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O grande salto
Uma semana antes de me decidir a contratar um advogado, topei, por acaso, com um programa de televisã o dedicado a mulheres que apanharam. E a evidê ncia me chocou: eu tinha vergonha de mim. Eu mesma era uma mulher que fora espancada e, como todas aquelas mulheres que deram seu depoimento, nã o tinha realmente tomado consciê ncia do fato. Mesmo tendo registrado os atestados mé dicos, depois de uma sessã o de socos muito violenta, nã o me classificava naquela categoria, O divó rcio era meu ú nico objetivo, eu enterrara a vergonha e a humilhaç ã o no mais profundo de mim mesma. Como elas, eu tinha agü entado, negociado; como elas, eu tinha me refugiado no silê ncio, em vez de pedir ajuda. Como elas, me vi presa numa armadilha, enredada nos argumentos que me faziam a cada vez recuar: “este homem é o pai dos meus filhos. Este homem os ama, eu nã o tenho o direito de privá -los dele. ” A pressã o da comunidade é tamanha que eu me sinto culpada por meu anseio de liberdade. Sou criticada por querer viver como as mulheres brancas, por tomar pí lula, por querer para os meus filhos uma outra existê ncia. Naquele momento, eu me considerava efetivamente uma mulher que apanha, explorada, e precisava levar até o fim esta reflexã o. Primeiramente, o advogado, em seguida os salá rios-famí lia que me eram devidos.
Vou, pois, explicar meu caso à administraç ã o. Conheç o bem o circuito, de tanto ajudar os outros. — Meu marido recebe os salá rios-famí lia, nã o eu, há uma segunda esposa e todo mê s ele lhe dá setecentos francos, a parte que ele recebeu pelo filho dela. E para mim, que tenho quatro filhos dele, nã o apenas nã o dá nada como ainda por cima me bate. Ele nã o se porta como um pai de famí lia numerosa. Foi inteiramente cegado por si mesmo, pelos amigos e pela segunda esposa. Como fazer para recuperar o dinheiro dos meus filhos? — Você conhece as regras — me responde a mulher. — Normalmente é seu marido que recebe esse dinheiro. Enquanto viver com ele, no domicí lio conjugal, nã o vou poder repartir os salá rios entre você e ele. Mude-se ou ache um endereç o de residê ncia, e aí eu posso agir. Desencavar um endereç o fictí cio nã o é tã o simples. Nã o tenho meios para me mudar, pagar um aluguel com meu minú sculo salá rio de inté rprete intermitente. Estou encurralada, me restam apenas os olhos para chorar. Mas o bom Deus está comigo. Ao descer do ô nibus, eu encontro uma vizinha maliana. — O que aconteceu com você? Por que está chorando? Tinha prometido a mim mesma nunca mais falar nada para ningué m, de medo que minhas intenç õ es chegassem aos ouvidos de meu marido, como era freqü entemente o caso, mas aquela mulher é culta, e alguma coisa me impulsiona a lhe contar meu projeto. — É simples, essa mulher tem razã o, você mora na minha casa! Vou fazer uma declaraç ã o de residê ncia; a partir de agora, considera-se que você mora aqui com seus quatro filhos. Nã o diga nada a ningué m, deixe a administraç ã o agir. Vá de novo ver a mulher, entregue-lhe o documento, mas faç a depressa, é preciso bater o ferro enquanto ele está quente! Retomo o ô nibus no outro sentido, em direç ã o ao departamento encarregado dos salá rios-famí lia. Há uma fila e eu apanho uma senha; corro o risco de cair com outra pessoa, que nã o terá necessariamente a mesma visã o de meu problema, por isso espero até poder fazer um sinal para aquela que me atendeu uma hora antes, e até seu guichê ficar livre. Ela examina o documento e faz a modificaç ã o de domicí lio num instante. — A partir do mê s que vem, os salá rios correspondentes aos seus quatro filhos serã o depositados na sua conta bancá ria. Eu volto para casa e nã o digo nada. Só mais um mê s de espera. Nesse meio tempo, eu recebo uma correspondê ncia da Á frica. A pessoa que me envia a carta é analfabeta e nã o sabe ler francê s. Ela mandou algué m escrever e me diz muito explicitamente: — Você precisa parar de choramingar, você está em um paí s de leis. Até parece que nunca foi à escola! O que quer dizer: defenda-se com os meios legais do paí s. Se deixar os outros tratarem como um caso de famí lia, cada um vai tomar um partido, e você nã o vai sair dessa. A carta tem razã o. Essa histó ria ruim já durou demais. Depois da perda da minha filha, eu me voltei demais para mim mesma e as crianç as. Me protegi com uma espé cie de carapaç a na qual encerrei minha depressã o, para que nada pudesse atravessá -la e, nesses ú ltimos anos, cultivei minha infelicidade sem agir com os meios que a lei permite. E assim as coisas foram se deteriorando, nã o há mais ló gica, meu marido nã o pá ra de se queixar de minha suposta má conduta, minha mã e nã o o suporta mais, meu avô se sente ferido em seu orgulho... Errei em nã o tomar a ré dea das coisas mais cedo. Um divó rcio na Franç a, estou de acordo, mas devo sobretudo obter uma real anulaç ã o de meu casamento religioso. Sem isto, nã o estarei verdadeiramente liberada. Por outro lado, meu tio me aconselha a ir por um tempo para a Á frica. També m ele está cansado de me ver sofrer e é ainda mais claro: — A famí lia está de fato começ ando a nã o agü entar mais você s dois! Toda hora temos que intervir, acalmar as coisas entre você s. Você nã o quer mais que a gente se meta, nã o quer mais que a gente a defenda, disse que ia tomar as ré deas nas mã os, entã o faç a! Parta, recupere as forç as, discuta com a sua mã e. Eu vou aconselhar seu marido a deixá -la dispor dos salá rios-famí lia durante esse tempo para você organizar sua viagem. Concordo em partir, mas viajar com quatro crianç as, mais a estadia de dois ou trê s meses custa caro. A negociaç ã o entre meu marido e meu tio se passa sob meus olhos. A resposta é negativa: — Nã o vou lhe dar nada. Ela que se vire! Acaba cedendo depois de uma boa hora de discussã o. — Eu posso pagar as passagens, é tudo que posso fazer. Mas nã o vou lhe deixar nem um tostã o, nada dos salá rios-famí lia! Eu sabia que ele nã o cederia jamais em relaç ã o a este ponto. Meu tio nã o insiste, ele está aA par das minhas providê ncias, queria apenas colocá -lo à prova. — Entã o eu quero que você me jure que vai comprar passagens de ida e volta. — Está bem, está bem... Eu nã o falo nada, mas, pelo jeito dele, adivinho que nã o fará nada. O fim do mê s chega. No dia 10 do mê s seguinte, ele espera, como de costume, os salá rios-famí lia, que nã o chegam. Pelas razõ es que sabemos. Saboreio este triunfo em silê ncio. Vem o dia em que sei que ele necessariamente foi reclamar o que lhe é " devido". Na mesma noite, ao chegar do trabalho, ele faz sua prece habitual e eu o escuto me maldizer nas preces: — Deus faç a com que ela se envergonhe diante das pessoas. Ele sabe que o estou escutando, ele quer que eu responda à provocaç ã o. — Deus é justo. É minha ú nica resposta. Nã o tenho vontade de brigar, estou cansada. Mas, principalmente, nã o tenho medo. Nem dele nem dos outros. Dos que me acusam ainda de faltar ao respeito com o meu marido por ter exigido o dinheiro dos salá rios. Eu os mando ao diabo, neste momento; nã o argumento, mais uma vez, que a ló gica nã o passa perto deles. — Você me deu um litro de leite? Você me deu um quilo de aç ú car? Comprou sapatos para mim? Nã o. Entã o está falando do quê? No dia seguinte, eu telefono à minha mã e, que me diz estranhamente: — Está vamos justamente falando de você hoje, cheguei a dizer a sua irmã pra ligar para você. — O que aconteceu? — Seu marido telefonou para cá dizendo que você roubou o dinheiro da mulher dele. — Ele ousou dizer isto! — Podem dizer tudo de você, minha filha, que você é briguenta, que você é malcriada, mas roubar, eu nã o acredito que você seja capaz. Se você ficou com o dinheiro dessa mulher, devolva-lhe. Você pode ficar com o dinheiro dos seus filhos, mas nã o com o dela. — Eu juro a você que nã o toquei no dinheiro dela, e que jamais tive a intenç ã o de fazê -lo. É deplorá vel da parte dele mentir deste jeito, ele sabe perfeitamente que é mentira, ele recebeu o dinheiro com toda a certeza, como sempre, na conta dele! A discussã o era inevitá vel naquela noite. Fui obrigada a enfrentá -lo, já que ele jogara o veneno da dú vida na cabeç a da minha mã e, portanto de toda famí lia em Thiè s. Mas nã o fui eu quem começ ou. — Foi você quem foi ao departamento reclamar os salá rios-famí lia para você? — Sim, fui eu que fiz isso. — E o dinheiro da minha mulher! — Nã o a meta nesta histó ria, você sabe perfeitamente que eu nã o toquei nele. Levei socos nessa noite. Como em muitas outras noites, quando eu nã o queria saber dele na minha cama, embora fosse a minha vez de recebê -lo. Ele é mais forte do que eu fisicamente, nã o tinha como lutar contra o abuso conjugal. Eu tomo os socos com fatalismo, para mim tanto faz; preparo tranqü ilamente minha viagem para a Á frica. Ele nã o pode mais desistir da promessa feita a meu tio que, na ausê ncia de vovô, deté m a autoridade do patriarca. Uma bela manhã, quando a data de convocaç ã o para o tribunal se aproxima, eu recebo uma correspondê ncia do consulado do Senegal em Paris. A assistente social me convoca, pois meu marido pediu uma reconciliaç ã o, sempre a propó sito dos salá rios-famí lia! O nervo da guerra... Ele se apresenta acompanhado de um primo, que, no caso, també m é meu primo. No começ o, eu o tinha em boa conta por sua neutralidade na briga. Ele agora escolheu um campo, e nã o é o meu. Vejo-me sozinha diante da assistente social, eles sã o dois. — Portanto, você ficou com os salá rios-famí lia de seus filhos e dos filhos da segunda esposa... Ele nã o terminou a frase e as lá grimas me vieram aos olhos. — A senhora, por acaso, telefonou para saber o que se passou exatamente? Eu apanhei o dinheiro dos meus filhos, nã o nego, mas nada alé m disto! A senhora pode verificá -lo facilmente! Os dois homens nã o me deixam terminar e começ am a gritar comigo. É insuportá vel, eu me dou conta da mediocridade desta histó ria de dinheiro, da mediocridade do comportamento de meus compatriotas masculinos. Sinto vergonha por eles, e me sinto humilhada por continuar a ser acusada de roubo! Eu me levanto. — Senhora, por favor, nã o se exalte deste jeito! ‘ — Desculpe, nã o é por falta de respeito, mas nã o posso mais suportar este gê nero de acusaç ã o. Com licenç a. E fui-me embora. Restava o tribunal. O advogado havia me garantido que meu marido recebera a convocaç ã o, mas ele nã o me dissera nada. Fiquei sabendo mais tarde que seus amigos, sempre os mesmos, o haviam aconselhado a nã o se apresentar. — É a sua mulher! O tribunal francê s nã o pode fazer um divó rcio! Chega a data da minha partida e, felizmente, a da convocaç ã o está prevista para duas semanas antes. Ele foi comprar as passagens de aviã o sem me comunicar a data da partida, eu só fiquei sabendo uma semana antes. E, bem entendido, guarda os bilhetes com ele. Nó s nã o nos falamos mais. Eu me esforç o o má ximo possí vel para afastar as crianç as de uma nova discussã o; elas jantam comigo antes do pai chegar, à noite. Eu lhes explico o melhor que posso que esta guerra tem a ver só com os pais, jamais com os filhos. Os pais amam sempre os filhos, mesmo quando já nã o se entendem... Eu penso que eles compreendem, desde o tempo em que me viram doente, deprimida, infeliz; suponho que eles també m tenham vontade e necessidade de viver de outra maneira. Preparo minha bagagem para a viagem e, no dia marcado, chego ao tribunal, tremendo como uma folha. O advogado tinha me informado que a partir daquele dia eu poderia conseguir a separaç ã o de corpos, antes do divó rcio. Ele se esforç a agora para me tranqü ilizar: — Nã o se preocupe, se ele vier, tanto melhor; se ele nã o vier, é pior para ele. É certo que ele recebeu a convocaç ã o, e o juiz fará o trabalho com ou sem ele. O juiz constata efetivamente a ausê ncia do marido e, à vista do processo, decide uma ordem de separaç ã o. É uma mulher, ela nã o me fez muitas perguntas. Examinou os atestados mé dicos, e simplesmente perguntou se eu mantinha meu pedido. — Mais do que nunca, senhora. — Bem. O marido nã o terá mais o direito de pô r os pé s no seu apartamento, a senhora terá a guarda das crianç as, ele poderá vê -los em fins de semana alternados, e os dois dividirã o as fé rias... Nem sequer presto atenç ã o no resto: eu ganhei! A ordem nã o ia seguir imediatamente, em princí pio, mas, eu ignoro por qual milagre, o advogado a obté m muito depressa, e faz com que ela me seja entregue na pró pria manhã da minha partida. Era importante para mim ter esse papel, levá -lo para a Á frica e mostrá -lo aos meus pais. Esta viagem se parece com uma fuga. Ignoro até se voltarei um dia, tantas sã o as complicaç õ es que me aguardam ainda. Eu olho o meu quarto, a cama, o armá rio, tudo que eu comprei, me desgosta ter de deixar aqui meus pertences. Ele nã o quer que eu leve nem a televisã o. Acontece que, na Á frica, é um luxo que custa caro. — Já que nã o sei quando vou voltar, gostaria de levá -la, pelo menos para as crianç as. — Nã o. Eu vou antes de você. Levo as crianç as ao aeroporto, você pega um tá xi e nos encontra lá. Minha vizinha senegalesa que veio se despedir tem uma idé ia. — Atrá s da nossa casa há uma pequena fá brica, está cheia de caixas grandes, você ainda tem tempo. Corro para apanhar uma caixa, embalo o aparelho com algumas roupas e pulo dentro de um tá xi. Ao me ver chegar no balcã o de embarque com minha caixa, ele sorri ironicamente, mas nã o pode dizer mais nada. As bagagens sã o pesadas, a funcioná ria me pede os passaportes e as passagens. Foi ali, naquele balcã o, que eu me dei conta da ú ltima armadilha: ele só tinha comprado bilhetes de ida: — O que é isto? E ele me responde maldosamente, em soninké: — Pois é, você vai para a Á frica, e o que é que vai fazer lá? Os homens vã o entrar e sair da sua casa! Você vai ganhar um franco, mais um franco... Em outras palavras, lá você nã o vai ter nem salá rio nem salá rios-famí lia, só lhe resta trabalhar como puta, a um franco. Eu estava feliz demais nesse dia para responder a uma provocaç ã o, sobretudo no aeroporto. Ele nã o pensa nas crianç as nesse momento; está furioso e só quer saber de me punir, sem refletir sobre o mal que faz à s crianç as insultando a mã e delas. Desembarco em Dakar no fim de junho, na casa de meu pai. No primeiro dia, eu nã o digo nada; no dia seguinte, meu pai me interpela: — Você chegou ontem e nã o disse nada. Quais sã o seus pé s? A fó rmula, tradicionalmente utilizada em lí ngua wolof, quer dizer: Que mensagem trouxeram seus pé s? Eu explico, em resumo, a situaç ã o entre meu marido e eu, e sobretudo que eu nã o tenho a passagem de volta. — A Franç a nã o pertence a ningué m, minha filha, se o bom Deus quiser que você volte para a Franç a, você voltará. Tudo que ele falou, eu ouvi, mas nã o é grave. Nã o vi nos olhos de meu pai nem raiva, nem irritaç ã o, nem crí ticas. Ao contrá rio, ele me acolheu bem. Cheguei até a falar com sua terceira esposa, també m calmamente. — Nó s ouvimos tudo, sabemos tudo que está acontecendo lá. Até pessoas que você nã o conhece nos contam muitas coisas quando voltam para cá. Nã o pense que todo mundo está contra você. Nem todo mundo é cego. Sabemos a verdade, O que ele disse no aeroporto, que os homens entram e saem da sua casa por um franco, nó s ouvimos, minha filha. Ele, de fato, queria que eu fosse considerada uma puta por minha famí lia. Me desonrar era a ú ltima arma que lhe restava. Na minha casa, no entanto, ningué m acreditava. O excesso em tudo é um erro, ele exagerara, e mesmo os que o apoiavam até entã o sabiam que ele me acusava sem razã o. Fui cumprimentar a tia dele, depois a mã e, elas nã o me fizeram nenhuma crí tica. Tranqü ilizada, parti para Thiè s para ver a minha mã e, descansar finalmente. E um dia em que eu estava sentada debaixo da mangueira, logo depois da refeiç ã o, uma amiga de minha mã e, que estava passando algum tempo na casa, se levantou para receber um visitante desconhecido. — Fui eu quem o convidou. É um homem alto, de tez clara, um peul, carregando um grande bambu, com o foulard na cabeç a. Ela o recebe na sala durante alguns minutos e chama minha mã e. Depois é a minha vez. Eu entro na sala, sem saber o que me espera. É uma cena da Á frica profunda, tradicional. Diante daquelas duas mulheres, o homem se senta no chã o e me diz para sentar na frente dele. A mulher que o convidou me declara simplesmente: — Eu tinha que chamá -lo, era meu dever. Você é como minha pró pria filha; sua mã e é uma irmã para mim. Se a filha dela tem um problema, eu tenho també m. O problema faz mal a todas nó s, profundamente. E como você respeita e ama sua mã e, nó s nã o queremos que você afunde. Este homem é um amigo, ele me ajudou muito, ele conhece bem seu pró prio trabalho, e quero que ele veja seu futuro. O homem espalha areia no chã o; eu nunca tinha visto fazerem isto, escuto respeitosamente. — Você continua com dor na barriga, hein? — É verdade. — Vou lhe dar alguma coisa, plantas, para aliviá -la. Depois se dirige à minha mã e: — Ela veio porque tem problemas. Ela tem uma co-esposa. O casamento dela é uma verdadeira catá strofe. Ele me olha no rosto. — Para você, o casamento acabou. Seu coraç ã o nã o está mais nestecasamento há muito tempo. Mas eu posso lhe ajudar. Se quiser voltar para o casamento, farei rezas para você, para que tenha paz neste casamento, mas nã o poderei fazê -lo se você nã o quiser. Ele olha para minha mã e. — Se a senhora quiser, posso ajudar sua filha a fazê -lo. A senhora quer? — Só ela pode decidir. Só ela conhece " os percevejos da sua cama". A reaç ã o da minha mã e me libera de um enorme peso. Eu esperava que ela dissesse aquilo, embora muitas mã es tivessem dito: “Que ela volte para o casamento... ” Mas nã o, apesar da distâ ncia, ela compreendia e sentia meu sofrimento. Os percevejos da minha cama! Ela sabia que sua filhinha nã o fizera nada de mal. Naquele momento, eu nã o via mais nada, tudo estava fluido à minha volta. Como se estivesse dentro de uma nuvem, consegui responder: — Preciso muito que o senhor me ajude, que me dê plantas para minha barriga, mas eu nã o quero mais este casamento. Minha barriga me fazia sofrer havia vá rios anos; nenhum exame, nenhum raio X conseguia determinar a origem daquela dor. Eu a carrego desde sempre. E esse homem a vira na areia. De todo modo, eu estava aliviada: com a aprovaç ã o de minha mã e, podia reconstruir uma outra vida, com mais um pouco de paciê ncia. Minha mã e me disse ainda: — Quando as torneiras se fecham, que a sede nã o a faç a beber á gua com sabã o. Tenha coragem de agü entar até a abertura das torneiras. É um conselho de paciê ncia, pois seu apoio é apenas um começ o: — Se dizem que você come da bacia dos cachorros, deixe que digam, mas nem por isso lhes dê motivos. Era por causa da má reputaç ã o que meu marido tentara me atribuir, mas vinha acompanhado de uma advertê ncia: — Nó s acreditamos em você, você diz a verdade, nã o roubou, nã o é uma puta; faç a-nos a honra de nã o nos enganar. Fiquei na Á frica durante os trê s meses de fé rias, graç as aos salá rios-famí lia que eram depositados na minha conta todos os meses. Eu podia sustentar corretamente as crianç as, sem abusar da minha famí lia. Mas as fé rias estavam chegando ao fim, era preciso retornar. As crianç as tinham que estar presentes na volta à escola. Uma manhã, uma amiga me liga da Franç a: — Estou chegando da escola, a diretora me chamou para saber notí cias suas. Ela disse que as crianç as nã o estã o matriculadas para o pró ximo perí odo, que o pai delas foi lá para informar que elas nã o iam voltar mais! Mas nã o se preocupe, ela me confessou que nã o tinha considerado o que ele disse, por um tempo, pois esperava que você fosse voltar. — Confirme com ela, diga que guarde as vagas das crianç as! É muito importante. Estou fazendo tudo que posso para voltar, principalmente por causa das crianç as. Nã o sabia de onde viria o dinheiro para as passagens de volta, eu esperava um milagre e ele aconteceu. Eu estava de passagem na casa de uma meio-irmã, ela é professora e seu marido economista. Eu podia falar de tudo com eles. Meu irmã o mais velho chegou, com um envelope na mã o. Por respeito a meu cunhado, mais velho, ele lhe entregou o envelope. — Fui ao banco fazer um pequeno empré stimo para ela. Mesmo que ela ficasse aqui, por ser uma batalhadora, sei que ia se virar, mas seria catastró fico para os estudos das crianç as. Ela pode comprar os bilhetes de volta com este dinheiro e me devolver quando puder. É o futuro das crianç as que conta. Eu chorei. Meu irmã o mais velho fazia esse gesto mesmo com seu salá rio de jornalista, que nã o era tã o alto! Ele tomara um empré stimo pelos meus filhos! Toda aquela histó ria o indignara, inclusive a maneira como eu chegara ao paí s. Faç o as reservas em cima da hora: é a é poca em que todo mundo está voltando para a Franç a, e os aviõ es estã o lotados. Escrevo uma carta aos meus empregadores para avisá -los de que nã o poderei retomar o trabalho no Interservice Migrants antes de 10 de setembro em vez do dia 2, pois nã o consigo vô o antes daquela data. Infelizmente a carta nunca chegou, eu fui criticada por nã o ter avisado de meu atraso e perdi o emprego fixo de inté rprete nas PMI. Propuseram-me fazer substituiç õ es vez por outra, mas eu recusei, a histó ria da carta nã o recebida nã o me agradara. É possí vel que estivesse confirmando a acusaç ã o que me faziam com muita freqü ê ncia: de ser " malcriada". Durante as reuniõ es de formaç ã o, eu dizia bem alto o que as outras mulheres pensavam bem baixo. Por exemplo, no dia em que uma ginecologista, uma mulher branca, nos dissera: — Nã o compreendo a posiç ã o adotada por meus colegas franceses a propó sito da excisã o. É assé dio! Digo-lhe sempre para deixarem em paz os clitó ris das mulheres africanas. Como se nã o fosse grave! Ela incitava todas as inté rpretes africanas a nã o lutar contra essa bá rbara tradiç ã o. Mas nó s já é ramos um nú mero razoá vel a lutar contra isso. A informar, persuadir as mã es a renunciar. Alguns mé dicos ginecologistas se interessavam pela questã o, mas ela queria que " fossem deixados em paz os clitó ris das mulheres africanas"? Dei iní cio, pois, à s minhas " malcriaç õ es". Era o meu direito e o meu dever. Sob o pretexto de " proteç ã o cultural", aquela mulher se metia em um assunto que nã o conhecia. Gostaria de tê -la visto aos sete anos, com as pernas abertas diante de uma lâ mina de barbear! Nada disso me impediu de nã o ter mais trabalho ao chegar em Paris, no dia 9 de setembro. Nã o avisei ningué m; meu marido nã o esperava me rever. Mal digo bom-dia à co-esposa ao passar por ela. Provavelmente surpreendida, ela diz como uma boba: — Como vai sua famí lia? — Todo mundo vai bem. Abro a porta do meu quarto, as crianç as põ em as malas no chã o e eu a vejo pela janela sair com seu bebê nas costas para ir avisar meu marido por telefone. Meia hora mais tarde, ele se apresenta. Nem comentá rios nem perguntas. Diz bom-dia sem falar nada, como se nada tivesse acontecido. Eu voltei de fé rias! As crianç as estã o encantadas de rever o pai, o ambiente poderia ser normal. Vivi trê s meses com minha famí lia, mas na minha cabeç a só tenho o papel do juiz: nó s estamos separados. Como ele nã o se apresentou no tribunal, será que nã o ficou ciente de uma coisa importante? Meu corpo me pertence. Ele chama minha filha e lhe entrega uma nota de duzentos francos: — Vá entregar à sua mã e. — Vá devolver, nã o estou precisando. Diga-lhe que está tudo bem. Desta vez, ele vem em pessoa ao meu quarto. — Você nã o está precisando comprar coisas para as crianç as? — Nã o, obrigada. Ofereç a à s crianç as, se você quiser. Eu limpo o meu quarto, arrumo minhas coisas. Ele está espantado, tem vontade de fazer perguntas. Como consegui voltar? Ele nã o sabe. Ele nã o saberá. A escola recebe as crianç as de volta, no colé gio e no primá rio; quanto a isto, estou tranqü ila. Contudo, eu preciso encontrar trabalho. Disse a meu irmã o ao partir que eu ia me dar um prazo de trê s meses, de agora até dezembro, para me instalar em algum lugar com as crianç as; caso contrá rio, eu voltaria para o Senegal. Passaram, assim, os meses de setembro, outubro de novembro; trê s meses de um calvá rio horrí vel. Ele quer retomar a vida comum, uma vez que eu voltei. Recebeu os papé is do juiz, mas seus " conselheiros" habituais persistem em lhe lavar o cé rebro, com a pretensã o de que tudo vai se arranjar, que um divó rcio na Franç a nã o tem valor. E ele acredita, o desgraç ado! Tenho quase pena dele. Nã o sinto raiva, eu nã o o amo. Mesmo que ele se mostre violento e intratá vel, sinto apenas indiferenç a por ele desde o começ o. Dois dias depois da minha chegada, ele pretende dormir no meu quarto e vai chegando como se estivesse no dele. — O que está fazendo aqui? Houve separaç ã o de corpos, você recebeu os papé is! Aqui é o meu quarto. Você nã o entra neste cô modo! Parece que eu acabo de desencadear a nova guerra de 1914! Consigo rir alguns anos mais tarde, mas naquele momento, de jeito nenhum. Ele foi tomado por uma violê ncia inaudita. Diz que eu estou na casa dele e que, se eu estou na casa dele, sou sua mulher, portanto tenho que dormir com ele! Respondo que ele tem sua mulher no outro quarto e que tem que se contentar com ela. Que ele nã o cogite de vir para a minha cama! Cada noite é uma batalha de trincheiras. Em algumas ocasiõ es, consigo meus objetivos. Em outras, eu o largo na minha cama e vou dormir no sofá ou no chã o, mas ele nã o ganha. Nã o ganha mais de jeito nenhum. O assé dio é diá rio. Eu estou preparando a comida: — Nã o use mais meu gá s, já que você diz que nã o é mais minha mulher! Nã o dorme mais comigo, portanto nã o vai mais usar meu gá s! Nã o passa pela cabeç a dele que a comida que estou fazendo com o " gá s dele" é para seus filhos. Faç o uma retirada estraté gica. Eu trouxe da Á frica um pequeno fogareiro. Vou, pois, comprar carvã o de madeira para fazer um grili. Ele dá um pontapé e derruba tudo. Uma vez, terminei minha noite na portaria do pré dio, do lado de fora, com o rosto manchado de sangue, de tanto que ele me bateu. Nas primeiras vezes, fui à delegacia, com meu precioso documento de separaç ã o de corpos. O policial de serviç o me disse: — A senhora nã o está esfaqueada, nã o há urgê ncia. Volte amanhã, aí veremos. Nem sequer um boletim de ocorrê ncia. Eu me sentia de tal maneira ofendida e envergonhada que nem voltei no dia seguinte. Eu ruminava sozinha, na porta da delegacia: — Os homens sã o todos parecidos! Nã o vale a pena se queixar a menos que se tenha um olho arrancado! E a violê ncia pode continuar. As pessoas estã o pouco ligando! Era meia-noite. Eu chorava por ter precisado deixar as crianç as lá. Nã o podia ter feito de outro jeito. Quando os socos começ aram, apanhei minha bolsa, meu casaco, e disse à s crianç as para ficarem deitadas: — Nã o saiam daí, eu volto. Eu esperava que a polí cia fizesse alguma coisa ao ver a minha cabeç a e viesse pelo menos dar-lhe uma liç ã o, que me achasse um lugar onde eu pudesse me refugiar com as crianç as. Mas voltar no meio da noite, sozinha e sem socorro, depois do que tinha acontecido, eu nã o tinha coragem. Aguardei na portaria do pré dio espiando a hora no reló gio. À s cinco e meia fui para o metrô para me aquecer, entrei num trem. No fim da linha, eu mudava de lado para partir de novo no outro sentido. Fiz a linha Eglise de Pantin-Place d'Italie em cí rculo, duas ou trê s vezes. Esperei dar sete e meia da manhã para voltar para casa. Eu sabia que ele já teria saí do para o trabalho a essa hora. E dentro do metrô aquilo ficava revirando na minha cabeç a: a raiva, o ó dio, a impotê ncia. Como escapar? Como viver em outro lugar? Eu nã o via saí da. Sem trabalho, sem salá rio, sem casa. Era a engrenagem infernal. Acordei as crianç as, dei banho nelas, comida, e levei-as à escola. E o dia inteiro, como nos outros dias, procurei trabalho e um apartamento. Tornou-se uma obsessã o. Corro por toda parte. E, como nã o tenho mais dinheiro para pagar o advogado e prosseguir com o processo de divó rcio, solicito ajuda jurí dica. A urgê ncia de minha situaç ã o nã o abala a administraç ã o. Seis meses de espera antes de obter uma resposta. Paciê ncia. Tenho uma outra urgê ncia: trabalho e apartamento. Eu me recuso a cair em depressã o, isto nã o existe na Á frica. Vi inú meras mulheres deprimidas na Franç a afundarem lentamente e nã o mais saí rem. Vi mulheres africanas, no limite de suas forç as, descontroladas, e que foram tomadas por loucas. Nã o quero me ver entupida de remé dios, esgotada. Nã o é do meu feitio. Se fiquei deprimida depois da morte da minha filha, foi por um perí odo de luto obrigató rio. Eu superei, mesmo que nunca mais vá esquecer. Eu quero lutar, sair daqui com meus quatro filhos, ou voltar à s origens, para a minha famí lia. Prometi a mim mesma. Nunca mais serei ví tima, submissa ou passiva. Como se diz no Senegal: “Cultive sua terra; se ficar na cama, nã o vai ser o bom Deus que a cultivará. ”
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