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CAPÍTULO IIICAPÍTULO III
Francesca nunca dormira numa das suítes de hóspedes da mansão. Antes do casamento, quando costumava passar semanas em Lingard, dormia no quarto e na cama de Will, com ele, e depois, quando o relacionamento se tornara insustentável, havia sido ele quem deixara os aposentos do casal. Não que suas acomodações fossem inadequadas. Pelo contrário, tinha mais conforto de que precisava. E ali não sentia necessidade de olhar para trás a todo instante, nem temia ser despertada por um telefonema ameaçador ou pela presença de um invasor. Não sabia por que fora procurar o ex-marido. Entrara em pânico ao receber aquele horrível telefonema depois de descobrir a janela quebrada. Até então pensara no apartamento como uma espécie de santuário, mas descobrir que ele podia observá-la até mesmo ali fora o último e decisivo golpe. Perdera a capacidade de racionar, e sabia que nunca mais voltaria a sentir-se segura na própria casa. Mas Lingard também não era o seu lugar. Will nunca mais a procurara depois da separação e, apesar de ter se mostrado solidário ao tomar conhecimento de seu drama, não a queria por lá. Talvez devesse ter aceito o convite de Clare e se hospedado na casa dela. Moravam a poucas ruas de distância uma da outra, e assim teria podido trabalhar no dia seguinte. Nas atuais circunstâncias, teria de pensar numa boa desculpa para oferecer ao chefe. Ele nunca havia se mostrado disposto a ajudá-la ou ouvi-la, nem mesmo quando relatara a perseguição que estava sofrendo. Mas era quinta-feira, e com um pouco de sorte estaria bem melhor na segunda de manhã. Sabia que não estivera de posse de seu juízo perfeito quando pedira o Mazda de Clare emprestado algumas horas antes. Tudo que sentira havia sido uma necessidade imperiosa de afastar-se de Londres, e procurara Will porque ele era alguém em quem podia confiar. E essa era uma grande ironia, pensou, lembrando como não merecera sua confiança quando o deixara. Por que o procurara, se sabia que ele estava sempre pronto para pensar o pior a seu respeito? Se tivesse parentes próximos... Mas, como Will, também havia perdido os pais muito cedo e fora viver com uma tia de sua mãe, alguém que considerava um dever acolher uma sobrinha órfã, mas nunca demonstrara prazer em sua companhia. Francesca respirou fundo e levantou-se da cama. Precisava dormir, mas a mente recusava-se a atender ao apelo do corpo exausto. Viu seu reflexo no espelho sobre a cômoda e aproximou-se, examinando os traços com olhar crítico. Os olhos estavam inchados e vermelhos. Essa noite, apesar de ser dois anos mais jovem que Will, sentia-se décadas mais velha. A valise que Watkins levara ao quarto pouco depois de sua chegada fora deixada sobre um banco estofado, e ela a abriu para apanhar a bolsa de objetos de higiene pessoal e a camisola. Além desses itens, jeans, camisetas e roupas íntimas compunham sua reduzida bagagem. Não perderia tempo pendurando as roupas, pois elas ocupariam um décimo do espaço disponível no imenso armário embutido. O banheiro da suíte também era grande. Francesca lavou o rosto e escovou os dentes, prometendo a si mesma que usaria a banheira no dia seguinte, quando não estivesse tão debilitada. Impaciente, removeu os grampos que prendiam seus cabelos e deixou-os caírem soltos sobre os ombros. Estava se deitando entre os lençóis de linho quando ouviu as batidas na porta. Apesar da distância que a separava de casa, sua primeira reação foi abafar um grito de pavor, o coração disparado no peito e o estômago contraído. Em seguida a realidade se impôs e ela se acalmou. Devia ser a sra. Harvey querendo saber se precisava de mais alguma coisa. — Entre. Uma onda de calor a invadiu quando Will passou pela porta. — Pensei que gostaria de uma bebida relaxante — disse, mostrando a xícara entre as mãos. — Leite quente. Normalmente ajuda a dormir. — Obrigada. — Francesca apoiou-se contra os travesseiros o puxou o lençol contra o corpo. — É muita bondade sua — disse, tomando a xícara das mãos dele. — Não me lembro da última vez em que bebi leite quente. — Não gosta de leite? — Oh, eu gosto! Só quis dizer que há muito não... não ouço essa oferta. — Quase dissera que há muito ninguém cuidava dela. — Lamento estar causando todo esse incômodo, mas... não sabia para onde ir. — Não se preocupe. — Virou-se para sair. — Peça para a sra. Harvey trazer seu café na cama, se quiser. — Oh, não... — começou. Mas a porta já havia se fechado, e o único conforto de que dispunha era o do leite. Pelo menos ele demonstrara alguma compaixão. No lugar dele, seria tão generosa? Com Will, provavelmente, decidiu. Apesar de tudo que acontecera, ainda o considerava muito atraente. Pelo menos no sentido físico, corrigiu-se. O que era bem diferente do que sentira no passado. Mesmo assim... Droga! William Quentin era um homem! Depois das experiências dos últimos meses, devia ter um pouco mais de bom senso.
Francesca dormiu um sono pesado e acordou com o sol penetrando por uma fresta entre as cortinas. Will devia ter posto alguma coisa além de leite quente na xícara que levara ao quarto na noite anterior. De qualquer maneira, sentia-se disposta, relaxada e otimista. Estava quase conseguindo convencer-se de que a situação não era tão terrível quanto imaginara, quando as batidas na porta a assustaram. Dessa vez era a sra. Harvey. Sorrindo, ela entrou carregando uma xícara de chá e fitou-a com um misto de amizade e respeito. Esperava que a governanta se ressentisse com sua presença, como certamente aconteceria com a avó de Will. Lady Rosemary nunca concordara com seu casamento, e não ficaria satisfeita quando fosse informada sobre sua presença. Mas a sra. Harvey não parecia incomodada. Apesar de Francesca ter acabado de sair do banho e estar coberta apenas por uma toalha felpuda, ela não se mostrava ofendida ou constrangida. — Meu senhor quer saber se gostaria de tomar o café no salão matinal — ela anunciou, deixando a xícara sobre o criado-mudo antes de encará-la. — Permita-me dizer que parece muito melhor esta manhã, senhora. Ficamos muito preocupados com seu estado ontem à noite. O que Will podia ter dito aos criados? A maior parte dos empregados estava no mosteiro desde antes de seu nascimento, e por isso eram tratados como familiares e informados sobre tudo que acontecia na casa. — Estou melhor, obrigada — disse. — Diga ao conde que descerei dentro de quinze minutos. Mas, por favor, nada além de café e torradas para mim — recomendou, lembrando a paixão da governanta por ovos e bacon. — E obrigada pelo chá. Francesca terminou de vestir-se entre um e outro gole de chá. Trançou os cabelos para adquirir uma imagem mais jovem e suavizar o rosto cansado, vestiu calça jeans e uma camisa cor de bronze, quase do mesmo tom dos cabelos, e calçou alpargatas sem meias. Fora do quarto, percorreu o longo corredor que levava ao hall do segundo andar e desceu a escada acarpetada para o vestíbulo. Os retratos dos ancestrais de Will alinhados nas paredes pareciam fitá-la com desaprovação e desdém, como Lady Rosemary. Oh, não! Se não tomasse cuidado, acabaria paranóica! Imaginava estar sendo observada em todos os lugares! Will ainda estava sentado à mesa quando ela entrou no salão ensolarado, mas já havia terminado a refeição e ocupava-se com a correspondência. Ao vê-la, ele abandonou a tarefa e convidou-a a sentar-se. — A sra. Harvey está providenciando suas torradas, mas o café ainda está quente. — Obrigada. — À luz do dia, os temores da noite anterior pareciam exagerados e ela tentou mostrar-se composta ao pegar o bule. Mas, apesar do esforço, a mão tremeu e ela deixou cair algumas gotas da bebida escura sobre a toalha. — Oh, não! Isto está se tornando um hábito! Desculpe, Will. Não sei por que ando tão desastrada. — Depois de tudo que me contou ontem à noite, acho que tem motivos de sobra para estar nervosa. Mas aqui estará segura, Francesca. Não precisa se preocupar com invasores, e só será perseguida pelos cães. — Eu sei — ela sorriu. — Obrigada por ter me ouvido ontem à noite. Acho que precisava de alguém com quem conversar. Sei que foi muito atrevimento vir até aqui, mas creio que funcionou. — Funcionou? — Will franziu a testa. — Não fiz nada além de oferecer uma cama onde pudesse passar a noite. Quer convencer-me de que isso mudou a situação? — Sinto-me melhor por ter desabafado. Hoje não estou tão tensa, e sinto-me até preparada para admitir que talvez as coisas não sejam tão terríveis quanto eu imaginava. — Mas sua janela foi quebrada, não? E houve um telefonema. — Sim, mas é provável que ele tenha apenas aproveitado a janela quebrada. Quero dizer... pode ter sido uma criança, não? Ele viu a janela estilhaçada da rua e decidiu usá-la para assustar-me. — Acredita no que está dizendo? Ela encolheu os ombros. — É uma ideia. O vandalismo é um dos maiores problemas dos grandes centros urbanos. — É claro. Tomou providências para reparar a tal janela? — Minha senhoria prometeu relatar a ocorrência à polícia e mandar o genro para consertá-la. Mas não contei a ela sobre o telefonema. Esse é um assunto sobre o qual não gosto de falar. — Entendo. Estive pensando no que posso fazer. Deve haver algum jeito de deter esse maluco. Arrombamento e invasão são crimes previstos pela lei. Francesca suspirou, mas antes que pudesse oferecer uma resposta, o mordomo entrou com uma bandeja. — Bom dia, senhora — ele cumprimentou com confiança maior do que a demonstrada na noite anterior. — Dormiu bem? — Muito bem, obrigada, Watkins — Francesca respondeu sorrindo. Era bom saber que os criados da casa não a culpavam pela separação. O mordomo depositou um prato de torradas, um pote de manteiga e um bule de café fresco sobre a mesa. Em seguida, ele se retirou e, mesmo sem apetite, Francesca serviu-se de uma torrada. Apesar do que dissera a Will, não estava ansiosa para voltar a Londres, e a ideia de dormir sozinha em seu apartamento naquela noite era suficiente para deixá-la com a boca seca. — Precisa procurar a polícia e relatar os últimos eventos, Fran. Agora tem algo de concreto a oferecer. — Como vou provar que alguém tentou entrar no meu apartamento? E, pior ainda, como comprovar que foi ele? Existem centenas de boletins de arrombamentos registrados todos os dias, e pelo que pude ver, nada foi roubado. — Mas as circunstâncias... — Não sou a única vítima de assédio em Londres, Will. Além do mais, acho que minha reação foi exagerada. Só preciso de algum tempo para recompor-me. — Seria capaz de matá-lo! — Will explodiu furioso. — Eu também. — O que vai fazer? Não acha que devia se mudar? — Está sugerindo que eu vá morar com pessoas que nem conheço? Não. Tenho de enfrentar essa situação e resolvê-la de uma vez por todas. Não posso sair correndo cada vez que ele fizer um movimento. — Entendo o que está dizendo, mas... Francesca, isso tudo é muito estranho. Ontem à noite chegou aqui prestes a sofrer um colapso, e de repente acorda confiante e cheia de otimismo. — Não estou confiante. Mas também não posso permitir que ele me destrua. Afinal, não tenho como provar que ele cometeu algum crime. — Além de invadir seu apartamento e ameaçá-la? — ele apontou com sarcasmo. — Não sei se foi ele. Foi a primeira vez que encontrei uma janela quebrada! Não posso afirmar que o sujeito que me persegue é culpado por isso também. — É exatamente isso que me preocupa. Como pode saber o que esse lunático fará em seguida? Francesca respirou fundo. — Não importa. O problema não é seu, e sou grata por ter me deixado passar a noite em sua casa. Acho que me deixei envolver por toda essa loucura. O que me faz lembrar... Importa-se se eu telefonar para o meu chefe na Teniko? Preciso avisar que talvez não chegue a tempo dê ir ao escritório hoje. — Pode dizer a ele que não irá ao escritório hoje. Francamente, acha que vou deixá-la voltar para Londres agora? É sexta-feira! Deixe o ato de heroísmo para a segunda, está bem? Passe o final de semana aqui. Não se preocupe, porque ninguém vai encontrá-la aqui; descanse e recomponha-se. — Está me convidando para passar o fim de semana em sua casa? — Por que não? Você precisa repousar, e assim terá tempo para pensar. — Tem razão. Mas o que Lady Rosemary vai dizer de tudo isso? Estamos no meio do verão, e ela sempre fica em Mulberry Court nesta época do ano. Duvido que ela aprove minha presença nesta casa. Will franziu a testa como se só então houvesse se lembrado da existência da avó. Rosemary era uma mulher forte, dominadora, e desde o início havia deixado claro que Francesca não era a esposa que ela teria escolhido para o neto. — Estamos na minha casa — ele respondeu depois de um instante de reflexão. Francesca sabia que a casualidade da resposta era apenas aparente, mas não queria encontrar-se com Lady Rosemary. Preferia que ela nem tomasse conhecimento de sua presença. Mas sabia que alguém correria a informá-la. Mesmo que partisse imediatamente, sua visita não deixaria de ser devidamente registrada. Watkins era um velho fofoqueiro, como a sra. Harvey, e embora fossem extremamente leais à família, perdera o direito à privacidade no instante em que deixara o marido. — Não sei... — disse, dando a ele uma oportunidade de recuar. Mas Will não retirou o convite. — Por favor, fique — ele disse com cortesia fria. — Só lamento não poder entretê-la. Estou esperando convidados para o almoço, e preciso tomar algumas providências. Se me der licença...
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