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CAPÍTULO OITOCAPÍTULO OITO
Quando Rafe se virou, Juliet tentou evitar aqueles olhos magnéticos. Mas não conseguiu se impedir de observá-lo. Engoliu em seco e, então, notou que o seu interesse não passou despercebido. Cary a encarava agora com uma expressão curiosa. Se ele descobrisse que se sentia atraída por Rafe, só Deus sabe o que seria capaz de fazer. Enquanto isso, Liv mancou até a cozinha. Os armários em laminado de carvalho e as bancadas em granito conferiam ao espaço um ar de requinte. Obviamente, Liv conhecia bem a cozinha, porque encontrou a cafeteira e o pó sem nenhum esforço. Juliet tentou não deixar que os sentimentos por Rafe deturpassem a opinião que tinha da moça. Porém, a imagem dos dois juntos - na cama dele - não lhe saía da cabeça. - Você conhece Cary há muito tempo? - indagou Liv. - Desde de criança - interveio Cary. - Então, o que está rolando entre você e Marchese? Ou é uma pergunta incriminadora? Liv sorriu meio sem graça. - Acho que isso é problema nosso, não é? Para desconversar, Juliet apontou um conjunto de aquarelas penduradas na parede. - Esses quadros são do sr. Marchese, Lady Holderness? - Chame-a de Liv, pelo amor de Deus! - repreendeu Cary. - Como se o Rafe fosse pendurar qualquer coisa dele no próprio apartamento! - Liv exclamou com desdém. - Não, são de Susie Rivers. Ela é uma espécie de discípula. - Ele tem várias - alfinetou Cary, recebendo um olhar fulminante de Liv. - Sente-se, querida. Aposto que Rafe vai adorar mostrar o seu trabalho depois do banho. Quando Rafe voltou para a sala, estavam todos sentados, tomando café. Os cabelos úmidos reluziam, e uma camisa azul e um jeans apertado realçavam o corpo musculoso. Estava descalço, e naquele breve instante, Juliet sentiu como se soubesse tudo a seu respeito. Bem, sobre a aparência dele, corrigiu. - Vou apanhar uma xícara para você - disse Liv. - Eu mesmo pego - retrucou ele, dirigindo-se à bancada para servir-se. - Fico feliz de vê-los à vontade. - Não, não fica. - Liv foi sarcástica. - Sei que prefere trabalhar sozinho. - Espero que você não pense que acreditamos que ele andou trabalhando hoje, - implicou Cary. - Faça-me o favor, não somos idiotas. - Eu estava correndo - explicou. - Lamento se a minha aparência ofende a sua sensibilidade, Cary, certas pessoas gostam de esticar as pernas de vez em quando. - Para variar de tanto rastejar, suponho - Cary rebateu, irônico, e Juliet conteve um gemido. Nossa, será que ele estava decidido a brigar com oprimo? - Ora, quer calar a boca, Cary? - Liv, evidentemente, chegou à mesma conclusão. - Com quem você acha que está falando? - provocou Cary. Mas Liv não deu ouvidos. Em vez disso, sorriu para Rafe. - Acho que Juliet quer ver o seu trabalho, querido - comentou, como se Juliet fosse incapaz de falar por si mesma. - Quer que eu a leve ao ateliê? Assim você poderia terminar o café sossegado. - Se Juliet quer ver o ateliê, eu mesmo, mostro - replicou Rafe. - É o que você quer? Decida-se. Preciso trabalhar. Embora a última coisa que desejasse fosse ficar a sós com Rafe, que mal haveria em conhecer o ateliê? - Hum... sim, eu adoraria - respondeu, ignorando a expressão ultrajada de Cary. - Obrigada. - Eu vou com vocês - declarou Liv. Rafe suspirou. Se Liv os acompanhasse, Cary também iria, e ele não queria o primo por perto. - O lugar é apertado demais para todos - argumentou, olhando enviesado para Liv. - Estou no meio de um trabalho, e não quero que ninguém veja. - Ah... Liv captou a mensagem, notou Rafe. Deixar Cary ver os esboços para o retrato dela não seria a coisa mais sensata do mundo. Comentar aquele pequeno detalhe picante durante o jantar, fingindo estar mortificado quando o marido de Liv expressasse a sua surpresa, seria típico de Cary. - Ora... tudo bem - concordou Liv. - Cary e eu vamos tomar outra xícara de café. Cary não se mostrou nada animado. Liv o segurou pelo braço, e Juliet não conseguiu distinguir se Cary ficou aborrecido ou lisonjeado. Mas logo Rafe a conduziu em direção à porta e outros pensamentos substituíram a curiosidade. Rafe seguiu à frente, acendendo duas lâmpadas para iluminar uma área maior do que ela esperava, segundo o que ele havia dito a Cary. Porém, ela não o culpava por não querer que o primo os acompanhasse. Aporta se fechou. Ela e Rafe estavam sozinhos, é verdade, mas Juliet não se iludiu achando que ele tinha planejado tudo. Ao contrário, quando Rafe tirou uma tela do tripé armado em um canto do ateliê, e guardou-a nos fundos, Juliet pressentiu que ele também não desejava que ela visse a "obra inacabada". - É muito... impressionante - comentou Juliet, espiando em volta. A mesinha estava entulhada de esboços, enquanto dúzias de telas repousavam empilhadas num canto. - É confortável. Mas você não queria mesmo ver o meu trabalho, queria? - Sim. Queria mesmo. É muito... interessante. Quanta conversa fiada. Rafe contraiu o maxilar. - Se você acha. - O que há de espantoso em querer ver o seu trabalho? Se está pensando no que aconteceu ontem à noite, esqueça. Eu já me esqueci. - É bom saber que não sou inesquecível. Juliet lamentou sentir-se tão vulnerável. - Quer conversar a respeito? É o que tentou dizer? - Ei, quem tocou no assunto foi você, não eu. - Eu sei, mas... ora, aquilo não devia ter acontecido. Você sabe disso tão bem quanto eu. Então, posso ver alguma coisa? - Você sempre muda de assunto assim, de repente? Eu ainda tenho dúvidas de que você não usou essa visita como pretexto só para ficar a sós comigo. Irritada, Juliet encarou-o. - Sou noiva do Cary. Isso pode não ser importante para você, mas é importante para mim. - É mesmo? Sabe, não foi essa a impressão que eu tive ontem. -Não, bem... Eu não esperava. - Acredite ou não, nem eu. Cary contou onde passou a noite? Ele encontrou os tais "amigos"? - Eu não perguntei. - Não? - Nenhuma resposta deixaria Rafe mais satisfeito. - Você não liga? - Não é da sua conta. -Então... o que você quer dizer? Que vocês têm um relacionamento aberto? - Podemos conversar sobre outra coisa? - Você é quem manda. Mas Rafe não conseguiu deixar de pensar no relacionamento dela com o primo. Será que Juliet só estava enrolando Cary até aparecer coisa melhor? Era possível, mas Rafe descartou a idéia. E censurou-se por querer algo que não podia - e tampouco deveria - ter. Obrigando-se a não reparar na maneira como ela empinou os seios delicados ao cruzar os braços, Rafe dirigiu-se às telas encostadas na parede rústica. Desvirou uma delas, revelando o retrato de um velho pescador sentado na beira do cais. Juliet não conteve um murmúrio de admiração. - É seu? Meu Deus, ele parece vivo! É uma pessoa de verdade? - Era. - Rafe postou-se ao lado de Juliet, convencendo-se de que foi para ter a mesma perspectiva da tela. - O nome dele era John Tregaron. A sua família vive em Polgellin desde sempre. - Incrível! - O quê? A família dele morar aqui há centenas de anos? - Não - admitiu, cabisbaixa. - Sabe o que eu quero dizer. As pessoas já devem ter elogiado o seu trabalho antes. - Obrigado. - Meu pai era um grande admirador de certos pintores. Aprendi com ele o pouco que sei sobre arte. - Também tenho os meus favoritos. Quando eu era mais novo, costumava ir a qualquer exposição. Comecei gostando de William Turner e um contemporâneo dele chamado Thomas Girtin. Já ouviu falar. Infelizmente, Girtin morreu com vinte e poucos anos. Reza a lenda que Turner dizia que, se Tom Girtin continuasse vivo, ele passaria fome. - Você acredita nisso? - Não, Turner era único. Mas os dois estudaram juntos, e as primeiras obras de ambos eram semelhantes. Juliet ficou impressionada e cometeu o erro de olhar para Rafe. E não conseguiu desviar os olhos, hipnotizada pelo súbito ardor da sua expressão. Contudo, Rafe desviou a atenção. Embora determinado a resistir àquela atração doentia, não podia negar o desejo implacável que o consumia. - Você... tem outra coisa para me mostrar? - Juliet sugeriu, nervosa, e Rafe ignorou a inocente conotação sexual da pergunta para apanhar um desenho em tamanho natural da própria Lady Elinor. - Oh... puxa! Eu não sabia que Lady Elinor já veio aqui. - Ela não veio. Eu fiz de cabeça. - Ora, é muito bom. - Fico feliz que goste. Juliet sorriu, e o contorno dos lábios conferiu ao rosto uma beleza perigosa. Perigosa porque ela era uma tentação e não sabia. - Eu gosto do seu trabalho - comentou, descontraída. - O que não significa que eu goste de você. - Fiquei magoado. - Rafe hesitou e, então, algo lhe ocorreu. - O seu pai gostava do seu marido? - Meu pai? Eu... ele nunca conheceu David. Morreu logo depois que terminei o ensino médio. - Lamento. - Sim, eu também. Se ele fosse vivo, talvez eu não cometesse tantos erros. - Como o seu casamento? - Pode-se dizer que sim. Papai não confiaria todo o dinheiro dele a David. - Você fez isso? - Sim. Sei que fui uma boba. Você não me despreza mais do que eu mesma. - Por que eu a desprezaria? Esse David deve ser um tremendo canalha! - Nem me diga. - Mas bonito, aposto. Foi por isso que se casou com ele? - Não sei direito por que me casei com ele. Papai havia acabado de morrer. Eu cometi um erro. Vários erros, na verdade. Mas vou superar. - E acha que Cary irá ajudá-la? Oh, céus! Juliet fechou os olhos. Por um breve instante, esquecera-se o motivo de estar ali. Graças a Deus, não dissera nada comprometedor. Mas não era fácil mentir, principalmente para Rafe. O que era outro erro. - Hum... tomara que sim - retrucou ela. - Bem, eu não tenho dinheiro algum, portanto, acredito que ele não vai se casar comigo por causa disso. - Então, por que ele vai se casar com você? - Porque ele me ama, suponho. Por que não pergunta a ele? - Não é necessário. Ah, Juliet, quando você vai aprender. Ela engoliu em seco. - Você não sabe de nada. - Não mesmo? Acho que conheço Cary melhor do que você. - Ah, claro. Então, quando foi a última vez que você dormiu com ele? - Eu não me deito com cobras. - Nem eu. Aliás, eu não imaginava que você fosse tão exigente. Não a julgar pela sua atual... como se chama mesmo... obra aberta? - Não está insinuando que ando dormindo com Liv Holderness, espero? - E não está? Bem, é o que ela quer. A mulher não tira os olhos do seu bumbum! O ridículo da situação levou um sorriso involuntário aos lábios de Rafe. - Ora, não sei por que se importaria com isso. Cary não é o bastante para você? - Que idéia repulsiva! Rafe reconheceu que falou mais do que devia. Mesmo assim, irritou-se porque ela não enxergava as mentiras de Cary. Desistindo de continuar aquela conversa, Rafe guardou o quadro e o desenho. Precisava manter a atenção no trabalho, censurou-se. Enquanto isso, Juliet tentava controlar o impulso de dar um chute no seu traseiro arrogante. Rafe ofereceu a oportunidade perfeita quando se abaixou para colocar as telas no lugar, o jeans revelando as nádegas e as pernas musculosas. Quem Rafe pensava que era para falar com ela daquele jeito? Se a idéia não fosse tão ridícula, ela acharia que ele a desejava. O que era o maior absurdo. - Eu vou voltar lá para cima. Vi tudo o que eu queria ver. Rafe virou-se, levantando-se. - Bem, já é alguma coisa. - Você adora se divertir às minhas custas, não é? - Querida, já tem gente demais fazendo isso - acrescentou, áspero, antes de perceber a crueldade do que disse. Mas, droga, ela era ingênua demais, e se ele não falasse nada, com certeza ninguém mais falaria. - Sabe... você critica o Cary, mas pelo que vejo, você não é tão diferente. - Besteira! - Não é mesmo. Os dois pensam que sabem tudo sobre as mulheres, mas não sabem nada. - Você acha que o problema é esse? - E não é? - Não. - Suspirou. - Encare os fatos, Juliet. Você não sabe nada sobre os homens. Tudo bem, você foi casada e se divorciou, e devia ter aprendido alguma coisa, mas não aprendeu. Senão, eu não me sentiria tão responsável. - Não há motivo nenhum para que se sinta responsável por mim, sr. Marchese. Já sou bem grandinha para saber o que faço. - É, claro. - Sabe de uma coisa, sr. Marchese? Acho que toda este sermão sobre responsabilidade é apenas um disfarce para o que você realmente quer. - Por exemplo? - A oportunidade de tomar o lugar de Cary como legítimo herdeiro - declarou sem pensar, e então quase desmaiou de medo quando Rafe agarrou-lhe o pulso. - Retire o que disse - rosnou ele, a expressão ameaçadora. - Dio - resmungou, os olhos quase negros. - Esse anel! - Rafe notou o anel de noivado e segurou-lhe a mão. - Onde você pegou isso? Foi Cary quem lhe deu? Juliet engoliu em seco. - Eu... Lady Elinor... me d-deu - gaguejou, sentindo os dedos fortes de Rafe cravados na pele. - Eu... só peguei emprestado. - Emprestado? Rafe encarou-a incrédulo e Juliet explicou tudo, embora ele não merecesse. - Nós... Cary não comprou um anel... ainda. E a sua... sua avó disse que, como os Holderness vêm jantar essa noite, eu... devia usar um. - E ela lhe deu esse? - Rafe sabia que não devia questionar as atitudes da avó, mas não conseguiu controlar uma onda de ressentimento. - E só emprestado - repetiu Juliet, sem entender. Mas havia algo de errado. - Você acha mesmo que Cary deixará que devolva isso? Perdoe-me se eu disser que duvido. E duvido muito. - Certamente isso é problema de Lady Elinor, não seu. O anel é dela. - Pertencia à minha mãe. Vovó lhe deu de presente quando ela completou 21 anos. - Oh, Deus! - Juliet ficou horrorizada. - Eu não fazia idéia. - Não. - Rafe acreditou nela. - Ela... eu... Lady Elinor contou que ganhou o anel quando era menina, e jamais sonhei que... - Esqueça. - Bruscamente, Rafe a soltou e recuou. - Eu não devia ter reagido assim. Vovó pegou o anel de volta quando a minha mãe... quando ela morreu. Eu não quis e acho que ela se sentiu no direito de fazer com ele o que bem entendesse. - Mas... eu posso devolver. Realmente não preciso de anel nenhum... - E agüentar que ela me culpe por estragar a noite? Melhor não. Eu não devia ter mencionado nada. Mas era importante e Juliet julgou saber por que Lady Elinor ficara tão contente quando ela escolheu justo aquele anel. Ela sabia que Rafe o reconheceria. Por isso havia perguntado se ele vira o anel ontem à noite. Porém, Juliet não queria tomar parte em nenhum plano para magoá-lo. Cabisbaixa, seguiu às cegas na direção da porta. A situação era muito mais complicada do que imaginou e já vira o bastante. - Encontro você lá em cima - disse ela, virando-se para encarar Rafe. E soltou um grito agudo. Estava tão ansiosa para alcançar a escada que não olhou por onde pisava. E antes que percebesse, tropeçou na tela que ele havia encostado na parede quando chegara. A tela balançou e Juliet a segurou. E ao fazê-lo, um punhado de esboços que estavam atrás do quadro caíram espalhos pelo chão.
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