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CAPITULO IX



 

O dia terminara e as luzes da noite espalhavam-se em Londres, quando o carro cinza-metá lico começ ou a rodar na á rea de Bayswa­ter, saindo de Green, que ficava do lado oposto na estrada do con­vento. Era estranho como a lembranç a daquele velho pré dio de pa­redes á speras voltara para Ynis, exata como um quadro, trazendo com ele a recordaç ã o das oraç õ es de fim de tarde e das freiras, calmas em seus há bitos cinzentos. Do vestí bulo onde as alunas tomavam suas refeiç õ es nas longas mesas lavadas e do jardim isolado onde a irmã Martha cultivava ervas e vegetais para a cozinha, alé m, de madressilvas e pequenas rosas brancas.

Era inacreditá vel que pudesse ter se esquecido do luar onde vivera desde pequena; em pleno coraç ã o de Londres, ainda que fora da agi­taç ã o, do barulho e dos dramas da grande cidade.

- Elas queriam que eu ficasse - contou para Pierre. - A madre achou que eu devia tomar-me uma noviç a e eventualmente fazer os votos perpé tuos da irmandade. Mas nã o sei por que, nã o pude...

 - Ló gico que nã o. - Ele fitou-a enquanto esperavam que o sinal abrisse. - Uma garota com esses olhos nã o foi feita para a vida reli­giosa.

Ynis tinha as pá lpebras pesadas, apó s tantas horas de viagem, mas seus olhos ainda tinham aquele toque feiticeiro. Estavam tã o estranham ente brilhantes! Talvez em virtude das lá grimas derra­madas à medida que seguiam para Londres e Sea Witch era deixada para trá s.

A luz verde mostrou a palidez de seu rosto e deu-lhe um aspecto fantasmagó rico.

- Você tem certeza de que quer que eu a leve de volta para aque­las boas freiras? - perguntou Pierre enquanto punha novamente o carro em movimento. O Convento da Cruz localizava-se em Bays­water e o sú bito bater acelerado do coraç ã o de Ynis advertiu-a de que estavam se aproximando rapidamente daquela velha constru­ç ã o sombreada pelos ciprestes plantados muito tempo atrá s pelos monges franciscanos, que tinham abenç oado o convento logo que este fora aberto. Quanto tempo! Tanto que a garota se sentiu estre­mecer como se uma mã o fria lhe tivesse tocado a pele.

- Eu nã o tenho outro lugar para ir, Pierre. O convento é meu ú nico lar.

- É mesmo, petite? - Ele virou o carro para uma estrada late­ral. Á rvores altas sombreavam o parque. Ali, durante o dia, mã es traziam seus bebê s para passearem em carrinhos, e os cachorros eram soltos para correr pelos gramados.

- Eu estou muito cansada agora para pensar sobre o significado do que disse - afirmou Ynis. - Eu espero, Pierre. . .

- Sou eu quem tem de esperar alguma coisa. - Havia um tom zombeteiro em sua voz. - Neste momento o que existe entre nó s é uma amizade encantadora que ficará mais forte com o tempo, se você nã o for persuadida a fazer aqueles votos.

A resposta estava na ponta de seus lá bios quando Pierre brecou o carro bruscamente e soltou uma praga em francê s. Ynis levantou a cabeç a e olhou pela janela do carro.

- Oh, nã o! Nã o é possí vel! O que aconteceu?

No lugar em que ficara o convento, agora havia apenas escombros e o terreno estava sendo limpo para que outro pré dio fosse cons­truí do. Lâ mpadas vermelhas brilhavam onde estavam as má quinas, silenciosas depois do longo dia de trabalho, derrubando as paredes que tinham um dia abrigado os dormitó rios, as salas de aula, a cape­la e a cozinha. Viam-se pilhas sombrias de tijolos onde antes cres­ciam as flores e as hortaliç as. Somente os ciprestes tinham sido dei­xados intactos, como se algué m tivesse decidido deixá -los viver para sombrear os apartamentos ou escritó rios que seriam construí dos na­quele terreno.

Um guarda-noturno aproximou-se a passos lentos do carro e perguntou se eles estavam perdidos.

- Aqui era o Convento da Cruz? - perguntou Pierre. - Ou nó s pegamos a estrada errada?

- Era aqui mesmo - respondeu o homem. - Foi providenciado um pré dio no interior para as freiras, assim este aqui pô de ser demo­lido. Todo o madeiramento estava apodrecendo e o telhado estava em muito mau estado. Seria preciso muito dinheiro para colocar o velho pré dio em ordem, entã o elas se mudaram e acabaram venden­do

- Para que lugar do interior elas foram? - Ainda era Pierre quem fazia as perguntas. Ynis estava aturdida demais. Era como se todas as suas esperanç as de encontrar um lar tivessem acabado de uma vez por todas. Os sinos da velha capela tinham sido silencia­dos, os vitrais estavam quebrados e a poeira matara as pequenas ro­sas brancas. Ela estava vendo a sua infâ ncia em ruí nas e desviou o rosto daquela cena triste.      

- Ynis - Pierre tocava em sua face -, o guarda-noturno disse que o convento está agora em Northumberland. Ché rie, nã o posso levá -la lá esta noite. Você está exausta e faminta e eu nã o me sinto em condiç õ es de dirigir mais.

- Sinto muito, Pierre, por ter-lhe obrigado a fazer esta viagem ­disse ela arrependida. - Eu nã o tinha a mí nima idé ia de que o con­vento estava para ser demolido... Como isto tudo parece triste! Os ciprestes completam a atmosfera de um funeral.

- Você nã o deve ficar abatida, Ynis. Amanhã as coisas vã o pare­cer melhores e você vai se sentir mais animada.

- Engraç ado - murmurou ela. - Gard disse-me quase a mesma coisa uma noite em que ficamos conversando em frente à s janelas daquele vestí bulo de Sea Witch. Eu tinha pedido que ele me contasse a verdade, mas ele disse que seria melhor que eu lembrasse dos fatos por mim mesma. Ele nã o tinha o direito de me ocultar que meu pai é um ladrã o.  

- Nã o se culpe por isto - disse Pierre com firmeza e ligou o carro. Afastaram-se dali e logo estavam de volta à avenida princi­pal, com seus altos postes de luz de mercú rio, em direç ã o ao West End. - Você é uma outra pessoa, Ynis, e fará sua pró pria vida. Você nã o pode carregar a culpa e a responsabilidade por este crime de desfalque cometido por seu pai. Você nã o tem nada a ver com isto.

- Foi isto que me levou até Gard - disse ela, com uma nota de amargura na voz - para implorar que ele poupasse Noel. Mas como ele poderia fazer isto? Noel era como o gatuno que roubou a carteira dele! Como poderia perdoá -lo?

- Nã o poderia mesmo - concordou Pierre. - Isto nã o seria hu­mano. Isto nã o poderia ser pedido nem a um anjo, e Gard nã o é nem santo nem demô nio.

- Estou contente por termos conseguido sair de Sea Witch sem vê -lo. - Ynis abaixou-se no banco, enrolada na capa de chuva que Pierre pegara para ela no cabide do vestí bulo. - Isto teria tomado as coisas mais difí ceis.

- Difí ceis? - Pierre deu uma risada suave e irô nica. - Minha crianç a, teria tornado as coisas perigosas. Melhor escrever um bi­lhete, como eu fiz, do que despertar o inimigo.

- Eu... eu nã o quero pensar nele como um inimigo - disse ela. - Sei que os motivos que ele tinha para manter-me em Sea Witch eram bastante estranhos, mas acredito que ele me lastimava, nã o queria fazer-me nenhum mal.

- Ele nã o é má pessoa - murmurou Pierre, enquanto o carro ganhava as luzes brilhantes e fantá sticas do West End. - A vida pregou uma boa peç a em Gard, arrancando de sua mã o a onda má ­gica de sucesso - comentou ele amargo.

Ynis continuava encolhida no banco, enrolada com a capa, como se tivesse voltado à posiç ã o fetal. Sentia-se insuportavelmente triste, e seu rosto dava provas disso.

- Vamos parar para jantar em um desses pequenos restaurantes? - perguntou Pierre.

- Nã o estou com a mí nima vontade. - A idé ia de sentar-se num lugar pú blico, com olhares curiosos sobre ela, fez com que se enco­lhesse ainda mais. - Estou usando jeans, Pierre. Sinto-me desar­rumada demais.

-Entã o é melhor irmos direto para meu apartamento - disse ele.

Ela fitou-o.

- Para seu apartamento? - Um certo medo transpa­receu em sua voz, um fraco sussurro de dú vida ressoou em sua mente. Agora forç osamente percebia que estava sozinha em Lon­dres, sem dinheiro e sem lugar para dormir, a menos que deixasse Pierre resolver-lhe o problema.

- Nã o posso levá -la para um hotel estranho e deixar você lá. - disse ele com voz calma e deliberada. - Você nã o tem roupas, nã o tem mala e os hoté is tê m uma regra esquisita quanto a estas coisas. Ir para meu apartamento é a melhor soluç ã o. É confortá vel, quente e tem dois quartos. Eu lhe garanto, petit, que depois de dirigir por todas estas horas, nã o me sinto nem um pouco inclinado para o amor. O que você diz disto?

- O que eu posso dizer a nã o ser agradecer sua gentileza? ­disse ela com um sorriso triste. - A melhor maneira de conhecer os homens nã o é crescer em um convento. Deverí amos pensar neles como anjos, mas, ao contrá rio, nos inclinamos a vê -los como demô ­nios.

-Vamos deixar a responsabilidade disto a seus encontros infeli­zes logo que saiu para conhecer o mundo.

- Meu pai... e Gard - disse ela com calma. Quando pensou em Gard seu coraç ã o se contraiu como uma flor atingida pelo frio. Pen­sara que a desilusã o acabaria com seu amor, como se ele nunca tivesse existido, mas ainda estava ali, intacto, em toda ela. Sentia uma dor e um estranho prazer enquanto a imagem do rosto moreno de Gard avivava-se em sua mente, até que as feiç õ es arrogantes e a boca zombeteira pareceram estar suspensas a sua frente, inclinan­do-se lentamente em direç ã o aos seus lá bios.

- Já estamos quase chegando. - Pierre devia ter sentido a maneira como Ynis estremeceu. - Logo você estará bebendo um café quente, sentada em frente de uma lareira. - Ele virou o carro para um quarteirã o calmo em Albany, com altos postes de luz dos dois lados da rua, que se refletiam nas estradas elegantes e nas janelas em estilo georgiano dos apartamentos. Estacionou o carro e ajudou Ynis a descer, apertando-lhe a mã o de maneira tranqü ilizadora, en­quanto caminhavam por um atalho pavimentado, orlado de flores e coberto por um teto curvo, onde havia luminá rias de aç o. Estava tudo tã o quieto que seus passos soavam altos demais nos degraus de pedra que levavam até a porta do apartamento de Pierre. Passaram por algumas placas ornamentais presas nas paredes de cores pá lidas e por um busto de Byron em gesso branco, bem pró ximo à entrada.

Ele abriu a porta e acendeu a luz do vestí bulo. Havia longas corti­nas em frente à s janelas e diversas gravuras da Londres georgiana nas paredes. Entraram na sala de estar e a luz mostrou, mais uma vez, as janelas curvas, as cores ricas, o papel de parede elegante-mente listrado e um aparador todo trabalhado em carvalho escuro.

Ynis, ainda um pouco entorpecida pela longa viagem, ficou obser­vando a atmosfera serena do apartamento. Nã o esperava aquilo, o apartamento era menos moderno do que pensara que fosse e reve­lava um refinado gosto pelas coisas belas da vida.

- Deixe-me tirar sua capa - disse Pierre, removendo-a dos om­bros da garota com todo o charme e cortesia de um cavalheiro. Ynis fitou-o rapidamente com um leve sorriso.

- Eu acabo com a ilusã o dos velhos tempos, vestindo este jeans. Sinto muito, Pierre.

- Você nã o estraga nada, ché rie. - Ele disse isto com tranqü ilidade, mas quando a fitou dentro dos olhos, percebeu que o fato de estarem os dois a só s criava uma tensã o como se houvesse uma corda esticada entre eles.

- Tenho certeza de que minha aparê ncia está horrí vel! - Ela vi­rou-se e viu sua imagem refletida em um espelho circular fixo numa moldura em forma de favos de mel. Era um espelho que sempre de­via ter refletido imagens de pessoas elegantes! Seus cabelos, poré m, estavam embaraç ados, seu rosto pá lido e os olhos arregalados e bri­lhantes como os de um fugitivo! - Oh, meu Deus, estou pior do que pensei! .

-.. . protegida em tempestades fortes. E afagada pelos ventos­observou ele atrá s de Ynis. - Sim, acho que você é a primavera distan­te de um progenitor sombrio e obstinado.

Ynis levantou as mã os e puxou os cabelos castanhos para trá s.

- ­Você nã o acha que eu sou uma louca, fugindo apressada sem um centavo ou uma muda de roupa?

- Nada disto precisa tomar-se um problema, Ynis, se você se co­locar em minhas mã os.

- O que quer dizer com isto? - Ela observou a face do rapaz refletida no espelho, atrá s da sua. Nã o era mais uma crianç a, amadu­recera demais nas ú ltimas vinte e quatro horas. Havia algo de cruel nas emoç õ es entre os homens e as mulheres...

- Faç a o que você quiser - disse Pierre, sorrindo. - Minha casa está a sua disposiç ã o e você pode fazer o que quiser sem se sentir em dí vida comigo. Agora, qual é o seu primeiro desejo, senhorita?

- Um banho. - As palavras jorraram de seus lá bios ansiosa­mente. - Eu adoraria um banho agora mais do que qualquer outra coisa! Estou me sentindo tã o amarrotada quanto um pedaç o de per­gaminho velho.

- Este é um desejo fá cil de ser realizado. Venha! - Pegou-a pela mã o e, atravessando o vestí bulo, chegaram ao banheiro. Pierre virou algumas chaves, abriu as torneiras de á gua quente e, entã o, fez uma leve reverê ncia. - Pronto! Dentro de alguns minutos tudo estará como você quer. Naquele armá rio de canto tem toalhas de banho, naquela prateleira, sabonete e sais, e o problema de uma muda de roupa pode ser solucionado se você nã o se importar de usar um pi­jama que uma tia me mandou mas que, ao ser lavado, ficou pequeno para mim.

- Pierre, você é tã o gentil!

- Nã o diga isto com tanta ê nfase como se precisasse convencer­-se disto primeiro. - O sorriso de Pierre era levemente irô nico quando passou as mã os pelas maç ã s do rosto de Ynis. - Vou deixá -la com um pequeno segredo sobre você mesma, Ynis. Sua dama de companhia, ma petite, é a sua inocê ncia encantadora. Agora vou fa­zer uma omelete, meu ú nico dom como cozinheiro, enquanto você toma seu banho.

Quando Pierre saiu, ela olhou melhor o banheiro. Gostou de sua cor de limã o e do desenho de seus alegres azulejos. Como tudo aquilo era diferente da austeridade dos banheiros do convento; lá nã o havia aparelhos para aquecer as toalhas, nem sais com aroma de pinho.

 Ela sobressaltou-se quando bateram à porta. Abriu-a e era novamente seu anfitriã o, oferecendo-lhe o pijama e um robe de seda escura. - Você pode arregaç ar as mangas - disse ele. - Divirta-se, cante se desejar.  

- Obrigada, Pierre. - Ela sorriu e pegou as roupas. - Receio que eu nã o tenha uma voz muito afinada.                                                             

- Eu nã o reparo. - Pierre deu-lhe uma piscada e entã o se afastou. A garota examinou o pijama, era de seda e tinha um dragã o bordado no peito. Ficou contente de que a roupa fosse alegre, pois poderia afastar a sensaç ã o estranha de estar usando a roupa í ntima de um homem.                                                                                    

Tirou os jeans e a camisa e entrou na banheira, sentindo quase imediatamente todo o cansaç o desaparecer de seu corpo. O banho­ espumante, cheirando a pinho, eliminava as dores de seus membros, embora permanecessem as do coraç ã o. Nã o podia ignorar que aquela dor sutil nã o tinha nada a ver. com seu fí sico. Estava dentro dela, resultava do choque de perceber que Gard, por alguma satisfa­ç ã o estranha e perversa, mantivera em Sea Witch a filha de um ho­mem que ele mandara para a cadeia. Cada vez que ele a fitava, devia tê -la odiado porque seu nome era Railford. Ele nã o sabia que Noel fora casado com sua mã e, mas nã o era seu pai. Ela mesma só soube­ra disso no convento, aos quinze anos. A madre superiora achou que seria melhor que ela soubesse de toda a verdade, em vista das ten­dê ncias criminosas de Noel.

- Nã o quero que você cresç a, crianç a, acreditando que possa ter o mesmo cará ter - dissera ela. Como agora Ynis se lembrava bem daquelas palavras! - Tirar dos outros é um sinal de fraqueza. Ser honesto e bom, é ser forte e abenç oado por Deus.

Aquele pequeno sermã o fora reconfortante. Aquelas palavras se­mearam em seu coraç ã o a esperanç a de ajudar Noel a tomar-se uma pessoa melhor. Lembrava-se agora de como tinha implorado que Gard tirasse sua queixa contra Noel... Nã o sabia que ele tinha toda a razã o do mundo para desprezar os ladrõ es, todo o direito de espe­rar que seu padrasto pagasse pelo crime que cometera.

Abriu o ralo da banheira para que a á gua escoasse e usou a ducha de mã o para enxaguar-se. Entã o, já sobre o tapete de pele de car­neiro, enrolou uma toalha morna no corpo. As pontas dos cabelos co­lavam-se no pescoç o. Olhou para o espelho que tomava toda a pa­rede e ficou meio chocada ao ver sua imagem refletida. Nunca fora uma garota que sonhasse com homens e amor como as outras moç as do convento. Nunca pensara em si mesma como sendo uma moç a que pudesse ser notada e ficou intrigada quando pensou em Pierre, que tomara a responsabilidade de trazê -la até Londres.

Ser;! daquelas palavras! - Tira~o que Pierre estaria mais intrigado com sua aparente ingenui­dade do que com seu fí sico? Será que estava entusiasmado com a experiê ncia de ter em suas mã os uma garota cujos conhecimentos sobre os homens estavam divididos entre um presidiá rio que mal conhecia e um ex-maestro amargurado, que nã o possuí a nenhuma ternura para dar-lhe?

Espalhou o talco pelo corpo; tinha um aroma muito agradá vel e delicado, apesar do aroma masculino. Pierre era um homem de muito bom gosto, que obviamente planejara a vida para que sempre estivesse em harmonia com seu temperamento expansivo. Quando o paletó do pijama cobriu-lhe o corpo até a altura das coxas, ela des­viou os olhos daquele ar sedutor que o espelho lhe mostrou. Se Pierre a visse daquela maneira! Oh, mas nã o veria!

Rapidamente colocou as calç as de seda e amarrou o cordã o com firmeza. Vestiu o robe, arregaç ou as mangas longas e sentiu-se mais satisfeita com sua nova figura. Era mais seguro parecer um espanta­lho do que uma garota muito atraente. Pegou a escova e começ ou a pentear os cabelos molhados. Subitamente, procurou imaginar se Gard ficara muito furioso ao encontrar o bilhete de Pierre. Em poucas linhas, informara a Gard que ela decidira voltar para o convento.

Sem querer, surgiu uma ruga em sua testa. Gard sabia que o Convento da Cruz estava sendo demolido?.. Ele negara que sou­besse exatamente de onde ela vinha, mas havia a possibilidade re­mota de que ele a estivesse poupando da tristeza de saber que o lu­gar que lhe servira de lar por tantos anos estava prestes a acabar.

Entã o negou com a cabeç a... nã o, ele apenas desejara mantê -la ignorante de tudo para que sua dependê ncia em relaç ã o a ele fosse ainda maior. Gard dera-lhe presentes e tentara mesmo forç á -la a fazer amor com ele... Será que Gard desejava que ela o amasse para que pudesse desforrar em outra pessoa tudo o que Stella lhe fizera.

Teria sido esta a causa de toda aquela situaç ã o? Teria ele ido tã o longe a ponto de lhe propor casamento apenas para dar vazã o a sua amargura?.. A dor e a frustraç ã o de um homem que tinha visto o trabalho de toda a sua vida ser arrancado de suas mã os, assim como a fama, e a mulher que tanto amava foram os mó veis de sua atitude? Parecia terrí vel para Ynis que um homem pudesse ser amargurado a tal ponto, mas ainda assim nã o conseguia odiá -lo. Afinal de contas, Ynis fora para ele apenas a filha de Noel Railford, um joguete que podia ser magoado, enganado, para que toda a sua dor, todos os seus problemas de homem frustrado pudessem ser aliviados um pouco.

Subitamente seus pensamentos tornaram-se insuportá veis e de­pois de ter deixado o banheiro tã o seco como o encontrara, cami­nhou em direç ã o à sala de estar. Quando abriu a porta, nã o conse­guiu evitar uma leve exclamaç ã o de surpresa. O fogo tinha sido aceso e uma pequena mesa havia sido arrumada para dois em frente à lareira. Pierre nã o se encontrava na sala e ela imaginou que ele ainda estivesse na cozinha preparando o jantar. Comparando-o a Gard, era muito mais simples e charmoso, sem ser sarcá stico com tudo. Sentindo-se como uma crianç a mimada, provavelmente pela primeira vez em toda a sua vida, Ynis foi até ao lado da lareira, onde uma almofada parecia esperar por ela. Recostou-se e estendeu as mã os para aquecê -las no fogo, olhando ao redor como uma crianç a que nã o podia acreditar na realidade que estava vivendo.

Tudo era tã o elegante e harmonioso - as listras douradas nas pa­redes, o grande sofá de pé s curtos, de brocado, as duas poltronas azul-celeste, a mesa de jantar e o gradil de ferro espanhol dividindo a sala dobarzinho.

Numa estante, notou um belo pá ssaro de porcelana sobre uma á rvore do mesmo material. Os livros tinham velhas encadernaç õ es muito bonitas e na parede acima havia pequenos retratos antigos de mulheres com expressõ es recatadas e penteados complicados.

Ynis estava encantada com todo o charme do aposento, quando Pierre entrou carregando uma bandeja de prata com um bule de café e uma travessa com a omelete. Ynis desviou os olhos do fogo para fi­ta-lo, com um sorriso nos lá bios. As pontas de seus cabelos estavam começ ando a enrolar-se de encontro à pele clara de seu pescoç o.

- Bom! Você parece estar bem melhor. - Pierre vestia agora um sué ter e calç as de lã, e havia um preguiç oso ar de prazer em seus olhos cinzentos. Colocou a bandeja sobre a mesa e o aroma do café chegou até Ynis, fazendo-a perceber subitamente o quanto estava faminta.

Pierre cortou a omelete pela metade e, enquanto a servia, cogume­los e outros ingredientes deliciosos apareciam atravé s da fina ca­mada de queijo, que dourava a superfí cie do omelete. - Eu sou efi­ciente com um abridor de latas e uma batedeira de bolos, nã o sou? Oh, nã o temos pã o, mas encontrei um pacote de bolachas salgadas!

- Parece delicioso, Pierre! - Começ ou a comer sem disfarç ar a fome e ouviu-o soltar uma gargalhada divertida. Ele serviu o café e sentou-se, olhando para ela. Enquanto comia, Ynis nã o pô de deixar de sentir o olhar dele, divertido, em seu rosto e em seus gestos.

- Você está se sentindo bem nesse pijama? - perguntou ele. ­Fico feliz por nã o tê -lo jogado fora. No fundo, talvez eu esperasse que algum dia uma jovem charmosa como você fosse usá -lo para jantar com este solteirã o solitá rio.

- Nã o sou tã o ingê nua a ponto de acreditar que você normal­mente janta sozinho - zombou ela.

- Você está querendo dizer que acredita no que Stella disse a meu respeito? - Ele se fez de ofendido. - Agora você deve saber que ela nã o tem muito respeito pelos amigos. Os inimigos, entã o, nã o tê m a menor chance com sua lí ngua cruel!

- Mas, mesmo assim, Gard é louco por ela. - murmurou Ynis. - Deve ser muito bom ser amada també m por seus defeitos e nã o apenas pelas virtudes.

- Realmente deve ser. - Pierre afastou para o lado o prato vazio e colocou os cotovelos na mesa, pousando o queixo na mã o. Olhava Para Ynis, que ainda comia uma bolacha. - É esta espé cie de amor que você espera encontrar um dia, Ynis?

- Eu nã o penso sobre o amor - disse ela rapidamente. - Sou muito jovem e tenho que pensar em outras coisas. Em arrumar um bom emprego, por exemplo.

- Ah! - Os olhos de Pierre brilharam. - Entã o você nã o vai voltar para as freiras em Northumberland?

- Nã o, estou pensando em ficar aqui em Londres. Já está na hora de cortar os cordõ es, nã o é? Nã o posso continuar correndo de volta para a madre superiora cada vez que surge uma crise em minha vida. Deveria entã o fazer os votos, se eu continuar a entrar em pâ nico cada vez que encontrar um homem como... - ela interrompeu-se e serviu-se de mais café. - O que devo fazer para encontrar um serviç o? Talvez fosse melhor recorrer a uma agê ncia de empregos, o que você acha?

Ele concordou, mas o estreitar de seus olhos indicou a Ynis que ele compreendera que seu pâ nico era causado por Gard e nã o por ele. O medo é parente pró ximo do amor e a garota rezou para que Pierre nã o tivesse adivinhado que ela cometera a besteira de apaixonar-se por St. Clair.

- Você fez algum curso profissional no convento? – perguntou ele. - Se você souber um pouco de datilografia e també m tiver al­gum conhecimento de como tomar notas, poderá ser minha secretá ­ria. Nã o precisa ser taquigrafa; basta que tenha uma letra legí vel e seja capaz de transcrever meus diá logos com exatidã o.

- Você ainda nã o tem secretá ria, Pierre? - Ela gostou da idé ia de trabalhar com ele, mas isso parecia bom demais para ser ver­dade. Tinha que haver algum obstá culo à quela soluç ã o perfeita para o seu problema.

- Tive uma secretá ria - respondeu ele. - Era uma jovem cujo serviç o eu dividia com Stella. Ao contrá rio do que ela lhe disse, nã o fui eu a causa de Lucy ter deixado o emprego chorando.

Ynis segurava a xí cara de café e olhava para Pierre com os olhos atentos. - Algum dia Stella vai morrer estrangulada como Desdê mona, se ela continuar desse jeito - comentou ela.

- Você está indicando St. Clair. para o papel de Otelo? - perguntou Pierre zombeteiramente.

- Isto poderia acontecer, nã o poderia? - Seu coraç ã o estava terrivelmente pesado naquele momento, como que cheio de maus pres­sentimentos. Fechou seus lindos olhos verdes. - Oh, eles parecem o tipo de casal que, mesmo se amando, nunca poderã o ser felizes, nem juntos, nem separados. Por que ela nã o o deixa em paz de uma vez? por que nã o o deixa sossegado com seus afazeres em Sea Witch? Me­lhor amar um fantasma do que ser continuamente perseguido por uma mulher que nã o permite que ele esqueç a o passado; que vive a lembrar-lhe o sucesso que ele teve e o fato de ter sido sua noiva.

- Como era, Ynis, o relacionamento de você s, quando Gard es­tava para ser seu futuro marido? - Pierre falou num tom bastante natural, mas Ynis sentiu a profunda curiosidade que havia por trá s da pergunta; talvez o desejo de certificar-se se seu coraç ã o permane­cia ainda tã o intacto quanto seu corpo.

- Aquilo que aconteceu foi tudo puro fingimento, você sabe disso. Gard chegou mesmo a me dar o anel que antes fora destinado a Stella, o anel que encomendou para ela naquele dia em Oxford Street. Ele a amava tanto que agora se sente incapaz de perdoá -la. por tê -lo rejeitado quando perdeu o braç o. Ele nã o pode perdoá -la, pois tornou-se uma outra pessoa, desde o acidente. Gard é como uma pedra dos pâ ntanos, frio, terrivelmente cruel. Se eu amasse um homem - ela desviou os olhos para o pá ssaro de porcelana na es­tante - eu nunca o rejeitaria se alguma coisa acontecesse a seu corpo, mas seria facilmente afugentada por um coraç ã o de pedra. Se Gard se casar com Stella, ela estará conseguindo o homem que me­rece, pois o coraç ã o de Gard agora é uma rocha.

- Diga-me, você já ouviu alguma vez a mú sica de Gard? - per­guntou Pierre, levantando-se.

Ela negou com a cabeç a. - Sei apenas que Gard tinha uma cole­ç ã o dos discos dele e sei també m que sempre a mantinha trancada.

- Vamos beber o vinho ao lado da lareira, saborear os pê ssegos que eu coloquei no refrigerador e ouvir juntos um disco que poderá ajudar você a perdoa-lo, um pouco.  

- Bem que gostaria disto - disse ela, guardando para si mesma o fato de que já o perdoara para sempre. Quando ela voltou para a almofada ao lado da lareira, muito do encantamento da sala se es­vaí ra e uma sú bita melancolia tomou conta de seu coraç ã o. Olhava para o fogo, piscando os olhos como um gato ante as pequenas faí s­cas. Se algué m chegar muito perto do amor e quiser acariciar a chama que o envolve, só receberá em troca queimaduras, por isso sempre terá medo de estender a mã o novamente.

Sentia o coraç ã o retraí do, quando Pierre voltou, colocando um copo de vinho em sua mã o.

- Um St. Croix du Mont, o vinho certo para combinar com os pê ssegos que encontrei no armá rio. Lucy algumas vezes fazia compras para mim e gostava de colocar esses enlatados exó ticos entre as sardinhas e os tabletes de aç ú car.     

- Parece que Lucy era muito afeiç oada a você. - Ynis olhava para o vinho, nã o para Pierre. - Mas nã o é muito inteligente ficar amigo demais de uma secretá ria, nã o é? Você e eu precisamos ser mais formais, quando começ armos a trabalhar - ela disse.

- Entã o você resolveu trabalhar para mim? - Inclinou-se, e colocando um dedo sobre o queixo de garota fez com que ela o enca­rasse. - Isso vai ser bom para você, nã o vai?   

- Sim, desde que sejam relaç õ es estritamente profissionais.

- Você é engraç ada - ele suspirou. - Você sentada aqui, com meu robe, meu pijama, com um copo de vinho francê s na mã o e ainda espera que meu relacionamento seja o mais distante possí vel com você!

- Será mais fá cil quando eu estiver atrá s de uma escrivaninha fazendo anotaç õ es.

- Mas você é tã o charmosa, Ynis, quase como um pequeno es­boç o de Rembrandt, com seus cabelos rebeldes e seus olhos tã o ver­des como os brotos novos de certas plantas que conheç o.

- Você deveria colocar estas palavras numa peç a, Pierre. – Ela riu e afastou-se do alcance da mã o dele. - Deixe-me beber o vinho.

- O ideal será você tomar este vinho acompanhado de um pê ssego. - Ele virou-se para a mesa e com uma pequena faca de prata cortou os pê ssegos em fatias. Colocou o prato perto de Ynis e foi até um aparelho de som moderno, embutido em um armá rio antigo. Ynis observou-o e sentiu a batida mais rá pida de seu coraç ã o, quando Pierre tirou um disco de um á lbum. Ele olhou para o selo por um longo momento e, entã o, colocou o disco no prato do apare­lho.

- Esta é uma gravaç ã o feita por Gard da Liebestod de Isolda, onde ele mesmo toca ó rgã o. Você está pronta para ouvi-la?

Ela afirmou com a cabeç a, pois nã o conseguia pronunciar sequer uma palavra. Era como se Gard estivesse prestes a entrar na sala.

- Vou apagar as luzes e ouviremos a mú sica só com a luz do fogo.

O aposento ficou na penumbra e nesse momento a mú sica come­ç ou. Ynis fechou os olhos como que para visualizá -lo sozinho numa grande capela, com grandes vitrais antigos, tocando aquela canç ã o de amor da esposa infiel de um rei de Cornwall.

Que mú sica mais apropriada para a paisagem dramá tica e bela de Cornwall!

Ele tocava divinamente, como se tivesse mais sentimento do que toda a humanidade reunida. O efeito que a mú sica exercia sobre ela era semelhante a uma dor fí sica... Aquilo era Gard, fazendo mú sica com suas mã os á geis e vibrantes sobre as teclas do ó rgã o. Que pena que ele nã o mais quisesse produzir obras tã o lindas como aquela!

Quando os acordes finais soaram, fez-se sentir um prolongado si­lê ncio que traduzia tristeza e reconhecimento. Ambos continuaram sentados ao lado do fogo, cujos reflexos em seus rostos dava-lhes um aspecto estranho. Ouvia-se o tique-taque do reló gio sobre a cornija e na rua uma motocicleta passou fazendo grande barulho.

Quebrado o silê ncio, Pierre acendeu o pequeno abajur ao lado do sofá. Ynis sentiu os olhos do rapaz fitando os seus, talvez à procura de sinais de lá grimas. Ao invé s disto, havia um brilho de fú ria nos olhos verdes da garota.

- Que injustiç a! - gritou ela. - De todas as pessoas que havia em Oxford Street naquela manhã, por que o destino tinha logo que escolher Gard?

- Para que assim ele pudesse pagar suas dí vidas para com os deuses ciumentos, petite. Os gregos sempre dizem que os deuses fi­cam furiosos quando um mortal tem um toque de gê nio. Gard o pos­suí a, nã o há dú vida; assim, privaram-lhe do braç o e tornaram-no igual aos outros mortais.

- Ele nunca será como os outros homens. - Ynis levantou-se e, agora, seu rosto mostrava todo o cansaç o que sentia. - Gostaria de ir deitar-me, Pierre. Tivemos um dia muito cheio hoje; um dia muito estranho.

- Você nã o quer primeiro terminar de beber o vinho? - sugeriu ele. - Se você for se deitar tã o cansada e tensa como está, nã o vai conseguir dormir. Vai revirar-se na cama até o amanhecer. O vinho lhe amortecerá os sentidos. Experimente.

- Está bem. - Ela levou o copo até os lá bios e bebeu o vinho rapidamente. Queria acima de tudo dormir, esquecer e acordar na manhã seguinte, talvez com o coraç ã o menos dolorido do que estava naquele momento.

- Por favor, gostaria de mais um gole - disse ela, e estendeu o copo. Pierre serviu-lhe mais um pouco de vinho e ficou observando-a beber. - É muito bom, Pierre... - Sentiu, entã o, a cabeç a girar e as pernas amolecerem. - Oh, sinto-me estranha! Você acha que estou embriagada?

- Depois de beber dois copos de vinho tã o depressa, eu diria que sim. - Pierre passou os braç os em volta de sua cintura e levantou-a. Ynis sentia-se tã o entorpecida que nã o protestou enquanto ele a car­regava para um pequeno quarto e a colocava na cama. O rapaz ti­rou-lhe os sapatos e o robe, e quando Ynis piscou para ele já estava meio adormecida.

- Você é tã o gentil, Pierre!

- É o que você me diz a todo momento. - Ele pegou um cober­tor e colocou-o sobre ela.

- Seus cabelos sã o tã o bonitos. Parecem uma auré ola.

- E o que acha de minhas asas? - murmurou ele, provocando-a.

- Você gosta delas?

- Sim, ficam-lhe muito bem. - Afundou o rosto no travesseiro e sentiu-se bem em ser tratada como uma crianç a. - A irmã Yvonne costumava fazer isto algumas vezes, apenas em ocasiõ es especiais, porque nã o podí amos nos acostumar ao mimo.

- Ah, ma petite, você nã o foi nem um pouco mimada pelo tanto que merece ser. - Ele inclinou-se e a garota sentiu os lá bios mornos de Pierre em seu rosto. - Boa noite, querida. Durma bem.

- Boa noite, Pierre. Até amanhã.

- Sim, pela manhã trataremos de lhe arranjar algumas roupas e um lugar para morar. Boa noite!

A luz apagou-se e o rapaz saiu. Só entã o as lá grimas escorreram pelo rosto de Ynis. A mú sica tinha sido tã o encantadora, mas era como a canç ã o fatal de seu pró prio amor por Gard. Seu amor tinha que morrer já que ia começ ar uma nova vida em Londres... talvez com Pierre.

Quando Ynis acordou na manhã seguinte o dia já estava claro e havia um bilhete em frente ao pequeno reló gio sobre o criado-mudo. Ela sentou, esfregou os olhos e penteou os cabelos com as mã os. No­ve e meia! Cé us, nã o dormira tanto desde aqueles dias tã o longos em que ficara de repouso para recuperar-se do acidente que sofrera! Apoiada sobre o cotovelo, leu o bilhete.       

" Cherie, fui ver meu agente e vou procurar um apartamento para alugar. També m vou comprar um franguinho para nosso almoç o e um vestido para você. Espero que você saiba cozinhar! "

Ela sorriu e deu um suspiro, afastando as roupas de cama. Foi ao banheiro, onde encontrou os jeans dobrados sobre o aquecedor, a camisa e suas peç as í ntimas arrumadas sobre o banquinho. Pierre era a pessoa mais atenciosa que já conhecera.

Depois foi à cozinha e preparou café e torradas e sentou-se, olhando pela janela os jardins do pré dio. Eram quietos e muito lim­pos e supô s que nã o era permitido que crianç as e cachorros brincas­sem lá. Lavou a louç a e, atravessando o vestí bulo, dirigiu-se para a sala de estar. Com a luz do dia, o aposento era mais formal e Ynis o preferia quando as lâ mpadas estavam acesas e o fogo brilhava na la­reira. Isto deixava as paredes douradas e as cortinas mais aconche­gantes.

Estava perto da estante, admirando o pá ssaro de porcelana, quando o telefone tocou, dando-lhe um enorme susto. Foi ao vestí ­bulo e atendeu:

- Alô - e deu o nú mero que estava marcado sobre o aparelho.         

Por alguns segundos houve completo silê ncio do outro lado da li­nha.

- É você, Ynis? - Seu nome ressoou em seu ouvido e todos os nervos de seu corpo reagiram à quela voz bem conhecida. Mas se aquietou, como um animalzinho oculto em uma moita, cercado, mas ainda tremendamente esperanç oso de iludir o caç ador.

- Sim - disse ela em tom de desafio. - Estou aqui com Pierre e muito feliz, portanto você nã o precisa mais se preocupar comigo.

- Nã o seja crianç a - retrucou ele.

- Nã o me chame de crianç a - replicou Ynis. - Você ouviu muito bem eu dizer que estou aqui com Pierre, neste apartamento. Vou trabalhar para ele, você nã o precisa ficar preocupado, pois nã o vou tomar caminhos errados como Noel. Por favor, apresente mi­nhas consideraç õ es a Stella e lhe agradeç a por ter-me aberto os olhos.

- Ynis, nã o desligue! No meio da noite...

                 - Tenho certeza de que você ficou furioso por eu ter ido embora de Sea Witch, antes que você tivesse o prazer de ver meu rosto quando me lembrei daquela primeira noite... eu fiz tudo aquilo por causa de Noel. - Ela respirou fundo. - Bem, agora tudo isto sã o á guas passadas, Gard. Eu estou com Pierre e ele está sendo bom para mim.

Ela desligou rapidamente e afastou-se do telefone como se o apa­relho pudesse atacá -la, enrolado como uma cobra negra sobre a me­sinha do vestí bulo. Virou-se e no espelho de parede viu sua pró pria face pá lida, seus olhos verdes brilhando pelo choque e pela raiva e uma tristeza muito grande. Por que ele a perturbava tanto? Por que nã o conseguia sentir aquela sensaç ã o por Pierre, que era tã o gentil?

Com Pierre, tudo seria diferente! Mas à medida que um leve es­tremecer percorreu-lhe o corpo, Ynis admitiu que o que desejava, com cada fibra de seu corpo, era o aroma penetrante dos tojos, de flores amarelas, percebendo o frio do mar sobre um rosto moreno de olhos tã o negros que a subjugavam.

Ynis saiu correndo para a sala de estar e encolheu-se no sofá como se quisesse aquecer-se. Havia carvã o na lareira e poderia ter acen­dido o fogo, mas nã o sentia a mí nima disposiç ã o para fazer aquilo. Se ao menos pudesse, como uma borboletinha, sair voando e enco­lher-se dentro de uma flor.

Por quanto tempo ficou sentada daquela maneira, nunca soube, mas o que a tirou daquela apatia foi o toque da campainha. Ynis sentou-se, arrumou os cabelos e dirigiu-se para a porta. Pierre provavelmente estava com muitos pacotes nas mã os e nã o podia abri-la. Um segundo antes de abrir a porta, forç ou um sorriso nos lá bios para recebê -lo

Abriu a porta de uma vez. . . o sorriso congelou-se em seus lá bios e o nome francê s deu lugar a outro completamente diferente.

– Gard!

- Sim - disse ele. - Em carne e osso.                  

Ele entrou no vestí bulo do apartamento. Vestia um casaco grosso, que lhe caí a dos ombros largos como um manto.  

- O que você está fazendo aqui? - indagou ela. - Eu... eu pensei que tivesse telefonado de Sea Witch.

- Eu telefonei de Paddington. Acabei de chegar de lá num trem - Ele fitou-a, enquanto ela continuava ao lado da porta aberta examinando o rosto da garota com seus olhos negros. Tinham um brilho quase ameaç ador aqueles olhos inesquecí veis. Eram as ú nicas coisas vivas naquele rosto de pedra. - Feche a porta, Ynis. Há um vento encanado.    

- O que você quer, Gard? - Ela fechou a porta, mas nã o saiu do lugar em que estava, como se isto representasse uma maneira de escapar dele. - Eu lhe disse ao telefone que vou trabalhar para Pierre. É isto o que quero!

- É mesmo? - E entã o a coisa mais inacreditá vel do mundo aconteceu... aqueles belos lá bios que raramente sorriam estavam sorrindo agora, com delicadeza, sem expressã o zombeteira ou sar­cá stica. - Passei metade da noite viajando e, acredite-me, Ynis, nã o percorri toda esta distâ ncia para chegar aqui e ouvi-la dizer que quer ser uma datiló grafa. Vamos para a sala? Ficando aqui no vestí bulo, sinto-me como se tivesse vindo para verificar o reló gio de gá s.

Por um instante, Ynis quase lhe disse que fosse para o inferno com suas piadinhas, mas, incontrolavelmente, estava sorrindo també m.

- Você nã o muda mesmo, Gard! Sempre dando ordens e dizendo­-me o que fazer!

- A sala é aqui? - Ele abriu uma porta e era li do quarto em que ela dormira, com a cama de solteiro ainda desarrumada e o pijama de dragã o brilhando sobre as cobertas.

- Você já esteve aqui antes - disse ela sentindo-se enfraque­cida. - Você está apenas querendo ver se eu dormi com Pierre. Oh, Deus, eu gostaria de fazer algo que o abalasse realmente.

- Venha cá. - A mã o de Gard pegara a sua antes que pudesse afas­tar-se dele e levou-a até a sala. O casaco grosso escorregou-lhe dos ombros e caiu sobre o carpete e Ynis semicerrou os olhos, com o amor e o desejo ainda maior, quando viu mais uma vez aquela manga de camisa presa com firmeza.

- Você acha que eu nã o fiquei abalado quando encontrei aquele bilhete de Dumont e percebi que você tinha ido embora, Ynis? ­

Seus olhos estavam fixos nos dela, subjugando-a tã o facilmente como se fosse um pá ssaro.

- Durante horas caminhei pelos pâ nta­nos, dizendo a mim mesmo que era melhor que você tivesse saí do do meu caminho, livre de um homem que a magoara quando bem en­tendeu e a utilizou para minorar sua amargura. Sim, queria mostrar a Stella que ela nã o podia mais me magoar; entã o usei você, ostentei você em frente a ela, vestida pelo costureiro de Stella, com a suposi­ç ã o arrogante de que eu tinha direitos sobre a sua pessoa, porque seu pai tinha me roubado...

- Ele nã o é meu pai! - Precisava fazê -lo saber que ela nã o era a filha do homem que fora justificadamente desprezado por ele. ­Noel casou-se com minha mã e quando eu era quase um bebê. Quando ela o abandonou, deixando-me em suas mã os, Noel colocou­-me no convento. Agora, o convento nã o existe mais, é apenas um monte de escombros em Bayswater. Foi por isso que Pierre me trouxe para seu apartamento. Ele tem sido tã o bom...

- Tã o terrivelmente bom quanto eu fui mau para você, nã o é?

Ela concordou, pois era verdade.

- Você realmente poderia ter se poupado desta longa viagem, Gard. Minha memó ria voltou e eu nã o vou culpar você por pensar que eu era filha de Noel Railford, que podia ser desprezada e usada por você. Vamos esquecer isto tudo. Você tem Stella... e eu tenho meu emprego com Pierre para... Gard! ­disse este nome quase com um grito quando os dedos do homem lhe apertaram o pulso convulsivamente, quase lhe quebrando os ossos. Ynis ficou muito pá lida e sentiu a sala girar...

- Ynis... crianç a. - A mã o de Ynis estava sob os lá bios de Gard, pressionada como um pá ssaro ferido e os olhos dele brilhavam com medo de magoá -la. Ynis nunca tinha visto aquela expressã o em seu rosto antes... ele estava mortalmente pá lido, até mesmo os lá bios. As linhas de suas feiç õ es estavam ní tidas como nunca. - Menina, por que eu continuo atormentando você quando tudo o que quero, tudo o que quero...

- Diga-me, Gard. - Ela ainda se sentia insegura, mas uma esperanç a louca batia em seu coraç ã o, enquanto a pressã o de seus lá bios apagava a dor que sentira nas mã os. - Oh, diga-me!

- Tudo o que eu quero é amar você. - Disse isto com os lá bios sobre o pulso de Ynis, como se as palavras pudessem penetrar-lhe na pele até o coraç ã o. - É tarde demais, é claro. Eu devia ter-lhe dito isto em Sea Witch enquanto ainda tinha a esperanç a de segurar você lá. Agora, o que você quer é esse francê s elegante, de sotaque charmoso, maneiras educadas... e o corpo perfeito!

- Nã o, meu querido! - Com todo o desejo transbordando de seu corpo, ela passou os braç os em tomo de Gard, pressionando o lado mutilado como que para chegar-lhe até o coraç ã o, se pudesse. - Meu querido...                       

- Nã o tenha pena de mim - disse ele brevemente. - Para o inferno com a pena de uma mulher!

- Pena de você? - zombou ela. - Seria como querer conter uma tempestade, tentar acalmar você com algumas palavras gentis e um prato de guloseimas. Você nã o possui nem a metade da gentileza de Pierre e suas maneiras à s vezes sã o abominá veis. Ainda estou tentando saber por que fui me apaixonar por você...

- Você O quê?... A voz de Gard estava assustada.

- Apaixonei-me por você de uma maneira bastante chocante para uma garota que foi criada em um convento. Bastava olhar para você para sentir minhas pernas moles. Todas as vezes em que você me tocou, tive que lutar contra mim mesma para preservar minha honra. É mesmo humilhante que você me faç a abrir meu coraç ã o desta maneira, mas você sempre foi muito esperto.

- E você, senhorita, teve forç a de vontade desde o começ o! ­

Com uma sú bita risada, ele inclinou a cabeç a e deu-lhe um beijo longo e emocionado. - Ynis, menina nascida da magia das feiticei­ras de Gales, eu a quero com toda minha lucidez e com a maior ter­nura que meu coraç ã o é capaz. Para o inferno com Stella. Ela teve meu amor infantil e meu corpo de adolescente, mas você, minha fei­ticeira de olhos verdes, você tem meu coraç ã o. Case-se comigo. Amanhã? Os proclamas já foram anunciados inú meras vezes. A casa está a sua espera, os fantasmas se foram.

- Vou me casar com você, Gard. - Depois de dizer isto, sentiu que a dor abandonara seu coraç ã o. - Vou amá -lo como você nunca foi amado pela sua bela atriz.

- Bela? - Ele segurou-lhe o rosto com as mã os. - Você possui muito mais do que isto, meu amor, mais do que uma dú zia de mu­lheres como ela. Você tem beleza de espí rito e coragem, menina, para querer dividir sua vida comigo. O amor nã o vai modificar meu gê nio, nem me dará a minha mã o direita.

- Você acha que nã o? - Seu sorriso estava infinitamente doce. - O que é isto?

Ela colocou a mã o direita sobre o coraç ã o de Gard.

- Eu lhe dou a minha, meu querido Gard.

Ele fitou-a por um longo momento e agora Ynis podia ver dentro de seus olhos sombrios uma pequena luz brilhando, tornando-os mais belos do que nunca. - Se está me oferecendo a sua mã o, vou aceita-la, Ynis. Ela pode conduzir-me apenas ao paraí so.

- Oh, Gard, que coisa maravilhosa!

Abraç aram-se e ficaram unidos como se fossem uma só pessoa, sob a chama do amor que acabara com todas as dú vidas, com as do­res e os enganos que duas pessoas orgulhosas cometem quando se apaixonam. Eles eram um só... agora... amanha... até que as ultimas estrelas do cé u morressem.

Perdidos um no outro no longo beijo, nã o ouviram a porta se abrir e nã o viram um homem elegante franzir as sobrancelhas e retirar-se em silê ncio.

Ele sabia, como os cé us sabiam, que aquelas duas pessoas solitá rias tinham acabado de descobrir uma a outra.

 

FIM

 

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