Хелпикс

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Revisão: Alessandra Maciel



 


Copyright: Kay Thorpe

Título original: Time out of Mind

Publicado originalmente em 1987 pela

Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra

 

 

 

 

Capítulo I

 

Não ter um passado é algo assustador. No entanto, essa era a realidade de Annabel Morris. Para todos os efeitos, sua vida co­meçara dois anos atrás, quando acordara na estação Vitória, em Londres, sem saber quem era nem o que estava fazendo lá.

Mesmo o nome que adotara fora escolhido ao acaso: Annabel porque gostara do poema de Edgar Allan Poe com esse título; Mor­ris porque fora o primeiro sobrenome que encontrara ao abrir a lista telefônica. No hospital haviam estimado que tinha por volta de vinte e dois anos. Vinte e nove de abril, a data em que fora en­contrada, passara a ser o dia de seu aniversário. E como fosse ju­nho, estava começando o terceiro ano de sua nova vida.

O psiquiatra com quem se consultava desde então dava mostras de estar perdendo as esperanças e não tardaria a sugerir que encer­rassem as sessões. Seria um alívio para ela, já sem esperanças de recobrar a memória.

A polícia fizera tudo o que estivera a seu alcance para ajudá-la a resgatar o passado. Haviam até mesmo colocado seu retrato nos jornais, sem, porém, obter qualquer resultado positivo. Se alguém conhecia sua identidade, achara melhor não revelá-la. Talvez com bons motivos…

Agora, ali estava ela, num ônibus, mais um rosto entre a multi­dão londrina, rumo ao trabalho.

Annabel ergueu-se e caminhou para a porta do veículo, pois tinha de descer no ponto seguinte. Estava atrasada, pela terceira vez em apenas duas semanas, e nem podia se desculpar dizendo que residia muito distante da loja. Afinal, não era a única trabalhado­ra a morar longe da firma. Teria de acordar meia hora mais cedo, se quisesse manter o emprego.

O dia prometia ser quente e ensolarado. As ruas já estavam re­pletas e o trânsito era intenso. Como a faixa de segurança mais próxima ficasse ainda a uns cem metros de distância, Annabel não resistiu à tentação de atravessar a avenida ali mesmo, aproveitando-se da baixa velocidade dos veículos.

Havia dado poucos passos quando ouviu a buzina e o guincho dos freios. Parou, sobressaltada, e olhou para o carro azul, para­do a poucos centímetros dela. Ufa! Escapara por pouco! Com o coração agitado e as faces vermelhas, ela olhou para o rosto seve­ro do motorista e murmurou um pedido de desculpas.

O trânsito agora estava completamente parado, e ela fez o resto da travessia sem problemas, apertando o passo ao chegar na cal­çada, rumo ao familiar edifício onde trabalhava.

Foi uma agradável surpresa descobrir que não se atrasara, afinal. Seu relógio é que estava adiantado. Teria de mandá-lo sem demora para o conserto. Isto é, quando sobrasse dinheiro, pois os relojoeiros cobravam muito caro pelo serviço.

Ao entrar no vestiário da loja, Annabel encontrou duas colegas conversando animadamente. As moças cumprimentaram-na com desinteresse e voltaram a conversar enquanto ela vestia o unifor­me da loja. Durante os dezoito meses em que trabalhara ali não fizera nenhuma amizade devido ao temor de que descobrissem seu embaraçoso segredo. Algumas garotas até haviam tentado rom­per seu isolamento, mas as tentativas amistosas delas foram repe­lidas, o que lhe valera a fama de presunçosa e orgulhosa.

Annabel não se importava com isso. Tudo o que queria era que a deixassem em paz. Só havia uma pessoa a quem essa regra não se aplicava: Larry. Graças a ele, conseguira um emprego, um lu­gar para morar e, o mais importante, forças para superar os mo­mentos de depressão e desespero. Com a ajuda de Larry havia atravessado a fase mais dura de adaptação, por isso seria grata a ele para sempre.

Já vestida, Annabel tirou um pente da bolsa e pôs-se à frente do espelho. O rosto bem-feito, os olhos verdes, os lábios carnudos, eram-lhe familiares, mas ela ainda se recordava da estranhe­za que sentira quando se olhara num espelho no hospital. Sem dúvida, gostara de sua aparência, mas era como se estivesse vendo o rosto de outra pessoa, e não o seu. Uma sensação bastante per­turbadora…

Com o passar do tempo, ela fora se acostumando a ser uma mu­lher sem passado, vivendo num ambiente estranho, e agora era até capaz de exibir um ar de segurança, apesar de, vez ou outra, ainda ser assaltada por dúvidas inquietantes. Quem seria ela? De onde viera? O que estaria fazendo na estação Vitória? A explicação que lhe haviam dado era a de que talvez tivesse sido atacada por assaltantes e depois deixada no toalete feminino, onde fora encontrada. Mas, que importância tinha isso agora? Precisava pensar no fu­turo, não no passado.

Mais um dia de trabalho começava. Annabel trabalhava na seção de artigos masculinos, um departamento bastante calmo da loja. Naquele dia o movimento estava ainda mais fraco do que de costume e, quase sem querer, ela pôs-se a divagar. No dia seguinte trabalharia apenas meio expediente, depois viria a sexta-feira e de­pois, finalmente, o fim de semana. Uma pena que Larry fosse viajar, gostava muito de sua companhia e tinha certeza de que ele também gostava de sair com ela. No entanto, Larry bem que me­recia aquela viagem, já que habitualmente sua dedicação ao tra­balho ele assistente social era completa e apaixonada.

A chegada de um freguês veio interromper os devaneios de An­nabel. Armando-se de seu melhor sorriso, ela voltou-se para o recém chegado. O sorriso logo desapareceu ao reconhecer o ho­mem. Apesar de ter visto aquele rosto bronzeado apenas por alguns instantes, a imagem dele ficara bem nítida em sua mente para que houvesse qualquer possibilidade de erro: era o motorista que quase a atropelara.

Ele também não parecia ter dúvidas quanto a sua identidade. Durante alguns instantes ele ficou olhando para ela em silêncio, com uma expressão curiosa no rosto.

— Vim apenas ver se você está bem — disse ele por fim. — Não se machucou?

— Não… foi muito gentil de sua parte ter vindo até aqui. Sei que não devia atravessar a rua daquele jeito, mas imaginei que es­tivesse atrasada. Como soube que eu trabalhava aqui?

— Vi a direção que tomou, e como era cedo demais, achei que devia ser uma funcionária, e não uma freguesa. Estou na loja há alguns minutos, procurando por você.

— E o que faria, caso eu trabalhasse nos escritórios?

— Acho que ficaria um tanto desconcertado — ele respondeu, rindo. — De qualquer modo, eu a encontrei…

Annabel não sabia o que dizer. Nunca vira aquele homem antes, mas havia algo nele que a perturbava. Aparentando trinta e poucos anos, alto, forte, elegante, ele era, sem duvida, bonito. Ti­nha lábios finos e bem delineados, traços duros, olhos cinzentos e penetrantes, e transbordava sensualidade.

— Sinto muito pelo susto que lhe dei. Se fosse atropelada, a culpa seria toda minha.

— Não vim até aqui para exigir um pedido de desculpas, mas se você faz questão… Jante comigo hoje à noite e estará perdoada.

— Agradeço, mas não será possível.

— Ou seja, você não sai com estranhos. Certo? Mas isso não é problema. Meu nome é David Hamilton, sou de Santa Amélia.

— Santa Amélia? Onde fica isso?

— No Caribe, Ilhas Virgens Britânicas. Produzo rum.

— Interessante. Agora, se me dá licença, tenho de atender uma freguesa.

Mas a providencial chegada de uma cliente resultou em nada. Após atendê-la, Annabel viu o desconhecido no mesmo lugar, es­perando pacientemente por ela.

— Você não me disse seu nome.

— Não achei necessário. Obrigada pelo convite, mas não posso aceitá-lo. Já tenho um compromisso para hoje à noite.

— Compreendo — ele respondeu, resignado. — Nesse caso, vou embora. Tome cuidado ao atravessar a rua.

Ao vê-lo ir embora, Annabel mordeu o lábio, arrependida. Não custava nada ser gentil com o homem, nem que fosse pelo esforço que ele fizera para encontrá-la. Além do que, ela não tinha com­promisso algum. Paciência… Era tarde demais para se arrepen­der, e talvez fosse melhor assim. Tratava-se apenas de um turista de passagem pela cidade, à procura de uma companhia qualquer. E, atraente daquele jeito, ele não ficaria sozinho por muito tempo.

Foi um dia longo e monótono. Pelo jeito, os turistas estavam aproveitando a onda de calor para passear por Londres. Assim que o tempo piorasse, eles voltariam correndo para as lojas. Annabel só esperava que as condições continuassem favoráveis até o dia se­guinte, já que pretendia tomar sol à tarde.

Às cinco e meia, cansada, ela saiu da loja. Parou por alguns ins­tantes na porta, ajustando a sandália que estava frouxa, quando ouviu uma voz familiar:

— Precisa de ajuda?

— Não, obrigada. — Ela ergueu o olhar para o fascinante rosto de David Hamilton. — A sandália estava frouxa, só isso.

— Surpresa por me ver aqui?

— Francamente, sim.

— Pensou que eu aceitaria um "não" tão facilmente?

— Não está acostumado a ter seus convites recusados?

— Acho que não — respondeu ele, rindo. — Estou aqui desde as quatro e meia.

— Por quê?

— Porque ainda gostaria de levá-la para jantar.

— Mas eu lhe disse que…

— Lembro-me muito bem do que disse, mas senti que foi ape­nas uma desculpa.

— Acha tão absurdo que eu tenha um compromisso para hoje?

— Pelo contrário. Mas seu tom de voz não me convenceu. É claro que posso estar enganado… Afinal, você tem ou não um com­promisso para hoje à noite?

— Não. Era mesmo uma desculpa.

— Ainda bem que sou persistente. E então? Poderíamos tomar um drinque em algum lugar antes de jantar.

— Creio que não estou vestida de modo apropriado.

— Bobagem. Está perfeita, elegante o suficiente para ir ao Ritz.

— Ah, não! Prefiro um restaurante um pouco mais simples.

— Iremos ao restaurante que você escolher. Agora vamos. Dei­xei o carro estacionado em local proibido. Se não tiver uma multa a essa hora, será um verdadeiro milagre.

E como milagres não aconteciam tão facilmente, lá estava a multa no pára-brisas do carro.

— É a terceira hoje — ele confessou, guardando-a no porta-luvas. — Devia ter juízo e usar táxis enquanto estou no país, só que detesto ser conduzido. Estou hospedado no Claridge's. Que tal se bebêssemos alguma coisa por lá?

— Por mim, tudo bem. O que vai fazer a respeito das multas? Vai entrar com algum recurso?

— Não. Parto no final de semana. Terão de me perseguir até o Caribe para receber o dinheiro.

A caminho do hotel, Annabel olhou disfarçadamente para Da­vid, apreciando o perfil bem delineado, o brilho dos cabelos cas­tanhos, lisos e bem penteados. Quando observou-lhe a mão, viu um anel em seu dedo. Ouro, sem dúvida, com as iniciais DH en­trelaçadas. Ela engoliu em seco, sentindo um desconforto repenti­no e inexplicável.

— Está se sentindo bem? — perguntou David, como que perce­bendo algo de errado na fisionomia dela.

— Não foi nada — mentiu ela, lutando para recuperar a cal­ma. — Este carro é seu?

Se David percebeu que a pergunta era apenas uma tentativa de desviar o assunto, preferiu não comentar o fato.

— Alugado. E não pense que sou um vigarista. Deixarei dinheiro suficiente para as multas.

Annabel permaneceu em silêncio. Sentia-se estranha, presa de uma agitação sem motivo aparente. Os ruídos do tráfego lhe che­gavam abafados, como se tivesse algodão nos ouvidos. E aquele anel… Mesmo sem olhar para ele, tinha sua imagem nítida na me­mória. Aquela jóia significava algo para ela… Mas o quê? Se ao menos pudesse romper a barreira que a separava de seu passado!

Uma vez no hotel, sentiu-se senhora de si. Os sons agora eram nítidos e o anel deixara de incomodá-la. Apenas suas pernas ainda tremiam um pouco.

— É melhor tomar um conhaque — sugeriu ele, já no bar, ajudando-a a sentar-se. — Pensei que fosse desmaiar no carro.

— Não foi nada, sinto-me bem. E depois, detesto conhaque. Que tal gim-tônica?

— Como quiser.

Depois de pedir as bebidas, David voltou-se para ela e sorriu:

— Ainda não sei o seu nome.

— Annabel Morris.

— Annabel? É um nome pouco comum, não?

— Foi um dos motivos que… — Ela se interrompeu bruscamen­te. Estivera prestes a dizer que fora justamente por isso que o es­colhera. — Foi um dos motivos que levaram meus pais a escolhê-lo.

Apesar de não fazer comentários, era óbvio que a momentânea confusão não passara despercebida a David. Felizmente, as bebi­das chegaram naquele instante. Depois de um gole, ela foi capaz de encará-lo com firmeza outra vez.

— Você disse que morava numa ilha. É grande?

— Não, não muito.

— A quem pertence?

— A mim, o único homem que ainda é vivo na família. Tinha um ir mão, só que ele morreu há alguns anos.

— Sinto muito. Tem alguma irmã?

— Uma. E minha mãe ainda é viva. Ambas moram comigo.

— Você disse que produzia rum, não é?

— Sim, temos nossa própria destilaria. Já foi ao Caribe algu­ma vez?

Annabel negou com um gesto de cabeça. Talvez tivesse ido, mas achava improvável.

— Deveria ir. É a região mais linda do globo. Tem praias lin­díssimas.

David devia ficar irresistível em trajes de banho. Os braços longos e fortes, com um bronzeado uniforme, o peito largo e musculoso, coberto de pêlos negros e sedosos… Annabel surpreendeu-se com a nitidez da imagem que formara na mente. Que absurdo! Aquele homem era quase um desconhecido!

— Você tem sorte de viver em um lugar tão bonito — ela disse, tentando ando aparentar calma.

— A família Hamilton vive na ilha há quase trezentos anos. Te­nho certeza de que não conseguiria morar em nenhuma outra parte do mundo.

— Mas se você é o último da linhagem…

— Terei de me casar e ter um filho. — Ele sorriu com uma pon­ta de cinismo. — Se eu não conseguir, minha irmã pode se casar e persuadir o marido a mudar o sobrenome para Hamilton.

Então David era solteiro… Não que isso tivesse importância pa­ra ela, já que duvidava que viesse a encontrá-lo depois daquela noite.

— Já falamos muito a meu respeito, Annabel. Que tal me contar algo sobre você?

— Não há muito o que dizer. Moro aqui mesmo em Londres, e você já sabe onde trabalho.

— Não tem parentes?

— Não que eu saiba.

— Entendi. Você não quer falar sobre o assunto.

— Não é bem assim. Mas, se eu acho aborrecido falar de mim, os outros também acharão. Não concorda?

— Não, mas não vamos discutir isso. Gosta de comida italiana?

— Gosto.

— Ótimo. Vou telefonar e fazer as reservas. Volto num instante.

Ao ver-se sozinha, Annabel ficou sem saber o que fazer. O bom senso dizia-lhe para aproveitar a chance e ir embora. David Ha­milton era um homem fascinante e ela não o esqueceria facilmen­te. Ele despertava-lhe emoções estranhas, perturbadoras. De certo modo, chegava a ter medo dele. Aqueles olhos cinzentos, penetrantes, pareciam capazes de ler seus pensamentos.

David voltou antes que ela chegasse a uma conclusão.

— Tudo arranjado. Sete e meia é um bom horário para você?

— Está ótimo, mas pensei que…

— O quê?

— Bem, pensei que, vindo de uma região tropical, você costumasse jantar mais tarde.

— Sub tropical — corrigiu ele. — E depois, não há nenhuma regra rígida. A hora certa de se comer é quando se sente vontade E depois, passei o dia inteiro fora, e estou faminto.

— O dia inteiro não. Você já esteve no hotel depois de me encontrar.

— Como sabe?

— É simples. Você está usando uma camisa diferente e barbeou-se outra vez.

— Observadora, não? Mas não há nada pior do que uma barba malfeita quando se quer impressionar uma mulher.

— É isso que está tentando fazer, impressionar-me?

— É claro. E não devo ser o primeiro a fazer isso. Você é uma garota adorável, Annabel.

— Agora há pouco eu era uma mulher. Por que fui rebaixada a garota?

— Já vi que terei de tomar cuidado com o que lhe digo — respondeu ele, rindo. — Qual é a sua idade?

— Vinte e quatro.

— Era o que eu imaginava. Isso me dá uma vantagem de dez anos. Acha que sou muito velho para você?

— Considerando que você vai embora no final de semana, isso não tem a menor importância.

— Você é terrível mesmo, Annabel.

O fascínio que sentia por aquele homem crescia a cada instante. Ao vê-lo sorrir, a vontade de acariciar-lhe o rosto, de percorrer com os dedos o contorno dos lábios firmes e sensuais, tornou-se quase irresistível. David era especial…

No decorrer da noite, a imagem que fazia dele tornou-se ainda mais atraente. Após um jantar delicioso, durante o qual a conversa foi franca e agradável, ela sentiu-se mais e mais envolvida pelo charme masculino. Enquanto dançavam, a emoção cresceu e ela ficou alheia a tudo e a todos. Nunca tivera uma noite como aquela.

— Sabe que você me impressionou por mais de um motivo? Você é incrivelmente parecida com uma pessoa que conheci. — Annabel sentiu o sangue fugir-lhe do rosto. — Dizem que todos nós temos um sósia em alguma parte do inundo — prosseguiu ele.

— Tenho outro traço em comum com essa pessoa, além da se­melhança física?

— Não, não — respondeu ele, após alguns instantes de hesitação. — Só a aparência. Uma semelhança extraordinária, nada mais. Vamos repetir este passeio antes de minha partida?

Um misto de alegria e tristeza tomou conta dela. Mais dois dias, no máximo, e ele iria embora. Provavelmente nunca mais se encontrariam. Talvez fosse melhor acabar com tudo naquele instante, mas não foi o que ela fez…

— Se você quiser…

— Se não quisesse, não a convidaria. Posso apanhá-la na loja amanhã, no mesmo horário?

— Amanhã só trabalho meio expediente.

— Melhor ainda. Podemos fazer um piquenique em Brighton e jantar depois. O que acha?

— Perfeito.

Pelo jeito, ela estava mesmo disposta a se machucar. Mas, o que fazer? Todo prazer tinha o seu preço.

Annabel ficou entre aliviada e desapontada quando David não insistiu em levá-la para casa. Ele limitou-se a colocá-la em um táxi, pagou a corrida antecipadamente e repetiu mais uma vez:

— Não se esqueça: amanhã, meio-dia e meia.

Mais algumas horas e ela teria todo um dia pela frente na companhia de David Hamilton. E dizer que até aquela manhã nem sa­bia da existência dele! Era mesmo um homem estranho, intrigante… Não tentara beijá-la, nem fizera qualquer outro tipo de investida, ao contrário do que ela esperava. O que estaria pensando de tudo aquilo?

Era quase meia-noite quando Annabel desceu do táxi, em fren­te à velha casa vitoriana onde morava. A maioria das janelas ain­da estava iluminada, e mesmo ali da rua era possível ouvir uns dois ou três toca-discos ligados em volume alto. Ela relacionava-se com os outros moradores da casa apenas superficialmente. O vizinho que morava no mesmo andar que o seu era um homem de seus qua­renta anos, tão tímido que ficava vermelho sempre que a cumpri­mentava. Parecia tão atormentado quanto ela…

O quarto de Annabel era pequeno, e ela fizera o possível para torná-lo mais atraente: reformara a pintura descascada e velha e instalara cortinas em cores vivas, combinando com as almofadas. De qualquer modo, já não agüentava mais morar ali. Depois do aumento de salário, começaria a procurar um local mais espaçoso e confortável.

O sono custou chegar, pois não conseguia tirar David do pensa­mento. Era seis anos mais velho que Larry, mas não era apenas esse detalhe que o tornava diferente do rapaz como o dia da noite. David pertencia a outro mundo, tinha um estilo de vida muito di­ferente, e, provavelmente, nunca tivera de se preocupar com o alu­guel nem correra o risco de ter a água ou a eletricidade cortadas por falta de pagamento. Larry, sem dúvida, não a fascinava do mesmo modo que David. Mas de que adiantava pensar naquilo? David iria embora…

Annabel finalmente adormeceu e sonhou com sol, praias de areias brancas e finas, mar azul e brilhante… e a sombra sempre presente de um homem a seu lado. Não era David, disso ela tinha certeza. Seria apenas um sonho? Ou memórias de sua vida passa­da? Não havia como responder a essa pergunta…

Ao meio-dia e meia em ponto, Annabel saiu da loja e encontrou David a sua espera. Desta vez, ele vestira-se com menos formali­dade: usava uma calça clara e um paletó esporte bege. Estava sem gravata, e a camisa, desabotoada no colarinho, revelava um tre­cho de pele bronzeada coberta de pêlos negros.

— Tenho uma gravata no porta-luvas — observou ele, perce­bendo a direção de seu olhar. — Está muito quente para forma­lidades.

— Você está ótimo assim. Deve estar acostumado a usar bem menos roupa nas Ilhas Virgens, não é?

— Ah, sim, sem dúvida. Mas você também está adorável. Es­pero que esteja com fome, pois eu trouxe uma tonelada de comida.

— Que ótimo! Estou faminta.

Naquele instante, uma das funcionárias da loja saiu à rua e olhou com curiosidade para o casal. No dia seguinte, haveria comentários, sem dúvida. Mas Annabel não estava preocupada. Nunca se sentiu tão feliz em toda a vida, e não deixaria que comentários maliciosos viessem a estragar seu humor.

Uma hora depois, Annabel e David já estavam fora da cidade, indo ao campo, com todos os vidros do carro abertos. Absorta, ela pôs-se a imaginar David em sua ilha, à direção de um carro esporte sem capota, o vento batendo-lhe no rosto, fazendo esvoaçar seus cabelos castanhos… A julgar pela cor de sua pele, ele de­via passar boa parte do tempo ao ar livre. Sem dúvida, um felizardo.

Finalmente, eles escolheram um recanto agradável para o piquenique, no campo, de onde se tinha uma vista esplêndida. David estacionou o carro à sombra de uma árvore. Logo Annabel retira­va a comida da cesta e a colocava sobre uma toalha xadrez. Reparou que ele não se esquecera nem mesmo do champanhe!

— Uma taça para cada um — disse ele, servindo-a. — Se for preso por dirigir bêbado, quero companhia.

— Que desculpa boba! A verdade é que você quer me embebedar para tornar as coisas mais fáceis… — Ela enrubesceu ao perceber a tolice que dissera. — Desculpe, foi uma piada sem graça.

— Nem tanto. Talvez essa tenha mesmo sido minha intenção ao encomendar o champanhe.

— Agora quem está fazendo piadas é você. Não acredito que você precise desses métodos quando deseja uma mulher.

— Às vezes, quem sabe… Não nego que gostaria de fazer amor com você, mas acho que você não é do tipo que se deixa seduzir por um homem que mal conhece.

— E você não vai ficar no país por tempo suficiente para me fazer mudar de idéia.

— Posso prolongar minha permanência na Inglaterra. Você me faria companhia?

— Humm… Vou pensar no caso.

— Faça isso. A idéia me agrada muito.

Eles ficaram em silêncio durante alguns instantes, escutando o canto dos pássaros e o murmúrio das folhas sacudidas pela brisa preguiçosa. De repente, David estendeu a mão e pôs-se a acariciar-lhe o rosto suavemente. Depois, não percebendo resistência, beijou-a.

Annabel ainda tinha a taça na mão. Sentiu o líquido gelado cair-lhe sobre a pele, até que ele, gentilmente, pegou o copo e colocou-o na toalha. Depois, a fez deitar-se sobre a grama.

Deliciada com o contato daqueles lábios quentes e sensuais, An­nabel não esboçou protesto algum quando ele começou a acariciar-lhe os seios, desnudando-os lentamente. Um arrepio de prazer percorreu-lhe a espinha ao sentir os cabelos castanhos roçando-lhe a pele nua. Ela desejava aquele homem…

De repente, David afastou-se. Annabel viu o rosto dele trans­formado pela raiva, os olhos cinzentos fixos em seus seios.

— É apenas uma marca de nascença — explicou ela, adivinhan­do o que ele olhava, e incapaz de compreender por que estava tão zangado. — Uma pequena lua crescente.

— Sei muito bem o que é. — Ele a segurou pelos braços com rudeza e indagou com voz irada: — Que joguinho é esse, Alice?

 

 

Capítulo II

 

Os alegres ruídos da natureza pareciam subitamente abafados para Annabel. Um zumbido insistente e penetrante crescia nos ou­vidos dela, impedindo-a de pensar com coerência. Incapaz de es­boçar qualquer reação, limitou-se a encarar David enquanto ele a sacudia pelos ombros.

— Vamos, responda, Alice! Responda de uma vez!

— Eu não sei do que está falando… Quem é Alice?

— Pode parar de fingir. Não sei por que está fazendo isso, mas o jogo tem de acabar. Não pode haver duas pessoas tão parecidas, com a mesma marca de nascença, no mesmo lugar.

— Sinto muito… — falou ela num tom quase inaudível, pouco mais do que um gemido. E, de repente, um tremor insuportável dominou-lhe o corpo. As imagens começaram a dançar na sua fren­te e tudo ficou escuro.

Quando voltou a si, estava deitada no chão. David, a seu lado, parecia preocupado e segurava-lhe o pulso.

— Graças a Deus! — exclamou ele aliviado ao vê-la abrir os olhos. — Por um instante cheguei a pensar que estivesse morta. Continue deitada. Você ainda está pálida.

— Desculpe-me, por favor.

— Eué que devo pedir desculpas. Sei que não está mentindo, você é mesmo Annabel. Mas a semelhança é espantosa…

— Eu não sou Annabel Morris. Há mais de dois anos não sei quem sou.

— Dois anos? Como assim? Teve amnésia?

— O passado desapareceu completamente de minha memória. Escolhi o nome de Annabel Morris ao acaso, simplesmente por­que precisava de um. Quem é Alice?

— Minha cunhada, esposa de meu irmão.

— Aquele que morreu?

— Sim. O único problema é que Alice morreu no mesmo acidente que ele. Ambos estão enterrados na cripta da família, em Santa Amélia. E você não é um fantasma, disso tenho certeza.

Devagar, Annabel levantou-se. Ainda se sentia trêmula e fraca e foi obrigada a se apoiar contra uma árvore. Estava completa­mente desconcertada com o que acontecera.

— Você viu o corpo?

— Não. O carro pegou fogo e ambos os corpos ficaram irreco­nhecíveis. Mas ainda assim… Os dois foram vistos juntos uma ho­ra antes do acidente. A mulher que estava com ele só podia ser Alice. — David sacudiu a cabeça, confuso. — Acho melhor você me contar sua história. — Ele passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso. — Talvez ajude.

A tarefa levou alguns minutos, e não foi de utilidade alguma.

— Na Estação Vitória… Não havia nada com você? Uma bolsa ou uma carteira?

— Não. Apenas as roupas que eu vestia.

— Você ainda as tem?

— Sim. Aquele vestido é meu único vínculo com o passado. Nunca mais o usei mas ainda o conservo.

— Ótimo. Sente-se bem o suficiente para voltar a Londres?

— Agora?

— Sim. Quero ver esse vestido. Talvez possa reconhecê-lo.

— E se não o reconhecer?

— Vamos esperar e ver. Agora, sente-se no carro enquanto guar­do estas coisas.

Após acomodar-se, ela fechou os olhos e tentou colocar suas idéias em ordem, Alice Hamilton. O nome não significava nada para ela. E se provassem que era mesmo a cunhada de David? Tu­do parecia tão fantástico e improvável! Quem seria a mulher que fora enterrada em Santa Amélia? E como ela, Annabel, fora pa­rar em Londres se apenas uma hora antes do acidente fora vista em companhia de seu marido?

Annabel levou as mãos à cabeça, num gesto de desespero.

— Não fique tão nervosa — aconselhou David, assim que en­trou no carro. — Vamos enfrentar um problema de cada vez. Pre­ciso ver o vestido antes de mais nada.

Nenhum deles abriu a boca durante toda a viagem. Annabel fi­cou olhando pela janela, alheia à paisagem, pensando no pesadelo que vivia. E lembrar que ela se sentira tão bem naquele dia…

Ao chegarem, Annabel conduziu-o escada acima até o primeiro andar. Apesar de não fazer nenhum comentário, era óbvio que ele estava chocado com a aparência do lugar. Não era o tipo de am­biente requintado ao qual estava acostumado e, sem dúvida, era um dos últimos lugares em que esperava reencontrar a cunhada.

Com o coração aos pulos, ela tirou o vestido do guarda-roupa e mostrou-o a ele.

— Segure-o à sua frente.

Annabel obedeceu e tentou ver no rosto dele algum sinal de que reconhecia a roupa. Ao vê-lo sacudir negativamente a cabeça, sentiu vontade de gritar.

— Mas você conhecia todas as roupas de sua cunhada?

— Não, é claro. De qualquer modo, nunca vi esse vestido antes.

Ainda segurando a roupa, ela voltou-se para o espelho e acari­ciou o tecido acetinado.

— É um vestido finíssimo, de alta qualidade. Não tenho condi­ções de comprar outro parecido… A palavra Honore significa algo para você?

Honore! Por que quer saber?

— É o nome que está na etiqueta do vestido. Tentaram locali­zar lojas ou fabricantes com esse nome, mas não conseguiram.

— Deixe-me ver. — Ele ficou em silêncio, olhando para a eti­queta, o rosto impassível. Depois disse: — Honore é o nome de uma butique finíssima em Charlotte Amalie.

— Charlotte Amalie? Não é a capital da parte americana das Ilhas Virgens?

— Exatamente. Fica na ilha de São Tomás. Foi lá que aconte­ceu o acidente, pouco depois de você e Paul chegarem à ilha. Não se recorda de nada?

— Nada.

Paul. Era a primeira vez que ouvia David mencionar o nome do irmão. O marido dela. Não, não podia ser verdade! Uma mu­lher não esqueceria tão facilmente que tinha um marido. E no en­tanto era possível. Na época em que a encontraram, havia a marca ele um anel na sua mão esquerda, uma pequena faixa de pele não bronzeada no dedo anular. Ninguém havia estranhado a cor bron­zeada de sua pele, já que naquele ano a primavera fora excepcio­nalmente quente, na Inglaterra.

— Sinto-me tão estranha.

— Sente-se um pouco.

Ela não se deu ao trabalho de explicar que a estranheza era men­tal, e não física. Durante dois anos vivera sem um passado. Ago­ra, ofereciam-lhe um, do qual ela não se lembrava e que, no entanto, parecia verdadeiro.

— Fale sobre Alice. Talvez eu consiga relembrar algo.

— Não sei por onde começar. Nem sabíamos de sua existência até o dia em que chegou a Santa Amélia com Paul. Ele a conheceu na Suíça, onde se casaram.

— Paul casou-se assim, sem mais nem menos? Apareceu em casa com uma esposa sem um aviso prévio?

— Paul podia ser tudo, menos previsível. Ele a conheceu, a de­sejou e se casou com você. Foi o que ele nos contou, pelo menos.

— Há quanto tempo foi isso?

— Menos de três meses antes do acidente, o que serviu para tor­nar o fato mais dramático ainda aos olhos dos que não sabiam o que estava acontecendo na época.

— E o que é que acontecia?

— O casamento estava praticamente por um fio.

— Sabe qual o motivo?

— O principal era absoluta incompatibilidade de gênios. Você… Bem, isso não tem importância agora: O que interessa é descobrir como você veio parar aqui na Inglaterra.

— E quem era a outra também.

— Que outra?

— A mulher que foi enterrada em meu lugar. Isto é, se eu for mesmo Alice Hamilton.

— Não tenho a menor dúvida disso. A etiqueta em seu vestido é prova suficiente.

Ela não podia deixar de concordar com David. Uma ou duas coincidências podiam ser obra do acaso. Mas o que tinham diante de si eram provas incontestáveis, não meros indícios.

— Você sabe alguma coisa sobre minha vida antes do casamen­to com seu irmão?

— Seu nome de solteira era Cosgrove. Segundo o que nos dis­se, você ficou órfã ainda criança e foi criada por uma tia que lhe deixou algum dinheiro ao morrer.

— O suficiente para que eu fosse para a Suíça?

— Parece que sim. A propósito, você tem vinte e três anos, e não vinte e quatro. Você fez vinte e um em abril daquele ano.

— Em que dia?

— Catorze. E isso é tudo o que sei. Você sempre foi muito re­servada a respeito de seu passado.

— Pelo seu tom de voz, percebo que você não aprovou o casa­mento. E o resto da família?

— Minha mãe não gostou muito da idéia. Tinha esperanças de que o caçula se casasse com alguém que pertencesse a uma família tradicional. Quanto a Madalyn, minha irmã, ela não estranhou muito. Ela tem convicções todas suas, bem próprias.

— Ou seja, ela se recusou a me considerar uma caça-dotes, co­mo sua mãe o fez? Foi isso o que pensaram, não é? Que eu me casei com ele porque estava atrás de um marido rico?

— Para uma desmemoriada, até que você chegou bem perto da verdade. Foi uma hipótese que levamos em consideração. Paul me disse que você se recusou a ir para a cama com ele antes de se casarem.

— Nenhum homem seria capaz de se casar só para levar uma mulher para a cama.

— Paul seria. O que ele desejava, conseguia de qualquer jeito.

— Pelo visto, você não o estimava muito, não é?

— Éramos muito diferentes. Só isso. E então? A conversa ser­viu para alguma coisa?

— Não. Não me lembro de nada.

— Tem certeza? Ontem você me pareceu bastante perturbada quando eu apareci na loja.

— Isso porque eu o reconheci como o homem que quase me atro­pelou. E, para ser honesta, não tenho certeza se quero mesmo re­cobrar a memória.

— Por quê? Não gostou do que ouviu?

— Não. Pelo menos não de sua versão.

— Posso estar errado. Nunca se sabe.

— É claro que está! Mesmo perdendo a memória, eu não pode­ria ter mudado de caráter radicalmente. Se hoje não tenho cora­gem de me casar por dinheiro, também não teria feito isso naquela época.

— Está tentando me dizer que amava Paul?

— Meu Deus, eu não sei! Mas devo ter amado.

— Bem, isso agora não tem importância. O que interessa é o que vamos fazer. Sabia que você tem direito a cinqüenta por cento da propriedade?

— O quê?

— É isso mesmo. Na condição de viúva de Paul, você tem di­reito a todos os bens dele. A propriedade lá da ilha normalmente recairia sobre o primogênito, mas eu cedi metade a Paul. Hoje is­so pertence a você, além dos outros bens que ele deixou.

— Eu não os quero!

— Você é a viúva dele, e isso é um fato. Tem de voltar para Santa Amélia, Alice.

Alice, Alice. Aquele não era o seu nome! Nem se chamava Annabel. Ela não era ninguém, e nunca seria, a não ser que recobras­se a memória. E isso só poderia acontecer em Santa Amélia. Algo de muito grave acontecera naquela ilha, de modo a fazê-la fugir para a Inglaterra. O que David lhe estava oferecendo era a opor­tunidade de encontrar a si mesma. Será que podia se dar ao luxo de recusar essa oferta?

— Tem certeza de que sou sua cunhada?

— Não tenho dúvida alguma. Você está um pouco diferente, mas não tanto a ponto de me fazer duvidar de sua identidade. Hou­ve momentos, ontem à noite, em que… — Ele se interrompeu brus­camente e caminhou até a janela. — Você é Alice Hamilton. Quero que acredite nisso.

— Eu acredito, mas não sei se devo abandonar tudo o que cons­truí nestes dois anos.

— E o que foi que você construiu? — David olhou ao redor com desprezo. — Isto não é um lar, e seu emprego não é o que eu cha­maria de uma carreira promissora. A menos que haja outra razão mais importante… Um homem, talvez?

— Se houvesse algo sério, eu não teria aceitado o seu convite para sair.

— Então o que a impede de voltar para Santa Amélia?

— Você é um dos motivos. Sua atitude em relação a mim mu­dou desde que descobriu minha verdadeira identidade.

— Nada mais natural. Você é a viúva de meu irmão, e durante dois anos acreditei que estivesse morta. Preciso de tempo para me acostumar a essa nova situação.

Aquilo não era verdade, e ambos sabiam disso muito bem. David não confiara na cunhada enquanto ela fora esposa de seu ir­mão, e devia existir um bom motivo para isso. No entanto, aquela era sua única chance de recuperar a memória.

— Muito bem. Eu aceito.

— Ótimo. De quanto tempo precisa?

— Preciso pedir demissão do emprego. O aluguel do apartamento está pago por mais dois meses.

— Ninharias. Se algum dia voltar para a Inglaterra, será como uma mulher rica.

— Ainda assim, preciso de uma semana. Por que não vai na frente?

— Você não pode fazer a viagem sozinha. Precisa de alguém que não a deixe esquecer de quem é.

David tinha razão. Mesmo depois de todas as provas, ela ainda não se havia acostumado à idéia de que era Alice Hamilton. Preci­sava se convencer, de uma vez por todas, de que Annabel Morris não mais existia.

 

Chovia forte no dia do embarque para Nova York. Quando as condições meteorológicas finalmente permitiram que o avião de­colasse, Alice contemplou com melancolia a terra cinzenta que es­lava deixando para trás. Quando voltaria a vê-la?

Sua última semana na Inglaterra fora de atividade frenética. Ha­via pedido demissão sem especificar motivos, preferindo que to­dos acreditassem que arrumara um emprego melhor. Uma ou duas pessoas atreveram-se a lhe fazer perguntas, mas não conseguiram arrancar-lhe resposta alguma. As colegas não se reuniram para lhe dar um presente de despedida. É claro que Alice não esperava que o fizessem, já que nunca conseguira mais do que um relacionamento superficial com elas. Estava partindo sem deixar saudades.

Larry foi a única pessoa a quem contou toda a verdade. Apesar de satisfeito com a possibilidade de ela vir a recuperar a memória, ele ficou apreensivo, já que previa dificuldades no relacionamento da moça com a família Hamilton. Fez questão de ir ao aeroporto no dia da partida, e fez tantas recomendações a David, que este chegou a lhe dizer, categoricamente, que o rapaz estava apaixona­do por ela. Alice negou, é claro.

Graças aos esforços de David, foi possível obter uma cópia da certidão de nascimento de Alice Cosgrove. Os nomes dos pais nada significavam para ela. Conseguir em Friburgo, na Suíça, uma cópia da certidão de casamento também não foi difícil, e, graças aos documentos, foi possível obter um passaporte em nome de Alice Hamilton e um visto de entrada nos Estados Unidos. No entanto, mesmo de posse desses documentos, ela continuou presa da mes­ma insegurança. Podiam chamá-la pelo nome que quisessem, pois ainda se sentia como um ser a parte, um rosto sem identidade.

— Café, sra. Hamilton? — perguntou uma aeromoça, sor­ridente.

— Puro, por favor.

Sra. Hamilton! Será que algum dia se acostumaria a ser chama­da assim? Só o futuro diria. Agora, a única coisa a fazer era espe­rar, e esperar um bocado, já que tinham uma longa e tediosa viagem pela frente. De Nova York embarcariam para São Tomás, no ter­ritório americano das Ilhas Virgens, onde passariam a noite. De lá, ainda de avião, iriam para Tortola, a maior ilha da parte britâ­nica do arquipélago, e depois, finalmente, seguiriam de barco pa­ra Santa Amélia. E ela já realizara aquela viagem antes, ao lado de seu marido. Como teria se sentido na ocasião?

Alice suspirou, resignada. Não adiantava nada perder tempo com perguntas sem resposta. Não era desse modo que iria recobrar a memória. Se é que isso viria a acontecer…

Durante toda a viagem, David manteve sua atenção inteiramen­te voltada para o livro que comprara no aeroporto. Alice, cons­ciente do choque que fora aquela fantástica revelação de sua identidade, tinha certeza de que essa atitude era apenas um pre­texto para não conversar com ela. Não sabia exatamente como de­via tratá-lo agora. Mesmo não sendo um inimigo, ele também não podia ser considerado um amigo. Tratava-se agora apenas de um homem íntegro, justo, disposto a restituir à cunhada aquilo que legalmente lhe pertencia. Se ele ao menos soubesse… Alice daria qualquer fortuna para sentir a felicidade dos momentos que pas­sara em companhia dele antes da revelação.

Uma vez em Nova York, tiveram de esperar uma hora até em­barcar para as Ilhas Virgens. Houve, portanto, tempo suficiente para saborearem um drinque.

— Nada como viajar com requinte — comentou ela, apôs to­mar um gole reconfortante de gim-tônica.

— O vôo de amanhã será bem diferente. Iremos num avião bem pequeno e um tanto desconfortável.

— Já que a viagem é curta, isso não tem importância. E depois? Santa Amélia fica muito longe de Tortola?

— Meia hora. Como estamos na estação seca, teremos uma tra­vessia calma. De qualquer modo, você nunca teve problemas com barcos. Já navegamos juntos algumas vezes.

— É mesmo?

— Sim. No Seajade, uma escuna de quinze metros.

— Dois mastros…

— Você se lembra do barco? — ele perguntou, surpreso.

— Não. Devo ter lido esse tipo de informação em alguma revista.

Não era exatamente a verdade. Ao ouvi-lo falar sobre a embar­cação, ela tivera uma súbita visão de velas enfunadas, ondas, sol… E que podia muito bem não ser uma recordação de uma experiên­cia passada, mas simplesmente uma imagem vista em algum filme ou programa de televisão.

— Não deixa de ser interessante — ela murmurou, sorrindo. — Se você me levou para passear de barco, isso significa que eu não era uma pessoa tão ruim. Não acha?

David estava prestes a responder, mas a entrada repentina de mais uma pessoa no bar veio interrompê-lo. A recém-chegada, uma loira alta e esbelta, muito bem vestida, olhou à sua volta e, ao per­ceber a presença de David, caminhou em direção à mesa, sorridente.

— Imogen! Como é bom vê-la novamente!

— Eu que o diga!

Ela o abraçou e beijou-lhe os lábios. Era óbvio que havia algo mais do que uma simples amizade entre os dois, e essa constata­ção foi um choque para Alice.

— Soube que você estava para voltar neste fim de semana e re­solvi mudar meus planos só para vê-lo. Você passou um bocado de tempo fora, David!

— Bem mais do que eu esperava. Algo inesperado aconteceu.

— Eu sei. Madalyn contou-me tudo. — Os olhos azuis da bela mulher voltaram-se para Alice. — Olá. Como vai?

— Bem, obrigada.

— Vocês nunca se viram antes — explicou David. — Esta é Imogen Barrymore. Mora em São Tomás.

— É uma pena não poder ajudá-la — lamentou Imogen. — Só que não cheguei a conhecer nem mesmo seu marido. Deve ser hor­rível perder a memória.

— Talvez ela venha a recuperá-la depois de algum tempo em Santa Amélia. Sente-se, Imogen. Quer beber algo?

— Não, obrigada. Vão chamar nosso vôo a qualquer instante.

— Sempre organizada, não?

— É claro. A propósito, falei com Madalyn há apenas uma ho­ra. Vocês vão passar a noite em nossa casa. Sabe como meus pais se sentiriam caso vocês fossem a São Tomás e ficassem num hotel.

— Sim, sei. Madalyn falou se alguém iria nos buscar em Roadtown?

— Sim. Haverá uma lancha à espera de vocês.

— Ótimo. Assim não terei de telefonar.

Enquanto os dois conversavam, Alice sentia-se cada vez mais isolada e infeliz. Pela primeira vez depois que descobrira sua iden­tidade, David mostrava-se alegre e comunicativo. Não havia dúvi­da de que ele gostava muito de Imogen. E a conversa dos dois prosseguiu, ininterrupta, mesmo depois, já dentro do avião. Co­mo a primeira classe estava praticamente vazia, Imogen pôde es­colher um lugar ao lado deles. E só por uma vez durante a conversa ela se preocupou em dirigir a palavra a Alice:

— Você deve estar exausta, não é, querida? A viagem até Nova York é tão longa.

— Nem tanto. E a viagem foi mais tediosa do que cansativa. Eu já havia assistido ao filme que foi exibido.

— Quer dizer que David não a entreteve durante a viagem? Que­rido, querido, como pôde fazer uma coisa dessas?

— Ninguém é perfeito — ele respondeu.

O tom irônico do comentário de Imogen não escapou a Alice. Dali em diante, teria de tomar mais cuidado com o que dizia na frente daquela mulher. Apesar da gentileza com que ela a tratava, estava claro que vira em Alice uma possível rival.

Depois de algum tempo, cansada de ser posta de lado, Alice fe­chou os olhos e fingiu dormir. Acabou mesmo por adormecer. Teve um sono tranqüilo, tomado por sonhos estranhos, povoados de personagens sem rostos dizendo coisas sem sentido. Foi acordada por David, cinco minutos antes da aterrissagem. Lá embaixo, em meio à escuridão, brilhavam as luzes de uma cidade.

— Sente-se descansada?

Ela fez que sim com a cabeça, duvidando de sua capacidade de emprestar firmeza à voz. A verdade era que estava ansiosa e com medo. Aquelas ilhas eram o ponto de partida em sua busca de um passado perdido.

 

 

Capítulo III

 

A casa dos Barrymore situava-se em uma das colinas ao redor de Charlotte Amalie, capital das Ilhas Virgens Americana. Como Alice previa, tratava-se de uma residência suntuosa, com uma es­plêndida vista da cidade e do porto.

Os pais de Imogen tinham por volta de cinqüenta anos e obvia­mente adoravam a filha. Tinham um filho também, temporaria­mente ausente, mas que era esperado a qualquer momento. O próprio David foi recebido como se fosse um membro da família. Como a sra. Barrymore explicou durante o jantar, haviam conhe­cido os Hamilton um ano e meio depois da morte de Paul, mas era como se tivessem sido amigos durante toda a vida. Pelo visto, não era apenas Imogen quem esperava pela união das duas famílias.

— Santa Amélia é tão isolada! — queixou-se a sra. Barrymore. — Quando sentir vontade de fazer compras ou de mudar de am­biente, precisa vir para cá. Será um prazer hospedá-la.

— É muita bondade sua — agradeceu Alice, não com certa reserva.

— Se estiver cansada, não espere por nós. —- David sugeriu, adi­vinhando o desconforto dela. — Ninguém vai se importar se for cedo para a cama. Afinal, está cansada, e ainda temos meio dia de viagem pela frente.

— É isso mesmo, querida — disse Imogen. — Quer que eu a leve até seu quarto, ou acha que consegue chegar até lá sozinha?

— Pode deixar, que eu chego lá. Sra. Barrymore, o jantar esta­va uma delícia, e sinto muito não ter feito justiça a ele. Boa noite a todos.

O quarto que lhe haviam reservado ficava na parte de trás da casa, com vista para o pátio interno, repleto de plantas, e bastante iluminado. Ao entrar, Alice abriu a janela que dava para a sacada e ali ficou, olhando para a piscina, aspirando o ar fresco da noite, enquanto tentava reordenar seus pensamentos confusos. Sentia-se sufocada naquele lugar, em meio àquelas pessoas, e nem ao me­nos podia contar com o apoio de David. E pensar que ele confes­sara seu desejo por ela…

Mais tarde, ela estava deitada, sem conseguir dormir, quando ouviu vozes no pátio. Mesmo ditas em voz baixa, as palavras lhe chegavam com nitidez aos ouvidos.

— David, você sabe o que sinto por você. Pensei que o senti­mento fosse recíproco.

— E não tem motivos para duvidar disso — ele respondeu, com uma ponta de irritação. — Só que preciso levar Alice para casa.

— Aquela casa não é o verdadeiro lar dela. Alice só usa o nome Hamilton porque se casou com Paul.

— Ainda assim, é a dona de cinqüenta por cento da propriedade.

— Pode-se dar um jeito nisso.

— Como? Está sugerindo alguma espécie de acordo?

— Algo assim.

— De qualquer modo, ela precisa recuperar a memória.

— Talvez isso nunca aconteça.

— Tem de acontecer! Quero saber o que aconteceu entre ela e Paul naquele dia. Só ela pode me revelar isso.

— E se ela não lhe disser nada?

— Vamos enfrentar um problema de cada vez. Ainda é muito cedo para pensar nisso. Até lá, tenha paciência.

— Você é um homem duro, David.

— Sou terrível! — Pelo tom de voz, Alice teve certeza de que ele estava sorrindo. — Deixe-me resolver esse problema e depois pensar no futuro.

Foi então que reinou o mais completo silêncio. Imóvel na cama, mal se atrevendo a respirar, Alice imaginava os dois abraçados, os lábios sensuais que ela conhecera acariciando os de Imogen… Aquela víbora! Imogen sabia muito bem qual quarto Alice ocupa­va e levara David para baixo daquela janela justamente para que ela ouvisse a conversa.

Num gesto inconsciente Alice acariciou a marca de nascença que tinha no seio, e, pela primeira vez, pôs-se a imaginar como David podia ter conhecimento daquele sinal. Será que Paul lhe havia con­tado tal particularidade ou ele mesmo a vira de biquíni? Quando ela fora descoberta, havia em seu corpo a marca de um biquíni bastante ousado, do tipo que atualmente não teria coragem de usar.

Devia ter mudado muito… É claro que agora era mais velha e, sem dúvida, um pouco mais discreta do que fora aos vinte anos. De uma coisa, porém, tinha certeza: em nenhum momento de sua vida se­ria capaz de se casar por dinheiro. Na época de seu casamento, ela devia estar apaixonada por Paul.

Mais uma vez o silêncio da noite foi quebrado. Uma risada sua­ve, murmúrios abafados, o som de passos que se afastavam. E de­pois, nada mais além do murmúrio das folhas sacudidas pelo vento.

O sol quente da manhã brilhava sobre São Thomas, oferecendo a Alice uma vista esplêndida da cidade e do porto onde estavam ancorados dois transatlânticos. As ruas e praias deviam estar co­loridas, cheias de gente, e, no entanto, ela sentia um desejo irresis­tível de deixar a cidade o quanto antes. Ao mesmo tempo, porém, a idéia de encontrar o resto da família Hamilton fazia com que suasse frio. Por enquanto, nada lhe parecera familiar, e ninguém podia lhe garantir que em Santa Amélia as coisas fossem diferentes.

Além dela e dos criados, a única pessoa acordada na casa era David, já instalado numa mesa do terraço, tomando seu desjejum. Imogen provavelmente estava cansada demais, depois de passar a noite em claro nos braços dele…

— A que horas vamos embarcar para Tortola? — perguntou ela, após pedir frutas e cereais a uma empregada.

— Por volta de meio-dia. — Ele examinou o rosto de Alice en­quanto ela se servia de café. — Pelo jeito, você teve uma boa noi­te. Parece leve, descansada…

— Talvez o clima tenha efeito calmante. O tempo é bom assim durante o ano inteiro?

— A média é de vinte e seis graus, mas a umidade é baixa devi­do aos ventos alísios, e, portanto, o calor não chega a ser insupor­tável nem mesmo quando a temperatura ultrapassa os trinta. Por que não comprou um guia turístico das Ilhas Virgens? Teria todas as informações necessárias.

— Eu comprei. Só que não há informações sobre Santa Amé­lia. Por que não me fala a respeito dela?

— Não quero influenciá-la. Com um pouco de sorte, talvez vo­cê se recorde de algo ao rever o lugar. A propósito, Madalyn tal­vez venha na lancha.

— Muito gentil da parte dela.

— Não se iluda. Ela deve estar é louca para entrar em cena.

— Entrar em cena? Você ainda acha que estou fingindo?

— É claro que não! Foi só uma figura de linguagem. Às vezes acho minha irmã meio maluquinha, e desconfio que essa história toda deve tê-la deixado bem excitada.

— Que idade ela tem?

— Vinte e cinco. A mesma idade que tinha Paul quando morreu.

— É casada?

— Ainda não. Está pensando no assunto.

— Qual é o problema?

—- Ela não está muito convicta a respeito do que sente. Pelo me­nos, acredito que seja esse o motivo. Ela é um tanto imprevisível.

— Ao contrário do irmão. Você tem uma facilidade muito gran­de para formar opiniões a respeito das pessoas, não é?

— Sim, tenho — respondeu ele, calmo, alheio à ironia da observação. — Sou excelente para avaliar o caráter das pessoas.

— Nunca erra nesses julgamentos?

— Quase nunca.

— Tanta convicção deve tornar a vida bem fácil para você… Por que está contra mim, David? Por que me persuadiu a vir para cá? Se não houvesse me contado que eu tinha direito à herança de Paul, eu nunca teria descoberto.

— E se você não se atirasse na frente de meu carro, em Lon­dres, eu nunca teria descoberto que estava viva. E daí? Você existe e está aqui. Isso faz um bocado de diferença.

— Tudo seria bem mais fácil se eu tivesse morrido, não é?

— Sem dúvida. Só que você não morreu, e vamos descobrir a qualquer custo o que aconteceu há dois anos.

— O que vão fazer com o corpo que está na cripta da família?

— Removê-lo para outro túmulo, é claro. Seja lá quem for a mulher, ela não é uma Hamilton.

— Talvez ela tenha algum parente vivo.

— Estive pensando nisso. A moça tinha uma aliança e, portan­to, deve haver um viúvo por aí que nunca encontrou o corpo da esposa.

— Mas não necessariamente em São Tomás.

— Não, mas é o lugar mais indicado para se começar as investi­gações. Quando formos à cidade, podemos parar na delegacia e examinar nos arquivos a relação das pessoas desaparecidas naque­le período. Talvez você até mesmo seja capaz de reconhecer algum nome. Essa mulher pode ter sido o motivo do fracasso de seu ca­samento.

— Quem sabe? E isso pode levar tempo. Não vamos chegar atrasados?

— A lancha não partirá sem nós. Assim que você terminar de comer, sairemos.

— Talvez Imogen ainda não esteja acordada.

— Não tem importância. Já nos despedimos. Não sei por quê, mas tive a impressão de que você não gostou dela.

— Por que pensa assim?

— Não sei bem. Seu modo de olhá-la, penso eu. Imogen está preocupada com sua situação.

— Não preciso da compaixão dela! Suportei essa situação sozi­nha por dois anos e me saí muito bem.

— Com a ajuda de Larry. Acha que teria conseguido sem ele?

— Se fosse preciso, sim.

A chegada do desjejum de Alice veio interromper a discussão. Ela comeu em silêncio, consciente de que David continuava a observá-la.

— Se precisa comprar algo, aproveite enquanto está aqui. Tortola não é o que se pode chamar de um paraíso das compras.

— Como vocês se arranjam em Santa Amélia?

— O que não podemos produzir na ilha encomendamos aqui.

— Não acha esse estilo de vida um tanto inc&oci



  

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