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CAPÍTULO IXCAPÍTULO IX
Francesca dormiu mal. Apesar de ter conseguido estabelecer uma espécie de trégua com Will, havia sido impossível relaxar. Lembrar o que acontecera na biblioteca era inquietante, porque suspeitava de que, mesmo depois de tudo que ocorrera, ainda era vulnerável ao poder de sedução do ex-marido. Por outro lado, quem não estaria vulnerável em seu lugar? E era natural que sentisse gratidão e carinho por tudo que Will fizera nas últimas horas. A verdade era que ele sentia pena. Era um homem decente, e nenhum ser humano normal desejaria o que ela enfrentava nem mesmo ao pior inimigo. Havia sido esposa dele por cinco anos, e viveram juntos por algum tempo antes disso, o que justificava o fato de Will tê-la acolhido em sua casa. Por mais amarga que houvesse sido a separação, não podiam simplesmente apagar o passado. E ele não tivera a intenção de beijá-la. Sabia disso. Quisera apenas confortá-la e perdera o controle sobre a situação. O problema era que se conheciam bem demais. Ao sentir os lábios sobre os dela, fora invadida por um sentimento de familiaridade que não pudera combater. Por isso despertava com aquele estranho pressentimento, como se uma espada pendesse sobre sua cabeça. A expectativa do reencontro não era exatamente agradável. Teria preferido esconder a cabeça sob o travesseiro e passar o resto do dia na cama, escondida. Pela primeira vez em meses, o maluco que a perseguia não ocupava o centro de seus pensamentos. Tinha a impressão de que os acontecimentos da noite anterior alteraram a situação de forma irrevogável. O que quer que fizesse desse momento em diante, as coisas nunca mais seriam as mesmas. Impaciente, apoiou o corpo sobre os cotovelos. Estava exagerando, como sempre. Só pensava tanto no que acontecera na biblioteca porque não queria refletir sobre o que estava prestes a enfrentar. A volta para casa... De repente o estômago contraiu-se. Não queria ir embora, e o que mais a apavorava era o fato de não ter escolha. Teria de voltar para Londres, para o apartamento, para aqueles horríveis telefonemas. Oh, o que faria? Estava se levantando quando alguém bateu na porta. — Entre. Era a sra. Harvey. — Está acordada, senhora! — Constatou com algum embaraço. — Estive aqui antes, mas não quis despertá-la. Confusa, Francesca olhou para o relógio sobre o criado-mudo e espantou-se. — Meu Deus! Nove e meia! Oh, sra. Harvey, espero não ter atrasado sua rotina diária. Demorei muito para pegar no sono ontem à noite e... — Por favor, senhora, estou aqui para servi-la — a governanta protestou constrangida. — Meu lorde disse que não devíamos acordá-la. Oh, sim, e ele me pediu para avisá-la de que estará de volta às cinco. Se precisar de alguma coisa antes disso, Edna e eu ficaremos felizes em servi-la. — Ele... saiu? — Meu lorde? Sim, senhora. Creio que levou a srta. Merritt a York. Francesca apertou os lábios. Se partisse agora, nunca mais o veria. — Quer que eu traga seu café, senhora? Soubemos que torceu o tornozelo. Se fizer sua refeição no quarto, não terá de forçá-lo na escada. — Sim, tem razão. Obrigada, sra. Harvey. — Quer alguma coisa especial? Um ovo quente, talvez? — Apenas café e torradas, obrigada. O comentário da governanta sobre seu tornozelo contribuiu para a decisão. Não poderia voltar a Londres hoje, e o que mais a inquietava era o alívio que experimentava. Permanecer no mosteiro depois do que havia acontecido na noite anterior não era exatamente uma demonstração de sensatez, mas não tinha o que temer. A julgar pela reação de Will, o evento não se repetiria.
A manhã passou sem incidentes. Depois do banho e do café, Francesca envolveu o tornozelo numa bandagem elástica providenciada pela sra. Harvey e desceu, disposta a aproveitar a ausência de Will para explorar a casa com mais liberdade. Sem pensar, dirigiu-se ao terraço de onde podia ver o jardim. Gostaria de ir ao lago, onde havia um caramanchão fresco e confortável, mas sabia que não devia arriscar-se. O tornozelo ainda doía, e não queria passar novamente pelo constrangimento de ter de esperar que alguém fosse resgatá-la. Apoiada na balaustrada da varanda, apreciou a beleza do terreno que cercava o mosteiro. O jardim era bem cuidado, mas a construção era outra história. Virando-se, apoiou os cotovelos na grade e inclinou a cabeça para poder enxergar melhor a fachada de pedras. O tempo deixara suas marcas no mosteiro, que necessitava de reparos urgentes e extensos. Era uma pena que um edifício tão antigo estivesse entregue à degradação. A falta de recursos devia ser o motivo da presença de Emma Merritt na vida de Will, pensou com cinismo. Devia ter sido sugestão de lady Rosemary, mas ele não parecia ter objeções ao plano. Além do mais, não seria nenhum sacrifício casar-se com uma mulher jovem, linda e rica. Francesca almoçou no salão matinal e tomou café na sala de estar. Estava pensando em como ocuparia seu tempo quando ouviu o som de um carro se aproximando e foi até a janela. Um Rolls Royce estava parado diante da porta, e o motorista ajudava a visitante a descer do banco traseiro. Tensa, reconheceu a silhueta alquebrada de lady Rosemary. Emoções confusas e inquietantes a tomaram de assalto. Dentre elas, o pânico predominava, mas logo conseguiu dominá-lo. Experiências recentes a tornaram mais dura, e duvidava que lady Rosemary pudesse dizer alguma coisa capaz de feri-la. Mesmo assim, precisou de muita determinação para permanecer onde estava quando todos os instintos a impeliam a fugir. Will não estava em casa, nada a obrigava a encontrar aquela mulher. Mas era evidente que lady Rosemary não procurava pelo neto. Sabia que ele estava fora, o que significava que a visita só podia ter um propósito: questioná-la. Por isso Francesca a esperou onde estava, ao lado da janela. Watkins acompanhou a visitante até a sala de estar. — Quer alguma coisa, minha lady? Um chá, talvez? — Agora não, Watkins. — Lady Rosemary o dispensou com um gesto breve. — Feche a porta ao sair. Francesca sentiu os nervos tensos diante da demonstração de autoridade, mas não demonstrou o que sentia. Pelo contrário, encarou a avó de Will com superioridade e controle, e notou que a surpreendia com a aparente indiferença. Lady Rosemary sentou-se e fitou-a com irritação antes de começar a falar. — O que veio fazer aqui, Francesca? Devia saber que não seria bem-vinda. Francesca respirou fundo. Como sempre, Lady Rosemary ia direto ao ponto. — Não? Estranho, não foi essa a impressão que tive. Will insistiu para que eu passasse o final de semana aqui. — Will é um idiota. Sua presença não é conveniente, especialmente neste final de semana. Ele já havia assumido outros compromissos. — E balançou a cabeça. — Meu neto sempre foi muito influenciável. — Concordo plenamente. — Afastando-se da janela, foi apoiar as mãos no encosto do sofá oposto ao que lady Rosemary escolhera para sentar-se. — Para começar, ele acredita em tudo que você diz. Só alguém muito influenciável, ou muito leal, seria capaz de tamanha confiança. — Não pode falar comigo nesse tom! — Não? Acabei de falar. O que acha que pode fazer a respeito? Ou melhor, acredita que exista algo que ainda não tenha feito? — Não me desafie, Francesca! O fato de não ser mais a mulher do meu neto não significa que não tenha o poder de influenciar sua vida. Uma palavra para um amigo no governo, e seu empregador desistirá de contar com seus préstimos profissionais. Francesca engoliu em seco. — Está blefando. — Estou? — Lady Rosemary sorriu com malícia. — Acha que está em condições de correr o risco? Sentia-se apavorada, mas não podia mudar de atitude. Se cedesse agora, a única coisa que restaria seria entrar no carro e voltar para Londres. Não poderia permanecer no mosteiro depois de demonstrar vulnerabilidade. — Seria mesmo capaz de algo tão baixo? — perguntou. — Só para se livrar de mim? Por quê? Do que tem medo? — Não tenho medo de você — ela respondeu furiosa. Mas uma fina camada de suor sobre seu lábio a desmentia. — Não a quero aqui, Francesca. Você não passa de uma... doente. Este não é o seu lugar. Nunca foi. — Por isso tratou de livrar-se de mim — Francesca afirmou com tom frio. — Sabia que não gostava de mim, mas nunca imaginei que pudesse tomar providências para destruir o casamento de seu neto. E, pior ainda, nunca pensei que fosse capaz de prejudicar seu bisneto para conseguir aquilo que desejava. E eu sou a doente? — Não sei do que está falando! — É claro que não. Vai morrer negando, mas isso não quer dizer que eu não conheça a verdade. Nós duas sabemos que eu queria aquele bebê. Mas aquele velho idiota que chama de médico é como um cachorrinho, sempre pronto para cumprir suas ordens, mesmo as mais absurdas. Lady Rosemary ergueu a mão. — Se está falando sobre o dr. Rossiter, comete um engano lamentável. Ele é um excelente profissional. Pergunte a todos que o conhecem. Cuidou de nossa família por mais de quarenta anos, e também é um amigo muito querido. — Quer dizer que ele ainda exerce a medicina? — Oh, não! Archie aposentou-se. — Ele parecia tão velho, que pensei que estivesse morto há anos. — Archie está vivo e bem de saúde e costuma jantar em Mulberry Court com frequência. Desde que ficou viúvo, minha casa é como um segundo lar para ele. — A escolha foi dele, ou sua? — Francesca era dominada pelo ressentimento. — Imagino que se sinta no dever de mantê-lo sempre feliz e satisfeito. — Não me sinto obrigada a nada! Archie é um homem velho e sozinho. Precisa de companhia, e não tem mais ninguém com quem contar. — Que conveniente! — Ele não é incompetente, Francesa. Portanto, se pretende processá-lo ou denunciá-lo por algum tipo de irregularidade, é melhor pensar bem antes de agir. Francesca respirou fundo. — Não havia pensado nisso. Até tocar nesse assunto, a possibilidade de um processo ou de uma ação legal jamais havia passado pela minha cabeça. Por isso está tão desesperada para se livrar de mim? Tem medo que eu discuta minhas dúvidas com Will? — Não seja ridícula! — Lady Rosemary impacientou-se. — Não vou permitir que me manipule com essas ameaças inúteis. Quero que saia desta casa ainda hoje. Depois de um instante de hesitação, ela contornou o sofá e sentou-se diante da nobre. — Lamento, mas não posso atender à sua... solicitação — respondeu, mostrando a bandagem elástica. — Sofri um pequeno acidente durante um passeio ontem à tarde. Torci o tornozelo e não me sinto em condições de dirigir até Londres. Não hoje. — Está mentindo! — Não estou. — Nesse caso, meu motorista irá levá-la. Ele não faz muito para merecer seu salário, e ficará feliz com a possibilidade de dar um passeio mais longo. Vou mandar Watkins chamá-lo aqui e... — Não se incomode — Francesca alcançou a sineta de prata antes dela, impedindo-a de chamar o mordomo. — Vim até aqui no carro de uma amiga, e não pretendo partir sem ele. — Está se recusando a ir embora? — Exatamente. — Então não me deixa outra opção senão entrar em contato com meu amigo no governo. Espero que saiba o que está fazendo — suspirou, levantando-se com alguma dificuldade. — Na situação em que se encontra, seria mais prudente preservar o emprego. — A que situação se refere? — Will me contou que está sendo perseguida por um homem. Devo dizer que isso não me surpreende. Você sempre foi provocante demais para o meu gosto. — Eu? Provocante? — Francesca espantou-se. — Sim, você. Nunca aprovei a maneira como se comportava, ou as roupas que vestia. Todas aquelas saias curtas e calças justas! — Ela a examinou da cabeça aos pés. — Vejo que não mudou nada. — Está enganada. Mudei muito nesses cinco anos. Quanto ao meu emprego, sua ameaça pode ser uma espécie de tiro pela culatra. Sem trabalho, não terei motivo algum para voltar para Londres. — Se acha que Will a deixará ficar aqui... — É bem possível que ele aceite a ideia até com um certo entusiasmo. Apesar do que pensa, Will ainda se importa comigo. E se não tomar cuidado, lady Rosemary, vai acabar sendo a maior prejudicada por seus esquemas diabólicos. A avó de Will respirava com dificuldade, e um rubor intenso tingia seu rosto enrugado. — Está me ameaçando, menina? — Não. Estava apenas pensando em voz alta. — Francesca sorriu. — Não pode me impedir de pensar. — Vai deixar esta casa, ou não? — Não posso. Pelo menos até amanhã. — Amanhã — Lady Rosemary repetiu. — Isto é uma promessa? Francesca sorriu novamente, dessa vez com cinismo. — Desde quando minha palavra tem algum valor? — Vou acreditar no que diz — a mulher declarou com tom seco. Em seguida saiu sem uma única palavra de despedida. Francesca estava novamente na janela quando o Rolls Royce deixou a propriedade, mas dessa vez tremia de forma quase convulsiva. Enfrentar a avó de Will havia sido mais exaustivo do que imaginara. É claro que havia uma pequena medida de conforto no fato de tê-la superado, mas sabia que não era tão segura quanto dera a entender. Quanto a permanecer no mosteiro, sabia que havia mentido. Will não a queria em Lingard. Não devia cometer o engano de confundir o beijo da noite anterior com simpatia, ou qualquer outro tipo de sentimento. O fato de Will ainda considerá-la sexy e atraente não queria dizer nada.
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