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Mais Uma Vez Adeus. THE LITTLE NOBODY. Violet Winspear. Digitalização: Márcia Gomes. Revisão: Crysty. CAPÍTULO I



Mais Uma Vez Adeus

THE LITTLE NOBODY

Violet Winspear

 

Ynis procurava desesperadamente uma resposta para o misté rio que envolvia sua vida desde o acidente em que ela perdera a memó ria. Apenas uma coisa era certa: ia se casar com Gard. Mas ela sabia que essa nã o seria uma uniã o consagrada pelo amor. Que sentimento estranho unira o seu destino ao daquele homem, cuja vaidade ficara tã o abalada com a trá gica interrupç ã o de sua carreira musical? O que poderia representar para ele, se sua verdadeira paixã o era Stella Marrick, a famosa atriz? Ynis estava convencida de que nã o passava de um objeto para alimentar o orgulho ferido de Gard. Mesmo assim, teria coragem de admitir que o amava?

 

 

Digitalizaç ã o: Má rcia Gomes

Revisã o: Crysty

 

 

Copyright: VIOLET WINSPEAR

Tí tulo original: " THE LITTLE NOBODY"

Publicado originalmente em 1973

pela Mills & Boon Ltd., Londres, Inglaterra.

 

Traduç ã o: SILVIA MACEDO

Copyright para a lí ngua portuguesa: 1979.

 

Abril S. A. Cultural e Industrial, Sã o Paulo

Composto e impresso nas oficinas da Abril S. A.

Cultural e Industrial, Sã o Paulo

Foto da Capa: Europa Press

 


CAPÍ TULO I

 

O aspecto ameaç ador de Sea Witch fez com que a garota parasse em frente aos altos portõ es de ferro e olhasse as janelas que refletiam o cé u avermelhado pelo pô r-do-sol, com o coraç ã o batendo rapida­mente. De ambos os lados dos portõ es havia muros altos que ainda refletiam a tepidez fugidia dos ú ltimos raios vermelhos, que logo se ex­tinguiria com o vento vindo do mar. Os muros continuavam ao redor da casa e do gramado, e, acima, os olmos imensos, com seus galhos irregulares, sombreavam o telhado e as torres pontiagudas que da­vam nome à quela casa solitá ria.       

Ynis desejava, com todas suas forç as, voltar para o povoado e para a hospedaria, pequena mas aconchegante, poré m sua mã o foi impe­lida a abrir o portã o por algo mais profundo do que o medo que sen­tia daquela casa situada a meio caminho entre os charcos e o mar. Quando sentiu a aspereza fria do ferro e o peso do portã o, um tremor percorreu-lhe o corpo todo, como se tivesse visto um fantasma.

Fechou o portã o atrá s de si e virou-se. Os olmos pareciam solda­dos ao longe da alameda sinuosa, que conduzia para o terraç o largo de pedras que adornava a fachada de Sea Witch. Em toda a exten­sã o dos parapeitos havia vasos de pedra cheios de flores alvas que caí am como pequenas bailarinas, exaustas, perfumadas e frias, agora que nã o havia mais o calor do sol. Ynis subiu os degraus, e cada passo em direç ã o à enorme porta de carvalho era hesitante, como se dedos invisí veis segurassem seus calcanhares e tentassem forç a-la a voltar. Sentiu-se novamente como uma crianç a intimada a receber uma repreensã o da madre superiora. A porta de sua sala particular també m era de carvalho, e depois que uma aluna tivesse batido, passar-se-iam alguns minutos antes que uma voz a mandasse entrar e a garota parasse perante uma larga escrivaninha para encarar um par de olhos penetrantes.

Dizia-se no Convento da Cruz que a madre superiora podia ver dentro da alma das pessoas, e Ynis nã o tinha o mí nimo desejo de possuir aqueles poderes visuais quando tocou a campainha de Sea Witch há tantos quilô metros de distâ ncia do convento e daquela en­trevista final com a mulher que desejava que ela continuasse naquele local.

- Muito bem, saia para o mundo se acha que deve - dissera-lhe­ a madre -, mas lembre-se de que pode voltar para o convento, se sentir que a vida fora de suas paredes é inadequada ou mesmo solitá ria. Nossas portas estarã o sempre abertas para você, pois uma vida de devoç ã o pode Compensar muitas coisas, minha cara.

Ynis compreendeu que, em suas maneiras gentis, a madre dissera- lhe que a achava ingê nua e nã o tã o ousada quanto outras garotas. Descobriria que a vida era um pouco mais difí cil do que aquela que estava deixando... quando a porta principal de Sea Witch se abriu, a garota deparou-se com olhos austeros e bastante desdenhosos.

-Gostaria de conversar com o senhor Gard St. Clair. - Forç ou-se a parecer mais confiante do que estava. - O assunto é bastante urgente.

A garota percebeu, pelo olhar penetrante do criado, que ele registrara o fato de que seu casaco de camurç a era fino o bastante para deixar penetrar o frio. Seus sapatos pretos, que usava no convento, nã o tinham salto, e ela sentiu-se como uma colegial quando uma mã o relutante conduziu-a para o imenso vestí bulo lajeado - remi­niscê ncia da capela de St. Stephen - onde havia dois lustres de bronze maciç o cravados nas vigas enegrecidas do teto alto, como ta­râ ntulas empoeiradas. As teias nos cantos do teto reforç avam a im­pressã o de que havia aranhas gigantes à espreita.

- O patrã o está em casa. - disse o criado com uma voz tã o fria quanto o vestí bulo -, mas nã o posso garantir-lhe que ele a receba. Qual o nome que devo anunciar?

Ynis disse-lhe, mas nã o viu sinais de reconhecimento na face severa.

- Se esperar aqui, srta. Raidford, vou informar o patrã o sobreseu desejo de vê -lo. Gostaria de sentar-se?

Observou o criado que dirigia-se para o fim do vestí bulo, com o porte de um soldado, até que desaparecesse atrá s de uma porta oculta pelas sombras. A garota olhou para as cadeiras de espaldar alto com assentos aparentem entes duros e, ao invé s de sentar-se, caminhou em direç ã o a uma parede onde havia alguns quadros. Como pensara, eram tã o melancó licos quanto o pró prio vestí bulo e deviam estar prega­dos ali há tanto tempo quanto aqueles lustres monstruosos.

Sea Witch seria uma daquelas casas de campo antigas, onde al­gum dormitó rio era destinado a uma velha senhora da nobreza? Ynis podia imaginar aquela casa em dias idos, quando se assavam batatas na lareira enorme para oferecer a um grupo de cavaleiros e amazonas que voltavam da caç a, com manchas de suor dos cavalos nas calç as ou saias volumosas.

 Sentindo frio e afundando as mã os nos bolsos do casaco, Ynis vi­rou-se e viu o criado reaparecendo das sombras. Ele parecia, pensou a garota, uma pessoa da corte do rei Eduardo, tã o perdido no tempo quanto aquela casa e quanto seu dono ameaç ava ser, com seus valo­res e há bitos austeros como aquele pró prio ambiente. Sentia-se sombriamente certa de que fora uma tola em vir até ali, numa tarde escura, cheia de nuvens carregadas pairando no ar...

 - Se vier por este caminho, senhorita, o patrã o lhe concederá alguns minutos de seu tempo,

Quanta bondade de sua parte, pensou a garota, e quando o reflexo azulado de um relâ mpago iluminou a superfí cie de um espelho preso à parede, ela viu que parecia tã o franzina quanto um gato, com imensos olhos verdes que brilhavam pelo desespero da solidã o. Como um gato, viera implorar por algumas migalhas de clemê ncia de Gard St. Clair, mas agora, depois de perceber a atmosfera da­quela casa, tinha a sensaç ã o desanimadora de que iria embora da mesma maneira como tinha chegado ali.

Uma porta foi aberta e Ynis viu o fogo crepitando na lareira. Instintivamente sentiu vontade de correr para o calor, mas conteve-se por causa da educaç ã o que recebera no convento e pela antipatia que sentiu pelo homem pró ximo à lareira, uma figura alta, contor­nada pelas chamas. Ele nã o lhe estendeu a mã o quando entrou, e a garota sentiu uma pontada de ressentimento. Ele sabia quem ela era, por que nã o se comportava com educaç ã o?

O empregado fechou a porta e deixou-a a só s com Gard St. Clair

- Aproxime-se - ordenou uma voz grave e refinada, e, com a mã o esquerda, o homem mexeu num lampiã o de porcelana, tornando a chama mais forte. Ynis sentiu faltar a respiraç ã o, pois nã o fora por falta de educaç ã o ou por desprezo que ele nã o estendera a mã o para recebê -la. A manga direita do paletó preto de Gard St. Clair estava presa com alfinetes... vazia. - O braç o direito daquele maestro de fama mundial nã o mais existia, e ela nã o tinha conhecimento desse fato. A garota viu mais ainda quando o fitou: os cabelos negros do homem estavam cheios de reflexos prateados, e seu olhar era tã o frio e descortê s quanto a chuva que caí a do cé u e banhava os terraç os e paredes de pedras de Sea Witch.         

- Doom informou-me que seu sobrenome é Railford.    

- Doom...? - gaguejou ela, fitando com nervosismo o homem que lhe arrancara a oportunidade de possuir um lar fora das altas paredes do convento.

- Meu criado. - O sorriso sardô nico nã o atenuou o rosto austero com a pele lisa delineando firmemente os ossos bem feitos da face acentuando sua aparê ncia de pessoa fina e sofredora. - Devo pensar que é parente de Noel Railford?

- Sou filha dele. - Empertigou o corpo como que para desafiá -lo a encará -la, pois Noel estava na prisã o, esperando para ser julgado por um crime de falsificaç ã o.

Aqueles olhos negros percorreram a garota, parecendo arrancar lhe as roupas. Ele nã o agia dessa maneira por causa de algum desejo carnal, mas sim por raiva, ou curiosidade, da filha do homem que o trapaceara.

- Por que você veio aqui? - perguntou ele, e sua voz parecia irritada e cheia de desprezo. - Para implorar piedade a um mentiroso e desonesto? Um homem, se é que assim se pode chamá -lo, que engana uma pessoa a fim de conseguir fundos para ter uma vida fá cil, sem um ú nico dia de trabalho honesto! Noel Railford cometeu um erro enorme quando veio para minha casa. Passei muitos anos entre os mais variados tipos de pessoas, e posso reconhecer um bajulador um quilô metro de distâ ncia. Fingi acreditar na histó ria que ele contou sobre uma crianç a invá lida, num hospital de caridade, e no apelo que fez sobre a falsa necessidade de obter fundos para ajudar a manter o hospital em funcionamento. Ele foi um tolo, srta. Railford! Devia ter prestado atenç ã o em meu cará ter e nã o em minha impo­tê ncia, antes de vir para Sea Witch preparado para dar um golpe! Teria descoberto que nunca tive coraç ã o mole, embora tenha feito da mú sica a minha vida.

Seguiu-se um silê ncio curiosamente doloroso à quelas palavras, e entã o voaram algumas centelhas quando ele chutou uma tora que estava prestes a cair da lareira. O estrondo de um trovã o ressoou mais uma vez, como os tambores alinhados no fim da orquestra, que um dia já tinham sido colocados em movimento por um gesto da mã o direita daquele homem... Ynis desviou os olhos da manga vazia do paletó, pois nã o queria compadecer-se daquele homem que dei­xara Noel se tomar uma ví tima da pró pria avareza.

- O senhor sabia que ele iria alterar aquele cheque que lhe deu ­- acusou ela.

- Ló gico que sabia! - Ele enfatizou as palavras com um gesto expressivo da mã o esquerda, de dedos longos, e sua face naquele momento fez com que a garota se lembrasse de um anjo satâ nico que vira uma vez no vitral de uma capela. Era um rosto que já devia ter e sido tremendamente bonito algum dia; mas que agora era amargu­rado, com as sobrancelhas curvas numa linha negra que realç ava a frieza dos olhos.

Era um rosto assustador para uma garota que viera até ali sozi­nha, numa tarde escura e tempestuosa, para descobrir que aquele homem deliberadamente armara uma, cilada para Noel Railford, uma pessoa fraca, mas nã o malvada, uma pessoa que Ynis esperava corrigir, dando-lhe um lar apropriado e oferecendo-lhe a companhia que ele procurava em pistas de corridas e nos bares.

Agora, por causa de Gard St. Clair, Noel iria novamente para a prisã o e, desta vez, por vá rios anos.

- Bem que o senhor podia ter conversado com ele - disse a ga­rota. - O senhor é um homem de respeito e poderia tê -lo ajudado a perceber os erros de sua conduta.

- Nossa conduta está no sangue - interrompeu ele. – Homens como Railford tê m quase que uma atraç ã o pelas grades das prisõ es, e duvido que uma simples conversa com algué m bem-intencionado tenha o poder de modificá -los. Eles aproximam-se de outras pessoas como sanguessugas e fabricam as mentiras mais audaciosas, a fim de enganá -las para depois orgulharem-se de terem cometido uma fraude bem-sucedida. Ele me disse que sua filha, você, srta. Railford era uma invá lida sem cura, incapaz de mover dedo sozinha, e que estava sob cuidados de freiras. Os olhos negros fixaram-se nos sapatos sem salto e nas meias finas, e depois subiram até a garganta da garota, onde um pequeno crucifixo de prata mostrava-se na abertura do casaco. - Nã o tenho dú vida de que tenha ficado sob cuidados das freiras, mas é certo que se percorreu todo o caminho da aldeia até Sea Witch, você nã o é nenhuma invá lida. Nem é tã o incapaz, pois nã o recuou em vir até aqui implorar pela causa de seu pai, um vadio de quem você deveria afastar-se antes que ele a transforme numa safada como ele pró prio. .    

- O senhor fala como um homem sem um pingo de pena por ningué m - afirmou a garota e disse para si mesma que nã o se importava nem um pouco que algum acidente terrí vel tivesse lhe arrancado um braç o e o roubado de sua carreira brilhante. Sabia que ele fora um dos melhores maestros do mundo, com enorme reputaç ã o por sua habilidade em dirigir os mú sicos da orquestra. A irmã Birdette adorava ouvir seus concertos quando eram transmitidos pelo rá dio. Seu rosto enrugado e bondoso expressava o arrebatamento que as mú sicas do maestro lhe provocavam. A velha freira lastimava muito que ele nã o mais pudesse conduzir aqueles concertos; mas Ynis nã o se sentia sensibilizada por causa de seu comportamento para com Noel, que poderia emendar-se se tivesse uma mã o firme para guia-lo.

Nã o significava nada para Gard St. Clair que quando Noel fosse condenado ela ficaria sozinha no mundo... de um lado teria a solidã o a sua frente, de outro, o retomo para as paredes protetoras doconvento, onde os ciprestes finos o ocultavam do resto do mundo, tornando-o gé lido e isolado.

Ynis estremeceu e, abruptamente, afastou-se do fogo, nã o mais enxergando o lado mutilado do homem, que ficara à sombra.

- Você escolheu um dia medonho para cumprir sua missã o disse ele. - Chegue mais perto do fogo e aqueç a as mã os.

- Estou muito bem. - Colocou as mã os nos bolsos do casaco. Sei que nã o posso exigir nada, mas esperava conseguir persuadir o senhor a retirar a acusaç ã o que fez contra meu pai. Ele nã o gastou o dinheiro... o senhor nã o deixou que ele tivesse tempo para fazê -lo

Lentamente, Gard St. Clair levantou as pá lpebras que ocultavam os olhos negros e examinou Ynis como se a garota fosse algum espé ­cime raro de borboleta colocada na ponta de um alfinete afiado. ­

- Noel Railford transmitiu seu gê nio infernal para você, mocinha... ou é a ingenuidade insuperá vel que adquiriu junto à s freiras que a faz falar dessa maneira? Seu pai é um trapaceiro! Desta vez ele se en­ganou, foi apanhado e terá que pagar o preç o, como todos nó s temos que fazer por algum pecado ou outro. O que você esperava que eu fi­zesse? Que deixasse seu pai em liberdade para que ele pudesse ir-se embora para ludibriar alguma outra pessoa desavisada, talvez até com sentimentos mais brandos dos que os que tenho?

- O senhor armou uma armadilha para ele! Adivinhou qual era o jogo dele e, ao invé s de colocá -lo para fora de sua casa, deu-lhe um cheque que poderia ser alterado com facilidade. Poderia tê -lo adver­tido, mas o senhor é tã o, tã o cruel para com todos...

- Minha crueldade - interrompeu o homem - é minha ocupa­ç ã o. Perdeu seu tempo em vir até aqui. Seria melhor voltar para sua casa. ­

- Graç as ao senhor eu nã o tenho casa - retrucou a moç a. ­

Quando Noel foi levado pela polí cia, a proprietá ria deu-me um prazo de uma semana para desocupar o apartamento mobiliado. O senhor possui uma casa muito grande, portanto nã o tem idé ia de como é difí cil arrumar acomodaç ã o atualmente.

 - Esta é outra histó ria, srta. Railford? - A expressã o do homem era de escá rnio. - Já está seguindo tã o de perto os passos de seu pai? Existem momentos em que até mesmo as pessoas mais bondosas, mais humildes sã o levadas a um ponto de desespero tã o grande que precisam de uma vá lvula de escape em defesa de si pró prias.

Ynis viu uma peç a ornamental numa mesinha de canto, era uma pastora de porcelana com um vestido azul, chapé u de abas largas e um cachorrinho ao lado de seus pé s calç ados com chinelos. Num impulso, a garota pegou o enfeite e, com toda a forç a de sua mã o, jo­gou-o de encontro à borda do assoalho, logo atrá s do tapete. A peç a quebrou-se em mil pedacinhos e ela nã o se importou; estava conten­te que tivesse sido bonita e valiosa e agora estivesse tã o destruí da quanto suas esperanç as de construir uma nova vida para Noel e para si mesma.

Ynis fitou Gard St. Clair com ar de desafio, o verde de seus olhos tã o tempestuosos quanto as ondas que se quebravam em tã o grande altura contra as rochas de Barbizon, aquela cidadezinha litorâ nea em Cornwall, para a qual viera e conhecera um homem que nã o tinha piedade por ningué m.

- Você vai ter que recolher todos os pedaç os - disse ele com voz fria. - Tenho uma gata que costuma vir brincar aqui e nã o quero que ela machuque uma pata em algum pedaç o desta porcelana. Seja rá pida e entã o, por favor, saia de minha casa.

Se ele tivesse se enfurecido e gritado sobre o valor do objeto, agarota nã o teria sentido o sú bito sentimento de culpa e arrependimento. Ajoelhou-se e, enquanto recolhia as migalhas da saia azul, dos pezinhos com chinelos cor-de-rosa e a orelha do cã o, lá grimas de tristeza vieram-lhe aos olhos, deixando-os tã o turvos que ela nã o conseguia enxergar os fragmentos da peç a de porcelana com clareza. Sentiu dor na mã o e viu uma mancha vermelha escorrendo em seu polegar. Levantou o dedo e sugou-o e, no mesmo momento, ouviu um toque impaciente do sino ao lado da figura gé lida de Gard St. Clair.

Poucos minutos depois a porta se abriu e entrou o criado carrancudo. - Aconteceu um pequeno acidente. Recolha os cacos da peç a de porcelana que quebrou e arranje esparadrapo para fazer um curativo na mã o da mocinha.   ­

Doom ficou olhando para a garota ajoelhada com um montinho de cacos de porcelana à sua frente. Ynis levantou o rosto pá lido, que estava triste muito mais do que atemorizado, em direç ã o à Gard St. Clair. Ela estava quase naquele está gio de desespero em que uma atitude violenta seria recebida com alí vio. Aquela aceitaç ã o fria e rude de sua fú ria infantil era difí cil de suportar. Aquilo a fazia parecer uma pessoa de mau gê nio e confirmava as acusaç õ es daquele homem... embora sempre dissesse que Noel Railford era seu pai, tinha já dois anos de idade quando sua mã e se casou com ele. Gina era uma manequim, e o verdadeiro pai de Ynis era um artista galê s, cujo nome significava " ilha" na lí ngua celta. Sua mã e desapareceu de sua vida quando tinha apenas cinco anos de idade e Noel levou-a para o convento, deixando-a sob os cuidados bondosos das freiras. Uma ou duas vezes por ano ele lhe fazia uma visita e a garota tinha uma certa afeiç ã o por ele, aquela espé cie de carinho de quem nã o tem nenhum outro parente preocupado com seu destino.

Noel parecia ter ficado muito contente quando Ynis lhe contou que ia deixar o convento para construir um lar para ele... agora, tudo que podia fazer era voltar para as irmã s e talvez se tomar uma de­las. Mesmo se encontrasse um emprego, nã o tinha um local onde pudesse morar; nenhum amigo que lhe oferecesse uma cama por algum tempo, nenhum dinheiro para pagar um quarto numa pensã o.

Com uma bravura tola, uma esperanç a maluca de que aquele homem de Sea Witch pudesse ceder a seu apelo, Ynis gastara praticamente seu ú ltimo centavo com a passagem de trem e o aluguel de um quarto por uma noite numa pensã o da cidadezinha.

A garota estava segurando um lenç o enrolado no polegar e evitava o olhar de Gard St. Clair, quando o criado voltou com um rolo de esparadrapo. Estendeu-lhe uma tira e Ynis colocou-a sobre o corte.

Ela sentia-se desolada, e seria muito fá cil abandonar-se e chorar, mas tinham lhe ensinado que as lá grimas derramadas por autopiedade eram uma luxú ria imperdoá vel. Levantando o queixo, disse para St. Clair que estava pronta para ir-se embora.

- Peç o desculpas por ter-lhe feito perder tempo - disse ela, en­carou-o com olhos que nã o mais imploravam em vã o. Sentia-se dolo­rida, como se tivesse se jogado de encontro a uma parede de pedra, tã o inflexí vel era aquele homem que continuavacompletamente imó vel ao lado da lareira.

- E quanto à peç a de porcelana? - perguntou ele - Era va­liosa, e você quebrou-a deliberadamente. Tenho o direito de exigir um pagamento.

- Nã o tenho dinheiro - disse ela com voz fraca. - Seria melhor mandar prender-me junto com Noel.

- Isto realmente a levaria para o caminho da ruí na, nã o é mesmo? - O olhar do homem era sarcá stico, e, quando ele fez um leve movimento, a garota afastou-se rapidamente, sem perceber que ele tirara uma caixinha de ouro do bolso e a tinha aberto. Colocou-a sobre a cornija da lareira e tirou um charuto de dentro. - Doom, por favor, mostre a porta principal para a srta. Railford.

- Sim, senhor. - Mas enquanto falava, o criado pareceu hesitar por um momento, olhando para as janelas fechadas por pesadas cor­tinas. Entã o olhou para Ynis, e a garota precedeu-o para fora do aposento, sentindo o frio do vestí bulo enquanto se afastava das chamas que ardiam na lareira. Pareceu ser uma caminhada sem fim até a porta principal da casa, e, quando lá chegaram, ela parou e le­vantou a gola do casaco para cobrir o pescoç o, enquanto Doom abria aenorme porta de carvalho e ferro. O vento soprava forte e carre­gava consigo a chuva que a feriu com sua frieza, enquanto a garota se retirava daquela casa terrí vel para a noite desoladora.                                                                                  

O vento gelado penetrou em seu casaco fino, e o corte em seu dedo latejou quando pressionou a gola para mais perto do rosto. – Boa noite - disse ela para Doom.

- Senhorita, deixe-me arrumar-lhe um guarda-chuva!

Aquela oferta e demonstraç ã o de sú bito interesse surpreenderam-na tanto que, quando se virou para encarar o criado e a lâ mpada, do terraç o mostrou o quanto seus olhos pareciam enormes em seu rosto pá lido, magro e anguloso, ela parecia um gato abandonado, para quem poucas pessoas tinham sido indulgentes.                  

- Obrigada - disse ela -, mas provavelmente, nã o adiantaria nada contra o vento.       

- É uma longa caminhada, senhorita, até a aldeia.       

- Eu costumo andar depressa. - Começ ou a descer a alameda ladeada pelo olmos, que agora estavam com uma curiosa aparê ncia de feiticeiras com o vento a soprar em suas folhagens.

As á rvores protegeram-na um pouco até que chegasse à estrada que ficava entre os charcos e o mar. Se nã o parasse de caminhar, logo avistaria as luzes das casas da aldeia e passaria pelos galpõ es de barcos e barracõ es de equipamentos para chegar à pensã o, muito perto da estaç ã o de trens.   

Lanç ou-se na noite varrida pelo vento e nã o sabia se eram pingos de chuva ou lá grimas que escorriam-lhe pela face. Nunca tinha sentido tã o sozinha ou tã o indefesa. Tinham-lhe advertido que o mundo era muito grande e os coraç õ es nem sempre generosos; mas nunca tinha nem mesmo sonhado que um homem pudesse ser tã o desprovido de caridade quanto aquele que acabara de deixar, fumando a só s em sua sala aquecida e bem mobiliada, tã o indiferente a seu apelo como se fosse feito de pedra.

A estrada era tã o escura que a cada poucos metros Ynis tropeç ava em montí culos de grama ou quase caí a com a forç a das rajadas do vento. Ansiava por avistar as luzes da cidadezinha e por beber uma xí cara de chá quente na hospedaria. Estava decidida a nã o pensar no amanhã até que ele chegasse, nem na transformaç ã o do futuro que planejara para um outro de deveres e devoç ã o, com o uso do há bito sé rio que sem dú vida lhe cairia bem. Nã o devia pensar nas fotografias vistas numa revista deixada no trem, de garotas com vestidos de seda sendo levadas a restaurantes e teatros por rapazes com ternos elegantes... precisava apagar a lembranç a de sua mã e, jovem e alegre que fugira de todas suas obrigaç õ es.

Oh, este vento, se pelo menos mudasse de direç ã o e nã o lhe soprasse a chuva no rosto o tempo todo! A umidade infiltrara-se em seu casaco, e seus cabelos aç oitavam-lhe as tê mporas como se fos­sem chicotes. Suas mã os estavam geladas, e ela tinha a sensaç ã o in­quietante de ser a ú nica criatura humana a estar na rua numa noite como aquela. Todas as demais estavam perto de uma lareira acon­chegante, aquecidas e seguras, e bem acompanhadas.

Como odiava Gard St. Clair! Na verdade, ele nem mesmo tinha lhe prestado atenç ã o ou se alterado com alguma palavra que Ynis dissera. A ú nica emoç ã o que demonstrou foi sua forte determinaç ã o de vingar-se de todos os transgressores da lei que ousassem aproxi­mar-se de seu cé rebro frio e de seu coraç ã o mais frio ainda. Ynis tinha certeza de que ele tinha gostado de tratá -la como um gatinho vagabundo... e ela nã o se arrependia, nem um pouco, de ter que­brado aquela mulher de porcelana... a ú nica espé cie que ele podia amar!

Estes eram seus pensamentos quando contornou uma curva da estrada e, subitamente, foi cegada pelos faró is de um carro que se movia em alta velocidade. Ynis levantou os braç os conforme o veí culo se aproximava na noite chuvosa e, novamente, era uma pessoa su­plicante, implorando pela clemê ncia de uma forç a que nã o lhe poderia ser concedida. O automó vel bateu em seu corpo e ela caiu; tudo escureceu tã o rapidamente que a garota pensou estar morrendo. Deu um grito e perdeu os sentidos. A ú ltima coisa que sentiu foi seu rosto latejando de dor e a terra molhada e fria da beira da estrada, para onde tinha sido atirada pela velocidade imprudente do carro que nã o parou.

Como uma lebre, fora abatida e abandonada, enquanto a chuva continuava a cair... a cair.

 

 



  

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