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CAPÍTULO IICAPÍTULO II Francesca! Will cravou os olhos chocados na ex-esposa. Quieto, fitou-a como se jamais a houvesse visto, e ela certamente estava muito diferente da mulher de que se lembrava. Os jeans e as roupas casuais haviam dado lugar a um elegante conjunto de saia e jaqueta azul-marinho e sapatos altos. As pernas longas e esguias, primeira característica a atraí-lo, estavam envoltas em meias muito finas e escuras, e os cabelos, que ela sempre usara soltos, haviam sido confinados num coque na parte de trás da cabeça. Apesar da apresentação austera, ela exibia uma beleza selvagem, envolvente e sensual. — Era isso que eu estava tentando dizer, meu lorde. A srta... sra... sua esposa chegou no início da noite. Espero que não se importe, mas mandei a sra. Harvey preparar a suíte de hóspedes na ala oeste. Will sentiu-se tentado a dizer que Francesca não era mais sua esposa, mas a hesitação que Watkins demonstrara ao escolher a melhor forma de tratá-la era prova mais do que suficiente de que ele não esquecera esse detalhe. — Ainda prefere ser chamada de sra. Quentin? — perguntou, olhando para a inesperada visitante com um misto de ironia e reprovação. — Pode ser — ela encolheu os ombros. — Como vai, Will? Sua aparência é excelente. — Obrigado. O que veio fazer aqui? Não me lembro de tê-la convidado, e sua presença é bastante inconveniente neste momento. Os músculos do rosto delicado contraíram-se como se houvessem sido atingidos fisicamente, e a visão o fez experimentar uma onda de culpa. Droga! O que aquela mulher estava fazendo em sua casa? Não tinham mais nada em comum. Se precisava de dinheiro, Francesca havia procurado o lugar errado. — Meu lorde — Watkins interferiu, preocupado com a tensão que pairava no ar —, a sra. Harvey preparou chá e sanduíches para a sra. Quentin. Gostaria de uma xícara também? — Não, obrigado — ele respondeu, consciente da rispidez com que se comportava, mas incapaz de conter-se. Convidara Emma e os pais dela para almoçarem em sua casa no dia seguinte, e não queria passar pelo constrangimento de ter de explicar que estava hospedando a ex-esposa. — Nesse caso, se não precisa mais de mim, meu lorde... — Pode ir descansar, Watkins. E, por favor, informe a sra. Harvey de que teremos três convidados para o almoço amanhã. — Três? — O mordomo olhou para Francesca com ar confuso. — Excluindo a sra. Quentin — Will respondeu sem preâmbulos. — Boa noite. Eu mesmo trancarei as portas. Watkins fez um movimento afirmativo com a cabeça e saiu. Assim que ele fechou a porta, Will virou-se para Francesca com impaciência. — O que pensa estar fazendo? Minha casa não é um hotel. Não pode aparecer aqui quando bem entende. Você foi embora, Francesca. Lingard não é mais sua casa. — Eu sei. — Ela cruzou os braços como se sentisse frio e olhou além dele, para o fogo que ardia na lareira. — Podemos, conversar sentados, pelo menos? Will olhou por cima do ombro. Como Watkins avisara, a sra. Harvey deixara uma bandeja com sanduíches e chá sobre a mesa ao lado do sofá. O fato de Francesca ter entrado em sua casa durante sua ausência o incomodava, mas algo, uma espécie de senso humanitário, o impediu de expulsá-la imediatamente. Seria apenas uma noite. Na manhã seguinte ela iria embora. Não tinha o menor desejo de reaproximar-se dela, quaisquer que fossem suas intenções. Resignado, convidou-a a passar à sala e viu o alívio suavizar os traços de seu rosto. Se não a conhecesse bem, diria que ela estava à beira da histeria. Mas Francesca não tinha nervos, estava sempre no comando de suas emoções. Ela sentou-se no sofá, perto do fogo, e Will ficou surpreso. Apesar do frescor da casa de pedras, a noite era quente e ela usava um conjunto de tecido grosso, o que significava que não podia estar com frio. No entanto ela chegava a tremer. Apesar de ter se servido de uma xícara de chá, não parecia inclinada a provar os sanduíches. Incomodado com o calor proporcionado pelo fogo, Will afrouxou a gravata e abriu o botão do colarinho da camisa. Teria tirado o paletó, mas não queria dar a impressão de estar confortável. Por isso permaneceu onde estava, atrás do outro sofá, com toda a extensão da lareira entre eles. — Não vai sentar-se? — ela perguntou. Foi a ansiedade nos olhos dela que o levou a acomodar-se sobre o braço do sofá. — Muito bem, estou sentado. Qual é o problema? — Cheguei de Londres há algumas horas — ela começou hesitante. — Eu sei. Vi seu carro estacionado lá fora. — O carro pertence a uma amiga. Achei melhor não usar o meu automóvel para não ser notada. Ele... conhece o número da minha placa. — De quem está falando? Se veio pedir um carro novo, saiba que... — Francamente, Will! Acha que eu viria até aqui só para trocar de carro? — Não sei. Na verdade, não consigo imaginar nada que eu possa ou queira fazer por você. E se o problema que está enfrentando tem alguma relação com um homem, então... A xícara de porcelana tremeu sobre o pires e algumas gotas de chá caíram sobre o guardanapo branco. Por um momento, Will pensou que ela tivesse queimado a boca com a bebida escaldante, mas logo percebeu que Francesca estava chorando. Soluços convulsivos sacudiam seus ombros magros. Assustado, não soube como reagir. Nunca vira a ex-esposa chorar, pelo menos não daquela maneira. Mesmo no momento mais amargo e doloroso da separação, ela mantivera uma máscara de indiferença em sua companhia, e se às vezes seus olhos pareciam inchados e vermelhos, ele atribuíra o fato à falta de sono. Mas aquilo era diferente. Qualquer que fosse o problema, era óbvio que se sentia incapaz de solucioná-lo sozinha. A possibilidade de ouvi-la dizer que contraíra uma doença fatal o encheu de dor e medo. Tinha de fazer alguma coisa. Precisava agir e arrancá-la daquele paroxismo de dor. Em nenhum momento considerou a hipótese de estar sendo vítima de uma encenação, porque comportar-se de maneira a despertar piedade não fazia o gênero daquela mulher orgulhosa e altiva. Ou melhor, não fizera. Cinco anos haviam se passado desde que a vira pela última vez, e muitas coisas podiam mudar num período de tempo tão extenso. Mas não acreditava que a personalidade da ex-esposa houvesse mudado. Perdera peso, era evidente, mas não parecia ter perdido o auto-respeito. — Fran — chamou, usando o apelido de forma automática. — Ei, não pode ser tão sério. Vamos lá, acalme-se. Não quis ofendê-la. — Não? A cabeça estivera enterrada entre as mãos, mas os dedos abertos revelavam os olhos cor de âmbar. Ela ainda tremia, mas os soluços haviam cessado. — Talvez não — Will resmungou irritado, estranhando a compaixão que ameaçava sufocar a raiva acumulada ao longo dos anos. — O que está havendo? Trata-se de algum problema de relacionamento? Um homem... — Sim, mas não como está imaginando. — Não? Quantas distinções existem para esse tipo de problema? — Muitas, se quer saber a verdade. Eu não disse que o problema envolvia um homem com quem me relacionei. O fato é que nem nos conhecemos. — O quê? — Will deixou-se cair no sofá. — Quer dizer que está sendo importunada por um desconhecido? — Perguntou, surpreso com a intensidade da fúria que o invadia. — Pelo amor de Deus, Fran, por que não procurou a polícia? — Eu procurei, mas não há nada que possam fazer. — Não seja ridícula! É claro que eles podem interferir. Podem prender o sujeito. Se ele a está incomodando, então... — Ser incomodada por alguém não é o suficiente para mandar o indivíduo para a cadeia. Eles nem sabem quem é o homem! — Por que não conta a eles? — Porque também não sei quem ele é! O sujeito é tão esperto que nunca me deixou vê-lo. Creio que tentou arrombar meu apartamento e... Bem, e foi então que decidi sair da cidade. Não podia ser verdade. Francesca devia estar exagerando. Recusava-se a acreditar que a vida dela corria perigo. — Vamos começar do princípio — disse, tentando manter a calma. — Preciso tentar entender o que está acontecendo. — É claro. — Ela respirou fundo. — Tudo começou há cerca de seis meses, acho. No início, não me dei conta do perigo, — Seis meses! — De acordo com a polícia, esse tipo de lunático pode levar anos até aproximar-se de sua vítima. Parece que a grande diversão resume-se em observar uma pessoa que nem imagina estar sendo perseguida. — Continue — ele pediu, incapaz de fazer um comentário construtivo. — A princípio pensei estar imaginando coisas. Como deve saber, ainda trabalho para Teniko, e recentemente meus horários têm sido instáveis. Fui promovida há pouco mais de um ano, e às vezes saio do trabalho muito tarde. A matriz se mudou para a Califórnia, e é comum mantermos conferências noturnas via satélite. — Tratam de trabalho à noite? — É manhã em San Francisco. Estamos desenvolvendo um novo programa de computador, e como o mercado da realidade virtual é muito competitivo, nossas conversas são sempre confidencias. — Não quero saber sobre sua carreira — ele cortou irritado. — Resumindo, normalmente sai do trabalho sozinha, quando o edifício já está vazio? — Exatamente. A maioria das pessoas já voltou para casa, o trânsito flui melhor e... é muito mais fácil seguir alguém que não está perdido no meio de uma multidão. — Mas é mais fácil ser descoberto, também. — Só se você quiser ser visto. Nem sempre consigo vê-lo, mas sei que ele está ali, atrás de mim. — Entendo. Então esse homem, seja ele quem for, a segue. E você afirma que a polícia não pode fazer nada? — Não sei nem se eles acreditam em mim. — Por que não acreditariam? — Porque nunca viram o sujeito. Ele é muito astuto, Will. Em alguns momentos cheguei a pensar que estava enlouquecendo. Will respirou fundo. Queria dizer que não acreditava em uma palavra do que ouvira e expulsá-la de sua casa, mas não podia. Honestamente, o ímpeto predominante era levantar-se, tomá-la nos braços e confortá-la, protegê-la e prometer que tudo acabaria bem. — Sei quando ele está me seguindo — Francesca continuou com voz trêmula. — É uma espécie de sexto sentido. — E é só isso que ele faz? Segue seus passos? — Era. — Alguém mais o viu? — Só minha senhoria. Ela estava comigo no apartamento certa noite, quando o vi parado na frente do edifício. Havia um enorme chapéu sobre sua cabeça, e por isso não pude ver seu rosto. — E como soube que era ele? — Pela maneira de vestir-se. Ele está sempre com uma jaqueta escura de moletom, dessas que as pessoas usam para correr. — Talvez seja um corredor. — Ele me persegue, Will. Será que não entende? Ele gosta de me assustar. Peguei alguns livros sobre o assunto na biblioteca para tentar entender que vantagem pode haver nesse tipo de atitude. É o elemento de incerteza, o medo despertado na vítima que proporciona o maior prazer. Will hesitou. — Na noite em que o viu na porta do prédio... Não chamou a polícia? — De que adiantaria? Não há lei no mundo que proíba um homem de ficar parado na rua. Passei até a usar meu carro para ir trabalhar, em vez de pegar o ônibus. Mas ele sempre sabe onde me encontrar. A fúria crescia dentro dele. Não queria envolver-se no assunto, mas era como se um ímã gigantesco o arrastasse para o centro do problema. Francesca não era mais sua esposa, mas não permitiria que um pervertido qualquer a aterrorizasse. — Eventualmente comecei a receber telefonemas. Sabe como são essas chamadas — ela encolheu os ombros. — Primeiro uma respiração ofegante, depois um insulto, e finalmente as ameaças. Comprei uma secretária eletrônica na esperança de desanimá-lo, mas foi inútil. Todas as noites, quando chegava em casa, encontrava meia dúzia de recados agressivos e assustadores na fita. — E a polícia não quis aceitar essas gravações como provas? — Oh, sim, eles ouviram as mensagens... e me aconselharam a mudar o número do telefone. Aceitei o conselho, mas uma semana mais tarde as ligações recomeçaram. — Ele conseguiu o número novo? Como? Fran, só pode ser alguém que você conhece! — Não. — Ela estremeceu. — Creio que ele entrou no apartamento. Nós não conseguimos pensar em outra explicação para o que aconteceu. — Nós? Você e quem? — Tom Radley. Ele também trabalha na Teniko e é um grande amigo. Will respondeu com um movimento afirmativo de cabeça. Por que se surpreendia com o fato de Francesca ter amigos, talvez até admiradores? Não havia vivido como um monge desde a separação. Além do mais, o que ela fazia com seu tempo não lhe dizia respeito. — Somos apenas amigos — ela insistiu. — Não estou perguntando. — A voz era indiferente, apesar das emoções que brotavam em seu peito. — É bom saber que pode contar com algum apoio. Isso sempre ajuda. — Não no meu caso. — Francesca o encarou com os olhos cheios de lágrimas, exibindo uma beleza impressionante, apesar do precário equilíbrio emocional. — Tom ofereceu-se para ir morar em meu apartamento, mas não o quero comigo. Não temos esse tipo de relacionamento, e prefiro não alimentar falsas esperanças. Afinal, por que o procurara? Se esperava que também se oferecesse para ir viver em seu apartamento, estava completamente enganada. — Os telefonemas — disse, tentando livrar-se das lembranças provocadas pela ideia. — Não podem ser rastreados? — Já foram. O sujeito usou dezenas de aparelhos públicos espalhados por todos os cantos da cidade. — E a voz não é conhecida? — Não. — E quando deduziu que ele havia estado em seu apartamento pelo menos trocou as fechaduras? — É claro que sim. De repente ela parecia exausta. Se havia trabalhado o dia inteiro e depois dirigido até ali, devia estar esgotada. Sabia que seria melhor deixá-la dormir antes de concluir o interrogatório, mas... — Você disse que não quer ficar no apartamento — persistiu. — Mas não saiu de lá imediatamente após ter percebido a invasão. O que aconteceu esta noite para deixá-la tão perturbada? Sei que estou agindo como advogado do diabo, mas preciso entender de que tem tanto medo. Francesca respirou fundo. — Esta noite, quando cheguei em casa, encontrei a janela do banheiro quebrada. Estava examinando a extensão do prejuízo quando o telefone tocou. Era ele. Primeiro afirmou estar me observando. Perguntei se havia quebrado minha janela. O sujeito riu e disse que eu não devia desperdiçar tempo e dinheiro com o conserto, porque ele voltaria.
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