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Combate. Agradecimentos



Combate

 

       Dakar. Estou diante de meu pai; é a ele, na hierarquia familiar, a quem devo primeiro me dirigir.

       — Papai, eu quero que você me ajude a conseguir a dissoluç ã o deste casamento.

       Ele nã o me faz nenhuma crí tica, nã o faz perguntas. Certamente está a par das tentativas de meu marido de destruir minha reputaç ã o. Nenhum comentá rio.

       — Quando um casamento nã o funciona, é preciso simplesmente afastar as duas pessoas. Inú til ficar se insultando, ou se odiando. Preciso també m consultar meu irmã o na aldeia, é ele que vai decidir, é o mais velho da famí lia, no momento.

       Tudo é tã o complicado, meu marido é o sobrinho desse tio, por sua vez irmã o do meu pai... É o resultado da tradiç ã o soninké . No nosso paí s, algumas vezes, por ocasiã o do nascimento de uma menina, uma mã e lhe ata no punho um pedacinho de pano que quer dizer: " Eu a reservo para meu filho! " E qualquer boa mã e gostaria que sua filha se casasse com um primo-irmã o, para preservar a linhagem familiar. Nem se cogita de casamento entre outras etnias. A consangü inidade nã o provoca medo em ningué m, por simples ignorâ ncia. Por isto os casamentos arranjados, aos quais se acrescenta antecipadamente a excí sã o das meninas, pois um soninké digno de sua famí lia jamais se casaria com uma moç a " impura".

       Obtive o divó rcio da mesma maneira que me haviam atribuí do aquele casamento. Um acordo verbal entre homens o dissolveu tã o facilmente quanto uma nuvem de fumaç a. Minha liberdade me foi definitivamente devolvida. Monsieur continuava sendo o pai dos meus filhos, madame podia militar e ganhar a vida como bem entendesse.

       Eu militava na Franç a desde a dé cada de 1980. Foi em 1986, quando trabalhava como inté rprete, que encontrei Koumba Touré, també m ela inté rprete e vice-presidente do GAMS. Ela me falou desta associaç ã o e me levou para lá, e desde entã o temos a mesma convicç ã o, jamais enfraquecida.

       Era, e continua sendo, uma associaç ã o laica e apolí tica, composta de mulheres africanas e francesas. Alé m da excisã o, o GAMS se esforç a para lutar pela informaç ã o e pela prevenç ã o contra as prá ticas tradicionais nefastas: casamentos forç ados e/ou precoces, gestaç õ es seguidas. É um trabalho de formiga, que consiste essencialmente em educar as mulheres durante as consultas ginecoló gicas ou de maternidade infantil. Informá -las das complicaç õ es relacionadas com a mutilaç ã o sexual: problemas ginecoló gicos, uriná rios, dificuldades de parto. Nó s sabemos que as mulheres excisadas precisam ser submetidas, em sua grande maioria, e a cada parto, a uma episiotomia ou mesmo a uma cesariana. E as gestaç õ es muito pró ximas, numerosas, em mé dia quatro a dez crianç as, à s vezes, agravam estes problemas. É preciso fazer com que elas nã o deixem acontecer o mesmo com suas filhas, nascidas ou por nascer, a barbaridade que as fará sofrer pelo resto da vida. Explicar també m que a religiã o nunca impô s essa mutilaç ã o. E para isso precisamos do envolvimento dos chefes religiosos da Á frica. Compete a eles desmontar a vasta mentira mantida há sé culos, por ignorâ ncia dos textos. Na realidade, excisã o ou infibulaç ã o sã o preconizadas pelos homens e executadas pelas mulheres, por razõ es erradas.

       Um africano me disse um dia:

       — É para que as mulheres nã o sejam violadas!

       — Por que você pensa que o violador vai se interessar pela intimidade da mulher? Acredita que ele vai olhar primeiro e violar em seguida?

       Um outro:

       — É para que elas nã o fiquem tentadas a procurar um outro homem!

       — Privá -las do prazer nã o basta para privá -las de desejo. A sexualidade de uma mulher mutilada é tã o triste para ela quanto para você!

       Descobri uma lista de razõ es erradas ainda piores: era para aumentar o prazer do homem.

       Era para manter a coesã o social...

       Esse ó rgã o genital da mulher seria considerado sujo e feio, até mesmo diabó lico. A crianç a que vai nascer nã o deve tocar nele no nascimento, pois sua sobrevivê ncia dependeria disso.

       Esse ó rgã o, compará vel em miniatura ao sexo masculino, deve ser suprimido.

       A ablaç ã o do clitó ris é o sí mbolo da submissã o.

       Ela aumentaria a fecundidade da mulher.

       E, finalmente, o grande pretexto da religiã o.

       A revelaç ã o desta barbaridade verdadeiramente me saltou aos olhos quando uma menina maliana morreu, na Franç a, de complicaç õ es da excisã o. Era 1982, ela se chamava Bobo Traoré. Durante muito tempo, eu tinha " aceitado" a mutilaç ã o, a ponto de minhas trê s primeiras filhas terem sido ví timas. Tinha até mesmo " esquecido" dela, perdida em meio aos meus problemas pessoais. Mas a morte daquela crianç a pequena, em Paris, que ocupou as mí dias com toda razã o, me despertou, assim como despertou a sociedade francesa da é poca e muitos africanos.

       Naquela é poca ningué m falava abertamente e a grande maioria dos franceses chegava a ignorar a existê ncia desta prá tica na Á frica. Nenhum etnó logo, nenhum pesquisador havia levantado o problema. E de repente os africanos passavam a ser tratados como bá rbaros no telejornal das oito!

       Algum tempo depois deste caso, no meu trabalho de inté rprete dentro do Interservice Migrants, os pediatras começ aram a nos fazer perguntas diretas. Eu mesma nã o conhecia muita coisa a respeito da origem desta prá tica, mas, à medida que meus problemas pessoais foram sendo resolvidos, comecei a participar mais das reuniõ es mensais na Maison des Femmes de Paris.

       No começ o, eu nã o falava nada, só escutava. E, pouco a pouco, fui compreendendo a verdade sobre esta questã o. Por intermé dio dos mé dicos e, depois, das leituras que eu mesma ia procurar nas bibliotecas. Eu me dei conta logo no começ o, de que nem todas as mulheres muç ulmanas eram excisadas. Na minha terra, o Senegal, os wolofs nã o praticam a excisã o. Em certos paí ses á rabes e da Á frica do Norte també m nã o.

       Primeira constataç ã o: a excisã o nã o tem nada a ver com a religiã o. Por que nó s e nã o as outras?

       Segunda constataç ã o: os pediatras nos falam muito dos danos fí sicos e das conseqü ê ncias nefastas na saú de da mulher. Fí sicas primeiro, e psicoló gicas em seguida.

       Nossas mã es nunca nos informaram, embora elas pró prias tenham passado por isto.

       Sobre as conseqü ê ncias psicoló gicas, nó s, mulheres africanas, fizemos sozinhas um trabalho pessoal. E era muito difí cil se posicionar, na é poca. Difí cil, sobretudo, falar das pró prias experiê ncias. Nenhuma mulher tinha vontade de exibir sua sexualidade. Todas sentiam o mesmo pudor e se fechavam quando o assunto era aquele. Alé m disso, como falar de um prazer que nã o se conhece? As mulheres ficavam perturbadas e chocadas com a midiatizaç ã o da excisã o e por tudo que se falava arespeito dela. O pudor realmente as fazia sofrer.

       — Nã o, nã o, estamos bem como somos, nenhum problema de parto, nenhum problema sexual, absolutamente nada.

       Por outro lado, sobre a " legitimidade" dessa prá tica, o choque era salutar. As mí dias nos tratavam de bá rbaros a propó sito de uma tradiç ã o qualificada de cultural, e nó s nã o tí nhamos a menor explicaç ã o racional para dar. Por razõ es ó bvias.

       Corri à procura de informaç õ es, de biblioteca em biblioteca, mas existia, entã o, muito pouca coisa escrita sobre o assunto. De todo modo, o Alcorã o nã o falava disso, com toda certeza.

       As militantes do GAMS estavam melhor informadas. Elas dispunham, ademais, de um pequeno filme vindo da Á frica intitulado, muito justamente, La Duperie (O embuste).

       Sã o imagens terrí veis de se olhar. Elas ilustram a crueldade e a barbaridade da excisã o, para alé m do suportá vel. Produzido ao vivo na Nigé ria, o filme mostra a escarificaç ã o de uma menina, sua excisã o e, para cú mulo do horror, neste caso ela é praticada por um homem!

       A excisã o no meu paí s é sempre uma prá tica de mulheres, os homens estã o fisicamente ausentes e nã o falam disto. O sexo feminino é um tabu e eu ignorava que, em outras regiõ es, os homens, já instigadores da pretensa tradiç ã o, se encarregassem pessoalmente dela. No caso da reportagem, a mutilaç ã o é extrema, trata-se de excisã o e infibulaç ã o. Este horror consiste em cortar tudo: nã o sobra nada do sexo da menina. Nem clitó ris, nem pequenos lá bios, nem grandes lá bios. E a pobre crianç a é " recosturada" inteiramente. Sexo fechado contra qualquer intrusã o que nã o seja a do futuro marido que vai deflorá -la no casamento. Deixam-lhe apenas um minú sculo orifí cio para suas necessidades naturais.

       Pois o homem, se ainda é possí vel chamá -lo de homem nesse caso, terá que deflorar sua jovem esposa assim " costurada" apenas com a forç a de sua virilidade. Se nã o conseguir, sua potê ncia sexual será posta em dú vida.

       Disseram-me que à s vezes ele se serve de uma faca para nã o ser considerado falho sob este aspecto.

       Quando fica grá vida, no momento de dar à luz será preciso " descosturar" a moç a, depois " recosturá -la" outra vez. E " descosturá -la" de novo a cada parto. E assim sucessivamente.

       É o horror absoluto. Sofrimento a vida inteira para as jovens mã es que freqü entemente morrem por causa disso, ví timas de hemorragias, infecç õ es de todo tipo e sofrimentos inqualificá veis.

       Fiquei arrasada ao tomar conhecimento da extensã o dos danos. Cada etnia tem seus costumes. Há a excisã o simples, se é possí vel chamar assim: supressã o da glande clitoriana. À s vezes é apenas simbó lica: um corte para fazer sair sangue... Em outras etnias, o clitó ris é totalmente suprimido. Mas a chamada excisã o faraô nica, a infibulaç ã o, porque era praticada no Egito desde a Antiguidade, é a pior de todas.

       As primeiras meninas africanas nascidas na Franç a foram todas excisadas sem que ningué m soubesse ou se preocupasse. Os ginecologistas e as parteiras nã o podiam ignorar, mas, ainda assim, por minha pró pria experiê ncia, posso afirmar que eles evitavam falar no assunto. Era politicamente incorreto naquele tempo, suponho.

       Aquela histó ria trá gica, em 1982, ia nos permitir alertar mais facilmente as mã es africanas imigradas. A primeira coisa era, com a ajuda dos pediatras nas PMI, persuadi-las a nã o reproduzir aquela mutilaç ã o em suas filhas.

       A maior parte nã o lia jornais, nã o compreendia as informaç õ es na televisã o, mas agora todas sabiam do que as mí dias estavam falando. As militantes do GAMS usavam simplesmente o telefone, pois, mesmo isoladas no subú rbio, todas tinham telefone em casa. E assim a informaç ã o era passada. E eu me dei conta de que muitas mulheres africanas, na é poca, conheciam, como eu, a excisadora da pequena maliana. Infelizmente, foi preciso uma ví tima expiató ria, um bebê má rtir de trê s meses levado por uma hemorragia, para que as mulheres imigradas acordassem, e a Franç a també m.

       Mas, naquele tempo, só se intimavam os pais à correcional, em casos de pancadas ou ferimentos, mesmo que se tratasse, evidentemente, de um ato criminoso.

       Em 1983, uma sentenç a da Corte de cassaç ã o definiu a ablaç ã o do clitó ris feita em menor com idade inferior a quinze anos como uma mutilaç ã o proposital, portanto um crime passí vel de ser levado a julgamento. Pena incorrida: entre dez e vinte anos de prisã o.

       Em 1984, a Liga dos Direitos da Mulher, a Liga do Direito Internacional da Mulher e o SOS Mulheres Alternativas decidem entrar com uma aç ã o no processo da pequena Bobo. A dra. Linda Weil Curiel, uma advogada fantá stica que tive a oportunidade de conhecer, entã o, conseguiu demonstrar a incompetê ncia do tribunal correcional em maté ria de excisã o. Nã o se trata de pancadas e ferimentos, mas de mutilaç ã o proposital exercida por pais que tê m autoridade sobre uma crianç a menor.

       Como a mutilaç ã o é um crime na Franç a, a excisadora e os pais sã o culpados de um crime do mesmo tipo.

       O debate nacional estava lanç ado, um primeiro programa de televisã o nos incitava a discutir a questã o, notadamente diante do advogado dos pais da crianç a. Há os partidá rios da exceç ã o cultural, africanos ofendidos em cujas tradiç õ es a Franç a ousa tocar. Alguns advogados, prontos a defender o indefensá vel, qualificavam as mulheres africanas de pobres ignorantes, cuja responsabilidade nã o poderia ser invocada.

       Elas nã o sã o nem pobres nem ignorantes, mesmo que nã o tenham freqü entado os bancos escolares, mas submissas e abusadas pelo sistema, isto sim! É a verdade que lhes falta. E se ningué m lhes diz a verdade, continuarã o submissas em um paí s que deve por princí pio lhes oferecer meios de evoluir. Assisti a esse debate televisionado, furiosa por estar ouvindo esse gê nero de iné pcias da boca de um homem de direito. Havia també m uma mulher africana " militando" pela excisã o.

       Originá ria da Guiné, ela pretendia nã o ter problemas sexuais e, orgulhosa de ser excisada, dizia:

       — É uma coisa boa! Se precisasse refazer, eu refaria!

       Eu estava escandalizada com tamanha hipocrisia.

       — Cada um faz o que quer, minha senhora. Vá se reexcisar se lhe agrada, mas eu a proí bo de dizer que é uma coisa boa!

       Eu sabia, sozinha, reconhecer no meu corpo os danos da excisã o e, alé m do mais, carregava o remorso da excisã o de minhas filhas. E podia, agora, com conhecimento de causa, colocar minha " malcriaç ã o", como dizia minha mã e, a serviç o da verdade.

       Passei a me dedicar a uma militâ ncia feroz apó s aquele debate ridí culo. É ramos chamadas em toda parte para tratar do assunto. Nã o está vamos suficientemente armadas para responder ao esforç o de comunicaç ã o necessá rio. Precisá vamos de subvenç õ es, a fim de poder pagar um mí nimo à s voluntá rias. Eu trabalhava para viver, como as outras mulheres no GAMS, e todos sabem que as horas e os dias de trabalho voluntá rio nã o alimentam nem as mã es nem as crianç as. Mas havia um enorme trabalho de prevenç ã o e comunicaç ã o a ser feito.

Havia na é poca um grupo de mulheres e homens suficientemente hipó critas para pretender que as militantes do GAMS estivessem na total dependê ncia das feministas francesas, que eram manipuladas por elas! Era preciso explicar-lhes que, mesmo lutando na Franç a, esta luta principiara na Á frica. As mulheres africanas tinham se agrupado em um " comitê interafricano" que reunia, na é poca, mais de vinte paí ses. Hoje em dia já conta cerca de trinta. A Á frica nã o teria direito a seu pró prio " feminismo"?

       A guerra contra a excisã o nã o era uma legí tima guerra de mulheres? Nó s nã o é ramos tolas, ningué m nos manipulava; em compensaç ã o, as mulheres africanas que tinham esta opiniã o, estas sim, evidentemente, eram manipuladas pelos homens, pois, finalmente, está vamos tocando no eterno poder deles!

       Em 1986, um casal responsá vel pela mutilaç ã o de seis meninas ainda era julgado por " pancadas e ferimentos" no tribunal correcional, pois o ministé rio pú blico os considerava " ví timas da marca de sua cultura ancestral". No ano seguinte, na apelaç ã o, e contra a opiniã o do ministé rio pú blico, a qualificaç ã o foi retificada. Tratava-se, sem dú vida nenhuma, como demonstrou a dra. Weil Curiel, de um crime.

       E, em 1988, ocorreu a primeira verdadeira condenaç ã o, decidida em tribunal, a trê s anos de prisã o (com sursis) de um homem e suas duas mulheres. Foi preciso esperar até 1991 para ver a primeira condenaç ã o de uma excisadora a cinco anos de cadeia. Depois, em 1993, a condenaç ã o de uma mã e e, em 1996, a de um pai que mandou excisar suas filhas na Á frica, contra a vontade da mã e.

       Finalmente, em 1999, pela primeira vez na histó ria judiciá ria, uma moç a maliana teve a coragem de acusar a excisadora profissional. Ela tem vinte e quatro anos e é estudante de direito. Ela pró pria, excisada com a idade de oito anos, decidiu se revoltar contra a mutilaç ã o anunciada de sua irmã mais moç a.

       Já condenada uma primeira vez em 1988 a uma pena com sursis, a excisadora defendia sua culposa prá tica com a desculpa de " ignorar que a lei a proibia na Franç a". E explicava igualmente que, na sua qualidade de " ferreira", seu papel era ajudar as famí lias nobres e se colocar a serviç o delas. Ela ignorava muitas coisas, em especial que um juiz francê s a colocara sob vigilâ ncia, e havia descoberto que ela exercia o ofí cio mediante remuneraç ã o. Cada prá tica lhe rendia entre cento e quarenta e quinhentos francos franceses. A acusaç ã o lhe atribuí a oficialmente a mutilaç ã o de quarenta e oito meninas. E certamente havia outras...

       Quando eu escutava mulheres africanas defendendo a excisadora, dizendo " ela veio bater à minha porta, eu nã o a conhecia, ela perguntou se minha filha precisava ser excisada... " , eu nã o acreditava. Porque eu sei como funciona esse gê nero de coisa, a excisã o nã o é feita por acaso. Ou a excisadora da famí lia, a mulher " de casta" ferreira, toma a iniciativa de fazer sem prevenir e sem receber pagamento, foi o meu caso, mas no Senegal, ou os pró prios pais vã o buscá -la e a pagam, como no caso da comunidade imigrada. Eles sã o, portanto, tã o culpados quanto ela.

       Eu assisti a este processo. A dra. Linda Weil Curiel representava a parte civil. Ouvi a moç a depor, falar do sofrimento intolerá vel, dos gritos de suas irmã s e de sua vida sexual prejudicada. Ouvi o depoimento de um pediatra, afirmando que a ablaç ã o do clitó ris nã o é senã o uma mutilaç ã o superficial...

       Gostaria de ter-lhe gritado em plena audiê ncia que, se primeiro lhe cortassem alguma coisa equivalente (para ser educada) com uma lâ mina de barbear, ele poderia vir em seguida me falar a respeito.

       Felizmente, um especialista recolocou as coisas no lugar para mim.

       — O equivalente, em um homem, é o seccionamento do pê nis e da glande.     Finalmente, a defesa da excisadora punha em destaque o fato de que conhecer uma proibiç ã o é uma coisa, conhecer-lhe o fundamento é uma outra coisa...

       Em relaç ã o a este ponto especí fico, eu declarei, como o mé dico de nossa PMI, que, no nosso setor de aç ã o, a prá tica havia quase desaparecido, graç as a nosso trabalho de informaç ã o. Mas, na Paris intramuros, as PMJ se mostravam muito mais receosas, sempre sob o pretexto de exceç ã o cultural, de que nã o se devia " desestabilizar" as mulheres africanas imigradas. Como dizia aquela ginecologista, de quem eu nunca mais esqueci:

       — Deixem em paz os clitó ris das africanas!

       É muito mais simples e muito mais fá cil de dizer quando se conservou o pró prio.

       Hoje numerosos paí ses da Á frica, como o Senegal, Burkina Faso e Costa do Marfim, proibiram legalmente a excisã o. O Conselho de Estado egí pcio tentou fazê -lo em 1996, mas, alguns meses depois de sua decisã o, a oposiç ã o dos integristas religiosos fez o governo recuar. Esses homens conseguiram que sua prá tica fosse autorizada nos hospitais.

       Contudo, sozinho contra todos, o imame da mesquita al Azhar no Cairo, confirmou publicamente que o Alcorã o nã o a justificava, O caminho é ainda longo antes que esta mentira cesse.

       Enquanto isso, em 1990, nossa associaç ã o obteve pela primeira vez subvenç õ es, e, desde entã o, somos assalariadas do GAMS.

       Por pouco que seja, esta ajuda nos permite acelerar o trabalho de informaç ã o do pessoal mé dico-social. E hoje nó s trabalhamos nas escolas, a partir dos giná sios, colé gios e universidades, escolas de enfermagens, de parteiras, com gente que, mais tarde, em suas profissõ es, estará pró xima das mulheres africanas. Nó s continuamos a ir à s PMI para organizar reuniõ es informativas com as mulheres africanas e com o pessoal.

       O GAMS é a primeira associaç ã o que lida com a questã o na Europa, e nó s participamos de conferê ncias internacionais. Assisto a elas como consultora especialista e conferencista. Em 2000 encontrei Emma Bonino, deputada europé ia, que me pediu para participar de uma campanha internacional: Stop FGM ( em inglê s: female genital mutilation. ) É uma mulher extraordiná ria que luta pelos direitos da pessoa em geral, e da mulher em particular.

       E durante esse perí odo encontrei trabalho. Eu tinha tentado todas as formaç õ es possí veis durante a dé cada de 1980, inclusive a de atendente de hospital, e uma preparaç ã o para a escola de enfermagem, mas nã o conseguira prosseguir por continuar me debatendo naquela situaç ã o infernal. Graç as à clí nica onde eu tinha feito um está gio, encontrei um trabalho humano poré m difí cil, pois era para cuidar de doentes terminais. Eu trabalhava de noite, das oito horas da noite até as oito da manhã. Durante o dia, eu militava. As crianç as cresciam, e eu me sentia menos só graç as a uma amiga senegalesa que eu hospedava em casa. Era minha ú nica verdadeira amiga, e continua sendo até hoje. Eu me mantinha afastada da comunidade; muitos compatriotas tinham me rejeitado porque eu saí ra do molde imposto à s mulheres africanas. Alguns me ajudaram, permanecendo neutros no conflito conjugal, outros me baniram, insultaram no momento em que eu estava nas piores dificuldades. Foram pessoas de fora da minha comunidade que me salvaram. As assistentes sociais da prefeitura, as colegas militantes e algumas amigas e amigos africanos.

       Em 1993, levada por um desejo de cultura universitá ria, eu me inscrevi no exame de admissã o à universidade de Paris-VIu, para cursar um DEUG[6] de sociologia africana. Queria saber se era capaz de chegar até lá. Ao final de um ano de curso, eu perdi a paciê ncia, só estava ouvindo coisas já conhecidas!

‘      O GAMS trabalha sempre em colaboraç ã o com as associaç õ es africanas locais. Se uma famí lia se recusa a nos escutar na Franç a, nossos colegas continuam a tarefa. Pois alguns pais ainda aproveitam as fé rias escolares para mandar suas filhas serem excisadas e depois trazê -las tranqü ilamente, escapando à lei francesa. As bagagens sã o verificadas nas fronteiras, nã o as meninas. Há també m juí zes e procuradores que tê m a possibilidade de convocar os pais quando a crianç a nasceu na Franç a e ainda nã o foi excisada. É nosso trabalho apontar os casos preocupantes. Eu gostaria muito que as meninas nascidas na Franç a, de pais imigrados, que tê m a sorte de ter uma dupla cultura, fossem tratadas como francesas de raiz e tivessem o benefí cio da mesma lei, que nã o pune nem tradiç ã o nem cultura, mas simplesmente o crime de mutilaç ã o. Tradiç ã o, cultura! Estes eram os ú nicos argumentos dos opositores à lei no começ o de nosso combate militante. Cada vez que debatí amos o assunto na televisã o ou em outro lugar, recebí amos telefonemas nos insultando. Hoje é diferente, fico muito contente quando algué m me diz:

       — Vimos você na televisã o, minha irmã. É muito bom o que está fazendo, continue lutando, temos que parar com essa tradiç ã o!

       Mas só passei a ouvir isso há dois ou trê s anos...

       Acredito que a excisã o vá desaparecer no final da batalha, mas a poligamia resistirá por mais tempo. Coisa aceita, coisa feita!

       No meu paí s, um homem pensava duas vezes antes de abandonar a mulher. As famí lias eram vigilantes, sempre capazes de " recuperar" a moç a que haviam dado em casamento. Mas, afastada, isolada, prisioneira de sua tribo de filhos e do marido dentro de um conjunto habitacional, a mulher africana encontra bastante dificuldade de sobreviver sem independê ncia financeira. Ainda é o caso. Muitos homens nos afirmam:

       — Posso alimentar meus filhos sem os salá rios-famí lia!

       Lembro-me de uma famí lia na qual o homem tinha quinze filhos com duas mulheres. Dez deles estavam na escola e a escola me pediu para intervir. As duas mã es me disseram na é poca, em 2002:

       — O dinheiro chega na conta dele e nó s nã o temos acesso; ele apanhou uma parte do dinheiro e foi embora para a Á frica, para ver sua terceira mulher. Faz trê s meses que está lá, as aulas recomeç aram e nã o há dinheiro para as crianç as. O que ele deixou aqui mal dá para os trê s maiores.

       É fá cil fazer a conta multiplicando os salá rios-famí lia e o auxí lio para a volta à s aulas por dez crianç as... Esse marido vivia muito bem em sua aldeia.

       Há seguramente alguma coisa a fazer para impedir tais situaç õ es. Se ao menos, aproveitando-se desse sistema polí gamo, os maridos dessem à s esposas a possibilidade de se instruir, de cuidar das crianç as! Nã o, ainda sã o muito numerosos os que utilizam esse dinheiro para arranjar uma segunda ou uma terceira esposa e humilhar a anterior.

       Penso que o Estado nã o faz seu trabalho nesse campo. Mas há tanta, tanta coisa para ser feita em favor do direito das mulheres no mundo inteiro!

       Em julho de 2003, os paí ses africanos assinaram uma convenç ã o chamada Protocolo de Maputo, um aditivo à carta dos Direitos do Homem referente à s mulheres. É um documento magní fico que, se aplicado um dia, resultará realmente numa melhora da condiç ã o de vida das mulheres africanas. Ele afirma a igualdade entre homens e mulheres, condena a violê ncia feita à s mulheres e as prá ticas nefastas à sua saú de, como as mutilaç õ es genitais e os casamentos forç ados.

       Infelizmente, alguns paí ses que assinaram esse protocolo nã o chegaram a ratificá -lo. Faltam cinco deles, neste momento, para que possa entrar em vigor, cinco que reclamam novas modificaç õ es, provavelmente a exceç ã o cultural... Cada um com a sua, e as mulheres continuarã o submissas, apesar das instâ ncias internacionais. Mas nó s, mulheres africanas, recusamos categoricamente que se mude uma ví rgula no texto assinado!

       Queremos a ratificaç ã o de todos os paí ses da Á frica, sem exceç ã o e, aliá s, Emma Bonino e outras estã o promovendo uma campanha de sensibilizaç ã o para que este protocolo seja nã o apenas ratificado, como també m aplicado por todos os paí ses e, sobretudo, por aqueles que ainda estã o arrastando os pé s.

       Em 2002, assumi a presidê ncia da rede europé ia para a prevenç ã o das mutilaç õ es genitais femininas (EuroNet-FGM). O estabelecimento desta rede foi possí vel graç as ao encontro organizado na Sué cia pelo Centro internacional de saú de reprodutiva e à iniciativa do GAMS em 1997, cujo funcionamento só foi possí vel em 1998, graç as à Universidade de Gand na Bé lgica, à associaç ã o ATD de mulheres somalianas de Gikeborg e à s autoridades de imigraç ã o da cidade. Queremos reforç ar a cooperaç ã o das ONGs em ní vel europeu para aumentar nossa eficá cia e melhorar a saú de das mulheres imigradas, lutando contra as prá ticas tradicionais que afetam a saú de das mulheres e das crianç as, e particularmente contra as mutilaç õ es genitais e os casamentos forç ados e/ou precoces.

       Ultimamente, há moç as que vê m militar regularmente em nossas associaç õ es. E eu espero que elas continuem o trabalho, pois nó s começ amos a ficar cansadas de esperar a boa vontade dos polí ticos, ou simplesmente a boa vontade dos homens!

       Nó s somos as sacrificadas da imigraç ã o. Tivemos que exibir nossas vidas privadas à luz do dia para lutar eficientemente. As primeiras esposas imigradas a sofrer a violê ncia dos maridos e a pressã o de nossas comunidades na Franç a. Estou falando da primeira imigraç ã o, a minha. Nos cursos de alfabetizaç ã o, eu era à s vezes obrigada a quase implorar a permissã o ao marido, para que ele deixasse suas esposas assistir à s aulas. Nã o sei por qual milagre, sempre acabei conseguindo. Nó s criamos essa rede com o objetivo de reforç ar a cooperaç ã o. É assim que elas podem aprender a lutar individualmente. A recusar a excisã o de suas filhas. E a reclamar, por que nã o, a reparaç ã o de sua mutilaç ã o. Pois doravante é possí vel, graç as à cirurgia reparadora. Cada vez mais as jovens querem conhecer a normalidade de uma verdadeira vida de mulher. É difí cil para as mulheres europé ias compreender esse vazio, essa ausê ncia que nos atormenta. Mas é uma volta para trá s que requer uma preparaç ã o psicoló gica, antes e depois da cirurgia, para nã o reviver uma forma de segunda excisã o. Se esquecemos por um tempo a cicatriz, nã o esquecemos jamais a dor. E a dor antiga retorna necessariamente no momento da operaç ã o, só que, desta vez, a mulher a desejou. Suponho que deva ser muito estranho reencontrar essa parte do pró prio corpo desaparecida.

       Eu encontrei algumas dessas jovens " reconstituí das".

       A primeira que confidenciou à s militantes do GAMS nos fez cair na gargalhada. Ela disse:

       — Eu tenho um clitó ris! Ele funciona! Faz vrrr!...

       Com vinte anos, ela tinha um namorado e a vida diante dela. Outras a seguiram, outras seguirã o. Mas nã o estamos afirmando que, com a cirurgia reparadora, nã o haja mais problemas!

       Nã o é a soluç ã o. A soluç ã o continua sendo a erradicaç ã o total desta prá tica no mundo. Apenas a lei nã o basta, quando ela existe... ela deve estar acompanhada da sensibilizaç ã o, da educaç ã o.

       No Sudã o, mesmo que a lei tenha sido promulgada nos anos 1940, a infibulaç ã o, a mais dura das mutilaç õ es, continua sendo a tortura habitual das mulheres. Muitos chefes de Estado africanos recuam diante do que um deles chama de " as reaç õ es emocionais de certos chefes religiosos ou grupos minoritá rios". Um deles chegou a pedir, na ocasiã o da promulgaç ã o da lei, que ela fosse aplicada com discernimento enquanto as resistê ncias fossem fortes dentro de algumas etnias. Nó s precisamos dos religiosos e dos griots para levar a palavra correta e convencer as mã es africanas que a religiã o nã o exige absolutamente este sacrifí cio.

       Deus nos fez assim; por que destruir a Sua obra?

       E nó s precisamos das ONGs, nas aldeias, para ensinar à s mã es a compreender que a " purificaç ã o" de suas filhas terá conseqü ê ncias trá gicas sobre sua saú de.

       Atualmente, as mutilaç õ es genitais femininas sã o praticadas em trinta paí ses africanos, mais particularmente no Egito, no Mali, na Eritré ia, na Etió pia, na Somá lia...

       Os turistas que vê m contemplar os tesouros dos faraó s sabem, por exemplo, que no Cairo ainda existem estabelecimentos, mantidos por homens, onde a excisã o das meninas é praticada impunemente, mediante pagamento. Sã o estabelecimentos visí veis na rua!

       Estimam-se as ví timas em cento e quarenta ou cento e cinqü enta milhõ es

no mundo. Quase duas vezes e meia a populaç ã o da Franç a.

       Eu fui uma dessas ví timas. Meu destino estava sendo traç ado naquele dia. A engrenagem era inevitá vel. Mutilaç ã o na primeira infâ ncia, casamento antes da adolescê ncia, gravidez antes da idade adulta; jamais conheci outra coisa que nã o fosse a submissã o. É o que querem os homens, para o prazer deles, e o que perpetuam as mulheres, para a desgraç a delas.

       Algumas mulheres continuam a dizer:

       — Eu passei por isto, eu fui cortada! Por que nã o a minha filha?

       Elas crê em que suas filhas nã o acharã o marido.

       Mas eu encontro també m, nas aldeias africanas, avó s, de noventa anos, à s vezes, que tê m uma outra linguagem:

       — Você sabe, minha filha, por que os Homens inventaram isso? Para nos calar o bico! Para controlar nossa vida de mulher!

       A palavra " orgasmo" nem sequer existe na minha lí ngua. O prazer de uma mulher é um tema nã o apenas tabu como ainda ignorado. Eu nunca ouvira falar dele. A primeira vez que uma mulher falou disso comigo, eu corri à biblioteca para vasculhar os livros. E realmente compreendi o que nos faltava. A mutilaç ã o é praticada na infâ ncia para nos obrigar a acreditar que nascemos assim. Privam-nos de prazer para nos dominar, mas nã o de desejo.

       Um ser aprisionado fisicamente dentro de uma estreita cé lula, mesmo algemado e com ferro nos pé s, manté m a liberdade de pensamento. Seu corpo está imobilizado, seu cé rebro está livre.

       Eu me sentia assim, prisioneira no meu corpo de mulher, mas livre para pensar. Precisei de tempo antes de compreender, de tempo antes de poder me servir de meu testemunho para convencer as outras mulheres. No princí pio, sobretudo quando tinha que dar meu depoimento em uma conferê ncia, eu ficava assustadoramente perturbada. Eu pensava: “Eu sou o animal curioso, o animal que todo mundo veio ver para saber como é feito”. E eu olhava para as pessoas com o canto do olho, procurando adivinhar o que elas imaginavam, era terrí vel. Em poucos segundos, eu queria fugir:

       — Mas o que estou fazendo aqui? Por que me exponho? Por que estou discutindo isto? Por que eu?

       Algumas pessoas faziam perguntas por vezes muito cruas e pessoais, dirigindo-se a mim diretamente, enquanto eu falava num plano geral.

       — Quando faz amor, o que é que você sente?

       Com muita freqü ê ncia, eu nã o respondia diretamente à pergunta, ou entã o disfarç ava:

       — Nã o vou lhe dizer, porque se trata da minha vida privada.

       Eu estava sentada, me expressava calmamente, com a impressã o de ter recebido uma ducha de á gua fria na cabeç a. Eu me sentia mal, tinha vergonha, tremia. Da primeira vez, ao sair de lá, eu me senti violentada de novo por ser obrigada a enfrentar aquilo. Depois disse a mim mesma: “Reflita um pouco, você está militando, está lutando contra todo mundo, você faz parte das que devem se sacrificar para que as outras possam avanç ar. Entã o isso nã o é nada, meta seu pudor no bolso e o lenç o por cima. Continue. ”

       Agora eu respondo freqü entemente na cara do " cliente".

       Se meu interlocutor é um homem africano:

       — Saia com uma mulher nã o excisada e depois me diga a diferenç a, porque eu nã o sei...

       Se é uma mulher branca:

       — A senhora é branca, eu sou negra, tente imaginar o inverso; nã o posso lhe dizer nada, nã o vivi isto, e a senhora també m nã o.

       Hoje, este tipo de pergunta nã o nos perturba mais. Chegamos a um ponto de nã o-retorno, é preciso avanç ar, abrir caminho para as outras, as que vã o continuar o trabalho.

       A ú nica pergunta à qual eu sempre tenho dificuldade de responder é sobre meus filhos. Ela me foi feita uma vez na televisã o.

       — Suas filhas foram excisadas?

       " Permiti" que fizessem em duas de minhas filhas, e autorizei a fazer na terceira; sou, pois, responsá vel. Poderia acrescentar, como justificativa, que eu era muito jovem, ignorante e impregnada dos discursos das mã es e das avó s de minha infâ ncia. Mas o que me incomodava, sobretudo, era falar delas, revelar suas feridas í ntimas. Sentia que nã o tinha o direito, por respeito a elas. Mas eu també m nã o queria mentir, nã o é do meu temperamento. Portanto, respondi que sim. E fiquei mal.

       Mas, quem melhor do que uma mulher de minha geraç ã o, mutilada aos sete anos para ser casada " pura" com a idade de ingressar na sexta sé rie, podia testemunhar a experiê ncia da lenta reflexã o, antes de chegar até aquele estú dio de televisã o? Eu devia ter a coragem de enfrentar també m minha responsabilidade: eu reclamava a transparê ncia sobre esse tema há anos demais para me recusar a enfrentá -lo pessoalmente. Espero do fundo do meu coraç ã o que minhas filhas me perdoem por ter feito isto com elas.

       A ú nica coragem que eu nã o conseguia ter era de encontrar um homem e refazer minha vida. A cama era sempre um perigo. Desde meu divó rcio e desde meu pró prio casamento, eu sentia pelos homens uma desconfianç a e um ressentimento tamanhos, tã o pró ximos do ó dio, que minhas amigas me diziam muitas vezes:

       — Você está ficando ranzinza!

       Foi um encontro casual, durante um batismo africano celebrado entre amigos. Já bem avanç ado na casa dos quarenta, os cabelos mais brancos do que grisalhos, foi ele que reparou em mim, nã o eu, e pediu meu telefone a uma amiga organizadora, que na mesma hora lhe deu. Havia provavelmente da parte dela uma espé cie de armadilha amistosa que consistia em me forç ar para fora de minha reserva e solidã o. Eu vivia sozinha havia anos.

       Como aquele homem nã o vivia na Franç a, mas no norte da Europa, durante quase um ano ele me telefonou de longe, obstinadamente. No começ o, eu nã o me lembrava absolutamente dele, nã o tinha nenhuma vontade de respondê -lo, e o fazia por simples educaç ã o. Depois as conversas amistosas se sucederam, banais, até o dia em que ele me convidou para ir vê -lo no seu paí s. Eu disfarcei, mais ou menos assim:

       — Vou pensar, eu lhe telefono...

       Eu nã o liguei. Uma colega de trabalho, uma das minhas " irmã s" brancas, e minha prima que morava comigo, a quem eu contara essa estranha relaç ã o longí nqua e telefô nica, à qual se acrescentara um convite, me fizeram vacilar um pouco:

       — Nem cogite de nã o ir! Saia um pouco, mexa-se, é apenas um fim de semana, vai lhe fazer bem!

       Trata-se, poré m, de pegar o trem para encontrá -lo, em algum lugar de um canto perdido, um homem branco que eu nã o conheç o, um desconhecido. Que ele seja branco nã o é problema, é um homem, simplesmente. Neste caso, descubro todas as carapaç as e me fecho nelas. Faç o jogo duro. Mas ele telefona no dia seguinte.

       — Eu lhe ofereç o a passagem de trem, é meu aniversá rio, sou eu que convido!

       Eu me digo entã o:

       — Desconfianç a... um branco que convida você e oferece a passagem; o que ele quer com você?

       Minha colega de trabalho insiste, rindo:

       — Vá, eu reservo seu lugar! É um cara normal! Nó s o conhecemos! Tem uma porç ã o de amigos africanos, que risco você corre?

       Numa sexta-feira à tarde, eu me despeç o das crianç as. Minha prima está aqui para cuidar deles. E parto para a aventura. E me vejo sentada no trem; na primeira parada, uma pane no ar refrigerado!

       Estou no meu canto, espero que o trem saia de novo e, porque um homem se sentou diante de mim, eu me dou conta do que estou em vias de fazer e entro em pâ nico:

       “Você é maluca! Vai se encontrar com um homem que nunca viu, e se ele a matar? Se ele cortá -la em pedaç os? Se ele queimar você na lareira? Ningué m jamais saberá! ”

       Ignoro por que estou criando um roteiro tã o estú pido. Minhas amigas sabem aonde estou indo, minha prima e as crianç as també m; elas tê m o telefone desse homem... Nada a fazer. Eu me imagino cortada em pedaç os e atirada na lareira... “É preciso que eu volte para casa, que eu compre uma passagem para Paris! ” Tarde demais, o trem andou de novo.

       A noite começ a a cair. E quanto mais eu tento me acalmar, mais tenho medo. Impossí vel me livrar desta idé ia idiota. Chego a imaginar o " depois". Se minha prima, meus filhos, minha colega nã o me virem voltar, vã o me procurar necessariamente, e descobrirã o meu corpo despedaç ado, calcinado, dentro da lareira de um homem desconhecido! Quando o trem chega na estaç ã o, eu tomo minha decisã o.

       “Desta vez, minha filha, você desce e toma o trem no outro sentido! De todo modo, o trem está com uma hora de atraso, ele nã o terá esperado, e você escapará a esse horrí vel massacre! ”

       Pergunto ao chefe do trem o horá rio do pró ximo trem para Paris. Partida dentro de quarenta e cinco minutos. Perfeito. Mas o destino nã o entende assim. Sem chance, um homem está ali, cabelos grisalhos, ele está esperando! Eu o examino como se devesse descrever mais tarde meu assassino! Ao mesmo tempo me dizendo: “Coitadinha, você é doida, uma vez que ele a tiver retalhado, nã o vai servir para nada! ” Camisa pó lo vermelha, calç a clá ssica, sapatos de verã o de couro...

       — Bom-dia, fez boa viagem? O trem estava atrasado!

       Ele sorri, é simpá tico, à vontade, amistoso; segura minha mala, nó s vamos para o seu carro. Vamos jantar no restaurante, ele conversa, me explica que convidou muitos amigos para o seu aniversá rio e que amanhã a casa estará cheia...

       Amanhã, a casa estará cheia, mas, esta noite, estaremos sozinhos? Nã o ouso fazer a pergunta, penso apenas: “Você está perdida, minha filha, nã o pode mais lhe escapar... ”

       Eis-nos dentro de uma pequena casa, deserta. Eu nã o estou tranqü ila! Entrego o presente trazido de Paris e, para me dizer obrigado, ele beija o meu rosto.

       Aí alguma coisa desconhecida me roç ou, como um arrepio, uma sensaç ã o esquisita e agradá vel; dei um passo para trá s... mas de surpresa. Era a primeira vez na minha vida que eu experimentava esta sensaç ã o diante de um homem. E eu era incapaz de dar um nome a esse arrepio, indefiní vel para mim.

       Apesar disso, nã o dormi muito, perseguida pela idé ia de que ele ia me matar enquanto eu dormia, ou me fazer engolir veneno... sempre me dizendo: “Pá ra! Ele lhe deu um quarto, você pode fechar à chave se quiser, ele é respeitoso, é infantilidade! ”

       E era infantilidade. Talvez uma volta inconsciente ao antigo corte, quem sabe... Nã o sou familiarizada com teorias psicanalí ticas.

       No dia seguinte, a festa estava animada. Vi chegarem todos os seus amigos, homens e mulheres, africanos, gente do Suriname. Ele me contou suas viagens, sua paixã o pela fotografia, nó s danç amos e rimos muito, até tarde da noite. No dia seguinte, passeio em grupo pelas dunas de areia, fotos; tudo era tã o simples, tã o alegre e tã o tranqü ilo ao lado daquele homem!

       Tomei o trem de volta. Ele me apertou nos braç os para se despedir e eu nã o senti a menor repulsa; ao contrá rio, eu estava bem... E no caminho de volta, nã o parei de sonhar como uma mocinha. E depois, isso continuou. Finalmente encontrei um homem terno, respeitoso e cheio de humor, largo de espí rito, de uma grande gentileza com as crianç as e que se entende perfeitamente com elas. Ele foi entrando na minha famí lia com uma tal facilidade que, passados os anos, eu ainda estou sob efeito de seu encantamento.

       Na é poca, eu trabalhava tanto em Paris que nã o tinha mais nem vida privada; estava prestes a mudar, a deixar a Franç a, a caminhar por outros lugares, por outros paí ses. Eu sou uma nô made, como uma peul, tenho necessidade de me mexer. Minha filha mais velha diz de mim, quando vou visitá -la:

       — Olha lá a turista!

       Ele sempre me apoiou e ajudou. Compreendeu que a militâ ncia para mim era mais do que um dever, uma paixã o. À s vezes fico longe dele, durante semanas, e sinto saudade dele como ele de mim. Entã o eu lhe telefono de toda parte: Roma, Estocolmo, Londres, Paris, Á frica, Á sia, Nova York. Já dura nove anos. E eu ando, sempre determinada, sempre apaixonada do mesmo jeito, até aquele dia de comemoraç ã o nas Naç õ es Unidas em que representei, modesta mas orgulhosamente, o combate de nossa rede europé ia para a prevenç ã o das mutilaç õ es genitais femininas.

       Foi em fevereiro e març o de 2005, na ocasiã o da 49ª sessã o da ONU sobre o estatuto da mulher, onde se encontravam perto de seis mil organizaç õ es nã o governamentais. E quando ficamos sabendo que todos os governos acabavam de reafirmar, sem reserva, sua participaç ã o, determinada em Pequim dez anos antes, na luta contra a violê ncia cometida contra as mulheres, nó s aplaudimos e gritamos nossa alegria, nó s, as militantes de base, as formiguinhas laboriosas. Eu me sentia sobre uma nuvem, tudo ia mudar...

       Mas à noite, relendo o discurso que eu ia fazer em Zurique, no dia seguinte, durante a conferê ncia organizada pela UNICEF, voltei para a terra e chorei.

       Toda minha vida desfilou diante de mim como um filme, cuja primeira parte era pró xima do horror.

       Desde a primeira reuniã o da ONU na cidade do Mé xico, em 1975, é poca na qual eu chegara à Franç a, trinta anos tinham se decorrido. Quantas mulheres tinham sofrido desde entã o, e quantas sofreriam ainda? Quantas mulheres teriam que lutar como eu havia feito? Em quantos paí ses os homens ainda ignoravam o que a expressã o " direitos da mulher" quer dizer? Eu acabara de viver um grande momento ao escutar todos os belos discursos de polí ticos. Teria entã o desejado bradar quem eu era, e por que estava ali. Proclamar-lhes aos gritos meu sofrimento e minha ira, dizer-lhes para parar os discursos e ir ver, eles mesmos, de perto, a vida das mulheres em nome das quais ainda tomavam decisõ es que só seriam aplicadas dentro de meio sé culo... talvez.

       À s vezes me sinto desencorajada, esgotada por este combate interminá vel, como há trê s anos na Itá lia, onde me entregaram um prê mio por meu trabalho de militante, prê mio que eu dividia com uma mulher de Bangladesh, queimada no rosto por ter se recusado a casar. Nesse dia eu chorei, diante daquela mulher, de raiva, de vontade de desistir de tudo, de tã o imensa é a tarefa, e infinita a violê ncia dos homens.

       E depois eu reencontrei minha coragem. Em Nova York como em Gê nova, em Zurique ou em outro lugar, retomei a caminhada, e caminharei ainda. Enquanto meus pé s me levarem, eles transportarã o a mensagem das mulheres africanas torturadas e humilhadas.

       Minha mã e nã o diz mais que eu ando demais. Eu espero, eu acredito, que ela tenha orgulho de mim. Dedico a ela esta obra, esperando ter a forç a de traduzir-lhe cada uma de minhas palavras, sem fraquejar. Devo agradecer a ela, assim como a meu pai, por terem me mandado à escola. A proibiç ã o de pensar teria sido para mim pior do que a mutilaç ã o fí sica.

       Foi graç as à minha educaç ã o, por mais limitada que tenha sido no começ o, que eu evoluí, compreendi, tive acesso à informaç ã o, até me tornar capaz de eu mesma difundi-la.

       Em certos paí ses, os imames fazem um trabalho de informaç ã o religiosa muito sé rio, e refletido. O objetivo é formar seus confrades, pois nem todos sã o universitá rios, e alguns ainda fazem, por ignorâ ncia, uma leitura errô nea do Alcorã o. Mas eles sã o muito respeitados pela populaç ã o, e sua palavra é, por isso mesmo, muito preciosa. Com a ajuda da ONU e das autoridades sanitá rias, alguns vilarejos renunciaram em massa à excisã o. E este progresso já é considerá vel, pois Os habitantes desses locais sabem que, se seus vizinhos nã o excisam mais as filhas, eles nã o poderã o mais casar as suas.

       Eu gostaria que este livro fosse para todas as mulheres africanas um instrumento de reflexã o e nã o de escâ ndalo. Eu gostaria que ele fosse traduzido e difundido na Á frica. Infelizmente, este sonho me parece irrealizá vel no momento. A Á frica tem tradiç ã o oral, será necessá rio contar com os griots para transmiti-lo. Eles já tomaram a iniciativa de nos ajudar.

       Relatei minha vida, como se eu mesma fosse um griot, nã o para exaltar minhas gló rias, mas para que ela ilustre este combate, esta marcha obstinada que me levou da sombra da mangueira da casa familiar para as luzes das organizaç õ es internacionais. Da mutilaç ã o í ntima e secreta à luta em plena luz do dia.

       Nosso dever é dizer nã o, fim a todas as formas de violê ncia e de mutilaç ã o. É inaceitá vel deixar mutilar meninas em nome de tradiç õ es ou de culturas, quaisquer que elas sejam.

       Cada mulher africana tem agora este dever. A cada uma seu caminho. Ningué m tem o direito de esconder a verdade sobre o sexo das mulheres africanas. Ele nã o é nem diabó lico nem impuro. Desde a noite dos tempos, é ele que dá a vida.

 

Agradecimentos

 

Dedico este livro a minha mã e,

A meus avó s,

A meus irmã os e irmã s,

A meus filhos, sem os quais eu jamais teria tido a forç a e a coragem de lutar,

A meu companheiro.

 

Quero agradecer a todos aqueles com quem cruzei e que me influenciaram por seu engajamento na luta em favor da dignidade fí sica e moral da pessoa, dos direitos fundamentais e, particularmente, dos direitos da mulher.

 

Devo agradecer a todas as pessoas que me apoiaram de perto ou de longe em meu combate, assim como a todas aquelas e todos aqueles que me ajudaram para que este livro se tornasse realidade.

 

 



  

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