uma escrava submissa. Ele a queria com seus cabelos cor de sol, a pele clara e luminosa que contrastava visivelmente com a dele. Kasim a desejava, e Lorna era dele, com ou sem o amor que podia receber de um homem mais civilizado.

Enquanto os lá bios dele cobriam seu rosto de beijos, Lorna morria de amor, de saudade do passado, de medo do futuro. Ficou arrepiada com os pê los crescidos da barba que espetavam sua pele.

—Vamos — ele falou por fim. — Nã o podemos nos de­morar mais.

Soltou-a e examinou o cavalo preto para ver se estava tudo em ordem. A metade da á gua do cantil fora dada ao valente animal que deveria transportá -los durante muitas horas pelo deserto, sob os raios escaldantes do sol. O cavalo abanou a cabeç a ao contato da mã o de seu dono e empurrou o ombro dele com o focinho, num gesto de amizade.

Lorna observou os dois enquanto passava o lenç o no rosto e lembrou-se do que Kasim dissera antes, que dava mais aten­ç ã o aos cavalos do que à s mulheres que cruzavam seu caminho. Quantas mulheres haviam sido? Ele era tã o forte e bonito que Lorna nem podia calcular o nú mero de moç as á rabes que de­viam ter atravessado seu caminho. Afinal, ele era o filho do poderoso emir de Sidi Kebir. Um prí ncipe de nascenç a.

Com um salto á gil, Kasim montou no cavalo e estendeu-lhe a mã o.

—Ponha o pé no estribo.

Ela obedeceu e foi erguida pelo braç o forte que a colocou a sua frente, junto ao santantô nio.

— Coitado do Califa... vai carregar nó s dois debaixo deste sol.

— Você nã o pesa mais que uma folha de palmeira. E esta nã o é a primeira vez que ele nos leva juntos... lembra-se?

—Como eu poderia me esquecer?

Dessa vez, poré m, Lorna nã o estava assustada, como da primeira vez, e pô de apreciar devidamente a beleza da paisa­gem. O cé u estava amarelado, e, visto de longe, o deserto tinhauma aparê ncia lisa e aveludada. A brisa que soprava era fresca e reconfortante. Ela nunca sentira antes, com tanta intensidade, a beleza impiedosa e desolada do deserto. As colinas de Yraa ficaram para trá s, em forma de pontinhos brilhantes no horizonte azulado, mas Lorna nã o voltou a cabeç a naquela direç ã o.

Por volta do meio-dia, Kasim e Lorna encontraram um bando de beduí nos que estavam acampados no deserto, a sua maneira rú stica e improvisada. Depois de matarem fartamente a sede, os dois foram convidados para entrar um pouco nas tendas abertas, a fim de poderem descansar um pouco, abrigados do sol inclemente daquele horá rio.

Lorna estava faminta e comeu como um beduí no do deserto, segurando a carne assada com um pedaç o de pã o.

Normalmente, ela deveria ter ido para a tenda das mulheres. Kasim, poré m, explicou aos beduí nos que seu companheiro de viagem era um rapaz á rabe que se perdera na tempestade da

noite anterior.

— Ele está faminto e assustado com tudo o que aconteceu. Os á rabes balanç aram a cabeç a e aceitaram a explicaç ã o

em silê ncio. Quando o chá foi servido no fim da refeiç ã o, Kasim murmurou no ouvido de Lorna para nã o retirar o pano que

lhe cobria o rosto.

— Os á rabes nã o tê m cabelos dessa cor — ele acrescentou. O chá fora preparado com hortelã, e Lorna, que estava com

muita sede, bebeu dois copos cheios. Satisfeita com tudo o que comera e bebera na tenda dos beduí nos, reclinou-se por fim numa almofada. Ouviu, sonolenta, a conversa dos homens, que falavam em voz baixa e gutural. Eram criaturas rudes, de gestos e maneiras grosseiras, mas extremamente bondosas. Quando Kasim se despediu deles, os nô mades lhe deram um cantil de á gua e alguns pã es, com fatias de queijo fresco.

O sol se punha no horizonte, como um borrã o vermelho, quando os dois se puseram novamente a caminho, deixando para trá s as tendas pretas e baixas onde foram recebidos com muita hospitalidade.

Lorna seguia com a cabeç a apoiada no ombro de Kasim. O perfil moreno estava contornado pela luz crepuscular da tarde, e ele lhe parecia mais belo e irresistí vel do que nunca. Entretanto, jamais confessaria o que sentia por esse homem, para quem o amor de uma mulher era inferior ao amor que ele sentia pelo deserto, pelos cavalos, pelas tribos que governava, pelo pai idoso que um dia o chamaria de volta a Sidi Kebir.

Anoiteceu, e a temperatura caiu rapidamente. Havia um esplendor má gico na tranquilidade da paisagem noturna, no cé u coberto de estrelas. Algumas riscavam o espaç o negro, como minú sculos cometas prateados.

Kasim parecia absorto em seus pensamentos, e Loma o con­templou em silê ncio. Em dado momento, ele se voltou e per­guntou se ela estava muito cansada.

—Um pouco — ela respondeu. — Estamos perto do acampamento?

— Em menos de uma hora, estaremos lá. — Voltou a cabeç a para o alto. — As estrelas estã o brilhando como pedras pre­ciosas. Gostaria de estender a mã o e apanhar um punhado.

— Eu me contentaria com uma.

— Sei disso. Você desprezou o colar de pé rolas que lhe dei. Preferia ser um rapaz, como eu disse aos beduí nos?

— Ah, se eu fosse um rapaz...

— Nã o teria me atraí do — Kasim falou, com uma risada. — Nem mesmo com seus cabelos cor de ouro...

—Depois da tempestade de ontem, eles estã o precisando de um bom xampu...

—Você parece um gato... Está sempre se limpando!

Ao entrarem no acampamento, meia hora depois, os homens e as mulheres correram ao encontro deles num tumulto de exclamaç õ es e gritos de alegria. Lorna desceu do cavalo e di­rigiu-se para a tenda dupla, onde agora se sentia mais em casa do que em qualquer outro lugar. Retirou rapidamente as botas, passou os dedos pelos cabelos grudentos de areia e bebeu sofregamente a limonada fresca que Zahra lhe ofereceu.

— Que susto nos deu, lella! — Zahra exclamou, segurando a mã o de Lorna. — Por que fugiu?

— Porque sou uma louca, Zahra — Lorna respondeu, tirando a areia da roupa. — Preciso urgentemente tomar um banho.

— Já pus á gua no fogo. Enquanto meu amo estava ausente, chegou uma mensagem de Sidi Kebir... O emir está doente e mandou chamar o filho.

Lorna voltou-se, boquiaberta, para a moç a á rabe, com o rosto repentinamente pá lido.

—O emir está doente?

— Foi o que ouvi dizer. Meu amo pretende viajar para lá. A lella també m vai ao palá cio do emir?

—Nã o, Zahra, penso que nã o. Vou ficar aqui no acampa­mento... ou voltar para Yraa. Vou decidir ainda. O emir está muito mal?

—Creio que sim. Ele é muito velho, embora o filho seja moç o ainda. Os homens do Oriente se casam com mulheres bem jovens, e a mã e do prí ncipe era muitos anos mais moç a que o emir. Morreu quando o filho tinha treze anos, idade em que os meninos se tornam homens.

— Aos treze anos os meninos se tornam adultos? — repetiu Lorna, espantada. — Em meu paí s, ele seria um menino de colé gio, só preocupado em jogar futebol! Por favor, Zahra, traga a á gua quente. Preciso tirar essa areia do corpo... Fomos sur­preendidos por uma tempestade ontem à noite e tive muita sorte de ser encontrada pelo sheik.

—A lella ficou contente?

— Fiquei com muito medo — respondeu Lorna, em voz baixa. No momento em que Zahra saiu da tenda, Lorna caiu no

sofá e afundou a cabeç a na almofada. Estava perplexa com a notí cia, e seu coraç ã o doí a terrivelmente. O emir mandara cha­mar o filho, e Kasim partiria o mais rapidamente possí vel para Sidi Kebir. Ela nã o seria convidada para ir ao palá cio.

Era o destino... Logo agora que desejava tanto sua compa­nhia, Kasim fora chamado para longe!

Depois do banho, Lorna sentou-se na beira da cama, com a toalha envolta no corpo. Estava escovando os cabelos quando Kasim entrou na tenda. Ele també m tomara banho e estava vestido com uma tú nica branca aberta no peito. Os cabelos escuros estavam brilhantes, mas os olhos castanhos estavam sombrios quando a encarou.

— Hassan está trazendo nosso jantar. Está se sentindo me­lhor depois do banho?

O quarto ainda estava perfumado com os ó leos aromá ticos que Zahra despejara na á gua quente, e Lorna apertou, sem jeito, a toalha no corpo, ao perceber o olhar intenso de Kasim,

— Preciso me vestir...

— Ainda temos tempo. — Sentou-se ao lado dela, apanhou a escova de suas mã os e começ ou a escovar os cabelos loiros, muito compridos, macios e leves como os de uma crianç a.

—Se nos despedirmos hoje à noite, vou me lembrar para sempre de seus cabelos cor de ouro...

— Você vai viajar?

Ele soltou a escova e segurou-a pelos ombros.

—Meu pai está muito doente, e vou partir amanhã cedo para Sidi Kebir.

— Amanhã?

— Ele sofreu um ataque do coraç ã o.

— Ah, que horror!

—Precisamos resolver essa situaç ã o hoje à noite.

—Claro.

Ela evitou encontrar seu olhar para nã o revelar o desejo que sentia de permanecer para sempre ali, em sua companhia. O orgulho era um sentimento que pertencia ao passado, sub­merso pelo amor que surgira em seu coraç ã o. Nã o queria se­parar-se de Kasim. Do sentimento terrí vel do medo nascera o sentimento terno do amor.

O rosto dele estava sé rio, pensativo, quando se levantou com um suspiro e ficou junto à cama.

—Vamos discutir esse assunto mais tarde. Vou esperar você se vestir. Nã o demore muito. Hassan vai trazer o jantar dentro de alguns minutos.

Ela concordou com um movimento de cabeç a e começ ou a vestir os trajes orientais que nã o lhe pareciam mais estranhos e esquisitos como antes. Era a ú ltima vez que se vestia assim para agradar ao sheik.

Parou um instante diante da cortina de contas, antes de passar por ela e, por um momento, Lorna pô de admirar à vontade os ombros largos, a cabeç a altiva, a graç a elegante do corpo.

Quando surgiu na sala, ela parecia fria e controlada. No í ntimo, poré m, sentia o medo terrí vel da separaç ã o iminente. A liberdade nã o contava mais. Queria ser sua escrava para sempre.

— O jantar está servido. Deve estar com muita fome, depois desse dia no deserto...

- O cheiro da comida está delicioso — falou, sentando-se

entre as almofadas do sofá. Kasim serviu-lhe uma coxa de frango, temperado com ervas aromá ticas e acompanhado de legumes cozidos na manteiga. — Hassan é um excelente cozi­nheiro e poderia trabalhar nos melhores hoté is da cidade... Você nunca pensou nisso?

— O homem que vive no deserto nã o se habitua com a vida

na cidade.

— E você, gostaria de voltar para lá?

No canto da sala, o braseiro ardia, aquecendo e perfumando sutilmente o ar. A entrada da tenda estava fechada. Os dois estavam sozinhos, a intimidade era completa e, ao mesmo tem­po, ameaç adora.

— Se meu pai morrer, terei de morar na cidade. Nã o poderei mais levar a vida dos beduí nos. No deserto, o homem é apenas homem. Está pró ximo da natureza, à s vezes do perigo, mas nunca está sujeito à s convenç õ es impostas pela sociedade. Eu daria tudo... Kasim interrompeu o que ia dizer, com um gesto fatalista de resignaç ã o. Lorna completou a frase mentalmente. Ele daria tudo para ser um homem livre como Ahmed ou como os nô ­mades que encontraram no deserto.

Terminaram o jantar e continuaram a conversar depois que Hassan serviu o café. Naquela noite, beberam café preparado à maneira á rabe, aromatizado com essê ncias da terra. Lorna apre­ciou o gosto forte, marcante, como a personalidade do homem que andava pela tenda, com passos macios como os de um leopardo. Havia um brilho diferente nos olhos de Kasim. O corpo alto projetava uma sombra comprida no chã o, enquanto acendia um cigarro atrá s do outro, consecutivamente.

Lorna nã o associou o nervosismo dele à iminê ncia da partida. Kasim nã o se prenderia a nada que fosse contra seus deveres. Ele se despediria dela sem a menor hesitaç ã o. No fundo, ela nã o passava de uma distraç ã o... uma mulher bonita reclinada nas almofadas do sofá, vestida de seda, coberta com as jó ias

que ele lhe dera.

Kasim voltou-se bruscamente, com um gesto de impaciê ncia. Observou-a atentamente, com os olhos estreitados. Lorna es­tava sentada no sofá, o colo destacado pela tú nica de seda, os pé s pequenos nos chinelos turcos.

— Em que está pensando? — ele perguntou, com voz cortante. — Parece tã o tranquila! Está contente com minha par­tida? Está impaciente para se ver livre de mim?

Lorna nã o soube o que responder. Estava muito emocionada, muito abatida pela dor, prestes a explodir no choro. Kasim, poré m, nã o devia suspeitar de seus sentimentos, da tristeza que ela iria sentir quando ele partisse, com a capa esvoaç ante sobre a garupa do cavalo, uma figura contornada vivamente no cé u pá lido da madrugada.

— Olhe para mim! — Kasim ordenou.

Lorna nã o ousou levantar os olhos e recuou instintivamente no momento em que ele a segurou pelo queixo, a fim de fitá -la nos olhos. As mã os de Kasim estavam quentes e tinham um cheiro penetrante de tabaco turco.

—Amanhã você estará livre! — exclamou, segurando as pé rolas do colar como se fosse arrancá -lo do pescoç o dela.

O olhar, o gesto, a inflexã o de voz, tudo conspirava para fazê -la sofrer.

—Pensei que fosse me vender para algum á rabe rico — Lorna murmurou.

Os olhos castanhos brilharam intensamente. No instante seguinte, ele estava ao lado dela no sofá. Agarrou-a nos braç os, apertou-a, beijou-a com tanta violê ncia que ela ficou assustada e extasiada.

— Vou levá -la comigo! Seus olhos azuis sã o como os jasmins que crescem no jardim do palá cio, e irá ver essas flores embaixo das janelas de meu quarto.

Lorna encarou-o fixamente e viu o nervo que tremia no canto da boca de Kasim. Ela nã o podia acreditar nas palavras que ouvira. Estava muda de espanto.

— Ouviu o que eu disse? Vou levá -la comigo para o palá cio e vou apresentá -la a meu pai!

—Para o palá cio?

—Meu pai ouviu falar de você. Ele quer conhecer a " bela inglesa" que hospedo em minha tenda...

— Nã o vai me mandar de volta para Yraa?

— Sinto muito, querida, mas nã o posso contrariar a vontade de meu pai. Sobretudo agora, quando está à beira da morte. Você irá comigo amanhã cedo.

—E depois? Como será depois?

— Como posso saber? — Kasim levantou-se do sofá com um movimento brusco e foi até a escrivaninha, no canto da tenda. Abriu uma gaveta e retirou um objeto de dentro. Voltou para o sofá, ergueu a mã o dela e experimentou vá rios ané is em seu dedo, até encontrar um que cabia perfeitamente. Lorna fitou-o, boquiaberta, sem prestar atenç ã o ao anel de safira.

— A estrela solitá ria que você queria.

— Está me cobrindo de jó ias ultimamente... É para me mos­trar a seu pai?

Kasim sorriu, e a tensã o que vibrava no ambiente cessou fi­nalmente naquela noite. Ele a abraç ou e a beijou no colo descoberto.

— Gostou do anel, meu amor?

— É lindo...

— Mas nã o se compara com você — ele murmurou em seu ouvido. — Posso fazê -la arder com meu desejo?

— Para se enjoar de mira?

Ele sorriu com indolê ncia e acariciou a nuca de Lorna, fa­zendo-a arrepiar-se toda.

— Há quanto tempo estamos juntos? As vezes, tenho a im­pressã o de que se passaram apenas alguns dias...

Ela fechou os olhos quando ele a beijou nos lá bios. Em se­guida, Lorna respondera-lhe quantos dias havia que estavam juntos, sorvendo o que para ele deveria ser apenas mais um prazer do momento.

— O ar do deserto fez bem a você. Nã o me lembro de tê -la

visto doente nenhum dia.

— Preocupou-se com isso por acaso?

—Claro que sim. Você é muito jovem ainda, amor. Houve momentos em que fiquei seriamente preocupado com sua saú de.

— Mas esses momentos foram poucos, nã o é verdade?

— Gosto de vê -la bem-disposta, sadia, contente... Uma mu­lher doente só dá trabalho!

— Que egoí sta você é! Um sedutor cruel de moç as inocentes.

—Somente de uma, querida.

—Com as outras você nã o usou de forç a?

— Tampouco com você! Está deitada espontaneamente em

meus braç os.

— E só saio machucada quando me defendo de você... Ele acariciou o braç o onde brilhava o bracelete que lhe dera.

— Sua pele é tã o fina que um sopro a machuca. Uma pele quente num coraç ã o gelado.

— Preferia que eu fosse uma mulher ardente? — perguntou, encarando-o com o coraç ã o desfalecendo de amor.

Kasim deu uma gargalhada. Levantou-a nos braç os e car­regou-a em direç ã o à cama.

— Precisa dormir bem esta noite, meu amor. Vamos partir amanhã bem cedo para Sidi Kebir.

Ela estava feliz de partir com ele, mas, ao mesmo tempo, estava ligeiramente apreensiva com a perspectiva de conhecer sua famí lia. O que o pai e a irmã pensariam da moç a inglesa que estava hospedada na mesma tenda do filho?

Kasim afastou os fios de cabelos loiros que caí am sobre os olhos de Lorna.

—Responda sinceramente, Lorna. Quer ir comigo?

—Tenho outra escolha?

Ela sentiu a carí cia em sua mã o e desejou ardentemente que Kasim respondesse que nã o, que ela nã o tinha outra es­colha senã o acompanhá -lo, que ela era sua e que iria levá -la consigo, por bem ou por mal.

— Se eu disser que sim, vai pedir para ser levada a Yraa. Mas você nã o entende, meu bem, que sua volta repentina vai despertar curiosidade? Que desculpa daria por ter ficado de­saparecida durante semanas no deserto? Dirá que eu a mantive à forç a em minha tenda?

— Nã o me importo com o comentá rio das pessoas — Lorna respondeu, com coragem, mas a perspectiva de separar-se dele, de voltar sozinha para o hotel, era insuportá vel.

—Se me acompanhar ao palá cio de meu pai, ningué m co­mentará nada quando voltar para Yraa. Como convidada do emir, você está acima de qualquer suspeita.

— Mas nã o como sua convidada?

—Claro. Sou jovem ainda, e as pessoas dirã o que foi minha amante.

— Mas nó s dois sabemos a verdade. E você nã o precisa se preocupar com sua reputaç ã o. Nã o vou acusá -lo de seduç ã o de moç as indefesas...

—Poré m, antes você disse que eu era odioso, lembra-se?

— Isso ficou para trá s. Nã o posso esquecer que você salvou minha vida ontem. Seria uma ingrata se agisse de outra forma.

—Quer dizer que você vai salvar minha reputaç ã o indo comigo a Sidi Kebir?

— Para falar a verdade, eu nã o gostaria de ouvir os comen­tá rios das pessoas no hotel — disse Lorna, com os olhos baixos, para nã o revelar sua alegria.

— Seu orgulho nã o suportaria isso, nã o é mesmo? — Kasim inclinou a cabeç a e beijou-a na testa. — Vamos partir de ma­drugada. Descanse bem esta noite e nã o tenha medo de co­nhecer meu pai. Ele nã o é nenhum bicho-papã o e aprecia as mulheres bonitas... como todo á rabe.

Kasim levantou-se, com um suspiro.

— Boa noite, querida. Durma bem.

— Você també m, prí ncipe Kasim.

A cortina de contas tilintou um instante, depois silenciou. O quarto estava vazio, a cama muito grande para uma pessoa só, mas o coraç ã o dela exultava de alegria. As lá grimas umedeciam os olhos azuis que olhavam para o teto da tenda. Kasim era um sheik muito mais carinhoso do que as pessoas suspeitavam.

 

 

CAPITULO XII

 

 

Aresidê ncia branca e quadrada, construí da no alto de Sidi Kebir, nã o demonstrava por fora sua suntuosidade interior. Apó s atravessarem o portã o duplo, em forma cie arco, os viajantes penetraram num grande pá tio cercado de palmeiras, de onde se podiam avistar as duas alas do palá cio.

Desmontaram dos cavalos suados diante da ala esquerda e dirigiram-se para uma grande porta de madeira trabalhada, no alto de uma escadaria. Os homens da comitiva de Kasim tomaram outra direç ã o, uma vez que aquela parte da casa era reservada apenas ao filho do emir.

Ao entrarem no saguã o, Kasim e Lorna foram recebidos com manifestaç õ es de alegria pelos criados, que lhes ofereceram refrescos de frutas. Kasim dirigiu-se a eles em á rabe, e os criados saí ram à s pressas para executar suas ordens. Em se­guida, apó s acender um cigarro, ele voltou sua atenç ã o para Lorna, que estava sentada num sofá, visivelmente assombrada com o que via a sua volta.

O luxo do ambiente era deslumbrante. Havia galerias com arcos e uma espé cie de claustro, no meio do qual estava um chafariz revestido de azulejos azuis, sem falar nos biombos de cedro entalhados com motivos de ramagens e de flores, nas lâ m­padas de ferro trabalhadas à mã o, nos mosaicos de cores vivas e nas paredes cobertas de tapeç arias. Em toda parte, reinava o perfume de sâ ndalo e o silê ncio acolhedor de um convento.

— Parece um conto de As Mil e Uma Noites — murmurou Lorna, lembrando-se de que aquele palacete era a residê ncia do emir, pai de Kasim, e que a presenç a dela ali era uma grande honra que lhe fora prestada.

— Está estranhando o ambiente? — perguntou Kasim, no­tando a expressã o de espanto no rosto dela. — També m me sinto assim toda vez que volto para casa. Tenho saudade do cé u azul sobre a vastidã o do deserto.

Lorna nã o sabia o que dizer. Era uma perfeita estranha ali e nã o se sentia segura nem mesmo na companhia do filho do emir. Kasim parecia distante, alheio, preocupado, enquanto andava de um lado para o outro do saguã o.

—Vou fazer uma visita a meu pai. Kasha vai cuidar de você. Ela foi a camareira pessoal de minha mã e.

Lorna sentiu-se mais aliviada ao ouvir essa informaç ã o. Con­seguiu inclusive dar um sorriso e levantar-se do sofá.

—Espero que seu pai tenha melhorado. Quando acha que poderei fazer-lhe uma visita?

— Nã o posso adiantar nada. — Segurou-a pela mã o e franziu a testa ao perceber seu nervosismo. — Nã o precisa ter medo. Meu pai nã o é nenhuma fera. Como a maior parte dos á rabes, ele se interessa pelas amizades do filho e está curioso para conhecer a pé rola que encontrei no deserto...

— Nã o diga isso! — exclamou Lorna, soltando bruscamente a mã o no momento em que uma mulher apareceu na sala.

Era uma senhora baixa e tinha um pano enrolado na cabeç a que lhe cobria metade do rosto. Cumprimentou Kasim com alegria e voltou-se para Lorna com os olhos fundos, muito es­curos, como se guardassem segredos de outros tempos.

— Kasha vai acompanhá -la a seu quarto e providenciar tudo que for necessá rio — disse Kasim, apagando o cigarro no cin­zeiro em cima da mesa. — Como está meu pai, Kasha?

A mulher abriu os braç os, num gesto expressivo.

—Os mé dicos disseram que ele se recuperou da crise. O

resto é com Alá.

— Ele está conversando normalmente? Nã o ficou muito aba­tido com a doenç a?

— Ele está conversando bem. — Um sorriso surgiu no rosto da empregada ao admirar o homem alto e imponente que ela carregara no colo, — Ele está com muita saudade do filho, que fez do deserto sua residê ncia há muitos meses.

— Eu pretendia vir antes — Kasim falou, olhando de relancepara Lorna. — Contudo, o deserto tem um encanto que nã o consigo esquecer. A gente nunca sabe o que encontrar lá.

Com um sorriso no canto dos lá bios, Kasim deu meia-volta e atravessou o saguã o, saindo pela porta dupla que levava ao in­terior do palá cio. Lorna encontrou os olhos da velha criada que conhecera a mã e de Kasim e procurou conquistar sua simpatia.

— Espero que sejamos amigas, Kasha — disse, com um sorriso. Os olhos negros percorreram-na de alto a baixo em silê ncio,

observando a calç a de montaria e depois o lenç o que lhe cobria os cabelos. Havia curiosidade e simpatia no olhar que dirigiu a Lorna.

— Venha comigo, lella. Vou levá -la a seu quarto, onde poderá tomar um banho e repousar da viagem.

Subiram um lance de escada e atravessaram o corredor que levava ao terraç o, onde ouviram o lamento alto de um muezzin, chamando os fié is para a oraç ã o. Era a primeira vez que Lorna presenciava esse costume antigo entre os muç ulmanos e sentiu uma sensaç ã o estranha que nunca lhe ocorrera no deserto.

Afastou-se com relutâ ncia do terraç o e foi conduzida por Kasha a seu aposento, que estava profusamente decorado com flores e ramagens. Havia uma inscriç ã o em á rabe gravada em dourado no alto da porta, e Lorna parou um instante para examiná -la.

— O que significam essas palavras, Kasha?

— Está escrito aí que o amor é a porta do jardim das romã s — respondeu Kasha, virando-se de frente para ela. — Quem colhe uma romã conhece a doç ura.

Lorna corou e voltou o rosto, ao perceber que Kasha aplicava a ela o significado das palavras.

— A lella quer visitar o haremlik?

— Ah, sim. Gostaria muito.

Eram trê s aposentos, cada um deles separado por um biombo de cedro, entalhado e rendilhado. No aposento principal, havia sofá s em cima de estrados e lâ mpadas de prata penduradas em correntes presas nas vigas do teto. Os tapetes eram coloridos e extremamente macios, e as janelas estreitas estavam prote­gidas com grades de ferro trabalhadas.

Os mó veis do quarto eram incrustados com madrepé rola. Cortinas de renda, muito fina, estavam penduradas em voltada cama e, na penteadeira, havia uma coleç ã o prodigiosa de potes e frascos de perfume.

O banheiro era simplesmente deslumbrante! No meio, tinha uma pequena piscina de ladrilhos verdes, cercada em toda a volta por arcos, embaixo dos quais floriam pé s de acá cia, dentro de grandes vasos de cobre. Os armá rios eram decorados com desenhos coloridos, e, dentro de um deles, Lorna encontrou uma grande variedade de essê ncias e ó leos aromá ticos.

Ela ficou boquiaberta com o luxo dos aposentos. Aquele era o haremlik de Sidi Kasim ben Hussayn. Era natural que pos­suí sse uma coleç ã o tã o variada de perfumes e cosmé ticos, de roupas de seda e chinelos bordados.

Kasha abriu a torneira de á gua quente e espalhou essê ncia de rosa em toda a volta da piscina. Lorna despiu a roupa de montaria e sorriu de alegria ao entrar na á gua morna, enquanto Kasha apanhava toalhas no armá rio, roupas í ntimas e uma tú nica deslumbrante de seda azul, com as mangas amplas bor­dadas de fios de prata.

Lorna adorou o vestido no momento em que o pô s. Com os cabelos dourados e os olhos azuis, estava tã o linda quanto uma moç a me­dieval. A seda era muito macia, e ela nã o cessava de apalpá -la.

—O café está sendo servido no quarto ao lado — Kasha avisou-a, observando-a com uma certa compaixã o no olhar.

Foi esse olhar que levou Lorna a fazer uma pergunta. Uma pergunta que a preocupava desde o momento em que entrara

no palá cio.

— Kasim me contou que você foi a camareira da mã e dele. Como ela era, Kasha? Eu gostaria muito de saber.

—Ah, minha ama era muito bela.

— Sei disse. Vi um retrato — disse Lorna, sentando-se diante da mesinha e servindo-se de café. — Mas era feliz aqui?

Um olhar reservado cobriu a fisionomia aberta de Kasha.

—Ela era a esposa favorita do emir, lella.

— Ele tinha mais de uma esposa? — perguntou, levando a xí cara aos lá bios,

— Naturalmente, filha — Kasha respondeu, abrindo os bra­ç os, como se a resposta fosse evidente. — A lella nã o sabia que meu amo tinha duas esposas? A irmã de Sidi Kasim nã o é filha da primeira esposa. Depois do nascimento do menino, minha ama nã o podia mais ter filhos, por isso o emir casou-se de novo. É o costume entre nó s. Isso nã o significa que o marido se esqueç a da primeira esposa.

Lorna ouviu com atenç ã o a explicaç ã o da criada e compreendeu que estava entre estranhos, num paí s distante, cujos costumes eram exó ticos e diferentes dos seus. Ali os homens podiam ter mais de uma mulher e nã o dedicavam todo seu amor a uma só! Um arrepio repentino percorreu seu corpo. Bebeu o café, comeu um bolinho de amê ndoa e procurou pensar em outra coisa depois que Kasha saiu do quarto.

Alguns instantes depois, no entanto, uma moç a surgiu si­lenciosamente à porta. Parou junto à coluna e observou Lorna com atenç ã o. Tinha olhos castanhos, da cor de amê ndoas, e seu rosto era delicado e moreno. Ao dar um sorriso, Lorna avistou os dentes perfeitos. Ela tinha uma pinta preta na face e usava uma mantilha de seda em volta dos ombros, que caí a maravilhosamente sobre o corpo esguio.

— Ah, já sei! Você é o pequeno falcã o que meu irmã o trouxe no pulso! Ele disse que seus cabelos sã o da cor do mel selvagem.

— E você é Turqeya! — exclamou Lorna, fascinada com a moç a exó tica, cujas sobrancelhas estavam unidas no alto do pequeno nariz, e cujas unhas estavam tingidas de hena.

Era uma criatura encantadora, como uma miniatura a ó leo!

— Sente-se aqui — Lorna pediu, com animaç ã o, apontando para um lugar a seu lado no sofá. — O café ainda está quente, e os bolinhos de amê ndoas estã o deliciosos.

Turqeya aceitou o convite com um sorriso e sentou-se no sofá entre as almofadas.

— Que bom você ter vindo! Estava curiosa para conhecê -la e tinha certeza de que ia gostar muito de você...

Lorna estava visivelmente fascinada com a maneira ingê nua e espontâ nea da moç a. Estendeu-lhe uma xí cara de café e apon­tou para os bolinhos que estavam em um pratinho.

— També m estou muito contente em conhecê -la, Turqeya.

— E verdade que viajou a cavalo pelo deserto? O deserto é tã o grande... Nã o teve medo?

— Um pouquinho, mas adorei o deserto. Alguns dias atrá s, fomos surpreendidos por uma tempestade de areia e quasemorremos soterrados... Mas depois que o perigo passou, foi muito divertido. Seu irmã o salvou minha vida.

— Ah, é verdade? Ele nã o costuma andar no deserto na com­panhia de mulheres... Imagino que você seja um caso especial. Ele sempre teve predileç ã o pela cor do jasmim, e seus olhos sã o exatamente dessa cor... azul-escuros, com um tom de violeta.

—Ele nunca me contou isso — disse Lorna, procurando ocultar seus sentimentos verdadeiros.

—Mas Kasim deve gostar muito de você!

— Bem, quando ele está de bom humor, trata-me muito bem — Lorna falou, abaixando os olhos. — Como este palá cio é enorme, Turqeya! Estou ansiosa para conhecê -lo, especialmente o jardim, que deve ter muitas flores exó ticas e cisternas antigas.

— Está um pouco escuro lá fora para poder ver os jasmins, mas você pode sentir o perfume. Venha comigo! — Turqeya levantou-se com agilidade e estendeu a mã o para Lorna.

Levou-a em direç ã o à porta de vidro que dava para o balcã o, protegido por um grade dourada.

Lorna debruç ou-se no parapeito e aspirou o perfume forte que subia pelas paredes. Uma ave cantou no meio das roseiras. Ao longe, estavam as cú pulas e os minaretes de Sidi Kebir... uma cidade prateada, enfeitada pelo luar.

Subitamente, a beleza da paisagem lhe causou uma certa apreen­sã o. Estava feliz em saber que seus olhos eram da cor do jasmim, a flor preferida de Kasim. Ao mesmo tempo, contudo, como as flores do jardim, ela nã o podia permanecer para sempre ali.

—E seu pai, como está?

—Ah, ele nã o está nada bem — Turqeya respondeu, com um suspiro. — Estou com pena de Kasim. Ele sempre foi um homem do deserto e agora vai perder a liberdade. Se meu pai nã o se recuperar completamente, o que é pouco prová vel, Kasim deve assumir sua posiç ã o e vestir o manto vermelho do poder.

—O manto vermelho?

—É o sí mbolo do poder entre as tribos á rabes — explicou Turqeya. — O povo adora Kasim porque ele é bonito, corajoso e viril. Os á rabes respeitam apenas o emir e, mesmo assim, nã o temem expressar seus sentimentos profundos à s vezes.

—Seu pai é muito severo? — perguntou Lorna, sem poder ocultar sua ansiedade.

— Antes, sim. Quando eu era menina, ele me assustava muitotoda vez que ia visitar minha mã e. Eu corria e me escondia dentro da arca. À s vezes, quando ele estava de bom humor, procurava-me pela casa toda e me dava balas. Ele gostava de mim porque eu era muito meiga, mas ele sempre quis ter um outro filho. Se Kasim tivesse um irmã o, agora estaria livre para levar a vida que lhe agradasse. Mas como nã o tem...

Turqeya voltou para o quarto, e Lorna seguiu-a com um arrepio de frio.

— Está com frio? — perguntou Turqeya, percebendo o tremor do corpo de Lorna.

— Um pouquinho — disse, indo aquecer as mã os no braseiro que estava aceso no canto do aposento.

—Gostou de seu quarto?

Turqeya voltou a se sentar entre as almofadas bordadas do sofá e comeu um bolinho de amê ndoas com mel. Ela parecia uma gata de estimaç ã o, e Lorna nã o se cansava de admirá -la. Era a irmã encantadora do sheik energé tico e autoritá rio, e combinava perfeitamente com o ambiente de luxo e requinte a sua volta.

— Nunca vi um quarto mais lindo em minha vida — falou Lorna por fim, sentando-se a seu lado. — A mã e de Kasim morava aqui?

Ela nã o sabia por que, mas o ambiente lhe parecia um pouco triste, a despeito do esplendor dos objetos. Ocorreu-lhe novamente que Elena, a mã e de Kasim, nã o fora completamente feliz naquele palá cio. Como mulher europé ia, nascida na Espanha, nã o podia habituar-se com a vida enclausurada de uma esposa á rabe. O emir, por sua vez, segundo a descriç ã o de Turqeya, devia ter sido um homem terrivelmente severo quando moç o.

—Sim, ela morava neste palá cio — respondeu Turqeya, limpando o mel dos lá bios no guardanapo. — Minha mã e, no entanto, era turca. Ao que parece, os homens de nossa famí lia gostam das mulheres de fora...

Lorna percebeu o olhar malicioso da moç a e tentou corrigir a impressã o que sua presenç a causava no palá cio.

— Nã o se esqueç a de que sou apenas a convidada de seu irmã o. Turqeya olhou-a, com perplexidade.

—Como? Entã o sã o apenas amigos? Pensei que fossem namorados!

—O deserto é o ú nico amor de seu irmã o.

—Mas você gosta dele, nã o é?

— Bem, confesso que o charme dele me encantou — Lorna falou, meio sem jeito. — Em princí pio, ele me pareceu um tirano, mas, com o passar do tempo, notei que podia ser també m extremamente carinhoso. Há uns dias, tentei fugir dele...

—A mulher foge do homem que ama — Turqeya disse, abaixando os cí lios compridos. — Outras vezes, é o homem quem se afasta do que nã o pode ter.

Enquanto Lorna meditava sobre essas palavras, Turqeya escondeu o rosto pequeno atrá s do vé u, como se tivesse um segredo que nã o podia revelar. Lorna lembrou-se, entã o, do que Zahra dissera a respeito de Kasim: que estava decidido a escolher um marido para a irmã entre os pretendentes que se apresentavam ao palá cio do emir.

De repente, com um movimento gracioso, Turqeya levan­tou-se do sofá e foi abraç ar o irmã o, que entrara no aposento.

Kasim beijou sua irmã no rosto, com uma alegria visí vel.

— Está cada dia mais bonita, minha irmã!

— E você está cada dia mais bronzeado e forte... tã o forte que tenho medo de seu abraç o!

—Parece que foi ontem que você brincava de se esconder atrá s das palmeiras — disse Kasim, balanç ando a cabeç a. — Agora está com sombra nos olhos, as unhas tingidas de hena. Com uma pele tã o linda como a sua, é uma judiaç ã o passar esses produtos de beleza...

— Na cidade a gente precisa se maquilar, para ser chique!

—O quê? Você nã o precisa cobrir-se de pinturas para ser atraente — Kasim falou, molhando a ponta do dedo e apagando a pinta preta que Turqeya desenhara na face.

—Seu antipá tico! — exclamou a irmã, dando um tapinha na mã o dele. — Se eu fosse Lorna, fugiria de você!

— Ela já fugiu uma vez! — disse Kasim, olhando de relance para Lorna.

Ao avistar o vestido azul que estava usando, ele sorriu de satisfaç ã o. O tecido fino combinava com a cor dos olhos e acen­tuava a pele, que agora estava mais morena.

—Como está seu pai? — perguntou Lorna.

—Está se recuperando lentamente... Conversamos algum tempo sobre assuntos que o preocupavam.

—Ah, ele queria muito que voltasse, irmã o! — exclamou Turqeya, pousando a mã o de leve sobre o ombro largo de Kasim.

— Você prometeu a ele que nã o vai mais embora?

Kasim encarou a irmã, com uma expressã o sombria. A sau­dade que sentia do deserto era mais forte que tudo, pensou Lorna, surpreendendo seu olhar. O deserto era a paixã o de sua vida... ela era apenas um interlú dio.

Turqeya conversou com os dois mais algum tempo e depois retirou-se para seu quarto. Eles jantaram sozinhos no aposento de Lorna, e, como era costume no deserto, Hassan serviu a mesa, O criado fazia parte da comitiva que acompanhara o prí ncipe a Sidi Kebir.

— Gostou do palá cio?

— É maravilhoso como um conto á rabe! Eu conservaria com muito carinho todas essas coisas antigas se o palá cio fosse minha casa.

Kasim ouviu o comentá rio em silê ncio, e Lorna respirou, aliviada, quando a refeiç ã o terminou. A presenç a de Kasim aumentava sua ansiedade, corno se tivesse medo de perdê -lo de um instante para o outro.

—Vamos ao terraç o ver a cidade — Kasim disse, depois que tomaram café. Segurou-a um momento nos braç os e mer­gulhou os olhos nos dela, como se quisesse ler seus pensamen­tos. — Vou apanhar uma agasalho para você. A noite está fria, e pode pegar um resfriado.

Lorna aguardou sua volta, com certa apreensã o. No deserto, ela conhecera o cé u e o inferno na companhia dele, mas nada se comparava à tortura de estar com Kasirn na casa onde ele nascera e fora criado. Olhou em volta de si, como se a presenç a da mã e dele pairasse sobre o ambiente e quisesse adverti-la do perigo que corria...

Kasim voltou logo depois com uma capa de lã, forrada de seda, que passou em volta dos ombros dela.

Saí ram do aposento por uma porta alta de madeira rendilhada e seguiram o corredor em direç ã o à escada estreita que levava ao terraç o, de onde se tinha uma vista suntuosa da cidade.

A luz prateada da lua cheia parecia intensificar a tranquilidade da noite. Ao longe, havia casas com jardins cercados de muros, ruas estreitas e sinuosas que iam terminar no centro da cidade. Podiam sentir a vibraç ã o das vozes, os perfumes penetrantes que subiam pelo ar, ouvir os lamentos insistentes da mú sica á rabe, que acrescentavam um encanto exó tico à paisagem.

— Lembra uma tapeç aria preta e prateada — murmurou Lorna. Os odores da noite, o sussurro da mú sica e o ar de misté rio

criavam uma atmosfera fascinante. Mais do que nunca, ela sentiu o encanto irresistí vel do homem a seu lado, muito alto e cheio de vitalidade no cafetã branco, vestido por cima da calç a de linho. O coraç ã o dela bateu mais depressa. O contato de suas mã os a deixava arrepiada e lâ nguida.

—O luar está preso em seus cabelos — sussurrou Kasim. — Você faz parte da tapeç aria prateada.

Quando seu há lito soprou-lhe os cabelos, ela desejou correr para longe dali, no pâ nico do amor. Ao mesmo tempo, daria tudo para deitar a cabeç a em seu ombro e pedir-lhe amor de volta.

Se gostasse dela, como a noite seria maravilhosa, como o

futuro seria excitante!

— Amanhã, vou apresentá -la a meu pai. Ele expressou odesejo de conhecê -la.

Ela sentiu uma contraç ã o no estô mago. O que aconteceria se o emir fizesse objeç ã o a sua presenç a no palá cio? Se dissesse ao filho para mandá -la embora? Kasim dera a entender que o pai desfrutava de uma autoridade absoluta, e Turqeya falou dele mais com admiraç ã o do que com afeiç ã o de filha.

Lorna contemplou a cidade banhada pelo luar e lembrou-se de seu pai. Ah, ele teria adorado pintar uma paisagem como aquela! As cú pulas e os minaretes agradariam certamente a sua sensibilidade artí stica. Sidi Kebir era a cidade com que ele sonhara! Quando se voltou, notou que o rosto de Kasim estava sombrio ao luar. Era evidente que estava preocupado e que també m nã o desejava revelar o motivo.

— Talvez fosse melhor se eu tivesse ido para Yraa. Nã o quero complicar sua vida, Kasim. Especialmente com seu pai doente.

— Nã o, nã o seria melhor — Kasim respondeu, passando o braç o em volta de sua cintura e estreitando-a contra a amurada do terraç o. — Eu nã o poderia deixá -la, sem primeiro fazer a devida reparaç ã o pú blica.

— Reparaç ã o pú blica? — repetiu Lorna, espantada, sem saber se era o coraç ã o dele que batia com tanta forç a no peito.

Nem mesmo o luar podia passar pelo meio dos dois quando Kasim estreitou-a nos braç os e o vento da noite soprou os cabelos loiros, como uma né voa transparente.

— Amanhã, você saberá — disse Kasim, fitando-a nos olhos.

 

CAPÍ TULO XIII

 

Lorna desceu em silê ncio as escadas que levavam ao jardim do palá cio. Era cedo ainda, e tinha necessidade de ficar sozinha durante alguns minutos, antes dos compromissos í nquietantes do dia.

Atravessou a porta em forma cie arco e saiu para o corredor que dava para o pá tio, onde as roseiras estavam cobertas de orvalho. Respirou fundo o ar fresco e perfumado da manhã e caminhou por entre as á rvores cobertas de flores vermelhas.

Passou por baixo de tú neis de jasmins-azuis e por um bosque de palmeiras. Avistou um beija-flor, cujas penas eram uma mistura surpreendente de azul e de verde. Quando chegou ao pá tio cercado por um muro baixo, parou alguns momentos para admirar a fonte antiga onde a á gua caí a de um plano para outro, criando um efeito de cascata. Sentou-se no banco de azulejos e estava tã o imó vel, tã o absorta em seus pensamentos, que os passarinhos se aproximavam para beber á gua e tomar seu banho matinal.

Sentia-se tranquila, embora suspirasse com apreensã o toda vez que pensava no dia que tinha pela frente e no encontro que Kasim marcara com o temí vel emir.

Seu olhar voltou-se para as moitas de espirradeira, cujas folhas brilhantes guardavam uma substâ ncia venenosa. O sol e as sombras traç avam arabescos no chã o... Mesmo ali, o amar­go misturava-se com o doce perfume das pé talas.

Deu um suspiro profundo. Ah, se pudesse bater asas e voar para longe, como um passarinho, sem deixar nenhum vestí gio, unicamente a lembranç a evanescente de sua passagem! Ela nã o fazia idé ia do queKasim quisera dizer na noiteanterior, quando mencionara fazer uma reparaç ã o pú blica. De­pois que saí ram do terraç o, ele fora despedir-se do pai e nã o voltara mais ao aposento dela.

Uma borboleta amarela voou sobre as pé talas de uma flor perto dali. A cor de suas asas lembrava o brilho amarelado que surgia à s vezes nos olhos castanhos de Kasim. Seu coraç ã o es­tremeceu, como as asas da borboleta. Nã o podia entender como era possí vel amar um homem que a tratava com tanta indiferenç a.

Ela nunca confessaria a ele seus sentimentos verdadeiros. Se estivesse pró ximo o momento da despedida... Apertou dis-traidamente uma rosa que havia colhido e sentiu uma dor real quando o espinho penetrou em seu dedo. Ah, se ao menos a despedida fosse uma dor tã o breve quanto essa!

Momentos depois, Lorna levantou-se do banco e voltou pelas ramadas de jasmins, muito azuis à luz da manhã, e avistou alguns vultos abaixados, trabalhando entre as á rvores do bos­que. O clima estava agradá vel, e as rosas começ avam a abrir as pé talas ao sol. Algumas calam silenciosamente ao chã o... Uma rosa morria como uma lembranç a, em silê ncio, sem uma dor visí vel. O coraç ã o guardava sua dor, como a moita de es­pinhos conservava sua ú ltima rosa.

Ao atravessar o corredor que levava ao interior do palá cio, um gato persa surgiu de uma sombra e aproximou-se lentamente de Lorna, até levantar o rabo e roç ar-se indolentemente contra suas pernas. Ela se ajoelhou no piso de ladrilhos para brincar com o gatinho, encantada com os olhos verdes e com a maneira carinhosa do animal. Sorriu de alegria quando o gatinho rolou no chã o e encostou o focinho ú mido em seus dedos.

Estava distraí da, brincando com o gatinho, quando ouviu passos firmes no piso de ladrilhos. Levantou a cabeç a e avistou Kasim, parado a distâ ncia, observando-a em silê ncio. Estava com um albornoz bordado de fios de ouro e botas de couro de cano alto. Os olhos, sombrios, tinham uma expressã o que ela desconhecia... uma expressã o de dor.

— O que aconteceu? — perguntou, aflita, levantando-se do chã o. — Seu pai nã o passou bem a noite?

—Passou... Ele melhorou um pouco. — Kasim deu dois passos à frente e segurou-lhe as mã os. — Você parece uma crianç a, brincando com esse gato...

Ela nã o se sentia, poré m, uma crianç a... Nenhuma mulher ficaria à vontade diante de Kasim. Ele era muito viril, muito alto e imponente. Um autê ntico homem do deserto. Ela o amava agora pelos mesmos motivos que a atemorizavam no iní cio.

— Vamos fazer uma visita a meu pai dentro de uma hora. — Apertou as mã os dela para lhe dar coragem. — Diga a Kasha para escolher um vestido bem bonito para você.

—Estou tã o nervosa com esse encontro! O que seu pai vai pensar?

—Nã o se esqueç a de que os á rabes apreciam a beleza — disse Kasim, com um sorriso carinhoso. — Ele vai achá -la muito bonita, só isso. — Beijou-a de leve na ponta dos dedos, à maneira francesa. — Vá se vestir sem susto, querida.

Lorna acompanhou-o com os olhos e viu Kasim se afastar para outra parte do palá cio. As dobras do albornoz pareciam esculpidas em torno do corpo alto. Havia um ar de gravidade na postura dele que a deixou perplexa... O encontro com o pai era certamente o prelú dio da separaç ã o.

Ao entrar em seu quarto, ela encontrou Kasha, esperando para vesti-la. Mas resolveu tomar um banho de imersã o antes. Queria estar mais animada para o encontro com o emir.

Instantes depois, Kasha escovou seus cabelos demoradamente e escolheu no guarda-roupa um vestido comprido de seda e uma tú nica transparente com as mangas bordadas na altura do coto­velo. Em seguida, colocou uma touca enfeitada com jó ias em sua cabeç a e prendeu o vé u, com um alfinete dourado, no ombro do vestido. Por fim, Lorna calç ou os sapatinhos forrados de veludo e, quando se mirou no espelho, deu uma exclamaç ã o de surpresa.

— Agora a lella é a pé rola de Sidi Kasim — Kasha falou, ajeitando o vé u no rosto. — Ele herdou o amor pela beleza da mã e e o gosto da autoridade do pai. Era natural que escolhesse uma moç a bonita... e desembaraç ada como a lella.

— Vou ser apresentada ao pai dele, Kasha. E estou muito nervosa por causa desse encontro.

A velha criada fitou os olhos de Lorna refletidos no espelho e, com um sorriso, tocou um fio de cabelo loiro.

— O emir nã o é mais o homem temí vel de antes. Nã o precisa ter medo, filha.

Lorna, mesmo assim, continuava ansiosa. Tinha certeza de que o emir nã o aprovaria sua permanê ncia no palá cio.

Kasim foi encontrá -la no quarto poucos minutos depois. Lor­na vestiu a mesma capa comprida que usara na noite anterior para sair no terraç o. Os dois atravessaram os corredores em forma de arco e chegaram finalmente a uma porta pegada, sobre a qual estava esculpida uma lua crescente.

Entraram numa ante-sala espaç osa, onde os sultõ es de an­tigamente costumavam reclinar-se no sofá para tomar sherbet e ouvir mú sica na companhia de sua esposa favorita.

Lorna voltou-se para Kasim com a fisionomia apreensiva. Ele estava muito imponente com o albornoz preto e dourado, o turbante preso por uma cordinha dourada que era o sí mbolo de sua posiç ã o. Os trajes combinavam bem com a postura solene e o perfil autoritá rio, e Lorna sentiu-se, pela primeira vez, uma estranha a seu lado.

— Diga a verdade! — exclamou, sem poder se conter por mais tempo. — Sei que vou ser convidada a sair do palá cio!

Os olhos castanhos observaram-na em silê ncio, e as narinas finas se estreitaram momentaneamente, como se ele se revoltasse contra a idé ia de perdê -la, como se sua companhia lhe fosse tã o indispensá vel ali quanto fora no deserto. Ele abriu os lá bios para responder, mas, nesse momento, um criado apareceu na porta e convidou os dois para o acompanharem ao aposento do emir.

No instante seguinte, estavam na presenç a do emir Hussayn ben Mansour beni Saadi, chefe supremo da grande tribo á rabe, cujas origens remontavam aos tempos das cruzadas.

O emir tinha olhos grandes e brilhantes, bem como os traç os ené rgicos de um governante. Parecia um paxá, velho e orgu­lhoso, com a cabeç a reclinada na cabeceira da imensa cama de dossel, cujas colunas chegavam até o teto.

Examinou demoradamente a moç a loira, que parecia assus­tada e muito linda nas roupagens orientais. Observou detida­mente o vé u que ela segurava com a ponta dos dedos. Voltou-se, em seguida, para o filho, que se mantinha em silê ncio, com a cabeç a erguida, ao pé da grande cama. Havia outras pessoas no quarto, oficiais e parentes, em mantos compridos de linho, que guardavam uma atitude respeitosa.

— Entã o, meu filho, essa é a bela moç a que você desejatomar por esposa... — disse o emir pausadamente, e todas as pessoas no quarto respiraram aliviadas.

Lorna teve a impressã o de ouvir uma trovoada, depois um silê ncio mortal. Voltou-se, alarmada, para Kasim. Nã o podia ser verdade! Ela devia estar delirando! Aquilo era um sonho fantá stico e impossí vel!

Entã o, avistou o sorriso irô nico na curva de seus lá bios quan­do Kasim surpreendeu seu ar de espanto.

— Meu pai deseja que eu me case, e escolhi você para ser minha esposa.

Lorna estava muda, consciente de que todas as pessoas pre­sentes olhavam fixamente para ela, aguardando sua resposta. Kasim falara na noite anterior em fazer uma reparaç ã o pú blica e era isso! Uma reparaç ã o digna de um prí ncipe!

O ventilador no teto girava hipnoticamente, e, somente entã o, ela entendeu por que estava vestida de seda com um vé u sobre o rosto... O casamento seria celebrado ali, os votos de fidelidade seriam pronunciados diante da cama imperial do emir!

Ela queria protestar, gritar nã o, nã o dessa forma, sem amor, sem ternura ou esperanç a de felicidade duradoura! Nã o podia haver alegria nem felicidade sem amor. Era o coraç ã o dele que ela desejava, nã o uma retrataç ã o!

Entretanto, enquanto os gritos de protesto morriam na gar­ganta, ela se lembrou dos momentos inesquecí veis que vivera com ele, dos passeios no deserto de madrugada... dos perigos que enfrentaram juntos sob a tempestade de areia... do dia em que ela passou por um rapazinho na tenda dos nó mades...

O poder e o misté rio de sua personalidade seduziam-na mais do que nunca. Se era isso que ele desejava, nã o poderia furtar-se a sua vontade.

Abaixou a cabeç a para anunciar publicamente que o aceitava como esposo. Ouviu confusamente, como num sonho, as pala­vras ditas em voz alta pelo oficial do palá cio e, em seguida, tocou com a palma da mã o as escrituras do Alcorã o. Seus olhos ficaram deslumbrados com a cimitarra incrustada de jó ias que estava pousada sobre sua cabeç a, sí mbolo da autoridade do marido á rabe sobre a esposa.

Apó s a breve cerimó nia, o emir fez sinal com a cabeç a para ela se aproximar do leito. A cama de dossel estava colocadaem cima de um estrado, e os dois estavam praticamente no mesmo ní vel quando o emir estendeu o braç o e colocou no alto da cabeç a dela um laç o brilhante de fita.

— Você pertence agora ao beniSaadi, minha filha. É uma decisã o sé ria — acrescentou o emir, com um sorriso, embora o rosto parecesse uma má scara de bronze marcada pelos anos. Pegou suas mã os, e Lorna percebeu toda a fragilidade do velho governante. Fora por respeito ao pai que Kasim casara-se com ela! — Este casamento tem minha bê nç ã o — concluiu o emir, com voz cansada. — E faç o votos que seja muitas vezes aben­ç oado para o beniSaadi.

Lorna inclinou a cabeç a, em sinal de aquiescê ncia, e foi conduzida até a sala ao lado, onde a vestiram com uma capa suntuosa. Em seguida, foi conduzida numa liteira aberta até os aposentos do prí ncipe.

A notí cia do casamento foi anunciada em toda a cidade do alto dos minaretes. Lorna, deixada sozinha no quarto, ouviu as exclamaç õ es de Allah Akbar e, logo depois, as explosõ es dos fogos e o regozijo do povo que se reunia nas ruas vizinhas para celebrar o casamento.

Ainda estava vivendo um sonho e só despertou completa-mente quando Turqeya apareceu no quarto e disse que um grupo de mulheres viera desejar felicidades à noiva. Lorna ouviu as vozes e as gargalhadas que vinham da sala pegada, mas nã o tinha coragem de aparecer no meio das convidadas com o rosto sorridente da noiva feliz.

— O que foi, minha irmã? — perguntou Turqeya, espantada, ao notar o olhar de desespero no rosto de Loma. — Pensei que amasse meu irmã o! Nã o era esse seu grande desejo, ca­sar-se com ele?

—Seria, se ele gostasse de mim! Você é mulher, Turqeya, e deve saber como me sinto...

— Sim, eu sei — Turqeya respondeu, olhando para as safiras que brilhavam no colo de Lorna. — També m tenho medo de ser obrigada a me casar contra a vontade. Como posso desposar algué m que nã o gosto, sobretudo quando amo desde menina um outro homem? Ele nã o é prí ncipe, nã o é rico nem possui uma posiç ã o invejá vel, mas eu o amo de todo coraç ã o!

Turqeya sentou-se ao lado de Lorna e segurou as mã os dela.

— Ah, Lorna, eu gostaria muito que você intercedesse por mim! Que dissesse a Kasim que amo Omair e que nã o quero me casar com nenhum outro homem...

— Omair ben Zaide? — indagou Lorna, compadecida, vendo as lá grimas que rolavam dos olhos meigos de Turqeya.

— Você conversou com ele? Gostou dele?

— Gostei muito — disse Lorna, enxugando uma lá grima da face da moç a á rabe. — Ele é um homem muito simpá tico, Turqeya. Por que Kasim nã o concorda com o casamento?

—Kasim nã o disse nada, mas Omair tem receio de pedir minha mã o, porque ele ganha apenas o ordenado de mé dico e sou a filha ú nica do emir de Sidi Kebir.

— Mas Kasim casou-se comigo, e ele é o filho ú nico do emir!

— Ah, isso é diferente — murmurou Turqeya, com os olhos baixos. — Os filhos do casamento serã o de Kasim, e ele é o prí ncipe de beniSaadi. Mas se eu me casar com Omair, nossos filhos nã o terã o tí tulos nem privilé gios reais.

— Mas terã o amor — Lorna falou, com vivacidade. — Tur­qeya, acho que você s dois fazem mau juí zo de Kasim. Tenho certeza de que ele vai aceitar o casamento. Ele nã o vai obrigá -la a casar-se contra sua vontade.

— Mas ele nã o fez o mesmo com você? Nã o acabou de dizer que nã o possui o coraç ã o dele?

—Sim, é verdade, mas o mesmo nã o vai acontecer com você. Vou falar com Kasim e prometo que tudo será resolvido a seu gosto.

. Turqeya nã o conteve sua alegria e passou os braç os em volta do pescoç o de sua nova amiga.

— Eu sabia que você tinha um coraç ã o generoso! Eu sabia que poderia contar com você!

Lorna beijou o rosto macio, impregnado com o perfume forte de almí scar, e lembrou-se de que se casara com um prí ncipe á rabe e de que deveria seguir os costumes do paí s dele.

— Bem, vamos receber as convidadas — disse por fim, com um sorriso sem graç a.

As mulheres ficaram encantadas com a noiva. Alisaram os cabelos cor de ouro, fizeram-lhe carinhos no rosto e disseram que ela se parecia com uma flor.

Enquanto os mú sicos tocavam tambores e cí taras, as convidadas conversavam animadamente, bebendo café e comendo os salgadinhos que acompanhavam os casamentos, no Oriente. As mulheres estavam vestidas com mantos bordados e tinham os braç os cobertos de jó ias. As unhas das mã os e dos pé s estavam negras, tingidas de hena, e todas usavam perfumes fortes.

Lorna sentou-se no meio delas e foi alvo de todas as con­versas, embora nã o pudesse acompanhar perfeitamente o que as mulheres diziam. Mais tarde, o copeiro serviu uma grande travessa de cuscuz, carne de carneiro, frango e frutas secas. Na condiç ã o de noiva, Lorna nã o podia servir-se a si mesma, para nã o se fatigar no dia do casamento, e as mulheres lhe deram de comer na boca como se fosse um filhote de passarinho. Em outras circunstâ ncias, ela teria achado a festa divertida, mas seus pensamentos estavam voltados constantemente para Kasim, que conversava com os homens numa outra sala do palá cio.

Ao meio-dia, Lorna foi levada para um quarto em meio a uma procissã o. As mulheres seguravam velas acesas nas mã os e entoavam câ nticos festivos. Encantos e feitiç os eram lanç ados pela oficiante para afugentar mau-olhado, enquanto vasilhas com tâ maras e leite foram colocadas ao lado do leito nupcial. Kasha ajudou Lorna a se despir, porque a noiva nã o devia ter nenhuma roupa no corpo para receber o noivo.

—A lella está nervosa? — perguntou Kasha, dobrando o vestido. — O dia do casamento é muito cansativo para a noiva e me lembro de que minha ama Elena chorou de nervosismo quando a despi no quarto.

Lorna estremeceu ao ouvir isso. Voltou a cabeç a e avistou o robe de rendas que estava em cima da cama.

—Ela nã o foi feliz no casamento?

Kasha levou algum tempo para responder, como se refletisse

sobre o assunto.

— Ela se adaptou à vida aqui... e havia certas compensaç õ es,

— Você se refere ao nascimento do filho?

— Pois é, o nascimento de Sidi Kasim.

—Ele deve ter sido um menino muito bonito — disse Lorna, segurando o robe transparente. — Ele foi muito mi­mado pela mã e?

—Ela adorava o filho, naturalmente, e o pai tinha muito

orgulho do menino.

— Kasim foi o ú nico filho do casal?

—Sim, lella, o filho ú nico do emir.

Depois que a criada saiu do quarto, Lorna começ ou a andar nervosamente de um lado para o outro, aguardando o momento em que os convidados se despedissem.

Envolta no robe transparente, recostou-se na cabeceira da cama que ficava na outra extremidade do quarto, longe da porta. Sentia-se tã o cativa ali como na primeira noite em que dormira na tenda, no deserto. Se ao menos Kasim se aproxi­masse dela com amor no coraç ã o!

Alguns minutos depois, ouviu passos no corredor e avistou o vulto alto que se aproximava. Kasim usava um manto de seda, cujas mangas eram bordadas com fios de ouro. Os pé s estavam protegidos com chinelos amarelos, com os bicos le­vantados, e parecia tã o esplê ndido naqueles trajes quanto um prí ncipe á rabe de As Mile Uma Noites.

Lorna observou-o em silê ncio, com os olhos entreabertos sob os cí lios compridos. O amor e o medo ardiam em seu peito, como uma chama. Kasim era agora seu marido e exercia um poder absoluto sobre ela.

Os olhos castanhos a fitaram longamente, e foi entã o que os acontecimentos enervantes do dia precipitaram a crise de nervos. Ela estava no limite de sua resistê ncia. Teria desmaiado e rolado no chã o se Kasim nã o desse um passo rá pido e a segurasse nos braç os. Levantou-a com cuidado e deitou-a na cama. Debruç ou-se sobre ela e acariciou o rosto pá lido.

—Pobrezinha... o dia foi muito exaustivo para você... Ela estava deitada sob os ombros largos, vencida pelo amor,

cativa pelo casamento que fora realizado para tranquilizar um homem moribundo.

— Era essa entã o a reparaç ã o... Um casamento sem amor, para satisfazer seu pai?

— Em parte, sim — confessou Kasim, em voz baixa. — Se tivé ssemos discutido o assunto ontem à noite, você provavel­mente nã o teria concordado com minhas sugestõ es. Alé m disso, eu devia a você uma reparaç ã o pú blica. Agora, pelo menos, é a esposa respeitada do filho do emir.

Ela o fitou em silê ncio, observando todos os detalhes do rosto moreno sob a luz amarela da lâ mpada. Um rosto amado, a intimidade dos corpos na distâ ncia do coraç ã o, que somente o amor mú tuo poderia transpor.

— Ouvi dizer que os á rabes podem repudiar a mulher apenas com uma palavra...

—Quer que eu diga essa palavra? Deseja voltar para seu mundo?

— Meu mundo? — repetiu Lorna, com um sorriso triste. — Você me deu o deserto e me mostrou o caminho das estrelas. Você me deu a madrugada e agora me manda de volta para a noite?

— Gostou tanto assim do deserto? — perguntou Kasim, abra-ç ando-a com ternura. — Que fim levou a moç a rebelde que conheci? Há alguns dias, você fugiu de mim... das madrugadas e das estrelas cadentes. Se nã o fosse aquela tempestade, teria voltado para Yraa. Agora me diz que deseja ficar comigo... É realmente isso o que quer?

Lorna abaixou os olhos, com o rosto triste.

— Você me surpreendeu num momento de fraqueza.

— Por que nã o pergunta se eu desejo conservar o casamento?

—Eu gostaria que quisesse isso espontaneamente — res­pondeu, com coragem, esquecendo-se dos ú ltimos vestí gios de orgulho, que nã o significavam mais nada para ela. — Sou sua, para ser guardada ou para ser mandada embora.

— Minha? — indagou, apertando-a nos braç os. — Meu amor adorado. Meu anjo! Tã o meigo, tã o delicado, tã o cheio de bon­dade que tenho vergonha de mim mesmo. Meu amor, meus olhos, minha vida. Eu sabia desde o iní cio que nã o poderia perdê -la. Deveria levá -la para conhecer o deserto e seduzi-la com os passeios de madrugada, com os poentes deslumbrantes e a luz prateada do luar. Você fazia parte de tudo isso... Eu queria que me amasse e perdoasse minha arrogâ ncia. Gosta de mim? Você me perdoa por tê -la levado à forç a para o deserto? Você era o sonho que eu nã o queria perder... Entende agora?

—Ah, Kasim! — exclamou, passando os braç os em volta do pescoç o moreno. Nunca antes ele abaixara a cabeç a diante de ningué m, mas agora inclinava-a para ela. — Eu compreendi que o amava durante a tempestade no deserto. Você disse que podí amos morrer juntos, sepultados para sempre sob a areia. E eu queria morrer ali, se nã o pudesse viver com você...

Kasim beijou-a na boca e interrompeu as palavras de ternura que ela dizia, com um beijo tã o doce que ela se sentiu desfalecer.

—Nosso casamento será verdadeiro, Lorna. Sincero e ho­nesto, sem segredos mú tuos.

— Você tem algum segredo? — perguntou, com um risinho, porque lhe parecia que, na doç ura do momento, nada mais importava, a nã o ser amá -lo. Sentia-se frá gil nos braç os dele e nã o mais como a moç a fria e distante que zombara do amor no jardim de Ras Jusuf. Um autê ntico homem do deserto der­retera sua frieza...

—Sim, tenho um segredo para revelar.

Que segredo poderia ser?, pensou Lorna, com o coraç ã o apreen­sivo, enquanto Kasim apanhava um cigarro na caixa de madeira entalhada que havia ao lado da cama. Será que amara algué m anteriormente, antes que o destino os aproximasse um do outro? Desejava ser compreensiva, tolerante, mas preferia ardentemente que ele nunca tivesse amado outra mulher na vida.

Kasim fumou em silê ncio durante alguns segundos, como se quisesse pô r em ordem seus pensamentos. Em cima de uma me­sinha, havia um vaso de estanho com um buquê de jasmins-azuis. O perfume das flores misturava-se com o cheiro do cigarro turco, e, sem querer, no momento em que voltou a cabeç a para o lado, Lorna avistou o retrato de um menino que estava sobre a pen­teadeira, numa moldura de prata. Os cabelos eram pretos, e os olhos pareciam cheios de animaç ã o. Alguma coisa no retrato lem­brava os garotos que vira brincando nas ruas de Paris.

Kasim percebeu seu olhar interrogativo e deu um sorriso.

— Eu tinha dez anos quando minha mã e tirou essa fotografia.

—Gostaria de tê -lo conhecido quando menino.

—Foi melhor você me conhecer depois de grande, querida.

— O sorriso tinha algo da ironia dos dias passados no deserto.

—O que maman diria se soubesse que me casei com uma mulher adorá vel e rebelde?

—Sempre chamou sua mã e de maman, em francê s?

— Foi assim que ela me ensinou a chamá -la desde pequeno.

— Por que será? — perguntou Lorna, com o rosto surpreso.

—Ela nunca explicou a razã o?

Os olhos castanhos a observaram com atenç ã o por entre a fumaç a do cigarro. Lorna continuava deitada no grande leitoá rabe, os lá bios entreabertos, os olhos azuis escondidos por baixo dos cí lios compridos.

Kasim segurou sua mã o e levou-a aos lá bios, beijando lon­gamente cada um dos dedos.

— Quando mamã e morreu, encontrei o diá rio que ela escreveu em espanhol, lí ngua que mais ningué m na famí lia entendia. De­pois de ler o diá rio do começ o ao fim, arranquei e destruí algumas pá ginas onde ela contava um segredo que só eu podia saber. Agora vou lhe contar este segredo, Lorna, porque você gosta de mim, porque disse que deseja ficar comigo para sempre.

Lorna deu um suspiro de alí vio.

—Pensei que fosse contar que gostara de outra mulher antes de mim...

— Gostei de algumas garotas que conheci em Paris quando era estudante. Mas nunca senti realmente amor por nenhuma delas. Eu amava o deserto desde pequeno... O deserto era minha paixã o... até que você surgiu em minha vida, com seus olhos azuis, os cabelos cor de sol, o temperamento rebelde...

—Nunca se apaixonou por uma moç a á rabe? Elas sã o tã o lindas...

—Sim, algumas sã o realmente belas, como Turqeya, mas minhas preferê ncias nesse ponto recaem sobre as francesas.

—Francesas?

— Exatamente. Nã o sou filho do emir, como todos imaginam. Mas de um francê s que morou em Sidi Kebir um ano depois do casamento de minha mã e.

No silê ncio que se seguiu à confissã o inesperada, Lorna podia contar as batidas de seu coraç ã o. Os olhos azuis, muito grandes e luminosos, estavam fixos em Kasim. Uma cotovia cantava no jardim do palá cio e era como se o coraç ã o dela entoasse a canç ã o triste e melodiosa.

—Por favor, conte-me tudo — ela sussurrou.

Kasim inclinou a cabeç a e tomou coragem para revelar o segredo que a mã e lhe confiara no diá rio escrito em espanhol.

— O tal francê s que veio de Paris chamava-se Justin. Mamã e nã o estava feliz com a vida isolada que levava no palá cio do emir, e o francê s foi uma distraç ã o para sua tristeza. Era jovem, culto, interessante, e veio aqui estudar alguns manuscritos que haviam sido encontrados no porã o desta casa. Era umhomem falante, muito divertido e pertencia ao mesmo mundo que minha mã e frequentara antes de se casar com o emir. Pouco tempo depois de conhecer Justin, mamã e confessou no diá rio que se sentia estranhamente culpada na companhia dele, embora nã o houvesse nada entre os dois até entã o.

Kasim levantou a cabeç a e encarou os olhos azuis que o fitavam com interesse.

— O emir andava sempre muito ocupado e, nos raros momentos em que passava na companhia de mamã e, tratava-a como se ela fosse uma criada com quem nã o podia falar sobre assuntos sé rios. Mamã e nunca foi uma verdadeira amiga ou companheira, com quem ele tivesse intimidade. O francê s era o contrá rio. Discutia o trabalho com ela, conversava sobre os paí ses que conhecia, sobre os lugares onde estivera. Era inevitá vel que, a amizade se transformasse muito em breve num amor proibido.

Kasim deu um suspiro e afagou a mã o dela, onde estava o anel de safira.

— Mamã e brincou com fogo. Ela ousou receber esse homem em seu aposento. Vivia sozinha, e Justin era uma criatura fas­cinante, mas as horas de amor dos dois estavam contadas. Pouco depois, o trabalho dele estava terminado, e Justin foi obrigado a partir. Mamã e procurou esquecê -lo até o dia em que percebeu que estava grá vida e que o filho era de Justin, e nã o do emir. Naturalmente, ela morreu de medo nos primeiros tempos, mas o emir desejava ardentemente ter um filho homem e, por felici­dade, nunca suspeitou que sua mulher lhe fosse infiel. Kasha me contou que eu era um bebê muito grande, chorã o e de cabelos pretos, e que o emir me levou nos braç os até a varanda do palá cio, onde me apresentou orgulhosamente ao povo, como herdeiro da famí lia. Felizmente, os á rabes sempre gostaram de mim, e eu tinha muita afinidade com eles. Eu amava o sol, a vida ao ar livre, as cavalgadas no deserto. Sei que minha mã e pretendia me confessar a verdade um dia, mas ela morreu subitamente quando eu tinha treze anos. O emir está muito doente, talvez esteja à beira da morte, e agora é tarde para contar a ele a verdade. Vou continuar lhe devotando toda minha lealdade e afeiç ã o. Ele necessita de mim, deseja que eu continue sua obra, e o ví nculo que existe entre nó s dois nã o pode ser rompido por um segredo desse tipo. Acho que Kasha sempre suspeitou, mas ela gostava muito de minha mã e para traí -la...

Lorna inclinou-se para a frente e beijou-o nos lá bios, como se quisesse selar o segredo.

— També m gosto de você, Kasim. Tanto faz voltar para o deserto ou morar aqui. Para mim, isso nã o importa.

Os braç os dele a cingiram estreitamente contra seu coraç ã o. Fitou-a com atenç ã o, e uma chama brilhou nos olhos castanhos.

— Meus amigos disseram que você se parece com uma pé ­rola. E é exatamente isso, querida. A pé rola que encontrei no deserto. Eu tinha o pressentimento de que isso iria acontecer um dia. Você nã o ouviu meu chamado?

— Meu coraç ã o ouviu, Kasim. --- Ela se aninhou contra seu peito e aspirou o cheiro forte de tabaco turco que sempre as­sociava a seu pai. — Lembra-se da flor branca que eu levava no bolso de minha camisa? Você ficou com raiva porque eu disse que ganhara do homem que amava. Esse homem era meu pai. Ele morreu há alguns anos no oá sis de Fadna, e, depois que morreu, fui até lá para conhecer a casa. Encontrei apenas ruí nas, e tudo que restava da construç ã o original eram os muros rachados e algumas flores brancas que nasciam entre as fendas. Colhi uma delas, Kasim. Era a ú nica lembranç a que tinha de meu pai na primeira noite que passei no deserto. Eu tinha tanto medo de você...

— Meu anjo... Agora nã o precisa ter mais medo de mim...

— Nã o sei... Acho que sempre terei medo de você — disse Lorna, com um risinho. — As vezes, parece-me tã o assustador...

—Pode ser que briguemos algumas vezes — murmurou Kasim, em seu ouvido. — Mas depois haverá sempre os beijos.

Lorna sorriu e puxou a cabeç a morena para si. A cotovia can­tava no jardim, onde os jasmins-azuis subiam pelos muros, e Lorna nã o fugiu mais dos braç os de seu amante do deserto. Ne­nhum dos dois se sentiria sozinho de novo. Eles haviam procurado e encontrado o jardim paradisí aco... o jardim do amor.

 

 

                                                          F I M

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.