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CAPITULOII



 

Havia o ruí do da chuva batendo de encontro à s janelas, o murmú rio do vento nas á rvores e o vislumbre de longas cortinas de seda que refletiam o fogo de lareira. Ynis sentia-se como se estivesse saindo de um sonho assustador, para perceber que estava segura, acomodada numa cama larga com enormes e macios travesseiros sob a cabeç a. Com osolhos sonolentos e maravilhados olhou para o tapete de pele de tigre colocado em frente à lareira.

Mesmo enquanto observava a beleza e conforto daquele aposento a garota lembrava-se vagamente de uma cama que nã o era confortá vel como aquela, de um assoalho de madeira, que nã o possuí a tapetes, e de janelas estreitas cobertas por um fino tecido branco. Mas a lembranç a era tã o intangí vel que certamente fazia parte daquele sonho estranho do qual acabava de despertar.   

Um sorriso tocou-lhe os lá bios. Devia, com freqü ê ncia, ter se deitado naquela pele listrada com a bela cabeç a do animal, sem dú vida lendo um bom livro daquela estante, onde havia també m uma escultura chinesa. Olhou sonolenta para o lampiã o, em sua mesinha de cabeceira; estava regulado para igualar-se com a luminosidade das cortinas, e havia um pavã o pintado na cú pula de porcelana. Sua beleza deu-lhe um pequeno choque de prazer. Pelo aspecto do aposento, podia-se concluir que em nenhum momento deixara de viver entre coisas bonitas. Aqueles quadros de bailarinas presos na parede eram tã o encantadores que as garotas pintadas pareciam prestes a saltar das molduras para apresentarem um nú mero danç a para ela.

Ynis suspirou com um prazer sonolento... e entã o ficou tensa quando a chuva começ ou a bater com mais forç a nas janelas de cortinas fechadas. Que terrí vel nã o estar protegida e segura como ela estava mas sim no vento e na umidade, sem uma casa como aquela.

Aconchegou-se na cama e sentiu-se muito feliz de que estivesse ali e nã o caminhando sem destino pela noite. Adormeceu e, desta vez, o sonho mau nã o voltou para deixá -la inquieta.

Com a chegada da manhã, entrou uma mulher com uma touca engomada e um uniforme azul-c! aro, triste e tremendamente real enquanto abria as cortinas e deixava o sol da manha iluminar o quarto.

- Como está minha paciente? - perguntou ela.

Observou-a com olhos cheios de surpresa. - Entã o estive doente!

Agora, na claridade da manhã, Ynis olhou o quarto e viu que tudo estava igual como estivera na noite anterior... apenas a chuva parara de bater contra as janelas.

A enfermeira sorriu e ajudou-a a sentar-se, arrumando os traves­seiros atrá s dos ombros magros da garota. - Aí está, isto a faz senti­r-se melhor? - A mulher pronunciava os rr de modo prolongado e á spero. - Hoje você vai tomar o seu café dá manhã, querida? On­tem você nã o estava querendo e eu tive que persuadi-la, mas hoje seus olhos estã o mais brilhantes. Você parece bem melhor.

- Sim, sinto-me melhor. - Os grandes olhos verdes estavam fi­xos na enfermeira. - Qual foi o problema que aconteceu comigo? Por quanto tempo estive doente?

- Foi atropelada por um carro veloz, querida. Foi abandonada na beira da estrada e teria morrido com o frio e a chuva, se o sr. Doom nã o a tivesse encontrado.

- Doom? - Ynis repetiu o nome com a respiraç ã o um pouca ofega­nte como se tivesse uma fraca lembranç a dele. - Parece que já ouvi este nome antes.

- Nã o se force a recordar de tudo - disse a enfermeira. – Todas as lembranç as voltarã o com o tempo, pois você recebeu uma pan­cada terrí vel na cabeç a e está em repouso há quase trê s semanas. Você ficou como uma crianç a.

- Uma crianç a? - Os olhos verdes fitaram as mã os que aperta­vam a colcha de seda. As unhas de todos os dedos estavam cortadas bem rentes e sem esmalte. A mã o esquerda nã o tinha nenhum adorno e ainda mostrava as marcas de esfoladuras. Mas na mã o di­reita havia urna alianç a que a garota examinou maravilhada. Era uma argola dourada cravejada com uma belí ssima safira que sobres­saia num leito de pequenas pé rolas. Dizer que a jó ia era extraordiná ria ­nã o era descreve-la com precisã o, e ela sentiu seu coraç ã o bater depressa quando percebeu que esta estava firmemente colocada no quarto dedo de sua mã o direita.     

Ynis olhou para a enfermeira e sentiu uma necessidade quase brutal de pedir um espelho.

- Eu nã o consigo lembrar-me do meu rosto. Nã o é absurdo?

Com um olhar benevolente para o rosto da moç a, a enfermeira foi até a penteadeira e voltou, com um espelhinho com cabo de prata; segurou-o para que os olhos verdes pudessem examinar a face da qual faziam parte.

- Como meu rosto é magro! Ningué m poderia dizer que sou bonita!

- Pense em tudo o que você passou. querida. - A enfermeira falou com uma voz que tentava estimulá -la. - Alé m do mais, o que importa a aparê ncia? Você tem um noivo, nã o é? O amor e a beleza estã o nos olhos do observador. E agora seus olhos estã o muito mais brilhantes; posso ver o quanto estã o verdes e cheios de vida. Entretanto, é engraç ado que... - A enfermeira interrompeu-se e observou a garota deitada na enorme cama, com os olhos fixos novamente naquela jó ia que dominava sua mã o direita.         

Ynis olhou para o rosto da enfermeira.

- O que é engraç ado? Quealgum homem possa ter se interessado por um pedaç o de pele e ossos como eu?

A enfermeira deu uma risada.

- Ah, sim, você está melhorando mesmo! Quando uma paciente começ a a falar desse jeito é sinal que está se recuperando. Estava agora pensando que a cor de seus olhos é tã o linda que um homem devia escolher uma pedra preciosa com o mesmo tom, ao invé s desta azul-escura. É encantadora, ló gico mas os homens nem sempre demonstram ter muita imaginaç ã o, embora ele pareç a ter uma muito grande.

- Diga-me como ele é... - Os pequenos dentes morderam o lá bio inferior que estava bastante pá lido. - É realmente muito estranho que eu nã o seja capaz de lembrar-me de coisas tã o simples como meu pró prio nome e o rosto de meu noivo. Ele é bonito?

Foi a vez da enfermeira morder os lá bios.

- É um homem imperioso, devo admitir, embora ele...

- Vamos, continue! - Ynis moveu-se na cama, ansiosa por detalhes que pudessem preencher aqueles vazios perturbadores em mente. - Estou me sentindo como a bela adormecida que acaba de acordar de um longo sono. Ele é alto, amá vel e adora montar cavalo? Nã o sei por que tenho a sensaç ã o de que me casaria apenas com um tipo que adorasse a natureza.

- Amá vel ele nã o é - A enfermeira deu uma risada bastante forç ada. - Você vai vê -lo dentro em breve, e agora vou trazer o seu café da manhã. Você quer ovos com torradas e algumas frutas para completar?

- Daqui a quanto tempo poderei vê -lo e, enfermeira, como ele se chama? - Ynis nã o pô de conter a pergunta dentro de si. A enfer­meira já estava com a mã o sobre a maç aneta da porta e, entã o, se vi­u encarando a figura jovem deitada na enorme cama.

- Ele se chama Gard St. Clair, um homem de muitos recursos e esperto como um dia... - Sem completar a palavra final, saiu do quarto um tanto apressadamente, deixando no ar um leve sentimento de dú vida, devido à quela ú ltima palavra nã o pronunciada de todo.

A noiva de St. Clair recostou-se nos travesseiros e repetiu para si mesma o nome do homem com quem estava comprometida. Era um nome, que inspirava respeito e devia pertencer a uma pessoa consciente de seu poder sobre as coisas que possuí a. Passou os dedos len­tamente sobre a safira que brilhava como uma chama azul e nã o pô de deixar de sentir um leve estremecimento ao pensar que aquele anel simbolizava um compromisso com um homem de quem nã o possuí a a mí nima lembranç a. Um homem de recursos e esperto como o diabo! Sua mã o tremia um pouco quando pegou o espelho que a enfermeira deixara sobre o criado-mudo e, mais uma vez, examinou seu rosto. Seria mesmo este rosto que um homem de tanto­s recursos amaria? Seria este seu corpo magro, quase infantil, ca­paz de despertar paixã o num homem de grande personalidade?

Embora ainda nã o conseguisse lembrar-se de seu pró prio nome, nã o havia se esquecido de certas coisas bá sicas da vida. Mesmo nã o recordando se possuí a uma famí lia ou se era sozinha no mundo, a nã o ser por seu noivo, nã o deixou de perceber que ele causava uma estranha impressã o na enfermeira. Os homens charmosos, amá veis, nã o tornavam as mulheres evasivas ou inclinadas a usar a palavra “diabo” para defini-los. ­

 Deixou o espelho tombar sobre a colcha de seda fina e agora, à luz do dia olhou o quarto com mais atenç ã o, com suas cadeiras forradas de cetim, de um modelo bastante feminino, e a pele de tigre que fi­cava sobre o carpete bege que recobria todo o assoalho. Um lindo cortinado de seda, forrado em malha, cobria as janelas por onde chegavam o grasnar das aves... aves marinhas!!

Portanto, onde quer que estivesse, estava perto do mar! E a casa era enorme, a julgar pelo tamanho do quarto e daquelas janelas! A quem pertenceria esta casa? Ao cruzar suas mã os, o contato da pedra azul em seus dedos deu-lhe a resposta.

A porta abriu-se e a enfermeira voltou com uma bandeja sob a qual haviam objetos de prata e de porcelana muito frá gil. A bandeja tinha pé s suficientemente longos e fortes para ser colocada em cima do colo da paciente. - Aqui está, querida. As torradas estã o quentinhas, embrulhadas no guardanapo. Os ovos foram recolhidos esta manhã...    

- Enfermeira?

- Sim, querida? Você quer usar o banheiro antes de começ ar a comer?

- Nã o... Diga-me onde estou! Esta é minha casa, uma clí nica particular ou a casa de Gard St Clair?

- Ora essa! Esta é Sea Witch, uma das casas mais antigas e tradicionais desta parte de Cornwall. Ló gico que é a residê ncia do sr. Clair! Foi seu criado quem encontrou você... Durante uma semana você esteve no hospital, depois conseguiram que uma ambulâ ncia trouxesse para Sea Witch, e eu vim junto para cuidar de você. – A enfermeira, com sobriedade, serviu-lhe o café. - Agora beba e coma sem deixar que tudo isso aqui esfrie.

- Nã o havia nenhum outro lugar para onde eu pudesse ir? – A garota havia estremecido ao escutar o nome da casa, como se por um momento algo tivesse despertado dentro dela.

- Mas por que isso agora, querida? O sr. St. Clair tem feito o má ximo por você e pagou-me para que eu ficasse aqui. Ele achou que seria bem melhor você ficar numa casa tranqü ila do que num hospital. E você deve admitir, querida, que num quarto como esse sua recuperaç ã o, com certeza, será muito mais rá pida. – Enquanto falava, a enfermeira colocou um penhoar de seda acolchoado sobre os ombros pá lidos da moç a. - Pronto, agora desfrute seu café da manhã e pare de se preocupar. Sei que nã o lembrar-se de nada, nem ningué m, deve deixá -la desconcertada, mas, de repente, como num passe de má gica, algo vai estalar em sua mente e você vai recordar-se de tudo. Fisicamente você está muito melhor... o ovo está bom?

- Está uma delí cia, obrigada. - Comeu os ovos e as torradas e bebeu o café e entã o teve que dizer aquilo que parecia tã o engraç ado até para si mesma. - Eu nem mesmo sei meu pró prio nome, mas tenho certeza que deve ser Jane. Apenas Jane!    

A enfermeira riu, dirigindo-se para o quarto de vestir.

– Você é engraç ada, querida. Está aqui rodeada de coisas tã o bonitas, providenciadas pelo homem com quem vai se casar e fala sobre si desta maneira. Na verdade, seu nome é muito diferente. Eu nã o o conhe­cia até vir para cá cuidar de você...

- Gostaria de ouvir esse meu abenç oado nome! - Seus olhos verdes estavam suplicantes. - E nã o desapareç a mais atrá s de nen­huma porta, antes de dizer-me.

- Seu nome é Ynis. Nã o é diferente? Perguntei ao sr. Doom sobre seu nome e ele me disse que talvez seja originá rio do Paí s de Gales. Ynis Railford, seu nome completo é esse, e agora vou lhe dar um bom banho e usar todos aqueles sais, assim você estará toda perfumada quando o sr. St. Clair vier vê -la.

- Ele vem a meu quarto?

- Claro que sim. Eu o encontrei quando fui buscar a bandeja e disse-lhe que você estava bem melhor hoje. Entã o me disse que viria visitá -la daqui a umas duas horas, depois que tivesse examinado sua correspondê ncia e conversado com o administrador da fazenda.

- Oh, Deus! - O simples pensamento de vê -lo fez com que Ynis se sentisse insuportavelmente indisposta... Aquele era o homem que devia amar, já que estava usando aquele anel! Mas era como um es­tranho para ela, pois por mais que tentasse nã o conseguia se lembrar de nenhum detalhe de seu relacionamento com ele; desejou pedir uma descriç ã o detalhada de seu noivo, mas a enfermeira já estava na sala de banho e o som de á gua corrente se fez ouvir. Ynis olhou a suculenta pê ra sobre o prato, grande e aveludada. Ela estava sendo tã o bem tratada, tã o mimada, que Gard St. Clair devia amá -la muito... Deus, como era horrí vel nã o ser capaz de lembrar-se dele!

- Coma esta pê ra - disse a enfermeira, entrando novamente no quarto e dirigindo seu olhar para a bandeja bruscamente -, cresceu na estufa e parece estar deliciosa.

- Nã o estou mais com fome. Coma você. Ynis estendeu a bandeja para a enfermeira, que depois de estalar a lí ngua devorou a sucu­lenta pê ra. - Antes comê -la do que perdê -la. Mas você precisa se alimentar, querida, se quer ficar forte e bem disposta. Você nã o vai lembrar-se de todas essas coisas que esqueceu até que esteja com­pletamente recuperada, você sabe muito bem. Agora, que tal ir até aquela banheira cor-de-rosa e preta, digna de uma estrela de cinema?

- Vamos, sim, mas deixe-me tentar caminhar sozinha. -retirou a colcha e colocou os pé s no chã o. Quando ficou em pé, sentiu-se tonta, devido à fraqueza, mas depois de alguns segundos foi capaz de caminhar pelo carpete macio até o banheiro. Mas, quando lá chegou, a enfermeira insistiu em ajudá -la. A á gua estava morna e perfumada. A banheira era imensa, com torneiras de prata em forma de cabeç a de cisne. Outro detalhe de grande requinte era o apoio para a cabeç a, acolchoado.

Mesmo enquanto ela se deliciava na á gua morna e perfumada nã o conseguia desvencilhar-se da vaga sensaç ã o de que em outra é poca experimentara ambientes muito menos refinados do que aquele. Qual seria a verdade sobre sua vida? Teria sido ela uma mocinha simples que, por um golpe do destino, conhecera o dono daquilo tudo e se fizera amar por ele?

Era estranho para ela compreender aquela situaç ã o. Como um relacionamento de amizade e amor nã o deixara nenhuma marca em seu í ntimo? Podia esquecer os nomes das pessoas e até mesmo suasfeiç õ es, mas o coraç ã o sempre reté m uma chama, se o amor algum dia já existiu dentro dele. Deveria estar sentindo uma doce expectativa, nã o aquela apreensã o fria, quando pensava em seu encontro iminente com Gard St. Clair.

Observou o reflexo de seus ombros nus na parede espelhada... Era possí vel que fosse casar-se com aquele homem por seu dinheiro ainda que nã o parecesse ser uma interesseira. Seus cabelos castanhos tinham sido cortados bem curtos há algum tempo atrá s agora cresciam um pouco rebeldes, emoldurando um rosto de aspecto bastante inocente. Nã o parecia o tipo de pessoa capaz de enganar um homem... Aqueles olhos enormes exprimiam muito mais incerteza e inseguranç a do que a audá cia de uma garota que resolvera casar-se por dinheiro.

A safira brilhou em sua mã o quando ela, lentamente, levou-a ao pescoç o e sentiu sua pulsaç ã o acelerada. Talvez quando estivesse frente a frente com seu noivo fosse sentir-se completamente à vontade. Talvez fosse apenas sua amné sia que a fizesse ter aquela sensaç ã o de medo.

Tinha saí do da banheira e estava enxugando-se quando a enfermeira voltou com uma camisola leve e um robe no braç o.                   ­

- Eu quero vestir-me adequadamente - disse-lhe Ynis. – Nã o quero estar na cama quando ele vier a meu quarto.

- Ele nã o vai se Importar. – A enfermeira dirigiu-lhe um olhar curioso e com reserva. - Está bem, nã o vou discutir com você, mas preciso que fique em seu quarto, sentada na poltrona. Você ainda nã o está bem o suficiente para ficar perambulando pela casa.

- Vou ficar de pé só até me vestir. - Ynis pegou o robe de seda e vestiu-o. - Vamos dar uma olhada no guarda-roupa?

Era branco, de madeira trabalhada e ocupava a extensã o de toda uma parede do quarto. - Ynis suspirou maravilhada quando viu que estava repleto de roupas para qualquer ocasiã o, sapatos e uma fileira de gavetas cheias de lingeries delicadas e caras, em tons de bege e verde-á gua. Em outro compartimento havia meias de ná ilon, bolsas, luvas e uma seleç ã o variada de belas echarpes de seda. E so­bre tudo pairava um delicado aroma... um perfume de flor com um leve toque de almí scar.

- Uau! - Ynis nã o conseguiu impedir-se de dar vazã o ao seu as­sombro. - Tudo isto é meu?

- Sã o todos de seu manequim, querida - disse a enfermeira, fala­ndo indulgentemente, mas parecendo um pouco invejosa. ­Agora, qual o vestido que vai usar? Nã o, nã o pode usar este!

Ynis sorriu, pois estava acariciando a renda da saia de um vestido de baile, cor-de-rosa claro, tã o inacreditavelmente elegante que só poderia ser uma criaç ã o exclusiva; um modelo de noite que, com certeza, nunca tinha sido usado. Correu a mã o pela fileira de vesti­dos e percebeu que nenhum deles tinha sido usado, eram todos novos, ainda estavam com as respectivas etiquetas. As saias e blusas eram forradas com uma espé cie de seda fina; as calç as compridas ti­nham um corte estranho e reto, que as deixava mais elegantes.

Nenhuma garota simples possuiria roupas como aquelas... a me­nos... Ynis mordeu os lá bios e, por um momento, sentiu seu corpo em chamas. Já teria se vendido por um bocado do pote de ouro?

- Este deve ser seu enxoval. - A enfermeira tirou do cabide um vestido amarelo da lã fina. - Este está bom, menina. Que acha de usa-lo em sua primeira manhã fora da cama? Olhe, sapatos que combinam e meias finas como teias de aranha. Você é uma pessoa de sorte, muita sorte, mesmo nã o se lembrando de seu misterioso noivo.

- Ele é misterioso? - Ynis falou quase num sussurro, e a sensa­ç ã o de bem-estar cedeu lugar novamente ao tremor de medo.

- Misterioso como o dia! Bem, ele é natural de Cornwall, e por estes lados é comum os homens terem a cara amarrada, como cos­tumamos dizer.

Ynis ficou em silê ncio por alguns instantes, entã o se afastou da fi­leira de belas roupas para todas as ocasiõ es, até mesmo para bailes, e nã o conseguiu lembrar-se de ter ido algum dia a um baile. - Sim, este vestido está ó timo. Vamos apressar-nos ou ele chegará antes que eu esteja pronta.

- Querida, por que toda esta vergonha dele? - riu a enfermeira. - Ele a viu na cama mais de uma vez. Nunca passou um dia sem vir aqui ver como você estava passando.

- Bem - disse Ynis -, entã o será uma bela surpresa para ele ver-me vestida e fora da cama. Tenho a sensaç ã o de que os homens nã o se enamoram de pessoas doentes!

- A batida em sua cabeç a nã o acabou com sua sagacidade, nem um pouco. Gosto deste vestido, mas você emagreceu alguns quilos! Está vendo quanto tem que apertar o cinto? Dá para medir sua cin­tura quase que com as palmas das mã os, querida!

Ynis franziu as sobrancelhas levemente e desejou que a mulher a chamasse de qualquer coisa, menos de querida. Ela era gentil, claro, mas seria um alí vio ficar livre de atenç õ es tã o constantes. - Eu pos­so calç ar as meias sozinha - disse a garota. - Escute, por que nã o vai caminhar um pouco ou tomar um café?

- Já está se saturando de mim? - A enfermeira parecia com­preensiva. - Este é sempre o primeiro sinal de que a enfermeira deve começ ar a arrumar suas malas.

- Isto nã o quer dizer que eu seja mal-agradecida - disse Ynis arrependida. - Mas acho que nã o estou acostumada a ser mimada. Isto parece... estranho para mim. Por acaso você sabe de algo sobre mim, alé m do fato de que fui atropelada por um carro e de que sou noiva de Gard St. Clair? Saber alguns fatos de minha vida poderia ser ú til para minha memó ria.

- Oh, acho que você deveria deixar que ele lhe contasse as coisas que deseja saber, querida. Tudo o que sei é que você está comprome­tida com o senhor St. Clair, e se um homem quisesse tornar-me a dona de uma casa tã o grande quanto esta, nã o me aborreceria em fa­zer tantas perguntas. Os homens adoram misté rios...

- Você acha que eu sou um misté rio? - interrompeu Ynis. - É isto o que sabe sobre a minha pessoa?

- Bem, suponho que seja normal esperar que um homem de re­cursos case-se com uma moç a da pró pria classe, mas, hoje em dia, as pessoas sã o mais democrá ticas, e, talvez, nestas circunstâ ncias... ­

A enfermeira parou de pentear os cabelos de sua paciente e olhou para a imagem de Ynis refletida no espelho da penteadeira. Um rosto de ossos finos, com sombras acima das maç ã s do rosto e pá lpe­bras quase transparentes, assim o verde de seus olhos parecia refle­tir uma sombra esverdeada, de modo que sua pró pria imagem se es­tampava claramente. Era um rosto estranho, perturbador, nã o propriamente bonito para um observador atento, mas onde um ar­tista encontraria algo para intrigá -lo.

- Agora você é que está sendo misteriosa, enfermeira - disse ela. - Que espé cie de circunstâ ncias faria um homem rico interes­sar-se por uma garota como eu? Nã o sou bonita, e pelo que parece nã o sou uma pessoa talentosa ou uma atriz fascinante... ou sou? ­Olhou para seu rosto refletido no espelho... teria havido uma é poca, antes de ser atropelada e ficar sem memó ria, em que fingira amar. aquele homem, que, pelas atitudes da enfermeira, era uma pessoa difí cil e exigente?

Ou seria possí vel que amara de verdade aquele estranho? O anel que adornava sua mã o també m parecia estranho, como se ti­vesse pertencido a uma mã o macia e bem cuidada, com unhas em forma de amê ndoas, longas e cuidadosamente pintadas...

- Nã o vou dizer mais nenhuma palavra. - A enfermeira deu uma risada bastante nervosa e, com determinaç ã o, conduziu Ynis para uma enorme poltrona que havia ao lado das janelas e a fez sen­tar-se e relaxar. Colocou uma almofada atrá s dos ombros da garota e deu-lhe um leve tapinha no rosto magro. - Fique aqui olhando para o jardim e nã o faç a mais nenhum movimento. Você nã o quer que eu leve uma bronca do " patrã o" como o senhor Doom o chama, nã o é?

Ynis sorriu e meneou a cabeç a. - Você é muito bondosa comigo, e eu a aprecio por isto. Nunca tinha percebido que o quarto ficava no andar té rreo! - Olhou o terraç o, os campos e os extensos leitos de azalé ias, chamas escuras sob o sol frio, contra a grama curta. - Que estranho, sempre se supõ e que os quartos se situam no andar supe­rior, ou este aposento foi transformado para meu uso, enquanto eu estive desacordada? Eu nã o consigo me lembrar nem mesmo de ter sido trazida para cá!

- É assim mesmo quando se está em estado de choque - disse a enfermeira para acalmá -la. - Toda esta parte de Sea Witch foi re­formada e modernizada, e é muito bonita. O lado oeste da casa é mais antigo e nã o muito usado, alé m do estú dio onde o senhor St. Clair faz a maior parte de seu trabalho. - Ela parou, pareceu ficar à escuta por um instante, e entã o dirigiu-se para a porta. - Vou to­mar aquele café e comer uma rosquinha doce. Já está quase na hora de seu noivo chegar aqui. Até logo!

A porta fechou-se atrá s daquela figura roliç a e Ynis foi deixada a só s, para ouvir os pá ssaros, voando do oceano com a liberdade e a graç a de almas aladas. Enquanto os ouvia captou outro som, de pas­sos firmes caminhando sobre o pavimento de pedras do terraç o, e emoldurado pelas altas janelas de seu quarto, com seus balaú stres ornamentais e seus vasos repletos de samambaias e flores alvas que se destacavam contra as pedras cinzentas.

A garota inclinou-se para a frente, com o coraç ã o batendo rapi­damente, e entã o sentiu algo apertar-lhe o peito quando um homem alto surgiu a sua frente. Ynis fitou-o atravé s do vidro, e ele parou e fitou-a també m, profundamente, sem uma sombra de sorriso em seu rosto sombrio. Depois, abriu as portas e entrou no quarto, fechando­-as com a mã o esquerda.

- Bom dia, Ynis. Fui informado de que você está se sentindo muito melhor hoje. - Ele falava com uma voz grave, que, de al­guma maneira, combinava com sua figura, num tom bastante im­pessoal, mas quando a garota já se sentia esperanç osa de que aquele nã o fosse Gard St. Clair, ele continuou: - Vejo que ainda nã o se recuperou da amné sia e que devo parecer um estranho para você. ­

Fixou os olhos no rosto da garota, percebendo a palidez que intensi­ficava o verde de seus olhos. - Eu a assustei? Você tinha se esque­cido completamente que eu era assim, incapaz de tomá -la em meus braç os?

Ynis tentou controlar o tremor que a envolvia. Ele era de uma ele­gâ ncia tã o só bria e grave que parecia ainda mais terrí vel que seu corpo mutilado.

- Você nã o se lembra de mim. nã o é?

Era mais fá cil deixar que ele acreditasse que ainda havia um branco completo em seu cé rebro, mas ela compreendeu, quando o viu delinea­do pela luz da manhã, que em algum canto de sua mente vazia a imagem daquele homem estava irremediavelmente marcada. Todos os nervos de seu corpo reagiram a sua presenç a. . . o que nã o sentia era o mais remoto sentimento de amor ou de paixã o. O que sentiu, quando ele se aproximou, foi uma onda de medo e uma vontade de levantar-se e afastar-se dele. Aquele homem parecia, enquanto estava ali, imó vel, fitando-a, jogar uma sombra sobre o dia que começ ara tã o esperanç oso.

 



  

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