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CAPÍTULO XII
Netta estava de novo no navio. Tinha que estar. Nã o podia haver outro motivo para se sentir tã o enjoada. Abriu os olhos e viu que estava na cama, em Thimbles. Fez um esforç o para se levantar e sentiu outro acesso de ná useas. — Ah, a senhora já está acordada. — A batidinha na porta foi seguida pela entrada da sra. Berry que trazia uma bandeja com chá e biscoitos. — Já é hora do café da manhã? — Netta ergueu a cabeç a do travesseiro, pronta para se levantar. — Oh, meu Deus! — gemeu, e caiu de volta, o rosto tã o branco como os lenç ó is. — O que está acontecendo? — O rosto da sra. Berry estava cheio de preocupaç ã o. Pô s a bandeja na mesinha-de-cabeceira e pegou as mã os de Netta entre as suas. — Acho que ainda nã o me livrei do enjô o da viagem. — Netta fechou os olhos e esperou a tontura passar. — Tome seu chá e coma um biscoito, vai se sentir melhor. — Só quero chá, nã o quero comer nada. — Só um pedacinho, vai ver como vai ajudar. Sã o biscoitos de á gua e sal, nã o vã o fazer mal. — Tudo por causa daquela horrí vel viagem — disse Netta com um sorriso, aceitando a xí cara de chá. De repente, o sorriso desapareceu do seu rosto. Nã o podia ser... Nã o tinha certeza, mas enjô o de mar nã o continuava depois que a pessoa punha os pé s em terra. Alé m disso, antes mesmo de atracarem ela já estava se sentindo bem, as chuvas tinham passado e o navio nã o jogava tanto. Estremeceu, sentindo um frio repentino; tomou um gole de chá. Imediatamente começ ou a se sentir melhor, como a sra. Berry havia previsto. — Está vendo? A cor já está voltando ao seu rosto. — A governanta ficou observando Netta cuidadosamente, enquanto ela terminava a xí cara de chá. — Parece muito cansada. Nã o se apresse, tome com calma. — Vou me levantar. Todos já tomaram café? — Sim, o sr. Jos e a srta. Caroline já comeram e saí ram para andar a cavalo. O sr. Jos avisou que era para deixar a senhora dormir. É claro, pensou Netta, mas nã o foi por consideraç ã o, como a sra. Berry está imaginando. O que ele quer é ficar sozinho com Caroline, pensou, cheia de amargura. Saiu da cama cautelosamente, testando o seu equilí brio. Deu um suspiro de alí vio quando percebeu que a ná usea e a tontura haviam passado completamente. — Foi só uma fraqueza — disse a si mesma resolutamente. — Ontem passei o dia todo praticamente sem comer e, graç as à Caroline, nem jantei direito. Estou me preocupando por nada. Sentindo-se muito mais animada, escolheu uma saia e uma camiseta, entre as roupas que Mary tinha trazido, e desceu. Ao descer, sentiu um apetite que jamais podia imaginar que teria há uma hora atrá s. Pediu um café reforç ado à sra. Berry. Em seguida, decidiu: — Acho que vou sair para um passeio, está uma manhã maravilhosa. — A sra. Berry tirava a mesa. — Talvez leve Tara comigo, se ela quiser. — Netta sorriu quando viu a cabeç a vermelha aparecendo na porta da copa, olhando para a governanta com olhos cautelosos. — Pode ter certeza de que ela vai querer — A sra. Berry riu. — Esteve me amolando o tempo todo para entrar aqui desde que ouviu sua voz. Eu a prendi lá fora para a senhora poder comer em paz. — Já acabei, pode soltá -la. — Netta estendeu as mã os para Tara e ela veio correndo, abanando o rabo de alegria. — Por onde devemos ir? — murmurou Netta quando estavamdescendo os degraus da porta da frente, mas o animal nã o mostrou qualquer indecisã o, fazendo Netta segui-la, saiu andando na direç ã o do está bulo. — Quer dizer que é ali que você gosta de ficar. — Netta sorriu e foi acompanhando Tara. O sol estava brilhando, prometendo bastante calor para mais tarde. Teria sido bom andar a cavalo, enquanto o ar ainda estava fresco. Bem que Jos podia tê -la chamado, mas tinha preferido sair com Caroline. Ela encolheu os ombros. Bem, pelo menos, sobrava a companhia de Tara. Onde estava ela? Tinha ficado tã o distraí da em seus pensamentos que nã o percebeu que ela nã o estava mais por perto. — Deixe minhas escovas em paz, sua moleca! Sã o para tratar dos cavalos, nã o para brincar. Ei, volte aqui! — Uma voz bem-humorada veio do está bulo. O setter reapareceu e se pô s a correr pelo pá tio com uma escova na boca, deu a volta em torno de Netta e pô s seu trofé u no chã o, perto dos pé s dela, com um latido rouco, convidando-a a brincar. — Vou arrancar seu couro! — Pela reaç ã o de Tara, esse era um ritual matinal ao qual ela estava habituada, e parecia adorar. Correu de volta até o dono da voz e começ ou a pular em volta dele. Netta viu uma bola na mã o do homem. — Pegue isso, menina, e devolva minha escova. O homem atirou a bola com uma forç a e uma precisã o que fizeram Netta exclamar: — O senhor deve ser um jogador de crí quete! Tara saiu correndo atrá s da bola, pulando a cerca com facilidade. — É melhor guardar sua escova antes que ela volte — Netta sorriu. — Nã o, ela nã o vai querer mais. É a primeira coisa que faz todas as manhã s, só para começ ar o dia. Acho que é para me avisar que o dia começ ou para ela. — Você deve ser... — Will Dyer, madame. E estava certa sobre o crí quete, sra. de Courcey. Jogo no time de Long Minton. O sr. Jos també m, ele é ocapitã o, mas esse verã o tivemos que passar sem ele. Espero que de agora em diante o sr. Jos fique mais tempo conosco, certo? — O homem lanç ou um olhar inquisidor para Netta. — Talvez. — Nã o era uma pergunta que Netta tinha condiç õ es de responder. Só podia falar por si mesma. Nã o pretendia ficar por muito tempo em Thimbles. Mais tarde, se Jos se casasse com Caroline... Seu coraç ã o se contraiu numa pontada de agonia, e o sofrimento deve ter aparecido no seu rosto porque Will Dyer olhou-a com um ar preocupado. — Parece que a senhora nã o está se sentindo bem. Netta deu uma risadinha trê mula e logo ofereceu uma explicaç ã o: — Passei muito mal na viagem de navio e até agora estou sentindo os efeitos. Era um navio cargueiro, jogava muito e eu nunca fui boa marinheira. — Venha sentar um pouco dentro do está bulo, o sol já está ficando bastante quente — sugeriu o empregado atenciosamente. — Nã o se preocupe com Tara — acrescentou, quando viu que Netta estava olhando em direç ã o ao campo —, ela vai ficar amolando os coelhos por algum tempo, antes de trazer a bola de volta. É sempre assim. Ele conduziu Netta até o está bulo. Estava deliciosamente fresco lá dentro e cheirava a feno e a capim fresco. Will puxou um fardo e fez um sinal para Netta se sentar. — Descanse um pouco aqui na sombra — sugeriu delicadamente. — Posso ficar olhando enquanto você trabalha? — Netta sentou-se e ficou olhando a é gua que ele estava escovando, quando Tara o interrompeu. — À vontade — respondeu Will, bem-humorado. — Pelo jeito, parece que a senhora gosta de cavalos. — Ela é linda. Faz muito tempo que nã o monto. — Seus olhos admiraram o animal de um tom dourado claro, com a crina cor-de-creme e uma cauda que parecia de fios de seda. — Ah, é mesmo. Ela é a favorita do sr. Jos. Seu nome é Fleet. A é gua virou sua cabeç a, orgulhosa, quando ouviu seu nome eNetta acariciou o focinho macio. — E por que Jos nã o saiu com ela? — Ela vai dar cria, madame. Precisa de tranqü ilidade, silê ncio e muito carinho, nã o é, menina? Temos outras duas é guas para montaria enquanto Fleet está fora de aç ã o. Will recomeç ou seu trabalho e Netta sentiu-se melhor enquanto o via escovar o animal. Nã o havia dú vida de que a é gua seria bem-cuidada. " Muito carinho", tinha dito Will e ela sentiu uma ponta de inveja do tratamento que estava sendo dispensado a Fleet. A é gua ia ter sua cria dentro de um ambiente calmo e seguro, cercada de cuidados que só com amor se pode dar... Pare! Netta implorou ao seu cé rebro, assustada com os pró prios pensamentos, e virou-se aliviada quando Tara entrou correndo pela porta, na sua direç ã o, depositando a bola em seu colo. — Parece que ela gosta da senhora — comentou Will com um sorriso, enquanto Netta acariciava as orelhas sedosas de Tara. — O sentimento é mú tuo. Bem, vou levá -la até o pá tio para brincar com a bola. — Netta levantou-se e ia na direç ã o da porta quando ouviu o barulho de patas de cavalo. — Parece que o sr. Jos está voltando. — Venha, Tara! — Netta estalou os dedos e apressou-se em sair. Se fosse rá pida, talvez pudesse escapar sem ser vista por Jos. Sou uma covarde, pensou, mas sabia que seu coraç ã o ia começ ar a bater desesperadamente quando o visse. No entanto, qualquer idé ia de fuga terminou quando Tara deu um latido de boas-vindas. Jos lanç ou um olhar na direç ã o dela e depois seus olhos se encontraram com os de Netta. Ela sentiu a garganta ficar seca enquanto um pensamento passava por sua mente: os primos formavam um lindo casal, muito altos e elegantes. — Pode me dar os cavalos, sr. Jos. — Will apareceu na porta do está bulo trazendo Fleet, e Netta teve que sair para lhe dar passagem. — Obrigado, Will. — Jos saltou do animal e imediatamente virou-se para ajudar a prima. Em vez de desmontar da maneira convencional, Caroline tirou os dois pé s dos estribos e escorregou pelo flanco do cavalo diretamente para os braç os de Jos, onde permaneceu mais do que o necessá rio, rindo alegremente. Observando os dois juntos, Netta sentiu uma sensaç ã o estranha tomar conta de todo o seu corpo, algo primitivo que estava alé m da civilidade e das boas maneiras. Seu coraç ã o palpitou cheio de dor e indignaç ã o. — Que passeio maravilhoso, querido! Agora que está em casa, vamos poder sair juntos todas as manhã s. Era eu quem devia estar com Jos, nã o Caroline. Numa violenta explosã o, o coraç ã o de Netta finalmente falou mais alto, supreendendo-a com essa forç a. Em poucos segundos, ele devastoutodos os seus pensamentos de fuga e independê ncia e Netta viu-se totalmente dominada. Jos é meu marido e eu o amo desesperadamente... Apesar de nã o demonstrar o que estava acontecendo dentro de seu í ntimo, estava quase hipnotizada. Tinha capitulado, tinha sido vencida pelo amor. Como tudo seria fá cil se Jos també m a amasse! — Meu cavalo precisa ser escovado imediatamente, está muito suado. — A ordem imperiosa de Caroline trouxe Netta de volta à realidade. — Vou só levar Fleet até o pasto e já venho, sr. Jos. — Will falou diretamente com o patrã o, e os lá bios de Caroline se estreitaram com irritaç ã o. — Eu disse imediatamente... — Podedeixar Will, eu cuido disso. — Jos interrompeu a prima, com voz calma. — Vou tirar a sela e deixar só o cobertor. Ela está mesmo muito suada. Eu bem que a avisei para nã o galopar neste calor, Caroline. — Nã o havia crí tica na sua voz. Ele soltou as correias puxou a sela de cima da é gua e foi na direç ã o do está bulo. Chegando perto de Netta resmungou: — Saia da frente, nã o vê que isto está pesado? Netta afastou-se rapidamente, nem tinha reparado que estava em frente ao lugar onde penduravam as selas. Ora, é o meu primeiro dia em Thimbles, pensou, cheia de ressentimento com o tom que Jos tinha usado com ela. — Precisamos arranjar uma montaria para a senhora. — Will tinha soltado a é gua no pasto e já estava perto deles. Começ ou aajudar Jos enquanto se dirigia a Netta: — Dentro de duas ou trê s semanas já vai começ ar a ficar mais fresco e será a é poca ideal para passear a cavalo. — Eu adoraria. Faz muito tempo que nã o tenho oportunidade de montar. Tempo. Agora precisava de tempo para pensar. Até a poucos momentos atrá s sua ú nica e principal preocupaç ã o era sair de Thimbles, ir para longe de Jos. Queria escapar daquele casamento. Agora tudo parecia ter virado de cabeç a para baixo, estava se sentindo perdida e confusa. As jó ias de Ranjit, que a prendiam na propriedade, deixaram de ter valor. Certo, ainda precisava cumprir a sua promessa de colocá -las no banco, mas o fato era que Jos també m tinha se apoderado do seu coraç ã o, trancando-o num cofre do qual nunca iria sair. — Você nã o vai poder montar. — A voz desagradá vel de Caroline interrompeu seus pensamentos. — Fleet vai dar à luz e por isso só temos duas é guas, a minha e a de Jos. Netta nã o saberia explicar o que a fez agir como agiu. Talvez tosse por causa da arrogâ ncia da moç a ou por causa daquele novo sentimento que tinha se apossado dela. O fato é que respondeu quase sem pensar, guiada por uma forç a interior e instintiva: — A é gua de Jos é a minha. — E teve a satisfaç ã o de ver a moç a ficar olhando para ela, desconcertada. Antes que Caroline pudesse responder, Netta continuou: — Enquanto estiver " hospedada" em Thimbles, poderemos providenciar outro cavalo para você. Estou certa de que deve haver facilidades para isso nesta regiã o. Caroline ainda assim ia responder, mas mudou de idé ia e tomou uma atitude ligeiramente divertida: como a de um pastor alemã o que tivesse sido mordido por um pequinê s. — Amanhã à s sete, certo Will? — Netta tentou nã o notar o olhar de reprovaç ã o no rosto de Jos enquanto ela se dirigia ao empregado. — Está ó timo, sra. de Courcey. Deixarei a é gua pronta para a senhora. — À s sete, entã o. Netta virou-se para Jos e sua coragem quase sumiu quando enfrentouaqueles olhos dourados. Ele estava irritado. Bem, mas nã o podia evitar, estava lutando por sua pró pria existê ncia. A vida sem ele nã o teria o menor sentido e agora tinha que continuar a sua batalha, fossem quais fossem as conseqü ê ncias. Levantou o queixo, cheia de determinaç ã o, e enfrentou-o com voz firme: — Enquanto isso, vou começ ar a tomar as providê ncias necessá rias para a festa. Para quando vai querer? — Já tinha feito planos para a pró xima semana — começ ou Caroline, irada. Netta lanç ou-lhe um olhar gelado e indiferente. Estranhamente, nã o sentia mais nenhuma ameaç a da parte da moç a. Era fá cil lidar com o despeito, com o ó dio, emoç õ es tã o tangí veis, algo com que podia lutar. A verdadeira ameaç a era a indiferenç a de Jos. E lutar contra ela era como tentar subir uma muralha que cada vez ficava mais alta. — Na pró xima semana acho cedo demais, prefiro que seja na outra, vou falar com a sra. Berry assim que entrarmos em casa. Depois vou precisar de você para fazer a lista dos convidados — disse, dirigindo-se a Jos com mais doç ura. — Será que você e Caroline nã o podem cuidar de tudo? Estou cheio de serviç o, preciso ver como estã o os negó cios da propriedade. — Jos, como todos os homens, mostrou certa relutâ ncia em se envolver com os preparativos de um acontecimento social. — Muito bem, neste caso, se precisar de você, irei procurá -lo no seu escritó rio. Com um sorriso calmo, que nã o deixava transparecer a tempestade interior que ameaç ava parti-la em duas, Netta estalou os dedos para Tara e saiu andando na direç ã o da casa, lutando contra o desejo de fugir para um lugar onde pudesse dar vazã o à s lá grimas que, de repente, começ aram a surgir em seus olhos, ameaç ando dominá -la.
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