Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





CAPITULO VI



 

Ynis deixou cair o capuz de seu casaco para que a brisa vinda do mar pudesse pentear suavemente seus cabelos. Sentia-se tensa e um pouco receosa pelo que estava prestes a escutar. Ficou à espera, enquanto Pierre Dumont dava uma ú ltima tragada em seu cigarro e o jogava em direç ã o ao mar. Os segundos passavam silenciosamente, enquanto a lua navegava no cé u e as estrelas moviam-se em sua ó rbita como um cardume de peixes brilhantes.       

Era uma bela noite e o ar estava impregnado de suaves perfumes do campo. Era uma noite pró pria para declaraç õ es de amor, e nã o para o relato de uma tragé dia. Um tremor de emoç ã o tomou conta do frá gil corpo de Ynis, quando seu acompanhante começ ou a falar.

- Gard St. Clair morava em Londres naquela é poca, num elegante apartamento perto de Albert Hall. Certa vez o vi reger o Ré ­quiem, de Verdi, e fiquei muito comovido. Em suas mã os, a batuta era como uma varinha de condã o, nã o havia dú vida quanto a isto. Ele é um doutor em mú sica, você sabe, e també m tocava ó rgã o de uma maneira soberba, especialmente Bach. Tenho diversos discos dele. Como ele nã o poderia ter deixado de se transformar em uma pessoa diferente do que era? Como será que ele consegue controlar suas frustraç õ es?

Pierre estava olhando para Ynis, parecendo hesitar, antes que murmurasse:

- " Seja forte e tolerante e esta tua noite de provaç ã o logo passará ". Essas sã o as palavras finais de O Sonho de Gerontius. Gard també m tinha sonhos, mas agora parece tã o frio quanto uma adega, com toda a sua riqueza engarrafada, lacrada e enterrada entre as teias de suas ilusõ es. Este é o homem que você conhece; Stella conheceu outro. Ela estava em Convent Garden na noite anterior à quele acidente terrí vel. Stella estava no camarote de Gard para vê ­-lo reger a apresentaç ã o de um balé de gala. Uma noite excitante, um teatro ainda mais excitante, com seus assentos vermelhos, suas inú meras luzes, alé m da doce magia da danç a. Gislova estava sobre o palco sendo acompanhada por Anton Loder. Sem dú vida esses nomes sã o estranhos para você, mas eram pessoas amigas de Stella e Gard. Eram colegas de profissã o e també m amigos chegados. Entã o, depois de poucas horas, toda a fama lhe foi arrancada, e seus sonhos transformaram-se num imenso pesadelo. Ele estava em Oxford Street como os outros, divertindo-se em passear por todas aquelas lojas sob o belo sol da primavera. Sentindo-se bem consigo mesmo, satisfeito com seu trabalho na noite anterior e talvez, ainda, com a mú sica a ressoar em sua cabeç a. De repente ouviram-se freadas e gritos de alarme, enquanto um enorme carro se desgovernava e su­bia na calç ada perto de onde Gard estava. Ele e mais duas outras pessoas foram arrancadas do chã o e carregadas no capô do carro por alguns metros, até serem lanç adas como simples objetos contra as vitrines de uma loja. Foi uma coisa terrí vel! Em poucos segundos tudo estava acabado. Uma mulher morreu, outra ficou ferida... e o braç o direito de Gard St. Clair foi ferido pelas pontas dos vidros que se quebraram com o impacto do carro.

Pierre deu um suspiro profundo ficando em silê ncio, enquanto deixava que Ynis absorvesse o choque de suas palavras, evocando uma imagem tã o agonizante que a garota gritou:

- Oh, nã o! Assim nã o... tã o cruelmente com o sol ainda a brilhar!

- Exatamente assim - disse Pierre inexoravelmente. -Mas isso nã o foi o pior. Enquanto ele jazia no chã o, com os espectadores se amontoando ao redor, roubaram-lhe a carteira. Ele ainda pô de sentir a mã o do sujo saindo de seu bolso e viu a face do homem um momento antes de perder os sentidos. No hospital, nã o sabendo quem era Gard, porque sua carteira e todos os seus documentos tinham desaparecido, amputaram-lhe o braç o para salvar sua vida. Seu braç o direito que, de certa forma, era sua vida. Mais tarde a carteira foi encontrada numa sarjeta alguns metros longe de onde ocorreu o acidente e, é claro, todo o dinheiro havia desaparecido, mas seu endereç o ainda estava lá. Foi identificado, mas era tarde demais para que um cirurgiã o milagroso como seu amigo Henry Co­dum pudesse operar aquele braç o que, com sua perí cia, talvez pudesse ter sido salvo. O braç o foi-se e, com ele, a carreira de Gard. Com o tempo recuperou-se, mas parece que a melhor parte de seu coraç ã o foi incinerada com os mú sculos, o pulso firme e os dedos de sua mã o direita. O que é um maestro sem seu braç o direito? Ele é como um cavalo de corrida sem uma perna.

O reflexo da lua no mar oscilava em frente aos olhos de Ynis, e quando ela olhou para Pierre, escorriam-lhe lá grimas pelo rosto. - Pobre homem! Viver sabendo que seu braç o poderia ter sido salvo se aquele sujo ladrã o nã o tivesse roubado seus documentos... que coisa insuportá vel para ele!

- Os batedores de carteira, na maioria das vezes, nã o tê m escrú pulos. Da honra eles nã o conhecem nada, e nã o se importam nem um pouco. Ali na calç ada, talvez para morrer sem nem mesmo dar­-se conta disto, estava um homem bem vestido, com a aparê ncia de um cavalheiro com bastante dinheiro no bolso. As mã os de um la­drã o sã o leves e rá pidas e o roubo ocorre quase num piscar de olhos. Mas sabe-se lá se até um ladrã o como aquele nã o ficou chocado ao ver sua ví tima com os olhos abertos e ciente do que estava acontecendo ainda que dor e choque lhe tivessem tirado o poder de reagir? Foram roubados trinta libras e mais uma carreira brilhante. Mais uma vez, Judas foi tentado por trinta moedas de prata!

Ynis ouvia o canto suave do mar... ou ele estaria soluç ando en­quanto se batia contra as rochas de Barbizon?

- Nã o consigo en­tender como Stella pô de abandoná -lo depois do que aconteceu. Se ela o amasse, como poderia contribuir para o seu enorme sofri­mento? Como ela tem a coragem de vir até aqui, fingindo que ainda o ama?

- Ela é um anjo demoní aco, esta é que é a verdade. - Uma nota de cinismo misturava-se com o respeito de um profissional por outro; de um escritor por uma atriz de talento renomado, que transformava suas peç as em sucesso estrondoso nos palcos de Londres, Nova Iorque e Paris. - Ela gosta de manter escravizados os homens a quem deixou de amar. A seu modo, que é diferente do seu, ela ama St. Clair mas, depois do acidente, ocorreu algum desentendimento entre eles e Gard recusou-se a viver a vida de Stella. Ela nunca ficará distante do brilho das luzes de um palco, da emoç ã o de ser e continuar sendo uma estrela. O orgulho e a obstinaç ã o que eles compartilham está no sangue, pois sã o primos de segundo grau, e o segundo sobrenome de Stella é St. Clair. Isto é o que os une e, ao mesmo tempo, os manté m separados. Se aquela coisa terrí vel nã o tivesse acontecido naquela manhã em Oxford Street, hoje é prová vel que eles estivessem casados, seriam duas estrelas em ó rbita, mas Gard nã o seria um saté lite de sua esposa. Nã o estou querendo di­zer que ele seja um má rtir, mas acredito que ele seja forte o bastante para agü entar-se e para resistir a Stella, nã o arriscando o que encon­trou aqui em Cornwal com você, Ynis.

- E o que você acha que ele encontrou estando comigo? - Era a vez da garota parecer um pouco cí nica. - O que eu sei sobre mú sica e sobre o mundo que significam tanto para ele? O que eu sei sobre li­dar com um homem abandonado e infeliz como Gard St. Clair? Você me contou a histó ria toda e fez com que eu me penalizasse dele... mas pena é a ú ltima coisa que ele deseja receber de qualquer pessoa! É de Stella que ele precisa, e nã o de uma qualquer como eu!

- Basta com tudo isso! Pierre pegou-a pelos ombros e entã o emoldurou-lhe o rosto com as mã os, levantando-o em direç ã o à lua para que pudesse fitá -la dentro dos olhos. - Você tem a vantagem de ser pura, com esta pele de pê ssego e olhos de jade. Você nunca o magoou e eu acredito que Stella o tenha feito depois do acidente. Ela deve ter demonstrado seu horror ao vê -lo e Gard, nesta fase, ainda devia estar muito sensibilizado. O problema que existe com as atrizes é que elas sã o espelhos instintivos de todas as emoç õ es e Gard deve perceber com rapidez as mí nimas reaç õ es que as pessoas sentem com sua mutilaç ã o. Que ironia dos deuses lhe arrancarem o braç o direito ao invé s do esquerdo! Isto significa que toda a perfei­ç ã o que ele atingira, e pela qual era aclamado, estava terminada e que nã o só estava desfigurado como també m sem uma profissã o! Quando ele saiu do hospital, deixou Londres e fez uma viagem pelo mundo de mais ou menos um ano. Entã o, voltou para Cornwall e nunca mais houve alguma menç ã o de casamento entre ele e Stella.

Ynis continuava com o rosto entre as mã os de Pierre, aparentando calma quando intimamente estava tã o perturbada que se sentia quase furiosa com o francê s que lhe falara sobre Gard, fazendo-a vê -lo como um ser humano que nã o tinha uma pedra fria no lugar do coraç ã o.

- Em geral os fortes sã o vulnerá veis porque suas má goas normal­mente sã o profundas - disse Pierre. - Gard precisa de você. . .

- Mas, antes de tudo - disse Ynis em voz alta -, precisa mos­trar para Stella que encontrou uma garota para substituí -la. Ele te­lefonou para contar as novidades para ela!

- Acredito mais que ela tenha telefonado, Ynis. Havia um rumor circulando em uma de suas butiques preferidas, que Gard St. Clair estava comprando roupas de todos os tipos para uma jovem, assim era ó bvio que se tratava de um enxoval. Estou certo de que ela se convidou para vir a Sea Witch e, sem dú vida, o demô nio que existe dentro de Gard reforç ou o convite para vir conhecer sua futura esposa. Você nã o entende isto?        

- Acho que nã o, Pierre. Nã o sou vivida o bastante para compreender o fato de que esperem que eu me case com um homem que durante toda sua vida amou outra mulher! Ao vê -los juntos, percebe-se o quanto combinam bem, ambos tã o inteligentes e tã o despreocupados em serem crué is como os tigres, que mostram suas garras afiadas por instinto. Foram educados para sempre valorizarem o pró prio brilho e para serem arrogantemente seguros de si mesmos. Os dois fazem com que eu me sinta tã o insignificante! Aposto que neste momento ela está rindo para ele e dizendo-lhe que nã o acredita que uma garota assim como eu possa ousar pensar em ser sua noiva. Ela sabe, como eu, que ele está pregando uma peç a em nó s duas!

Pierre fitava-a dirigindo seu olhar para o rosto pá lido e suplicante da garota, cuja expressã o dos lá bios parecia de desespero. Ela es­tava assustada e desconcertada pelo seu pró prio medo e pela compaixã o. Estas duas emoç õ es adversas tinham se misturado tanto a ponto de nã o conseguir mais deixar de gritar para que algué m a aju­dasse.

- Pobrezinha! - Ele era francê s demais, emocional demais para nã o se comover com a sú plica da garota e, pegando-a nos braç os, se­gurou-a de encontro ao peito, ali, sob a luz da lua, alisava os cabelos macios de Ynis. Ela podia ouvi-lo murmurando palavras em francê s e o mais estranho era que as compreendia. Como podia ser isto? Será que no convento existia alguma freira francesa que lhe ensinara a lí ngua de Pierre? Ela estava tã o espantada com a nova descoberta sobre si mesma, que sentiu um tremendo choque quando algué m interrompeu o murmú rio da voz de Pierre, num inglê s á spero.

- Que diabo você está fazendo? Eu lhe preveni, Dumont, que nã o se metesse com essa menina! Tire suas mã os de cima dela, ela nã o é uma atrizinha que acabou de ter desempenhado algum mí sero papel secundá rio em uma de suas peç as!        

Palavras tã o furiosas e insolentes foram capazes de arrancar cada partí cula de cor da face de Pierre, enquanto ele largava o corpo frá gil de Ynis e fitava a figura sombria e majestosa de Gard, de pele queimada pelo sol e com suas sobrancelhas negras solidamente unidas acima de seus olhos brilhantes. Ele parecia capaz de matar, mas Pierre continuou calmo e, dos dois homens, ele parecia o menos es­trangeiro naquele momento, desmentindo a verdade popular que diz que todo inglê s é calmo e moderado e que todo latino possui o sangue quente e explosivo.

- Nã o tenha tanta pressa em insultar sua noiva, monsieur ­- disse para Gard. - Você nã o deve conhecê -la muito bem se pensa que ela iria querer se divertir comigo à s suas costas. Ela precisa de amizade e nã o de aventuras amorosas.

- Uma amizade bem pró xima, pelo visto - retrucou Gard. ­Você sempre abraç a suas amigas e murmura-lhes palavras em fran­cê s em seus ouvidos? Deve ser muito desagradá vel para os namora­dos e maridos de suas amigas este seu comportamento.

- Gard, pare com isso! - Ynis sentiu-se subitamente cansada de tudo aquilo, de ser o pomo da discó rdia entre ele e Stella, e agora entre ele e Pierre. Seus sentimentos pareciam nã o contar nada; ela nã o passava de um nada que devia agradecer por estar ali, naquela casa, onde velhas emoç õ es corriam soltas naquela noite e punham grilhõ es nos nervos de todos. Iria embora na manhã seguinte, em si­lê ncio, e esperava que ele encontrasse alguma forma de ser feliz com Stella.

- Estou cansada - disse ela. - Vou me deitar. - Quase esbarrou em Gard quando correu para a casa, tomando o caminho mais rá pido atravé s do gramado e sentindo o orvalho molhar seus tornozelos. Seu casaco, preso apenas no pescoç o, parecia uma capa a flutuar atrá s dela e a luz da lua dava-lhe o aspecto de uma figura tã o sofredora que deixou os dois homens imó veis até ela desaparecer de vista. Ela entrou em sua suí te pelas portas do terraç o e fechou as cortinas, ocultando a lua, que viajava tã o serenamente acima de Sea Witch.

O cansaç o tomou conta de seu corpo todo, fazendo com que sen­tisse frio e, ajoelhando sobre o tapete de pele de tigre, ligou o aque­cedor; por um longo tempo ficou olhando para o aparelho e sentiu novamente aquele conflito em seu coraç ã o: pena e horror por Gard... Mas mesmo assim devia deixá -lo. Nã o devia sentir compaixã o por Gard, pois nã o era isso que ele queria dela! Indo embora de Sea Witch poderia ter certeza de que ele nã o a usaria como um ultimato contra Stella. Deixando-os juntos, poderia esperar que assim conti­nuassem.

Tirou a safira de seu dedo e aproximou-se da penteadeira, onde cuidadosamente a colocou em sua caixinha de cristal. A pedra bri­lhava como um frio olho azul, enquanto Ynis vagarosamente levantava suas mã os e abria a corrente que Gard lhe dera para usar. A pé rola jazia como uma lá grima congelada na palma de sua mã o direita. Havia realmente uma superstiç ã o em relaç ã o à s pé rolas e naquela noite aprendera amargamente como as lá grimas podiam doer.

Já era tarde quando ouviu as portas do corredor se fechando. Mais tarde adormeceu e viu-se envolvida em pesadelos angustiantes. Es­tava escuro quando um ruí do a acordou. Permaneceu tensa, ouvindo o tique-taque insistente do reló gio, à espera de que o ruí do se mani­festasse novamente para poder identificá -to.

Sentou-se e jogou as cobertas para o lado. Lá fora no terraç o al­gué m andava no silê ncio da noite, tã o perto de suas janelas Que seu coraç ã o começ ou a martelar em seu peito e ela visualizou a figura de um ladrã o tentando encontrar uma entrada para o interior da man­sã o à procura de objetos valiosos. Num ato de coragem estendeu sua mã o para acender o abajur, pensando que o ladrã o pudesse assustar­-se com a luz mas, infeliz no seu gesto, calculou mal a distâ ncia e derrubou o abajur sobre a mesa. O objeto, ao cair, emitiu um baru­lho surdo que ressoou por todo o aposento. Ela prendeu sua respira­ç ã o e quase pô de ouvir o respirar do gatuno do outro lado da janela. Entã o seu coraç ã o pareceu chutar seu peito, quando ouviu o ruí do da maç aneta virando-se e percebeu, pela cortina que se movia a luz da lua. Um homem estava entrando em seu quarto!

- Nã o grite - disse ele - e nã o me jogue nada em cima. Eu ouvi você derrubar alguma coisa, e daí percebi que devia estar acordada.

- Você?! - O tom profundo da sua voz era inconfundí vel assim como a altura do intruso. As cortinas voltaram para o lugar nova­mente e as mã os de Ynis tremiam com grande nervosismo quando ela endireitou o abajur e ligou-o. A luz revelou-o alto e moreno de encontro à s cortinas douradas. Seus negros cabelos estavam despen­teados e ele vestia um robe escuro, cuja manga direita pendia solta. Piscou com a luz, como um grande gato voltando de seu passeio no­turno.

- O que você quer, Gard? - Puxou as cobertas para cima de seu corpo, mas sabia que o homem vira a magreza pá lida de seus ombros nus, dos quais as alç as cor-de-rosa de sua camisola tinham escorregado.

- Eu realmente nã o sei. - passou a mã o em seus cabelos, e sen­tou-se aos pé s da cama. - Suponho que foi meu passeio que a acor­dou. Você pensou que fosse um ladrã o?

- Sim. - De repente percebeu o quanto era estranho estar com ele em seu quarto naquela hora da noite.

Nunca lhe parecera com­prometedor ele estar ali com ela durante o dia, mas à luz do abajur, e com aquele amontoado de roupas í ntimas ao lado da cama, que por preguiç a nã o fora capaz de guardar na cô moda, o quarto ganha­ra um ar de intimidade que lhe pareceu subitamente perigoso. Sentiu que ele a encarava e seu pró prio olhar passava por todos os objetos do quarto, evitando fixar sua figura com o peito coberto de pê los negros que apareciam na abertura do paletó do pijama de Gard. Sua aparê ncia desleixada sugeria que ele estivera na cama, mas acabara se levantando para caminhar pelo pavimento de pedras do terraç o.

- Odeio ficar me virando de um lado para o outro na cama ­disse ele. - Nã o conseguia dormir e entã o resolvi caminhar um pouco para cansar-me um pouco. Desculpe-me por tê -la perturbado e por ter lhe pregado um susto. Você está me parecendo muito pá lida. Quer um copo de á gua?

- Estou muito bem, e nã o vou desmaiar, fique tranqü ilo - retru­cou ela, sentindo-se irritada, pois ele conseguira deixá -la mais nervo­sa do que um assaltante a teria deixado. - Você é engraç ado, Gard. Num momento você diz que eu nã o passo de uma atrevida e no se­guinte, que está me achando abatida. Eu sou eu, Ynis Railford, e nã o­ posso ser moldada em algo que lhe agradaria mais. A ú nica mulher que pode fazer com que você se sinta verdadeiramente vivo é Stella e qualquer outra vai ter que se submeter...

- Eu nã o sou assim! - Ele, inclinou-se em direç ã o a Ynis e seus olhos brilhavam com a lembranç a sombria dos sofrimentos pelos quais passara; linhas á speras cortavam sua face e delineavam seus lá bios grossos. A garota sentiu novamente a intensa virilidade da­quele homem e toda a paixã o reprimida ao longo dos ú ltimos cinco anos. – Sim, eu tenho as minhas feridas da alma que sempre farã o parte de mim, mas sou feito de velhos sonhos e anseio por novos so­nhos. Eu quero você, minha crianç a inocente, e a terei. Você tem uma dí vida comigo, sabia disto?

- Você está querendo dizer que lhe devo alguma coisa? - Ynis podia sentir o poder que parecia emanar daquele homem, a proteç ã o ineficiente da colcha da cama e como seria fá cil para ele fazer uso de sua forç a e dominar sua fragilidade. Possuí a apenas as palavras para usar como escudo, palavras que ele poderia distorcer e usá -las para o seu propó sito. - Está pedindo que eu pague pelas roupas que estã o no armá rio e pela enfermeira que cuidou de mim, sem contar este teto luxuoso que tenho sobre a cabeç a? Você tem certeza de que vou compensar todo o dinheiro que você gastou? Nã o sei nada sobre os homens e muito menos sobre dar ordens a criados e cuidar de uma casa como Sea Witch. Eu sou uma piada onde quer que esteja. Até mesmo Alice, a criada, sabe mais das coisas do que eu.

- Alice tem um gosto horrí vel para a mú sica - disse ele lenta­mente. - E nã o tenho dú vidas de que a educaç ã o sexual dela já come­ç ou. Com você, minha bonequinha, tenho que começ ar pratica­mente da estaca zero e sou arrogante o bastante para gostar da idé ia de criar uma mulher minha como se o fizesse partindo de uma cos­tela. - Seus olhos fixaram-se na colcha que ela segurava de encon­tro ao peito e um sorriso zombeteiro surgiu em seus lá bios. - As ati­tudes que você tem tomado sã o muito mais provocantes do que vê -la agora de camisola. Neste momento, você parece esperar que eu a violente, e com muita sinceridade, devo dizer que esta seria a ma­neira mais fá cil de levá -la para o altar. Você nã o seria tã o contra este casamento se eu a comprometesse aqui e agora.

- Você nã o se atreveria! - O rubor espalhou-se em seu rosto e ela sentou-se na enorme cama, rí gida pelo medo que sentia. - Você nã o seria tã o grosseiro!

- Que palavra mais ultrapassada para esta situaç ã o, minha bo­nequinha. - Ele espreguiç ou-se e chegou mais perto dela; um ho­mem que mais parecia um tigre, com os pê los negros espalhados so­bre seu peito e com o sangue perigosamente tumultuado devido a longa recusa de Stella, a quem amara enquanto garoto e agora como adulto. Stella é que o deixara inquieto naquela noite; seu desejo con­tido por ela é que o fizera revirar-se na cama. Por sua vez, ele tinha que desabafar, e Ynis estava à mã o, a seu alcance, e tã o cheia de sua timidez natural e de sua educaç ã o no convento que gritar lhe pare­ceria mais vergonhoso do que qualquer coisa que ele pudesse fazer­-lhe. Ele sabia que ela nã o gritaria para chamar a atenç ã o das outras pessoas.

- Os grosseiros sã o homens que nã o propõ em casamento, antes ou depois da primeira relaç ã o - disse ele e, antes que Ynis pudesse evitar, segurou sua mã o direita e olhou-a. - Vejo que você tira seu anel para dormir.

- Aquele anel nã o é meu, e nã o me importo que você me quebre a mã o por dizer-lhe isto! - Seus olhos verdes lanç avam faí scas de desafio para Gard e seu ombro esquerdo estava nu, delineado pela lâ mpada do abajur ao lado esquerdo da cama. A colcha de seda es­corregou e os olhos de Gard seguiram o movimento. Suas pá lpebras pareceram ficar pesadas como se estivesse cansado.

- Por que insiste em dizer que o anel nã o lhe pertence, quando eu o dei para você? - Sua voz tinha a maciez do veludo, mas por trá s se ocultava um tom de ameaç a. Ele a provocava para que ela lhe dissesse por que odiava o anel e, ao mesmo tempo, advertia-lhe de que as amarras de seu autocontrole estavam afrouxando-se rapi­damente. Ynis sabia que ainda poderia aplacá -lo se desejasse mas, caso continuasse com aquilo e lhe atirasse no rosto a verdade sobre o relacionamento que existia entre eles, Gard acabaria ganhando a batalha e na manhã seguinte teria que encarar uma verdade muito pior. Teria que casar-se com ele!

Ynis fitou-o, sentindo seu coraç ã o acelerado e desviou o olhar para a cabeç a de tigre em frente à lareira. Gard ria, suave e compreensi­vamente.

- É isto que você pensa de mim? - perguntou ele. Ynis sentiu sua mã o ser tomada pela de Gard e lá bios passando em seu pulso, no local exato onde sua veia latejava. Ela se sobressaltou como se uma chama lhe tivesse queimado a pele; tentou se libertar, mas os dedos que a seguravam apertaram-se e puxavam-na até que, com um pequeno suspiro, percebesse que seu corpo estava junto ao de Gard. Com habilidade, passou o braç o em torno de sua cintura, ali na ca­ma e seus lá bios estavam a apenas alguns centí metros dos dela, en­quanto um sorriso levemente diabó lico brilhava em seus olhos.

- Você está certa, minha doce crianç a, gentil e inocente. O anel era destinado a Stella, como percebeu, a safira combina exatamente com os olhos dela. Eu o encomendei na manhã seguinte à que deci­dimos nos casar, em Londres há cinco anos atrá s. Quando a jó ia chegou Stella e eu já nã o está vamos mais comprometidos e eu deixei que você a usasse, minha bonequinha, porque queria dor naque­les olhos de safira. Você se espanta, Ynis! Você nã o gosta de cruel­dade, gosta? Você acredita na benevolê ncia e na piedade por causa de sua formaç ã o. Eu aprendi a acreditar nestas virtudes por mim mesmo, como um jovem idealista, e mesmo depois de homem feito, mas eu as perdi... perdi muitas coisas, mas você finge que as possui!

Seus lá bios desceram sobre os dela quando terminou de falar, e parecia nã o haver mais nada vivo no mundo a nã o ser a boca de Gard, procurando-a, encontrando-a e nã o se importando com suas inú teis tentativas para evita-lo.

Ela nã o conseguia gritar... mas, de repente e de modo chocante, algué m gritou, perto da porta. Tudo ficou calmo... os lá bios que a mantinham prisioneira transformaram-se em pedra. Entã o Gard levantou-se e virou a cabeç a para a direç ã o de onde viera o grito estrangulado. Seus cabelos negros tinham sido desarrumados pelas mã os desesperadas de Ynis e toda a sonolê ncia ardente desaparecera de seus olhos, que estavam atentos como os de um gato.

- Stella!

Ao ouvir aquele nome, Ynis levantou a cabeç a e viu a manga de um robe estampada com pavõ es coloridos estremecendo quando a porta bateu atrá s da atriz. O silê ncio que se seguiu foi constrange­dor. Em seguida, Gard largou-a e saiu da cama. Com a prudê ncia de um homem que procura as palavras certas, passou a mã o pelos cabe­los.

- Apanhados em flagrante, é o que dizem - afirmou ele e com­primiu os lá bios. - Stella sempre foi muito curiosa e eu devia ter imaginado que ela tentaria descobrir se eu mantinha relaç õ es com você antes do casamento. Agora ela já sabe, nã o é?

- Você quis que ela soubesse - replicou ela, furiosa e seu rosto estava tã o branco que seus olhos pareciam esmeraldas de pontas afiadas contra a palidez de sua pele. - Nã o finja que você algum dia se esqueceu de algo relacionado a Stella. Você a conhece como co­nhece a si mesmo, e fez com que ela o ouvisse caminhando pelo ter­raç o, como fez comigo. Você arquitetou este plano com perfeiç ã o. Queria que ela me encontrasse em seus braç os, tã o comprometida que teria que me casar com você e providenciar-lhe um escudo para o ponto fraco de sua couraç a, Gard. O ponto fraco que fica exata­mente sobre seu coraç ã o! Stella está em seu coraç ã o e em seu sangue e eu nã o quero ser usada para mantê -la a distâ ncia. Eu tenho meu amor-pró prio, você devia saber!

- E para que vaiservir este seu amor-pró prio, Ynis, quando co­meç ar a circular por aí que você é minha amante?

                                                  - Mas eu nã o...

                                                  - Você imagina, minha crianç a ingê nua, que Stella pensou que nó s estivé ssemos apenas ensaiando? - De repente, ele inclinou-se para a frente e arrumou a alç a da camisola de seda cor-de-rosa que caí ra durante o beijo. A ponta de seu dedo era como pingos de fogo sobre a pele lisa e macia do ombro de Ynis, e, odiando aquele ho­mem, desprezando seu toque, ela afastou-se de sua mã o. Os lá bios de Gard comprimiram-se e seus olhos estreitaram-se.

- Muito bem, devo jogá -la para fora de minha casa amanhã de manhã, como se fosse um objeto usado?

- Faç a o que quiser - retrucou ela, furiosa. - Eu preferiria ser qualquer coisa a ser sua esposa. Qualquer coisa! Esfregar chã o de cozinha é preferí vel a ser amada por um... - Ynis interrompeu-se, ele era um demô nio, mas nã o completamente insensí vel e a garota engoliu a palavra antes de dizê -la.

- Um aleijado, era o que ia dizer? - Estas palavras soaram como uma bofetada, rá pidas como as de Ynis, mas muito mais crué is. ~ Você ia jogar isto em minha cara? Nem mesmo Stella diz esta palavra, apenas pensa.

- Gard.

Mas ele já estava se virando. Antes que saí sse do quarto, parou por um momento ao lado da penteadeira e tirou o anel de safira da caixinha de cristal. Examinou-o por alguns segundos e entã o colo­cou-o no bolso de seu robe.

- Boa noite - disse ele em voz baixa. - Nã o podemos discutir nosso futuro com o humor em que nos encontramos agora. Vamos deixar as coisas como estã o até amanhã.

A porta fechou-se atrá s dele, mas sua figura alta e morena parecia pairar na atmosfera e sua voz parecia ter deixado um eco de suas pa­lavras dolorosas. " Um aleijado! Era isto o que estava prestes a jogar em minha cara? "

Ynis encolheu-se na cama desarrumada e pressionou as mã os de encontro aos ouvidos numa defesa quase infantil contra as palavras que ressoavam em sua mente.

Nunca sequer sonhara em dizer aquilo para Gard, mas ele saí ra de seu quarto acreditando que ela o rejeitara porque ele perdera um braç o... Desejava, com todas suas forç as, ir até ele e dizer-lhe que a amputaç ã o nã o lhe causava repulsa... mas, se fizesse isto, estaria fechando a porta da sua profunda necessidade de ir-se embora de Sea Witch; de uma situaç ã o que o casamento deles nunca poderia resolver.

Nem durante a noite nem durante o dia, Ynis seria capaz de tirar de sua mente ou de seus sentimentos que o amor de Gard por Stella estava cravado até o fundo de seus ossos.

Por causa disto, rejeitara seus abraç os... quando queria que Gard a acariciasse ou a beijasse, ele estaria pensando em Stella. Estaria desejando o corpo perfeito da atriz, seus lá bios sensuais, suas palavras que sempre trariam a lembranç a do que tinham compartilhado durante a juventude.         

Um frio pareceu penetrar-lhe o corpo todo e Ynis deitou-se na cama, sentindo um forte tremor. Seus lá bios pareciam queimar dos beijos selvagens de Gard; seu corpo doí a por ter sido forç ada a resistir a ele... nã o se atrevia a pensar no que poderia ter acontecido se Stella nã o tivesse aparecido.

    Ocultou o rosto no travesseiro, sentindo sua pele queimando contra a frieza da seda. Esperava desesperadamente que a manhã seguinte chegasse logo; nã o teria que encarar Gard ou Stella, pois iria embora de Sea Witch o mais cedo possí vel. Nã o possuí a mais o anel para empenhar, mas Gard deixara a corrente com a pé rola, pelo que conseguiria o suficiente para pagar sua passagem até Londres.

 Uma vez que tivesse chegado à grande cidade, nã o passaria de uma simples anô nima e poderia pedir ajuda em algum convento.

 

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.