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Integração
Vivo agora no quarto andar de um edifí cio parisiense. Em um pequeno apartamento, com quarto de dormir, sala e cozinha no canto, banheiro. É um pré dio antigo reformado. Nã o é um pardieiro, mas um universo exí guo onde a solidã o e a tristeza me fazem chorar sem parar. Meu marido, à é poca, chega a confessar a um primo: — Se ela continuar a chorar assim, mando de volta. Nã o devo ter chorado suficientemente. Ele sai todas as manhã s e volta à noite. Quase nã o o vejo. Durante mais de duas semanas, nã o tive coragem de descer até a rua. Durmo durante o dia ou passo meu tempo olhando pela janela, e vejo apenas pré dios por toda parte, uma regiã o cinzenta. Ele nã o me aprisionou, sou eu que me fecho porque nã o tenho nenhum lugar para ir, nã o conheç o nada desse novo mundo, nem ningué m. É possí vel que ele prefira que eu permaneç a assim, imó vel e passiva, que eu nã o evolua absolutamente. Ao final de duas semanas, eu deixo aquela prisã o, mas com ele, e para cumprimentar os homens da habitaç ã o onde ele viveu. Seis homens adultos confinados em um quartinho. Eles me acolhem paternalmente e me dã o conselhos, os ú nicos de que eles acham que devo me lembrar. — Você deve escutar bem seu marido, ele é o seu pai, ele é a sua mã e aqui na Franç a, foi ele que a trouxe. Deve obedecer a ele, pedir permissã o para tudo. Nã o saia sozinha, nã o fale com qualquer um... Na volta, meu marido parou para comprar carne, embaixo de nosso pré dio. A aç ougueira e seu marido, um casal de brancos já idosos que eu via pela primeira vez, me olharam com simpatia, sobretudo a senhora. — Ah, que ó timo! Você fala francê s, que ó timo! Porque ele nã o fala bem francê s. Assim, com você, pelo menos, podemos discutir, desç a para nos ver quando quiser, minha filha. Encorajada pela acolhida simpá tica, vou, efetivamente, de tempos em tempos fazer uma visita a essa aç ougueira e a seu marido, para falar um pouco. — Você deve estar se sentindo bem desambientada; com certeza está sentindo frio! Ela se esforç a para me animar, pois eu fico ali, sentada no banco da loja, olhando as pessoas passarem, sem uma vontade especial, inerte. Um dia ela me diz: — A propó sito, eu tinha esquecido, esta manhã uma senhora passou por aqui. Ela vem freqü entemente. Aliá s, ela sempre me cumprimenta, com muita gentileza... Na Á frica, você s sã o muito educados! É uma senegalesa como você, nã o mora longe daqui, e eu lhe falei de você. Quem sabe se com essa pessoa você fica menos triste... Ela é do mesmo paí s, fala a mesma lí ngua. Assim que eu encontrei essa mulher, uma hora mais tarde, me levantei do banco com um alí vio indescrití vel. Enfim, algué m que se parece comigo, uma mulher do meu paí s! E que fala soninké ! Uma irmã. — A partir de amanhã, você me espera na sua casa, eu venho buscá -la; vamos juntas ao mercado. Eu recupero uma certa energia. Me levanto muito cedo e, assim que meu marido parte para o trabalho, faç o rapidamente a arrumaç ã o, preparo o arroz, pois ele só gosta disso, e saio com essa senhora. Quando ela me apresentou a uma outra mulher de Dakar, eu fiquei realmente contente. Essas duas mulheres me serviram de guia e me apoiaram bastante. Depois, meu marido, por sua vez, me apresentou duas mulheres malianas, esposas de amigos seus. Vi pela primeira vez, na Franç a, esposas de um polí gamo. Elas preparavam a comida em moradias africanas e me propuseram ajudá -las, em vez de ficar completamente sozinha no meu canto. Eu tinha agora quatro relaç õ es amistosas com essas mulheres, das quais trê s trabalhavam, e eu acreditei que elas eram autô nomas. Bem depressa, no entanto, compreendi que as malianas entregavam boa parte de seu dinheiro aos maridos. Nó s trocamos o apartamento de Porte des Luas por um grande cô modo, de aluguel mais baixo, com uma cozinha e um banheiro. Em seguida, nova mudanç a em abril de 1976 para uma peç a ú nica ainda mais barata, infelizmente sem banheiro, que custava apenas cento e cinqü enta francos de aluguel mensal. Eu nã o tinha escolha e já estava grá vida trê s meses depois da minha chegada na Franç a. Consegui uma banheira onde podia me lavar com um balde d'á gua. No dia da mudanç a, na hora em que eu descia os sacos de lixo para o pá tio do edifí cio, uma voz me interpelou: — Você nã o pode dizer bom-dia? Era uma mulher francesa que morava no pré dio. Aparentemente, ela me vira chegar na vé spera e me cumprimentara, mas eu nã o havia respondido. — Desculpe, bom-dia, senhora. Acabo de encontrar minha mã e francesa! Ela tem aproximadamente a idade da minha mã e e se chama Nicole. Todas as manhã s daquela semana ela veio me cumprimentar, depois trouxe o marido, muito amá vel. — Se você precisar de alguma coisa, nã o hesite em me pedir. Eu estava espantada com o encontro e, sobretudo, com a gentileza. Nó s é ramos poucas mulheres africanas nessa é poca, e nunca, em nenhum momento, senti naquele bairro a mí nima rejeiç ã o, a mí nima sombrade racismo. Apenas um ligeiro espanto em Mme. Rosa, a ginecologista que acompanhava minha gravidez. — Nã o é possí vel! Mas você é tã o jovem! Uma verdadeira gazelinha! Eu era bastante madura, podia fazer comida, organizar uma casa, ficar grá vida, mas nã o refletia sobre nada alé m das minhas tarefas domé sticas e, fisicamente, eu era ainda uma crianç a. Suponho que, já na primeira ausculta de gravidez, ela tenha visto a cicatriz da excisã o, mas nã o fez nenhuma pergunta, pelo menos nã o a mim. Ela conversava com o meu marido depois de cada consulta, mas ele nã o me explicava nada. Durante todo esse tempo, aliá s, o diá logo com meu marido jamais foi instaurado. Nó s viví amos juntos, trocá vamos as palavras estritamente necessá rias, nada mais. Nem conversas nem confidê ncias. Ele era apenas meu primo, algué m que eu conhecia um pouco, um membro da famí lia com quem eu coabitava, e eu era incapaz de nutrir outros sentimentos por ele. Nem ó dio, nem ternura, nem amor. Nada alé m de uma indiferenç a triste. Vez por outra, eu recebia notí cias de minha famí lia, que era també m a dele; lia as cartas para ele, salvo certas correspondê ncias que ele levava para outras pessoas lerem para ele. Mas eu nã o ficava curiosa, era assunto dele. Eu nã o me queixava de nada à minha mã e, nem sequer lhe dissera que estava grá vida; ignorava se deveria ou nã o informá -la. Quando uma menina da minha idade fica grá vida, longe de casa, deve dizê -lo ou nã o? Eu nã o tinha mais referê ncias. Na Á frica, as mulheres da casa teriam se dado conta do meu estado, provavelmente antes de mim, e a questã o nã o seria colocada. Minha gravidez é bastante difí cil. Tenho ná useas, desejos, como mal, pouco habituada à comida europé ia. Sinto falta do milhete, do tiep (nosso prato nacional à base de arroz e peixe) e dos condimentos de minha infâ ncia. Um dia, como eu queria de qualquer jeito conseguir produtos africanos, meu marido me acompanhou até a loja de um merceeiro antilhano que vendia esse tipo de coisa, para comprar cuscuz. Eu vi nesse dia, pela primeira vez na minha vida, cair a neve, e escorreguei pesadamente sobre as costas. Eu ignorava, entã o, a palavra " neve", e escrevi à minha mã e: “Choveu gelo. ” Era triste, frio; felizmente, a pequena comunidade do pré dio era calorosa. Havia mamã e Nicole e seu marido, um casal de tunisianos, uma senhora de origem espanhola, uma outra francesa com duas filhas pequenas e uma velha dama que todo mundo chamava de Mé mé. Ela era idosa, sempre graciosa e maquilada, com um vestidinho branco. Sua janela dava para a entrada do pré dio. Mé mé via todos que entravam e saí am. Ela era aposentada e estava sempre alegre. Eu tinha achado uma avó, mas branca, que brincava e ria facilmente. Ela chamava meu marido de " Bamboula". Esta palavra desconhecida me fazia rir. Nicole me mostrou, entã o, livrinhos de sua juventude enfeitados com o anú ncio de Banania, uma marca francesa de chocolate em pó... Descobri as caricaturas que os brancos faziam da populaç ã o negra; para eles, nó s é ramos " Bamboula"; para nó s, eles eram toubabas, um nome nascido da colonizaç ã o. Para mim, os toubabas sã o uma etnia, a dos brancos; isto nã o é nem pejorativo nem desdenhoso, apenas um nome. Na é poca em que cheguei à Franç a, nã o havia nada de maldoso associado a esse termo. Aquelas pessoas nos respeitavam, eram gentis, nó s nos cumprimentá vamos corretamente, trocá vamos favores. Nicole ou Mé mé me chamavam pelo nome; eu podia ter pedido ajuda a elas, mas eu nã o pedia, embora elas percebessem claramente que eu tinha necessidade de ajuda para me adaptar e suportar a gravidez. Para elas, eu ainda era apenas uma crianç a; no meu paí s, eu já era uma mulher e dentro em breve uma mã e. Eu nã o pedia nada a ningué m naquele momento, devido a um pudor pró prio de minha educaç ã o, ou por orgulho, até desconfianç a pois mesmo que tivé ssemos a lí ngua francesa em comum, a cultura e as tradiç õ es de meus vizinhos eram bem diferentes. Uma avó como Mé mé, por exemplo, nã o teria jamais vivido sozinha, isolada na casa dela e sem filhos para ajudá -la. A solidariedade e o respeito sã o princí pios muito importantes entre nó s. Nã o poderí amos ver uma avó caminhar sozinha com seus embrulhos sem correr para ajudá -la. Foi uma das primeiras coisas que me chocou na Franç a, essa falta de apoio, de afeiç ã o e de respeito pelas pessoas idosas. Dizemos no nosso paí s que uma pessoa de idade deve sempre ter um filho por perto, simplesmente para lhe dar um copo d'á gua. Entã o, mesmo falando francê s com meus vizinhos, nã o falava de mim mesma, limitando-me à s banalidades. Eu contei um pouco da minha vida no Senegal, mas só muito mais tarde, à " mamã e Nicole". Durante meus ú ltimos meses de gravidez, ela sempre esteve presente. — Está precisando de alguma coisa? Eu vou fazer compras. Nicole fazia també m compras para Mé mé. Um dia, ela me trouxe um pacote de fraldas para o bebê. Coisas que tinham pertencido aos seus dois meninos. Como o mais velho tinha a minha idade, ela devia pensar que, se eu fosse filha dela, estaria brincando no pá tio ou na escola. Ela me deu toalhinhas, cobertores de crianç a. Explicou a meu marido o que era preciso comprar para o bebê. Cada vez que havia algum problema naquele velho edifí cio, eu chamava Franç ois, o marido dela, competente consertador, e ele descia na mesma hora com suas ferramentas para reparar uma torneira ou uma tomada elé trica; ele sabia fazer tudo. Eu tive sorte, chegando à Franç a, de topar com eles. O bom Deus nã o me abandonou ao tê -los colocado no meu caminho. Começ o de junho, eu nã o estava bem. As dores vinham e depois iam embora e, no final da semana, eu sofria de tal maneira que pedi para ser levada ao hospital. As enfermeiras e a parteira certamente acharam que eu era bem jovem, mas nã o se surpreenderam tanto assim. Começ avam a fazer os partos das mã es africanas ou magrebinas, e todas as mulheres imigradas que chegavam na Franç a nessa é poca eram, freqü entemente, tã o jovens quanto eu. As enfermeiras me acalentaram e, sobretudo, me levantaram o moral. — Nã o chore, vai correr tudo bem. Você vai ver, a equipe é excelente, tudo vai correr bem. Em um determinado momento, uma senhora veio me dizer: — Tenho uma boa notí cia para você, minha pequena, a pessoa que vai fazer o seu parto vem do Senegal. É uma francesa, ela tinha ido de fé rias para o Senegal e está retomando o serviç o dentro de uma hora. Você vai ver, sã o mã os que acabam de chegar do seu paí s, com o perfume de lá! Eu també m adoraria ir lá. Com tudo o que se vê na televisã o, dá vontade! Eu nã o podia lhe falar do meu paí s naquela hora, sentia muita dor, mas a idé ia de que as mã os que iam acolher meu filho vinham de lá me reconfortava. Eu dei à luz com muitas dificuldades, sofrimentos e rasgaduras, talvez por causa de minha pouca idade, ou da cicatriz da excisã o. Nessa é poca de minha pouca vida, eu ignorava as conseqü ê ncias daquela mutilaç ã o. Para mim, tudo era normal, sofrer era normal. Minha filha nasceu de oito meses e alguns dias. Quando a colocaram sobre minha barriga, eu caí em prantos. Queria tanto que minha mã e estivesse ali. Na Á frica, quando uma mulher dá à luz, a mã e ou a avó cuidam imediatamente do bebê e da mã e. Eu tinha dezesseis anos. Minha primeira filhinha, Mouna, me dava a esperanç a de uma vida melhor com meu marido. Ele a tomava nos braç os, ria com ela; era um bom pai, meus sentimentos por ele talvez pudessem mudar. Eu estava pronta para fazer um esforç o neste sentido e para seguir o conselho das avó s: aprender a amar meu marido. Esta esperanç a foi vã, eu nunca consegui. Mouna era um bebê bem comportado de dia, mas chorava muito à noite. Depois de uma semana no hospital, voltei para o pequeno apartamento. Os amigos, os primos, os tios do alojamento de emigrados vieram ver e rezar para o bebê ter uma vida longa, para a mã e ter muitos outros bebê s. Cada um trouxe uma pequena nota de dinheiro; segundo o grau de parentesco, no Senegal, as mulheres dã o aç ú car e sabã o. O sabã o para lavar as roupas do bebê todas as manhã s e o aç ú car para as refeiç õ es da mã e. Na Franç a, os brancos oferecem flores! As enfermeiras me ensinaram a amamentar, a dar banho e cuidar da crianç a: sem minha mã e, eu era uma jovem mã e perdida. Tradicionalmente, no nosso paí s, o batismo consiste em soprar o nome na orelha do bebê, no sé timo dia depois do nascimento; até entã o, ele nã o tem nome, nã o se faz isto aqui na Franç a. O que me espantou, pois, foi a obrigaç ã o de escolher o nome assim que nasce a crianç a, à s vezes bem antes. Eu ignorava que o registro civil francê s tivesse prioridade sobre nossas tradiç õ es. Os tios sopraram na orelha de Mouna, eu tentei cantar para ela, de noite, as canç õ es de ninar de que me lembrava. Massageei-a com manteiga de karité, como na minha terra. Dediquei a ela todo o amor que nã o conseguia sentir por seu pai, mas faltava a nó s duas o amor da famí lia. No meu paí s, a crianç a é rei, a mã e é mimada, todos cuidam dela, e o fato de ser mã e despertava em mim uma imensa saudade impossí vel de revelar. Contudo, eu tive sorte. Assim que cheguei ao apartamento, mamã e Nicole estava lá! Tinha preparado o berç o, arrumado tudo cuidadosamente, e todas as manhã s ela vinha me ajudar a dar banho em Mouna, me observando enquanto eu a massageava longamente. Os gestos das avó s me voltavam instintivamente. De todo modo, eu fazia o melhor que podia. Mamã e Nicole estava certamente chocada por me ver mã e de famí lia aos dezesseis anos, mas eu nã o me importava. Para mim, era natural. Uma menina da minha idade estava destinada a se tornar uma esposa e a procriar. Algumas de minhas primas tinham se casado aos doze anos, assim que apareceram as primeiras regras. Uma delas tinha se casado enquanto ainda era pú bere, simplesmente porque era alta e de forte compleiç ã o. Nó s nã o tí nhamos infâ ncia, nã o tí nhamos adolescê ncia, e eu nã o achava isso anormal. Alguns anos mais tarde, se algué m tivesse querido casar minha filha na mesma idade, eu teria lutado como uma leoa para impedir. Mas eu ainda tinha muito caminho a percorrer na minha cabecinha de adolescente, antes de me dar conta de que nem toda tradiç ã o é boa de ser mantida num mundo que evolui tã o rá pido. Quanto mais o bebê crescia, mais as visitas de Nicole se espaç avam. Ela havia me mostrado como fazer, eu devia agora me virar sozinha. E a saudade da minha infâ ncia voltou mais forte. Quando havia um bebezinho na nossa casa, as meninas ficavam olhando as avó s e as tias cuidarem. Nó s ficá vamos à disposiç ã o delas para ajudar, e aprendí amos juntas a dar banho numa crianç a. Eu ainda escuto a voz de minha tia: — Khady, me dê o sabã o, me dê a manteiga de karité. Eu nã o tenho ningué m a quem pedir, ningué m para me dizer: “para sua barriga, você deve comer isto ou aquilo, você deve esfregar o corpo com isto... ” Entã o, sozinha, fico sentada chorando. À s vezes durante meia hora, uma hora. Mas quando as amigas malianas vê m à minha casa, elas me fazem esquecer um pouco a solidã o. Moro num bairro muito humano, onde as pessoas estã o pró ximas umas das outras, mas certas coisas só podem ser compartilhadas com pessoas que conhecemos desde sempre: minha irmã, minha prima, minha mã e, sobretudo ela, me fazem muita falta. Nã o dá para lembrar, com as amigas recentes, de nossa vida de antigamente, de fatos que nã o foram vividos junto. Coisas insignificantes que fazem sorrir mais tarde: — Você se lembra disso ou daquilo? Minha irmã, por exemplo, ia sempre ao cinema, era faná tica por filmes indianos que duravam trê s ou quatro horas, e ela ia freqü entemente acompanhada da minha tia e de uma velha senhora que minha mã e acolhera em casa. À s vezes elas pediam permissã o para me levar. O cinema oferecia duas possibilidades: um local coberto, abrigado da chuva e do vento, e um outro a cé u aberto, muito mais barato, onde nó s corrí amos o risco de voltar encharcadas... À s vezes, havia casamentos e bailes. Eu me lembro de meu primeiro baile, para o qual tinha sido convidada na qualidade de colega de escola da irmã menor da noiva. Eu nã o tinha um grande bubu, e minha irmã tinha me emprestado um de cor í ndigo. Minha irmã era maní aca. Esperou muito " diplomaticamente" que eu estivesse na rua com minha colega para me gritar de longe " trate de nã o sujar o meu bubu, heim? " a fim de que todo mundo ficasse sabendo que ela me emprestara seu bubu! Durante toda a festa, eu fiz tudo para nã o sujá -lo; quase nã o comi de medo de voltar com uma mancha. Os meninos també m organizavam bailes e de vez em quando nó s é ramos convidadas. Mas as mã es do bairro surgiam à s oito da noite para nos levar de volta bem no momento em que o baile estava começ ando! E se, por azar, elas chegassem no momento em que as luzes estavam apagadas para um show, era o escâ ndalo, a catá strofe! Aí as avó s nos gritavam: — Meu Deus, você s viram essas meninas? No escuro, danç ando mú sica lenta, abraç adas aos meninos, apertadas, coladas, que vergonha! Meu Deus, que degradaç ã o! Elas nã o sã o mais virgens, com certeza! É o fim para elas! Eu me lembro de uma avó que foi até o meio da pista apanhar sua neta para extirpá -la daquele lugar de " luxú ria"! Outras diziam simplesmente: — Siga-me! Vamos voltar! Mas quando chegarmos em casa, você vai ver! Minha mã e repetia sempre, quando punia um filho: — Eu nã o vou correr atrá s de você, nem no pá tio nem no bairro onde todo mundo vai me ver, pensando: “ Deixe a crianç a, deixe! ” Você nã o dorme em casa? Eu vou achar você num momento ou noutro! E era verdade. Nó s brincá vamos o dia inteiro, esquecí amos o incidente, e à noite, quando já está vamos tranqü ilos dentro do quarto... encurralados, mamã e fazia um traç o imaginá rio com o dedo no cimento da escada. — Está vendo este traç o aí? Se o seu pé passar dele... Mamã e que nos lia o futuro dentro dos cauris. Muitas mulheres se servem dessas conchas brancas para anunciar a vinda de um prí ncipe encantado. Elas quebram doze cauris no pá tio da casa, à sombra das grandes á rvores, o chá é bebido e todas as meninas se aproximam, impacientes para saber. — Você... dentro de nã o muito tempo, algué m vai aparecer. Um casamento se anuncia. — Ah! Um bebê nã o vai tardar... Quem dentre você s se deixou seduzir? Tudo depende da posiç ã o das conchas, quando elas as atiram. Um cauri me disse um dia: — Você vai para longe. Você nã o é mais uma pessoa daqui. Vai atravessar o oceano pelos ares. Eu já estava casada, mas ainda ignorava que fosse partir. Quem sabia? O cauri, ou minha tia que o havia lanç ado? Assim, nos sá bados à tarde, as meninas sonhavam ao ritmo das horas, à sombra da mangueira. Eu també m tinha sonhado. E agora chorava a infâ ncia perdida, a adolescê ncia amputada. Eu chorava, sem confessar a mim mesma, pela ausê ncia do prí ncipe encantado. Um marido terno e atencioso, que nã o me teria forç ado, à noite, a suportar sua presenç a. Tornei a engravidar quando Mouna tinha apenas poucos meses. Devia parar de amamentá -la imediatamente. As relaç õ es sexuais eram uma fonte de conflito, e as brigas começ aram por aí, pois eu tentava sempre escapar. Eu queria que ele me deixasse em paz; mas, como eu nã o era diplomata e ele també m nã o, a paz nã o era possí vel. Os conselhos de tia Marie estavam bem distantes; eu tinha mesmo esquecido deles. Nessa é poca, eu me deitava com todas as minhas roupas, minha pequena canga e meu pijama. A cama era um perigo permanente para mim. Algumas vezes meu marido nã o criava caso e me deixava sossegada, mas em alguns momentos ele chegava a exigir. À s vezes era doloroso. Mas, em geral, eu me resignava, virando a cabeç a, imó vel como um pedaç o de madeira. Nunca participei de nada. Eu nã o queria e jamais quis. Para mim, o dever conjugal era um suplí cio que era preciso suportar. Eu era passiva e fatalista. Nem sequer me colocava a questã o de saber se todas as mulheres viviam a mesma coisa ou nã o. O amor de que falavam os filmes na televisã o nã o era para mim. Nã o havia caminhadas à noite ao luar, nã o havia passeios de automó vel, nem cinema, nem bailes. Essa gravidez se desenrolou sem muitos incidentes, pelo menos melhor do que a primeira. Minha mã e francesa me ajudou sempre. Como eu levava Mouna ao serviç o de proteç ã o materna e infantil, para as consultas ao pediatra, as enfermeiras logo começ aram a me pedir ajuda. — Você fala bem francê s, será que fala o dialeto da sra. Fulana? Minhas consultas na pediatria eram feitas agora ao mesmo tempo que as das outras mulheres africanas, para lhes servir de inté rprete. Deram-me també m um endereç o do centro social, onde havia cursos de alfabetizaç ã o, de costura, de culiná ria... Eu ia regularmente com meu bebê. E a mulher que dirigia o centro logo me disse: — Mas o que você está fazendo no meu curso? Eu preciso de você como inté rprete e nã o como aluna, você me ajuda a fazer a metade do curso! Seria melhor para você se tentasse fazer outra coisa que a ajudasse a progredir! Como eu gosto de costurar, segui uma formaç ã o nesse centro, continuando a servir de inté rprete voluntá ria. Pouco a pouco, fui adquirindo importâ ncia no seio das famí lias africanas. Eu me tornara a escritora pú blica; as pessoas me ditavam cartas, pá ginas e pá ginas para as famí lias; eu lia para elas as respostas. Começ ava a conhecer as histó rias de famí lia, cheguei até a escrever cartas nas quais um marido pedia que lhe dessem uma segunda esposa, a filha de Fulano no paí s... Recebia minhas amigas malianas, preparava o tiep e seus maridos se fartavam, ou entã o almô ndegas de milhete cozidas no vapor e amassadas no leite coalhado, que as mulheres adoravam. Prestava principalmente serviç os proporcionados por minha " cultura de alfabetizada": dentre as seis mulheres que conhecia, malianas ou senegalesas, eu era a ú nica que tivera a oportunidade de ir à escola, portanto a ú nica a dispor do privilé gio de saber ler e escrever. Mesmo os maridos eram analfabetos. Me vi encarregada de preencher folhas de reembolso de Seguro Social, de solicitaç õ es de salá rios-famí lia, de decifrar receitas, comprar remé dios com elas, mostrar a colherinha e a dose a utilizar para o bebê, a cor do comprimido que era preciso dar (rosa ao meio-dia ou azul à noite) e a acompanhá -las ao mé dico ou a outro lugar. Ajudando outras mulheres, eu mesma aprendia muitas coisas. De tempos em tempos, na sexta-feira, nó s í amos ao mercado juntas, onde eu també m servia de inté rprete. E, como eu tinha a oportunidade suplementar de ter mamã e Nicole perto de mim, ela me fazia quase esquecer minha tristeza e sofrimento interiores, e a ausê ncia de meus pais. Eu me fazia ú til sendo uma espé cie de lí der da pequena comunidade de africanos imigrados, a que compreendia os arcanos, o labirinto da administraç ã o francesa! E foi nesse momento, preenchendo os papé is para os maridos que iam ao Seguro Social, para os salá rios-famí lia e os abonos de gravidez, que eu comecei a compreender o funcionamento dos homens imigrados. Todas as questõ es entre os casais africanos tinham como causa a atribuiç ã o desses salá rios-famí lia. Era tudo em nome do homem e o homem recolhia o dinheiro. Eu ficava indignada que um homem tivesse a audá cia de embolsar um abono de gravidez ou os salá rios-famí lia dos filhos! Eu nã o conhecia esse tipo de problema, meu marido trazia o dinheiro para casa e nó s decidí amos o que í amos fazer. Freqü entemente, ele o depositava no banco para quando fosse precisar dele. Em outras famí lias, a mulher nã o sabia rigorosamente nada sobre o dinheiro que o marido recebia. Certas mulheres nem sequer tinham dez francos na mã o quando saí am. O marido ficava com tudo para ele, encarregando-se das compras ao seu bel-prazer, a mulher nã o podia sequer comprar iogurte para os filhos se ele nã o tivesse decidido. Essas mulheres nã o podiam comprar para elas sequer uma calcinha! Eu acreditava estar livre desse tipo de conflito, mas estava enganada. À é poca, eu freqü entava uma pequena loja onde já conhecia bastante gente e nã o segurava minha lí ngua quando estava longe de meu marido. No começ o, ele fazia as compras; agora, eu me virava muito bem sozinha. Pouco a pouco, fui construindo meu espaç o naquele novo mundo, e um dia, naquela loja onde í amos muitas vezes, uma mulher me propô s substituí -la por algum tempo no trabalho. Tratava-se de um pequeno serviç o de classificaç ã o de arquivos nos escritó rios de uma estaç ã o de trem, mas eu seria oficialmente paga, com um contracheque de verdade! O começ o da independê ncia... Portanto, trabalhei. Classificava conscienciosamente os relató rios, ano por ano. Nã o era nem interessante nem intelectual, mas era meu primeiro emprego de verdade. E quando tive na mã o meu primeiro recibo de pagamento, uma idé ia me veio imediatamente à mente. Ao partir para a Europa, eu tinha objetivos bem precisos na cabeç a. Já que a partida era inevitá vel, eu me prometera, se conseguisse os meios, fazer uma coisa importante para minha mã e e minhas irmã s. No Senegal, eu ia apanhar á gua a praticamente um quilô metro de casa, na torneira coletiva, e minhas irmã s també m. Havia muitos poç os antes dessas torneiras aparecerem em cada bairro. A á gua dos poç os servia para tudo, para tomar banho, para lavar roupa. Nunca tinha racionamento. Mas tirar á gua era difí cil. Eu fazia isso quando era adolescente. As cordas ralavam a mã o, o balde era pesado para suspender. E os encontros no poç o comum dentro do bairro eram objeto de brigas, bate-bocas entre as mulheres. Discutia-se, chegava-se a trocar tapas, sobretudo as mais jovens. Discussõ es idiotas do tipo: " Meu balde estava na frente do seu, por que você o botou por ú ltimo? " Era o pretexto, a faí sca que permitia acertar uma rixa antiga. Vovô e meu tio mandaram cavar um poç o, mais tarde, no pá tio da casa, e o trabalho da á gua ficou menos penoso. Restava a torneira coletiva, a um quilô metro, onde era preciso ir de qualquer forma, para trazer a á gua filtrada que servia para cozinhar. Eu queria livrar minhas irmã s dessetrabalho. Oferecer uma torneira à minha mã e! Uma torneira dentro da casa, ligada à rede do bairro! Um luxo! Com meu primeiro salá rio, foi o que eu fiz. Enviei na mesma hora o dinheiro pelo correio e telefonei para os vizinhos da minha mã e. Uma famí lia adorá vel, mestiç os, o pai beninense, a mã e francesa, e as crianç as branquinhas... Eles haviam me dado seu nú mero antes da minha partida, dizendo à minha mã e: “Ela poderá ligar para você s aqui quando quiser. ” Eu nã o telefonava com freqü ê ncia, pois a ligaç ã o era cara, mas, ao enviar a ordem de pagamento pelo correio, nã o resisti à vontade de falar com mamã e. Depois dos " bons-dias", as longas saudaç õ es habituais, as notí cias da neta, as minhas (por isso é que as ligaç õ es ficam tã o caras), eu lhe anunciei a novidade. — Mamã e, mandei um pouco de dinheiro, informe-se sobre como fazer para instalar uma torneira em casa. — Que o bom Deus lhe aumente... A prece de uma mã e é sempre a mesma quando ela recebe uma ajuda da filha. Por enquanto, Deus me dava apenas o suficiente para lhe oferecer uma torneira, mas era um começ o que eu tinha intenç ã o de melhorar. Quando a torneira foi instalada na casa, eu recebi uma carta de toda a famí lia, cada um me cumprimentando, e os cumprimentos na nossa famí lia tomam a metade da carta. Finalmente, notí cias interessantes: “A torneira chegou, nó s temos á gua. ” Eu havia repartido meu salá rio entre a torneira, minhas tias e meu avô. Um tanto para um, um tanto para os outros, e um tanto para a torneira. Uma semana mais tarde, a correspondê ncia de vovô dizia: “Bom-dia, a famí lia aqui vai bem, espero que você esteja bem. Graç as a Deus, recebi o dinheiro. Muito obrigado. Que Deus lhe dê vida longa e boa saú de, e lhe dê mais do que você tem hoje. ” Traduç ã o dessa bê nç ã o: se Deus nã o lhe der mais, você nã o poderá nos ajudar mais. Minhas irmã s menores me contaram que, assim que a torneira foi instalada, minha mã e, com sua generosidade habitual, convidou os vizinhos para admirá -la e para que cada um enchesse sua bacia. Meu pai protestou: — Você se dá conta do que está fazendo? No final do mê s, quem vai pagar a conta? — Deus é grande. Eu continuo a aprender costura, Nicole me ajuda sempre. E dou à luz uma segunda filha magní fica, Kiné, que pesa quase quatro quilos ao nascer. Desta vez eu fui ainda mais rasgada e sofri horrivelmente. Continuamos a viver em um cô modo, agora com dois berç os, uma cama de casal, um armá rio. Mouna tem apenas dez meses quando sua irmã chega. É nessa é poca que uma prima de minha famí lia chegou da aldeia, uma esposa da casta dos ferreiros. Ela vivia no subú rbio parisiense e vinha de tempos em tempos me ver. Era muito mais velha do que eu, mas nó s nos dá vamos muito bem. Em 1978, eu ainda nã o tenho dezenove anos, mas eis que fico grá vida pela terceira vez. Minha primeira filha nasceu em 1976, a segunda em 1977, e a terceira vai nascer em 1978. No centro de proteç ã o materna e infantil, uma mé dica francesa, pediatra, que eu conheç o bem agora, exclama: — Nã o é possí vel, você chega na Franç a e faz uma crianç a a cada ano! Mas como é que você vai se arranjar? E mais, ela nã o sabia em que condiç õ es eu vivia. Dois berç os, e logo trê s, a cama de casal no meio com uma cortina para nos separar! Na casa de vovô, ou dos meus pais, o conforto das mulheres e das crianç as era melhor organizado. Resultado, caio doente durante essa terceira gravidez e vou para o hospital. Estou freqü entemente doente nessa é poca, sofro de enxaquecas, mas os mé dicos nã o descobrem nada de diferente. Provavelmente, estou deprimida e esgotada, sem me dar conta. Normalmente, se estou hospitalizada, a assistente social me envia uma ajuda em domicí lio. Mas, dessa vez, a prima ferreira me propõ e levar as duas meninas para a casa dela. Mouna tem dois anos e Kiné dezoito meses. — Nã o se preocupe, eu vou cuidar das crianç as. Ela fica com elas durante quinze dias, e vem me ver no hospital por duas vezes, com meu marido e as meninas. Eu nã o suspeito de nada, as meninas estã o normais, sorridentes. No dia da minha saí da, ela vem me buscar com as crianç as e seu marido para me levar para casa. Fazemos uma refeiç ã o e, no final da tarde, ela me anuncia: — Eu purifiquei as crianç as porque elas sã o novas. Se esperá ssemos que fossem para a Á frica, elas estariam muito grandes, era melhor fazê -lo agora. A ú nica frase que encontrei para dizer a essa mulher: — Você fez isso? Eu nã o fiquei zangada. Nã o briguei com ela. Assumi a responsabilidade de seu ato porque essa pessoa, na qualidade de ferreira e pertencente à minha famí lia, tinha feito o que estimava ser seu dever. Para ela, isso nã o era um problema. A excisã o de minhas duas filhas, feita sob seus cuidados, pertencia ao â mbito de nossas relaç õ es familiares. Se tivesse decidido por mim mesma que a excisã o seria feita na Franç a, seria ela que eu chamaria, de todo modo, e naquele momento nã o pensava absolutamente naquilo. Eu esquecera minha pró pria excisã o. Nã o me dei conta, naquela é poca, de que, aceitando seguir a tradiç ã o, eu me mostrava tã o " bá rbara" quanto diziam de nó s os wolofs. À noite, tornei a pensar naquilo sem me importar, e no dia seguinte de manhã, ao limpar as crianç as, eu olhei. Já estava cicatrizado. Nessa é poca, como africana que sofreu a mesma " purificaç ã o", eu me disse simplesmente que, de qualquer forma, era preciso passar por aquilo. Se aquela mulher nã o tivesse feito, eu teria de fazê -lo mais tarde, na Á frica, e mais tarde, ela tinha razã o, a dor, assim como o traumatismo, teriam sido muito mais graves. Aquilo nã o reavivou nada em mim. E quando minha terceira filha, Abi, nasceu, em dezembro de 1978, eu aceitei, em plena consciê ncia, que a cortassem també m, quando o bebê mal completara um mê s. E, como todas as mã es, nã o pude olhar; saí para o corredor. Ouvi os gritos, desta vez, mas aparentemente a dor nã o teve nenhuma comparaç ã o com a que eu fora obrigada a suportar, aos sete anos. Depois eu quis participar dos cuidados, mas tive medo de tocá -la, de lhe causar mal, e foi aquela mulher que praticamente cuidou dela durante uma semana. Só comecei a me questionar, infelizmente, alguns meses mais tarde, em 1979, quando a imprensa publicou a morte de uma pequena maliana excisada na Franç a. A prima ferreira entã o me anunciou: — Minha filha, agora eu acho que nunca mais cortarei meninas, acabou-se! Ela nã o disse se julgava certo ou errado, disse simplesmente: — Nã o vou mais fazer. Deixou a Franç a definitivamente algum tempo mais tarde. Bastaria ter ouvido falar de excisã o na Franç a um pouco antes e minhas filhas nã o teriam sido ví timas dessa tradiç ã o. Mas, apesar das campanhas de informaç ã o, a " tradiç ã o" tem sempre suas raí zes. Durante uma viagem à Á frica, eu ouvi minha mã e dizer a propó sito das meninas que estavam lá de fé rias: — Será necessá rio cortar estas meninas! Meu irmã o cursava medicina na é poca, está vamos em 1989, e ele declarou severamente: — Mas nã o toquem na minha filha! Você s nã o vã o tocar nela! A primeira que tocar, eu mando para a prisã o. Ningué m na verdade reagiu, chegamos a brincar com aquela ameaç a de prisã o que nos pareceu fora de propó sito. Mas, estranhamente, as mã es nã o discutiram mais sobre Awa. Na ocasiã o de uma outra viagem, em 1999, fui até a aldeia da minha famí lia e cruzei na estrada com aquela mulher ferreira que havia excisado minhas filhas. Desta vez, ela me falou francamente: — Eu vi você na televisã o quando eu estava em Dakar, vi que você agoraestá lutando contra a excisã o. Eu nã o estou mais na Franç a, mas, se estivesse, estaria do seu lado. Compreendemos que isto nã o faz parte da religiã o, que é preciso parar. Mesmo nó s, na aldeia, sabemos que nã o é bom para a saú de, e que muitas de nossas mulheres ficam esté reis ou perdem crianç as no nascimento. Agora há associaç õ es que nos informam. A lei que proí be a excisã o no Senegal data de 1999. Eu nunca a odiei, nunca tive maus sentimentos a respeito dela; se algué m deve ser culpada, sou eu. Mesmo que eu deva pedir perdã o à s minhas filhas, está feito, nã o posso voltar atrá s. Ningué m na Franç a sabia, na é poca, que essa coisa existia, que era praticada regularmente, e que todas as meninas africanas, entre 1975 e 1982, foram excisadas. Pois foi apenas em 1982, depois da morte de uma menininha, e do processo de sua excisadora, que começ ou a verdadeira resistê ncia. Foi a é poca també m da criaç ã o do GAMS (Grupo para a aboliç ã o das mutilaç õ es sexuais), associaç ã o fundada por pediatras e mulheres africanas para fazer a prevenç ã o nos centros de proteç ã o materna e infantil. Vou fazer vinte anos em 1979. Começ o a refletir seriamente como adulta, mas ainda nã o pratico a militâ ncia. Tenho muita coisa a fazer, à espera de um dia ser a pró pria " militante de mim mesma". Eu nã o podia mais suportar aquela existê ncia, precisava de uma pausa, refletir, ter tempo para ser outra coisa que nã o um pedaç o de madeira numa cama a serviç o do marido; eu lhe disse que queria partir para o Senegal, ficar com minha famí lia por um tempo, e recuperar as forç as. Era isto ou o hospital. Ele nã o fez objeç ã o.
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