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Nova York, março de 2005Стр 1 из 10Следующая ⇒
KHADY MUTILADA http: //groups. google. com/group/digitalsource Com a colaboraç ã o de Marie-Thé rè se Cuny
MUTILADA
Traduç ã o de REJANE JANOWITZER
Tí tulo original MUTILE
Oh Editions, 2005 Todos os direitos reservados, incluindo os direitos de reproduç ã o no todo ou em parte sob qualquer forma.
Direitos para a lí ngua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil à EDITORA ROCCO LTDA. Av. Presidente Wilson, 231 — 8° andar 20030-021 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 3525-2000-— Fax: (21) 3525-2001 rocco@rocco. com. br www. rocco. com. br
Printed in Brazil Impresso no Brasil
Preparaç ã o de originais MÔ NICA MARTINS FIGUEIREDO
CIP-Brasil. Catalogaç ã o-ria-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
K56m
Khady, 1959- Mutilada - Khady com a colaboraç ã o de Marie-Thé rè se Cuny; Traduç ã o de Rejane Janowitzer - Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
Traduç ã o de: Mutilé e ISBN 85-325-2103-7
1. Khady, 1959.
2. Circuncisã o feminina - Senegal. 3. Ritos de iniciaç ã o - Senegal. 4. Mulheres - Senegal - Condiç õ es sociais. 5. Crime contra as mulheres - Senegal. 1. Cuny, Marie-Thé rè se, II. Tí tulo III. Sé rie.
CDD - 392. 09663 CDU -392. 15 (663)
06-2658
Para aquelas que sofrem ainda e sempre em suas carnes e em suas almas.
Sumá rio
Salindé 9
Crescer 24
Uma pancada na cabeç a 41
Desconhecido 57
Integraç ã o 70
Desintegraç ã o, reintegraç ã o 88
Poligamia 105
O grande salto 121
O apartamento das lá grimas 137
Combate 150
Agradecimentos 173
Salindé
Nova York, març o de 2005
O frio é glacial para a africana que sou. Eu ando, sempre andei na minha vida, a ponto de minha mã e me repreender freqü entemente. — Por que está andando? Pare de andar! O bairro inteiro conhece você! À s vezes ela chegava a desenhar uma linha imaginá ria na soleira da porta. — Está vendo esta linha? A partir de agora você nã o vai passar dela! Era o que eu me apressava a fazer, para ir brincar com as amigas, buscar á gua, passear no mercado ou observar a passagem dos militares em belos uniformes desfilando atrá s do muro da concessã o. " Andar", para minha mã e, era sua maneira de dizer, em linguagem soninké , que eu corria por toda parte, excessivamente curiosa a respeito do mundo à minha volta. Efetivamente, eu " andei minha vida" o mais longe possí vel: hoje até a Unicef, em Zurique, ontem à 49ª sessã o da ONU, até a Assemblé ia Geral dedicada ao engajamento dos Estados Unidos na luta pelos direitos das mulheres. Khady está na ONU! A mulher militante chamada Khady, a antiga menininha de " barriga de areia", como todas as crianç as pequenas africanas. A pequena Khady indo buscar á gua na fonte, saltitando atrá s das avó s e das tias de bubu[1], levando orgulhosamente na cabeç a o pote de amendoim para ser moí do, encarregada de trazer de volta, intacta, a bela pasta cor de â mbar recoberta com seu ó leo, e de repente apavorada ao vê -la despencar no chã o! Ainda escuto a avó gritando atrá s de mim: — Você deixou cair? Você vai ver! Eu a vejo descer os degraus da entrada, armada de vassoura à guisa de chicote, enquanto as irmã s e as primas riem de mim! Ela bate nas costas, nas ná degas, e a minha pequena canga se solta sobre meus pé s! As meninas correm em meu socorro e vovó, sempre furiosa, vira-se contra elas: — Você s a defendem? É em você s que eu vou bater! Aproveito para escapar e me refugiar com o vovô, me esconder atrá s de sua cama de dobrar, lá onde ela nã o vai conseguir me descobrir. Vovô é minha baliza, minha seguranç a. Jamais intervé m nas puniç õ es e as deixa por conta das mulheres. Ele nã o grita, ele explica. — Khady, se a mandam fazer alguma coisa, deve se concentrar no que está fazendo! Aposto como você estava brincando com suas amigas e nã o viu o pote derramar. Depois da palmada merecida, tenho direito aos carinhos da vovó e das meninas, ao leite coalhado e ao cuscuz como forma de consolo. Com as ná degas ainda doloridas, eu brinco de boneca, sentada debaixo da grande mangueira, com minhas irmã s e minhas primas. A pequena Khady espera a chegada de setembro para ir à escola, como todos os seus irmã os e irmã s. Minha mã e faz questã o: nunca nos faltarã o cadernos nem lá pis; ela passará privaç õ es para isso. A vida é tã o doce na grande casa dos arredores de Thiè s, cidade de largas avenidas ladeadas de grandes á rvores, cidade tranqü ila, à sombra da mesquita onde vovô e os homens vã o rezar a partir da primeira hora do despontar do dia... Meu pai trabalha na estrada de ferro, eu nã o o vejo com muita freqü ê ncia. Fui confiada, segundo a tradiç ã o, à guarda de uma avó encarregada de minha educaç ã o, Fouley, a segunda esposa de vovô, que nã o tem filhos. Em nossa casa, uma mulher sem filhos nã o deve sofrer por causa disso. A casa de minha mã e fica a cem metros daqui e eu vou e volto entre as duas, ciscando na casa de uma e de outra as doç uras de suas cozinhas. Vovô tem trê s mulheres: Marie, a mã e de minha mã e, é a primeira esposa, Fouley é a segunda, a quem foi confiada minha educaç ã o, e Asta a terceira, com quem vovô se casou depois da morte de um irmã o mais moç o, segundo o costume. Sã o todas nossas avó s, mulheres sem idade, que nos amam indiferentemente, nos punem e nos consolam igualmente. Na minha fraternidade, somos trê s meninos e cinco meninas; a tribo engloba as primas, as sobrinhas e as tias. Em nossa casa, todo mundo é primo ou prima, tia ou sobrinha de qualquer um e de todos! Somos impossí veis de contar; há primos que eu nem chego a conhecer. Minha famí lia é da casta dos nobres, da etnia soninké , originalmente agricultores e comerciantes. Antigamente faziam o comé rcio de tecidos, de ouro e pedras preciosas. Vovô trabalhava na estrada de ferro em Thiè s e levou para lá meu pai. Minha famí lia é uma famí lia de religiosos e agricultores. Sã o os imames do vilarejo. Numa famí lia nobre " horé " no sentido soninké (uma casta que nada tem a ver com a definiç ã o da nobreza europé ia), a educaç ã o é muito estrita. Inculcam-nos a honestidade, a fidelidade e o orgulho da pró pria palavra, valores e princí pios que nos seguem ao longo de toda nossa vida. Eu nasci exatamente antes da independê ncia, em 1959, em um dia do mê s de outubro. Tinha, pois, sete anos em outubro de 1966, no meu primeiro iní cio de aulas. Até entã o vivera feliz, cercada de ternura. Ensinaram-me a cultura nos campos, na cozinha, nos condimentos que as avó s vã o vender no mercado. Tive meu banquinho verde por volta dos quatro ou cinco anos; vovó Fouley mandou fabricá -lo para mim, pois cada crianç a tem seu banquinho. Elas se sentam nele para comer o cuscuz e o guardam no quarto da mã e, ou da avó, que é quem as educa, lava, veste, alimenta, acaricia ou pune. O banquinho é fonte de disputa entre as crianç as: " Você pegou meu banco! " , " Este nã o é o seu banco! ", " Devolva o banco dela, você é mais velha! " Ficamos com ele durante muito tempo, até a madeira rachar ou crescermos e ganharmos um banco maior. Nesse momento, podemos legar o banquinho a uma crianç a mais nova. Vovó mandou fabricá -lo e o pagou para mim. Transportei-o orgulhosamente sobre minha cabeç a: ele é o sí mbolo da passagem da primeira infâ ncia, quando nos sentamos no chã o, ao status de crianç a que se senta e caminha como gente grande. Eu ando pelos campos, pelas ruelas do mercado, entre os flamboyants, baobá s e mangueiras do terreno, da casa para a fonte, da casa da vovó para a da minha mã e; ando por uma existê ncia protegida, cuja doç ura vai brutalmente terminar. Eu caminhei, desde os meus sete anos, de Thiè s a Nova York, passando por Roma, Paris, Zurique ou Londres; jamais deixei de caminhar, sobretudo desde aquele dia em que as avó s vieram me dizer: — Hoje, minha filha, nó s vamos purificá -la. Na vé spera, minhas primas vieram de Dakar para as fé rias escolares. Estavam lá minha irmã Daba, de seis anos, Lé lé, Annie e Ndaí é, minhas primas em primeiro grau, e outras primas mais afastadas, de quem esqueci o nome. Umas dez meninas entre seis e nove anos, sentadas com as pernas esticadas, no patamar da escadaria, diante do quarto de uma das avó s. Nó s brincá vamos de papai e mamã e, de vender temperos no mercado, de cozinhar com os pequenos utensí lios de ferro que os pais fabricam em casa, e com as bonecas de madeira e roupa de pano. Naquela noite, tí nhamos adormecido como de costume no quarto de uma avó, de uma tia ou de uma mã e. No dia seguinte de manhã, muito cedo, me acordaram, me deram banho. Minha mã e me vestiu com um vestido de flores sem mangas, de tecido africano, cortado à europé ia. Eu me lembro das cores: marrom, amarelo e pê ssego. Calcei minhas pequenas sandá lias de borracha, minhas " palmató rias". É muito cedo. Ningué m saiu ainda no bairro. Atravessamos o caminho que ladeia a mesquita onde os homens estã o rezando. A porta está escancarada e eu escuto suas vozes, O sol ainda nã o se levantou, começ a a fazer muito calor. É a estaç ã o das chuvas, mas nã o está chovendo. Dentro de algumas horas, a temperatura chegará a trinta e cinco graus. Minha mã e me conduziu, com a minha irmã, à casa da terceira esposa de vovô, uma mulher de seus cinqü enta anos, pequena, miú da, gentil e muito doce. Minhas primas sã o recebidas na casa dela para as fé rias e, como nó s, já estã o lavadas, vestidas e aguardam, como um pequeno rebanho bem limpo, reunido, inocente e vagamente inquieto. Minha mã e foi embora, nos deixando ali. Eu a vejo se afastar, magra e delicada, uma mistura de sangue mouro e peul. Minha mã e é uma grande dama, que eu conheç o mal nessa é poca, mas que educou seus filhos, meninas e meninos, sem discriminaç ã o. Escola para todos, trabalho para todos, puniç õ es e ternura para todos. Mas ela foi embora e nã o nos disse nada. Está se passando algo diferente, pois as avó s vã o e vê m, discutindo misteriosamente entre elas, mas sempre nos mantendo afastadas. Sem saber o que me espera, sinto perfeitamente que essas palavras sã o inquietantes. De repente, uma das avó s chama o rebanho de meninas, pois a “senhora” chegou. Vestida num imenso bubu í ndigo e azul-escuro, com enormes brincos nas orelhas, ela é pequena e eu reconheç o seu rosto. A “senhora” é uma amiga de minhas avó s, da casta dos ferreiros. Na sua casta, sã o os homens que trabalham o ferro, “cortam os meninos, e as mulheres “cortam” as meninas. Duas outras mulheres també m estã o presentes: matronas fortes de braç os só lidos que eu nã o reconheç o. Minhas primas, maiores, sabem, talvez, o que nos aguarda, mas nã o disseram nada à s outras. Na lí ngua soninké , a avó nos anunciou que vamos ser salindé para " poder rezar", o que quer dizer, em nossa lí ngua, ser purificadas para alcanç ar a prece. Em portuguê s: " excisadas". Diz-se també m: cortadas. O choque é brutal. Eu sei agora o que me espera: essa coisa de que as mamã es falam de tempos em tempos em casa, como se se tratasse de uma ascensã o a uma dignidade misteriosa. Parece-me, nesse instante, que revejo imagens que eu certamente tinha reprimido. As irmã s mais velhas passaram por isso, instruí das pelas avó s que tê m o privilé gio de dirigir a casa e a educaç ã o das crianç as. Quando uma menina nasce, depois do batismo do sé timo dia, sã o elas que se encarregam de lhes furar as orelhas com uma agulha, de fazer passar o fio preto e vermelho que vai impedir o buraco de fechar de novo. Elas tratam dos casamentos, dos partos, dos recé m-nascidos; sã o elas que decidiram a nossa purificaç ã o. As mã es foram embora. Um abandono estranho num momento daqueles, mas eu sei agora que nenhuma mã e, mesmo tendo o coraç ã o duro, poderia suportar a visã o do que vã o fazer com a sua filha e, sobretudo, seus gritos. Elas sabem do que se trata, pois já passaram por aquilo e, quando tocarem em sua filha, será sua pró pria carne que vai sangrar outra vez. Mesmo assim aceitam, porque é assim e por nã o terem outra via de reflexã o a nã o ser esse ritual bá rbaro pretensamente purificador para poder rezar, chegar virgem ao casamento e permanecer fiel. É uma insí dia a manutenç ã o das mulheres africanas nesse ritual que nã o tem absolutamente nada a ver com religiã o. Em nossos paí ses da Á frica negra, a excisã o é praticada tanto pelos animistas, pelos cristã os, pelos muç ulmanos como pelos judeus falashas. A origem remonta muitos sé culos antes da chegada da religiã o muç ulmana. Os homens a quiseram por diversas má s razõ es: assegurar seus poderes, acreditar que suas mulheres nã o iriam procurar outros genitores, ou que os homens de tribos inimigas nã o as violariam! Outras explicaç õ es, ainda mais absurdas, pretendem que o sexo das mulheres seja impuro, diabó lico; o clitó ris, em si diabó lico; ao tocar a cabeç a da crianç a no nascimento, a condenaria a inimaginá veis desgraç as, até mesmo à morte. Alguns pensaram també m que essa falsa representaç ã o de um pê nis minú sculo faria sombra à virilidade masculina. Apenas a dominaç ã o é a verdadeira razã o. E eles confiaram a execuç ã o à s mulheres, pois era impensá vel para um homem " ver" ou " tocar" essa parte í ntima da sexualidade feminina, mesmo em estado embrioná rio. Com sete anos, ignoro totalmente, como todas as meninas, que sou dotada de um clitó ris e para o que ele serve. Nunca reparei nele e nã o o verei mais. A ú nica coisa que contava, naquela manhã, era o anú ncio de uma dor pavorosa da qual ouvira vagos ecos que nã o pareciam, contudo, me dizer respeito. A lembranç a de uma mã e ou de uma avó ameaç ando, por exemplo, um menininho indó cil com uma faca ou com uma tesoura, o gesto significativo de quem puxava seu pequeno apê ndice, acompanhado de uma palavra terrí vel para ele: — Se você nã o obedecer, eu corto! O menino sempre corria diante dessa promessa castradora de que ele tinha a lembranç a atroz, com a diferenç a de que nã o lhe causaria sofrimento mais tarde e de que se tratava de um costume essencialmente higiê nico. Mas eu os via andar de um jeito esquisito, como patos; sentar-se em seguida com dificuldade e choramingar durante dois ou trê s dias, à s vezes uma boa semana. Eu me sentia entã o protegida, já que era menina. Eu ignoro, em 1967, o que representará para mim no futuro esse sangrento corte í ntimo. Ele me levará, contudo, ao longo de uma caminhada de vida difí cil e por vezes cruel, até 2005, à ONU. Meu coraç ã o começ ou a bater muito forte. Procuram nos convencer de que nã o devemos chorar quando estamos sendo purificadas. De que precisamos ser corajosas. As avó s sabem muito bem que somos jovens e que vamos necessariamente berrar e chorar, mas elas nã o falam de dor. Elas dizem: — Nã o dura muito tempo, vai doer uma vez só, mas em seguida acaba, entã o seja corajosa. Naquela hora eu nã o via nenhum homem perto de nó s. Eles estavam na mesquita ou nos campos, antes do forte calor. Ningué m junto de quem eu pudesse me refugiar e, sobretudo nã o via o meu avô. Nesse tempo, as tradiç õ es do vilarejo ainda eram opressivas e, para nossas mã es e nossas avó s, aquilo tinha que ser feito e ponto final. Elas pró prias nã o se faziam perguntas, considerando que viví amos agora na cidade, por exemplo, ou tendo em vista o que se passava nas outras casas, como nas dos wolofes. Na minha rua, é ramos apenas duas famí lias a praticar a salindé : a que viera de Casamance, os mandingues, e a nossa, os soninké . Um pouco mais distante, havia també m os toucouleur e os bambara, que perpetuavam a mesma tradiç ã o. Mas era uma prá tica que permanecia secreta, da qual nã o se falava, sobretudo com os wolofes. Coisas que nã o deviam ser faladas. Nossos pais pretendiam nos casar mais tarde com primos da mesma famí lia. Era preciso que fô ssemos verdadeiras mulheres soninké , tradicionais. Ningué m pensava que um dia haveria casamentos mistos, entre etnias diferentes. Soninké, sé rè res, peuls, bambara ou toucouleur sã o etnias imigradas chegadas à cidade. E, como em toda famí lia imigrada, os pais se esforç am para nã o esquecer o vilarejo, e para transmitir suas tradiç õ es aos filhos. Há algumas boas, mas esta é abominá vel. As meninas se calaram, paralisadas pelo medo, a ponto provavelmente de urinar nas calç as. Nenhuma delas, contudo, tenta fugir, é impensá vel. Mesmo que procuremos com os olhos algué m que possa nos tirar dali. Talvez o vovô... Se ele mesmo tivesse consciê ncia da gravidade desse ato, talvez pudesse intervir. Mas eu penso que ele nã o foi informado. As mulheres acusam os homens de ser os instigadores, mas em muitos vilarejos nã o se conta nada aos pais, salvo se a excisã o for feita durante ritual de iniciaç ã o coletiva e todo o vilarejo tiver sido informado. Nas grandes cidades, a coisa é praticada no interior das casas, até mesmo escondida, de modo que os vizinhos nã o sejam advertidos. Meu pai nã o estava lá, nã o lhe perguntaram sua opiniã o, nem a do meu avô materno. É uma histó ria de mulheres e nó s devemos nos tornar mulheres semelhantes. Elas desenrolaram duas grandes esteiras, uma diante da porta de um quarto, a outra na entrada do banheiro interno. Esse quarto se parece com todos os outros das mulheres da famí lia: uma cama de casal, uma pequena mesa e malas de ferro que contê m os bens de toda mulher. Uma porta que dá para o cantinho do banheiro, um buraco no cimento e uma jarra de á gua assim como para o depó sito das provisõ es. Outras roupas que nos sã o destinadas já estã o colocadas em cima da cama. Nã o sei mais quem foi chamada primeiro, tal era o meu pavor. Está vamos ali, querendo olhar com olhos arregalados para saber como acontecia a coisa, mas as avó s nos proibiam firmemente. — Saia daí! Vá se sentar! Vá se sentar no corredor! Nã o tí nhamos o direito de olhar o que estavam fazendo com a outra. Lá dentro, naquele momento, havia trê s ou quatro mulheres e uma menina. Quando escutei os gritos pavorosos dessa menina, minhas lá grimas rolaram. Nã o havia mais escapató ria, era preciso passar por aquilo. Eu era a quarta ou a quinta esperando, sentada, com as pernas esticadas, em cima da escada, tremendo a cada berro, todo o meu corpo crispado pelos berros das outras. Duas mulheres me agarraram e arrastaram para o quarto. Uma me segura a cabeç a e seus joelhos esmagam meus ombros com todo o peso deles para que eu nã o me mexa; a outra me segura os joelhos, com as pernas afastadas. A imobilizaç ã o depende da idade da menina e, sobretudo de sua precocidade. Se ela se mexe muito, porque é alta e forte, serã o necessá rias mais mulheres para dominá -la. Se a crianç a é pequena e magricela, elas sã o menos numerosas. A mulher encarregada da operaç ã o dispõ e de uma lâ mina de barbear por menina, que as mã es compraram para a ocasiã o. Ela puxa com os dedos, o mais possí vel, o minú sculo pedaç o de carne e corta como se cortasse um pedaç o de carne de zebu. Infelizmente, é impossí vel para ela fazê -lo com um ú nico gesto. Ela é obrigada a serrar. Os uivos que eu soltei me ressoam ainda nos ouvidos. Eu chorei, gritei! — Eu vou contar para o meu pai, eu vou contar ao vovô Kisima! Kisí ma, Kisima, Kisima, venha, venha, elas estã o me matando, venha me buscar, elas estã o me matando, venha... Ma! Venha! Baba, Baba, onde você está, Baba? Quando o meu pai chegar, ele vai matar você s, ele vai matar você s, ele vai matar você s... A mulher corta, apara e ao mesmo tempo zomba com um sorriso tranqü ilo, como quem diz: — Claro, quando o seu pai chegar, ele vai me matar, claro... Clamo a toda a minha famí lia socorro, vovô, pai e mã e, todos, eu preciso soltar as palavras, berrar o meu protesto diante dessa injustiç a. Com os olhos fechados, nã o quero ver, nã o posso ver o que esta mulher está mutilando. O sangue esguichou no rosto dela. É uma dor inexplicá vel, que nã o se parece com nenhuma outra. Como se me amarrassem as tripas. Como se houvesse um martelo no interior da minha cabeç a. Em poucos minutos, nã o sinto mais a dor num lugar preciso, mas em todo o corpo, de repente habitado por um rato esfaimado, ou um exé rcito de formigas. A dor está inteira da cabeç a aos pé s, passando pela barriga. Eu ia desmaiar quando uma das mulheres me aspergiu á gua fria para lavar o sangue que havia espirrado no meu rosto, e me impediu de perder a consciê ncia. Nesse exato momento, eu pensei que ia morrer, que já estava morta. Nã o sentia mais realmente meu corpo, apenas aquela pavorosa crispaç ã o de todos os nervos dentro de mim e minha cabeç a que ia explodir. Durante uns bons cinco minutos, essa mulher cortou, aparou, puxou e recomeç ou para ter certeza de que retirara mesmo tudo, e eu escuto, como uma ladainha longí nqua: — Acalme-se, está quase acabando, você é uma menina corajosa... Acalme-se... Nã o se mexa! Quanto mais você se mexer, mais vai doer... Depois que acabou de aparar, ela enxugou o sangue que corria em abundâ ncia com um pedaç o de pano mergulhado em á gua morna. Disseram-me mais tarde que ela acrescentava um produto de sua fabricaç ã o; desinfetante, eu suponho. Em seguida, aplicou manteiga de karité misturada com fuligem preta, para evitar as infecç õ es, mas durante a operaç ã o ela nã o explicou nada. Quando acabou: — Levante-se agora! Elas me ajudam, pois eu sinto que, a partir dos rins até o final das pernas, há um vazio e eu nã o consigo me manter de pé. Consciente da dor na minha cabeç a, onde o martelo bate furiosamente, e mais nada nas pernas. Meu corpo foi cortado em dois. Eu odeio essa mulher nesse momento. E ela já estava passando a uma outra, com uma outra lâ mina, para a mesma dor. Minhas avó s me recolhem, enxugam com um pano limpo, me vestem uma canga nova, mas é preciso sair do quarto. Como eu nã o posso caminhar, elas me carregam pelo corredor e me instalam sobre a esteira com as outras meninas já cortadas, que continuam chorando. E eu choro també m, enquanto a seguinte, apavorada, toma o meu lugar, à forç a, no quarto das torturas. É uma dor que eu nunca consegui definir. Nunca conheci nada tã o violento ao longo de minha existê ncia. Eu dei à luz, sofri de có licas renais; cada dor é diferente. Naquele dia achei que estava morrendo e pensei que nã o ia acordar. A dor era de tal maneira forte que eu queria dormir, cair desmaiada. Aquela violê ncia feita no meu corpo de crianç a, eu nã o a compreendia, ningué m havia me advertido: nem as irmã s mais velhas nem as amigas de mais idade, ningué m. Ela era, portanto, totalmente injusta e de uma crueldade gratuita, pois era inexplicá vel. Por que estavam me punindo? Essa coisa que haviam aparado a golpes de lâ mina de barbear, servia para quê? Por que tirá -la uma vez que eu nascera com ela? Eu carregava um mal em mim, alguma coisa diabó lica que era preciso extirpar para me permitir rezar diante de Deus? Incompreensí vel. Ficamos deitadas em cima da esteira até a ú ltima desabar ali, chorando. Quando a " senhora" ferreira completou seu serviç o e terminou de cortar todo mundo, as mulheres limparam o cô modo do sangue das " purificadas", antes de sair do quarto. Entã o, finalmente, as mamã es e as vovó s vieram nos consolar. — Pare de chorar, você foi corajosa, nã o tem que chorar assim. Mesmo que esteja doendo, tem que ser corajosa, porque tudo acabou, tudo correu bem... Pare de chorar. Mas nã o podí amos parar. Chorar era necessá rio, nossa ú nica defesa. E os meninos da casa nos olhavam em silê ncio, petrificados pelos vestí gios de sangue e os choros de suas companheiras de brincadeira. Essa mulher que me cortara, eu a conhecia. Ainda está viva hoje. Vovó Nionthou, da casta dos ferreiros, tinha a mesma idade que as outras avó s, ia ao mercado ao mesmo tempo que elas e visitava-as regularmente, na sua qualidade de mulher de casta devotada à nossa famí lia. Uma esposa de ferreiro é encarregada da excisã o das meninas, seu marido da circuncisã o dos meninos. Assim, nessa é poca, a tradiç ã o da salindé corria de vilarejo em vilarejo, e até na segunda capital econô mica do paí s, Thiè s. Vovó Nionthou voltou na mesma noite para os curativos e no dia seguinte e em todas as manhã s seguintes, O primeiro dia é atroz de dores. Deitada. Incapaz de me virar, nem para o lado esquerdo nem para o direito, só consigo me apoiar sobre as ná degas, ajudando com as mã os para levantá -las um pouco e tentar aliviar a dor. Mas nada alivia. A vontade de urinar quando nã o se consegue é uma dor suplementar. Nenhum consolo adianta. Mesmo o café da manhã tradicional, o lakh, o caldo de milhete ou leite coalhado, feito em nossa homenagem. Nenhuma de nó s quer engolir, nem mesmo a danç a de uma das avó s que bate as mã os fazendo barulho com a boca para celebrar nossa bravura. Que bravura? Eu nã o tive nenhuma, e me regozijo de nã o ter tido. Naquele tempo, as mamã es e as vovó s ofereciam à s excisadas uma canga, arroz, milhete ou um bubu, ou entã o uma cé dula de valor baixo. Foi na hora do almoç o que me dei conta de que um ou dois carneiros tinham sido degolados para celebrar o acontecimento. Portanto, os homens estavam a par, pois nã o se matava um carneiro sem que eles tivessem decidido. E eu vi a famí lia se regalando, depois de nos apresentar um prato que é ramos incapazes de engolir. Fiquei cerca de dois dias sem comer nada. Salvo à noite, quando nos deram uma sopa supostamente capaz de acalmar a dor. Era preciso també m beber á gua por causa do calor. A á gua fresca aliviava durante dois ou trê s segundos. Mas os curativos eram dolorosos. O sangue coagulara e a " senhora" tinha de raspá -lo de novo com sua lâ mina de barbear. Uma bacia de á gua morna nos teria trazido alí vio, mas a " senhora" precisava puxar, esfregar, com aquela maldita lâ mina. E eu nã o conseguia dormir, esticada, com as pernas afastadas, morrendo de medo de fechá -las instintivamente e reavivar a dor. Procurá vamos algo que pudesse nos acalmar, mas nã o achá vamos nada. A á gua, se eu pudesse mergulhar na á gua e nã o mais sair dela, mas nã o se cogitava isso enquanto a cicatriz nã o estivesse formada. — Levante-se um pouco e tente caminhar. Impossí vel! Eu me recuso. Nã o paro de chorar a nã o ser para cochilar vagamente, de cansaç o e de desespero, pois ningué m viera me salvar. A noite, obrigam-me a me levantar para dormir no quarto com as outras, uma dezena de estropiadas estiradas em cima de uma esteira, arrastando as pernas. Ningué m fala, parece que uma chapa de chumbo abafou nossa alegre infâ ncia. Cada uma tem sua pró pria dor, certamente idê ntica à da outra, mas que nã o se sabe se foi suportada da mesma maneira. Será que sou menos corajosa do que as outras? Em minha mente tudo é confuso. Nã o sei de quem devo sentir raiva. Daquela mulher que eu odiei imediatamente? De meus pais? De minhas tias? De minhas avó s? Creio que tenho raiva de todo mundo. Tenho raiva da vida. Assim que compreendi o que me aguardava, tive um medo grande do que esperava que fosse uma coisa bem pequena. Nã o sabia que iam cortar tã o profundamente, que a dor ia ser tã o intensa e que ia durar tanto tempo, vá rios dias, antes de se atenuar. As avó s traziam infusõ es de plantas para nos refrescar a testa, caldos quentes para beber para descontrair a barriga. Os dias passam e a dor vai diminuindo lentamente, mas, psicologicamente, ela está lá. Mesmo que nã o esteja mais sofrendo fisicamente, quatro dias depois, é na cabeç a que se sofre. Ela martela do lado de dentro, como se fosse explodir. Talvez porque eu nã o conseguisse virá -la para um lado ou para o outro, deitada de costas sobre a esteira, talvez porque tivesse levado dois dias para urinar. Esta foi a parte mais difí cil. As avó s nos explicam que quanto mais se reté m a urina, mais se sente dor. Elas tê m razã o, mas é preciso conseguir fazê -lo, pois a primeira que tentou urinar nã o conseguiu, e eu escutei seus gritos lancinantes, como se a tivessem cortado outra vez. As outras continuaram prendendo. Algumas foram mais corajosas e se aliviaram naquela mesma noite. Quanto a mim, nã o consegui antes de dois dias, em meio a dores suplementares. Eu gritei outra vez, chorei muito... Uma boa semana de curativos, emplastros regulares, de manhã e de noite, de manteiga de karité, com plantas maceradas tã o misteriosamente quanto as palavras murmuradas enquanto a mistura escurecida com cinza é aplicada. Essa ladainha, misturada com preces, supunha-se que afastava os maus espí ritos e nos ajudava a curar completamente. E acreditá vamos naquilo, mesmo que nã o compreendê ssemos nada. Aquela mulher me lavava o cé rebro sussurrando coisas que só ela conhecia e assim o sangue deixaria de correr, assim eu estaria protegida do mau olhado. Depois o avô e os homens foram reaparecendo pouco a pouco. Suponho que eles tenham esperado que os gritos e os choros terminassem. Eu me lembro de vovô pousando a mã o na minha testa e recitando uma prece de alguns minutos antes de ir embora novamente sem outro consolo. Mas eu nã o lhe digo nada. Nã o o chamo mais para pedir socorro, acabou, nã o vale mais a pena. Contudo, ele nã o teve mais o olhar dos dias felizes. Quando penso de novo nele, digo a mim que talvez ele nã o tivesse ficado contente naquele dia... Mas que nã o podia fazer nada: proibir à quelas mulheres o ritual pelo qual elas pró prias tinham passado era impossí vel. Só nos restava acreditar nas mulheres. — Logo, logo você vai esquecer, vai poder correr e andar como antigamente. Uma vez passada a dor, é possí vel esquecer. E foi o que aconteceu, depois de uma semana inteira. Uma coisa mudou definitivamente em mim, mas eu nã o me dou conta. Precisei de algum tempo antes de poder olhar a cicatriz. Eu devia sentir medo, alé m de nã o fazer parte dos costumes que as mulheres nos transmitiam. Elas nos ensinavam a lavá -lo, esse sexo ao qual nã o dá vamos outra atenç ã o a nã o ser sua limpeza indispensá vel. Nã o deví amos jamais esquecê -lo, sob pena de desprender maus odores, as mã es nos ensinavam freqü entemente. Trê s ou quatro semanas mais tarde, depois que as primas voltaram para casa, em Dakar, cada uma retomando o curso normal da vida, um dia, me lavando, tive a curiosidade de procurar o que tinham me tirado. Nada alé m de uma cicatriz que se tornara dura, que eu toquei de leve com a mã o pois ela ainda estava dolorida, e supus que fosse ali que tinham cortado. Mas o quê? Durante cerca de um mê s e meio, senti uma dor interior, como uma pú stula que nã o tivesse o poder de sair. Depois parei completamente de pensar naquilo, nem sequer fiz perguntas. As avó s tinham razã o, esquece-se. Ningué m nos advertiu que nossa futura vida de mulher nã o seria a mesma das outras. Um dia, uma mulher wolof do bairro veio à nossa casa. Ela fazia viagens ao Mali e conhecia bem o tema. Nesse dia, duas priminhas acabavam de ser cortadas. E eu escutei essa mulher falar bem alto: — Ah! Mas você s, os soninké , continuam fazendo as suas barbaridades...? Nã o acordaram, continuam selvagens! Esse ato é uma selvageria! Ela falou rindo, em tom de brincadeira, como é o costume na Á frica para nã o ofender o interlocutor. Nã o dei atenç ã o ao fato durante uns bons dez anos, até que comecei a compreender que meu destino de mulher soninké partia daquilo, o corte í ntimo que me privaria para sempre de uma sexualidade normal. Que havia em mim, por princí pio, uma flor desconhecida que nã o desabrocharia jamais. E é ramos muitas africanas a acreditar que a normalidade era isso. Transformar-nos em mulheres submissas apenas ao prazer de um homem. Que só nos restava colher a flor nova cortada para ele e observá -la murchar antes da é poca. Em um canto da minha cabeç a, continuo sentada debaixo da mangueira da casa de meus avó s, no lugar onde eu era feliz e fisicamente intacta. Pronta para me tornar adolescente, depois mulher, pronta para amar, pois teria sentido necessariamente o desejo... Que me foi proibido.
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