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CAPITULO TREZECAPITULO TREZE
Rafe dobrou na estrada rumo a Tregellin e, resignado, dirigiu até a casa. Não visitava a avó há duas semanas, desde aquela noite desastrosa do jantar. E não estaria aqui agora não fossem os telefonemas insistentes dele. - Você tem que vir, Rafe - a governanta implorou hoje pela manhã. - Estou preocupada. Aquele resfriado voltou, e ela não anda se cuidando direito. - Então chame o Charteris - aconselhou Rafa ainda se recuperando do choque de ver as pinturas da mãe e as suas na biblioteca, e do encontro com Juliet. A avó tinha muito a explicar, e ele não sentia a menor obrigação de preocupar-se com ela. Entretanto, ali estava ele, apenas duas horas depois, fazendo uma viagem a Tregellin só para vê-la. Podia ' repetir para si mesmo que havia feito isso por Josie até ficar roxo, mas a verdade é que se importava com a velha. Ela era sua avó, afinal, por mais que ambos lamentassem o fato. Estacionou no lugar de costume e contemplou o rio por alguns instantes. Um chuvisco fino molhou seus cabelos e escorreu pelas faces. Recolheu as coisas que trouxera no bagageiro e encaminhou-se para os fundos da casa. Como sempre, Josie estava na cozinha e, quando Rafe abriu a porta, Hitchins pulou nas suas pernas. - Ei, coisinha de nada - disse ele para o cachorro, depositando as sacolas na mesa. - O que foi? Na pia, Josie virou-se, com um sorriso de alívio no rosto enrugado. - Obrigada por vir, Rafe. Sentimos sua falta. - Sim, lógico. Passei no supermercado no caminho. - Você é bom demais! - exclamou Josie, recolhendo uma das sacolas e retirando o conteúdo. - Oh, salmão defumado! Talvez eu consiga convencer Lady Elinor a comer um pouquinho. - Ela não está comendo? - Muito mal. Ela não anda bem desde aquela infecção respiratória, que teimou que era só um resfriado. A tosse nunca sarou direito, embora ela não admita. Rafe sentiu uma pontada de angústia. - Então, por que não chamou o Charteris? - Eu chamei. Ele veio, mas ela não quis vê-lo. Mandou que eu parasse de meter o bedelho na vida dela. - Que velha maluca! E por isso você me ligou sem parar. - Bem, você é a única pessoa que ela escuta. O mundo dela gira em torno de você, Rafe. Ela pode não demonstrar, mas sente muito orgulho de você. Rafe riu. - E suponho que você soubesse tudo sobre aqueles quadros - insinuou, e Josie enrubesceu. - Sim - assentiu, contrariada. - Mas me mandaram não contar nada a ninguém, portanto... - Você guardou segredo. - Não foi bem assim, Rafe. - Então, como foi? Quando a vovó me contaria? E por que mostrá-los naquela noite, sem avisar? - Eu não sei. - E quem pendurou as pinturas? Não me diga que foi você quem arrastou as estantes de livros e pendurou os quadros. Foi o Cary? - Céus, não! Cary não sabe nada sobre isso. Duvido que gostaria muito de saber. Ela chamou o Jem Helford para arrumar tudo. - Jem e a família cultivavam as terras de Tregellin acima do vale, Rafe recordou. - Ele e o filho levaram três horas para colocar tudo no lugar. -Mas... por quê? - Pergunte à Lady Elinor. - Onde ela está? No jardim de inverno, como sempre? - Na verdade, não, ela está de cama - Josie admitiu, tristonha. - Agora acorda cada vez mais tarde. Certos dias, nem chega a se levantar. Rafe prendeu o fôlego. - Mas isso não é ruim para você? Quer dizer, ter que subir e descer a escada... - Isso me faz bem. E se subo e desço escadas não é por Lady Elinor. Ela não me pede nada. Nem mesmo as refeições. - Dio! - exclamou Rafe. A situação era muito pior do que esperava e, para variar, sentiu-se culpado pela própria ausência. Abatido, saiu da cozinha para subir a escada, saltando dois degraus de cada vez. Quando chegou ao quarto de Lady Elinor, parou para se recompor. A avó não gostaria de saber que ele se preocupou com ela. Então, após ajeitar o cabelo, bateu na porta. Uma voz fraca ordenou: - Entre, Raphael. Se quiser. Rafe sufocou o ressentimento que tais palavras inspiraram, e estampou um sorriso na cara. Certamente, ela ouvira o carro e estava apenas tentando aborrecê-lo. Mas não conseguiria. Abriu a porta e entrou saltitante. - Olá, velhota - cumprimentou, com irreverência. - Sabe que horas são? Ele falou descontraído, mas a aparência da avó o chocou. Ela parecia tão pálida, os cabelos formavam uma cortina cinzenta sobre os ombros esquálidos. Recostada nos travesseiros, ela aparentava ter cada um dos seus 80 anos de vida, e Rafe sentiu um nó na garganta. - Creio que passa do meio-dia - declarou ela, afinal. - O que deu em você, Raphael? Parece que não liga mais para mim. - Não é verdade, vovó. Aliás, por que não avisou que queria me ver? - E ouvir que você não tem tempo para uma velha que odeia e despreza? Acho que não. Rafe suspirou. - Eu não odeio e nem desprezo você. O que, ou melhor, quem, lhe deu essa impressão? - O que mais eu deveria pensar, já que você não disse uma palavra sobre a pequena exposição que arrumei para você? Na verdade, me parece óbvio que ficou furioso com o meu pequeno truque, e por isso se afastou. Sem mencionar a maneira ofensiva como você saiu daqui há duas semanas, sem sequer agradecer a gentileza de ter sido convidado. - Gentileza? Não houve nada de gentil em me confrontar com os quadros que eu julguei ter vendido há anos. E desde quando você tem aquelas pinturas da minha mãe? Você me deixou pensar que tudo o que ela fez tinha se perdido depois que ela morreu. - Quando ela se suicidou, quer dizer? - Lady Elinor falou sem rodeios, e Rafe emudeceu de pasmo. - Ah, Raphael, você não tolera as fraquezas dos outros, não é? Como acha que me senti quando descobri o que aconteceu? Christina era minha filha. Eu a amava muito. Porém, ela me abandonou para correr atrás de um camponês italiano sem eira nem beira, que a tratava tão mal que ela foi obrigada a fugir. - Não é verdade! - Receio que seja. - Não. Quer dizer... - Fitou-a com os olhos torturados. - Sei que o meu pai a maltratou algumas vezes. Lembro das brigas, das discussões que duravam horas. Mas a minha mãe não cometeu suicídio. Ela... caiu. Da sacada de um hotel. - Essa foi a história que eu contei a todo mundo. Eu receava que, se você descobrisse que a sua mãe havia se suicidado, tivesse alguma espécie de trauma. Durante anos, pensei que nunca contaria. Mas agora você é um homem, e não agüento mais carregar este fardo sozinha. Rafe puxou uma cadeira, virou-a ao contrário e sentou-se de frente para a avó. - Então me conte o que realmente aconteceu. Ela se matou por causa do meu pai? Foi isso? - Não. Não. Nada tão dramático assim, Raphael. Christina tinha algum dinheiro, portanto, ela pegou você e voou para a Suíça. Infelizmente, ela começou a beber. Quase não pintou mais depois que deixou a Itália. Então, certa noite, ela trepou na grade que cercava a sacada do hotel de vocês. E, segundo testemunhas, simplesmente atirou-se no ar. Rafe sentiu os lábios secos. - E caiu? - Sim, caiu. - A avó soou pesarosa. - Mas resta pouca dúvida quanto ao que ela pretendia. Veja bem, Christina me escreveu uma carta, que recebi dois dias depois. Ela queria saber se, caso falecesse, eu o traria de volta para a Inglaterra e lhe daria um lar. Rafe suspirou, enterrando o rosto nos braços. -Então é por isso que você nunca gostou de mim. - Nunca gostei de você? - Lady Elinor se empertigou. - Não sei do que está falando, Raphael. Eu amo você. Sempre amei, desde o primeiro momento em que o vi naquela creche em Interlagos. - Ela assoou o nariz num lenço de papel, e Rafe ficou surpreso ao ver que tinha lágrimas nos olhos. - Colocaram você com as crianças menores, mas eu o reconheci na mesma hora. Você era tão alto, tão bonito. Tão parecido com Christina que senti vontade de chorar. - Assoou o nariz de novo. - Jamais sequer pensei em tentar contactar o seu pai. Por mim, você é filho da Christina, meu neto, e nada mais importa. Mais tarde, como creio já ter comentado, descobri que o seu pai havia morrido num acidente de carro logo depois que Christina o deixou. Ocorreu-me que, por isso, ela fez o que fez, mas nunca saberei com certeza. O importante, na minha opinião, foi que, na hora do desespero, ela confiou você a mim. E jamais me arrependi. Rafe não sabia o que pensar. No caminho até aqui, sequer desconfiou que a avó faria uma revelação tão bombástica. Contudo, fazia sentido. Agora, adulto, podia compreender. - No que está pensando? Ansiosa, Lady Elinor fitava Rafe, que abraçou o encosto da cadeira. - Que você foi muito forte, vovó. Não deve ter sido fácil perder os dois filhos antes que completassem 40 anos. Lady Elinor conteve o que pareceu ser um soluço. - Sim, a morte de Charles também foi um golpe devastador. Durante anos vivi sozinha e, de repente, tinha dois meninos para cuidar. - Fez uma careta meio brincalhona. - Mas, sabe que suspeito de que você e Cary salvaram a minha sanidade? Rafe arqueou as sobrancelhas. - Tudo bem. Mas por que me deixou acreditar que tudo o que pertencia a minha mãe havia se perdido ou foi destruído? - Foi mais fácil assim. - Mais fácil? - Mais fácil para mim - confessou, arrependida. - Demorei anos para perdoar Christina pelo que fez. Ficar com o filho dela era uma coisa. Ficar cercada pela sua arte - a coisa que a havia tirado de mim - era outra. – E daí? - Daí mandei empacotar e guardar tudo no sótão. Junto com aqueles seus primeiros quadros, que um intermediário comprou para mim. - O advogado de Bodmin. - Sim, ele mesmo. - Mas por que fez isso? - Você não adivinha? Pensei que, se eu comprasse as suas pinturas, elas não seriam vistas por outros colecionadores. Eu já havia perdido a minha filha por causa do seu amor pela pintura. Tinha muito medo de perder você da mesma maneira. Rafe levantou e sentou-se na cama, ao lado dela. - Você nunca vai me perder, vovó - resmungou, tomando aquele corpo frágil nos braços. - Você pode ser uma galinha velha e teimosa, mas é a minha galinha velha, e nada mais importa. Lady Elinor recostou-se nele. Então, com uma agilidade extraordinária para a sua idade, ela o repeliu. - Eu estava certa - afirmou, com a voz embargada - você é igualzinho a sua mãe. Não tolero toda essa emoção. Sou uma mulher prática. Rafe sorriu com ternura. - Nada como manter a harmonia com mão-de-ferro, certo? - Não entendi. - Mas a voz pareceu ganhar força e um toque de cor subiu-lhe às faces. - Você me. perdoa por obrigá-lo a passar a noite com Juliet? Rafe se levantou, e se pôs a andar em círculos pelo quarto. - O que há para perdoar? - retrucou afinal, orgulhoso do próprio tom indiferente. - O meu palpite é que Cary não gostou. - Acha mesmo? Bem, talvez por sua causa, sim. Mas não acha que o Cary foi gentil demais com a noiva? - Gentil? - Sim. Fiquei pensando em que tipo de noivado é esse. Juliet devolveu o anel da sua mãe, sabia? Rafe não sabia. Mas como poderia? Esta era a sua primeira visita a Tregellin desde aquele fim de semana fatídico. - Tomara que o Cary lhe compre um anel - retrucou, impassível, sem se permitir analisar o gesto de Juliet. - Hum. O que você achou dela? -Juliet? - Quem mais? Josie acredita que o noivado não durará muito. Ela acha que Juliet tem mais coisas em comum com você. - Você está brincando! - Não, não estou brincando. Josie tem direito a ter uma opinião, não tem? - Ora, sim, mas... - Quer dizer, você nunca pensou nela de outra forma? - Claro que pensei em Juliet de outra forma. Ela é uma bela mulher. Um homem precisa ser cego para não notar isso. - E você não é cego, é, Raphael? Não se metade das histórias que ouvi forem verdadeiras. Rafe riu. - Não devia acreditar em tudo o que dizem. - Ah, e não acredito. Mas, desta vez, concordo com a Josie. Juliet é boa demais para o Cary. Vamos torcer para que ela descubra isso a tempo, hein?
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