Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





Crescer. Uma pancada na cabeça



Crescer

 

       Vovó Fouley nã o existe mais. Seu rosto bondoso, seu jeito tranqü ilo nunca desapareceram da minha memó ria. É a imagem luminosa que me resta dela. Naquele dia cruel da excisã o, ela nã o me teria " salvo" da barbá rie, mas teria me consolado melhor do que ningué m, e me fez uma falta terrí vel. Durante aquela longa semana de sofrimento, deitada na esteira, dolorida, infeliz, humilhada, sonho com ela, vejo-a no seu grande bubu azul-celeste de flores brancas. Ela caminha com um passo seguro, confiante, firme, nem rá pido demais nem lento demais, salvo se estiver indo para os campos, pois é preciso se apressar antes que o sol esteja alto, e voltar de lá també m antes que ele arda no meio do dia. Se eu ando depressa, provavelmente é por causa da é poca em que a seguia.

       Para ir ao mercado, o passo é mais sereno, o cesto em cima da cabeç a está cheio de condimentos, de pasta de amendoim, de pó de gombô e pedaç os de papel bem dobrados, recuperados de sacos de cimento, para servir aos compradores.

       Vovó segura minha mã o, suas duas co-esposas a acompanham e eu corro a reboque desses trê s bubus. No mercado, as trê s mulheres se instalam na mesma fileira, cada uma diante de sua velha mesa de madeira, que elas cobrem com uma toalha de plá stico. Os lugares sã o reservados com antecedê ncia e se paga uma taxa todos os dias ao funcioná rio da comuna, que é chamado de " duty". Ele vem no final da manhã recolher sua receita.

       A cada dia uma taxa, quer se tenha vendido ou nã o a mercadoria. A tarifa é a mesma, salvo para as grandes mesas. Mas, para as mesas pequenas das minhas avó s, custa entre vinte e cinco e cinqü enta francos. Fico sentada em cima de um banquinho para olhá -las trabalhar.    De tempos em tempos, vovó vai ao banheiro ou comprar peixe quando foi pescado em quantidade, pois nesses dias ele é muito mais barato. Entã o eu orgulhosamente tomo seu lugar. Se passa algué m, devo antes de mais nada anunciar o preç o, depois receber o dinheiro e enfiá -lo debaixo da pequena toalha de plá stico. Eu vendo entã o os pequenos sachê s preparados por vovó, mas se algué m quer a pasta de amendoim, eu pergunto a uma das outras avó s antes de servi-la com uma colher, pois sou ainda muito pequena para estimar o preç o e o nú mero de colheres pedidas. Se uma das mulheres se ausenta e as mercadorias estã o ainda sobre a mesa, uma outra sempre se levantará para substituí -la e separar o dinheiro para ela. Na minha famí lia, nunca assisti a brigas graves entre as mulheres da casa de vovô. Elas vivem a poligamia tradicional sem conflito.

       Por volta do meio-dia, os pequenos sachê s nã o vendidos sã o arrumados dentro do cesto e a toalha de plá stico é cuidadosamente dobrada por cima, a mesa é virada com os pé s para o ar, o banco de lado, e vamos embora para voltar no dia seguinte. Minhas avó s nã o vã o ao mercado a nã o ser que haja um excesso de condimentos para vender, O produto das culturas é inicialmente destinado à alimentaç ã o da famí lia. Nã o se cultiva para vender, o objetivo é antes de tudo matar a pró pria fome. Portanto, só se vendem os condimentos e a pasta de amendoim; o milhete e o arroz nunca saem dos celeiros. Pode acontecer de nã o haver nada para ser vendido, mas nó s comemos sempre o suficiente para saciar nossa fome.

       Se os sacos de milhete e de arroz estiverem vazios, a solidariedade das mulheres do bairro, seja qual for a casta, mandingue, wolof, sé rè re ou ferreira, muç ulmana, cristã ou animista, jamais deixa de ser exercida. Ela é nossa forç a, como a de nossas famí lias, tradicionalmente unidas mesmo na imigraç ã o. E nessas famí lias, a crianç a pequena é rei. É preciso que haja muitas crianç as para garantir a velhice dos pais e avó s. Em nossa terra, com exceç ã o dos funcioná rios pú blicos, nã o há seguridade social, nem aposentadoria, nem RMI[2], todos tê m que se virar, tudo se reaproveita, predominam os pequenos comé rcios.

       Num dia de primavera, voltando do mercado, por volta de onze horas, vovó Fouley encheu seu balde no quarto dos fundos para ir tomar banho e partir para a mesquita, para a prece da sexta-feira; mas de repente caiu com toda forç a diante de mim. Estou sozinha ao lado dela. Grito e saio correndo para buscar ajuda, chorando:

       — Vovô! Vovó caiu! Rá pido!

       Vovô é muito alto, sobretudo para mim que mal tenho sete anos. Ele deve medir quase dois metros e sua forç a fí sica é impressionante.

       Ele a suspende de uma só vez e a conduz até a cama.

       — Pare de chorar e me dê um pano para cobri-la, e chame as tias.

       Todas as mulheres acorrem e eu vou me sentar junto dela.

       Nã o está desmaiada; ela fala, ela reza por mim.

       — Seja sempre corajosa na vida, que o bom Deus a ajude, que você tenha sua bê nç ã o...

       A voz ainda está clara, depois docemente vai se perdendo num murmú rio cada vez mais fraco. Os adultos acreditam primeiramente num simples mal-estar; o avô se esforç a para acalmá -la. Para tranqü ilizar as crianç as. Minhas duas primas chegaram à cabeceira dela e agora vovó reza para nó s trê s, as crianç as que ela educa, com uma voz quase inaudí vel.

       — Sejam sempre obedientes e respeitosas como você s sã o comigo; eu rezo para que fiquem sempre unidas, nã o dispersem a famí lia...

       E pouco a pouco sua voz se extinguiu e ela mergulhou num semicoma. As mulheres umedeciam sua testa com á gua fresca, massageavam suas pernas...

       Agora, toda a famí lia veí o para junto dela, velando-a, preparando pomadas, tudo que pudesse aliviá -la.

       Mas do quê? Por que ela caiu assim de repente aos cinqü enta e cinco anos? Jamais saberei.

       É uma sexta-feira. Ningué m pensou em levá -la imediatamente ao hospital. Os tratamentos, nessa é poca, e ainda em nossos dias no Senegal, sã o dificilmente acessí veis e muito caros. Mesmo assim, vovô mandou buscar o mé dico-chefe da regiã o de Thiè s (um tio da famí lia), mas nã o informou ao mensageiro a gravidade de seu estado, e o tio mé dico só chegou no final da tarde.

       Ele me pareceu muito descontente ao se dirigir respeitosamente ao vovô.

       — Desta vez eu a levo para o hospital, nã o vou lhe dar ouvidos!

       O pró prio vovô nunca ia ao hospital se lhe acontecia sentir-se mal. Sua pró pria resistê ncia, devida talvez a suas origens peuls e soninké , o enganava a respeito da fraqueza dos outros, e acho que entendi que vovó já tivera alertas de problemas de saú de anteriores. Eu teria gostado de acompanhá -la ao hospital e velá -la, mas as crianç as nã o podem, só as co-esposas estã o encarregadas de cuidar dela, lá no hospital. Quando uma pessoa é internada no hospital, é praxe que um membro de sua famí lia a assista para os cuidados.

       Sem minha avó, eu estava perdida. Nã o dormiria naquela noite.

       Na noite do sá bado, por volta das oito horas, as duas outras avó s gritaram, saindo do tá xi:

       — Fouley morreu!

       Estou diante da escada do quarto de vovó e esse grito ressoa na minha cabeç a para sempre. Via-me confrontada com a morte pela primeira vez na minha vida. Vovó Fouley era minha referê ncia; conhecia muito mal minha pró pria mã e, que me confiou muito cedo à guarda dela.

       Vovô voltou para o quarto sozinho; ia rezar por um longo momento, antes de tornar a sair para dizer à s mulheres que parassem de chorar.

       — Chorar nã o serve para nada, nã o é bom, as lá grimas derramadas sã o á gua quente que cai sobre o corpo dela. É melhor rezar por ela!

       Essa fó rmula tradicional, que eu escutava pela primeira vez, destina-se a acalmar as mulheres em lá grimas.

       É o vazio. A primeira injustiç a de que tomo consciê ncia. Por que ela? Por que ela vai embora? As avó s se dã o conta perfeitamente de meu desespero e do desespero de minhas primas, trê s meninas educadas por ela acabam de perder a proteç ã o de suas vidas. Elas se esforç am para nos consolar, sem grande resultado.

       Ontem seu quarto já estava vazio, e vai permanecer vazio. Só sinto isso, o vazio, que eu preencho sem sucesso com minhas lá grimas. No domingo de manhã, ela é trazida do hospital para casa, pois é preciso proceder muito depressa ao sepultamento.

       Na dé cada de 1960, nã o havia telefone: é preciso fazer uma lista dos parentes da famí lia para ser levada à rá dio nacional e ser transmitida no dia seguinte. Cada membro da famí lia deve ser informado da partida de um de nó s.

       No Senegal, ainda hoje se ouve regularmente esse tipo de anú ncio. Quer seja um ministro, um presidente, o diretor de alguma coisa, ou o camponê s mais pobre, cada indiví duo é importante quando desaparece, e toda a famí lia (ela é necessariamente numerosa nos vilarejos de origem) deve ser informada da triste notí cia.

       Eu já escutei, sem prestar muita atenç ã o, esses comunicados. Já vi passar procissõ es de enterro, até a mesquita, perto da casa de meu avô.

       Mas, com seis ou sete anos, a morte ainda é virtual; ela só diz respeito aos outros e nã o tem realidade.

       Desta vez é o nome de minha avó que ressoa nas rá dios para anunciar que Deus a chamou. Ouç o o anú ncio ao meio-dia, naquele sombrio domingo de primavera. Nã o irei mais aos campos com ela; ela nã o me carregará mais nas costas. Desde a idade de cinco ou seis anos ela me levava com ela, à s vezes em cima do asno do vovô, à s vezes nas costas. Eu tinha minha pequena ferramenta, a daba, para raspar a terra, arrancar as ervas daninhas que grudavam em volta dos pé s de amendoim. Mas eu ia principalmente me deitar debaixo de uma á rvore. Em um dos campos havia um cincho, em um outro uma espé cie de acá cia, em um outro ainda um neem, enorme, tã o grosso quanto um baobá mas de folhagem sempre verde, que dá frutos muito amargos, incomí veis. Utilizam-se essas folhas na decocç ã o para massagens, nos casos de cansaç o ou de febre. Eu corria em todos os sentidos pelo campo, descansava debaixo de uma á rvore, depois apanhava novamente minha ferramenta por cinco minutos.

       — Oh! Como estou cansada, vovó...

       Ela me carregava nos ombros até há pouco tempo e vovô lhe dizia:

       — Mas você é louca, esta menina tem sete anos!

       Um dia, por pouco nã o fui atropelada por uma bicicleta diante da porta de casa, e minha avó me carregou praticamente o dia inteiro. Todo mundo ria, até o vovô.

       — Se amanhã você tiver dor nas costas, nã o venha se queixar!

       As mulheres vestiram seu corpo com sete metros de teco branco. Foi transportada assim, sobre uma padiola, até a mesquita. Os homens ficam de pé, atrá s, para rezar. A famí lia apanha cangas, panos de cerimô nia tecidos à mã o, com os quais cobre em seguida o corpo para levá -lo até o cemité rio. Depois as cangas sã o retiradas para levá -la à terra.

       Vovô trouxe um pouco de areia da tumba e uma mulher nos diz:

       — Você s trê s vã o pô r esta areia nos seus baldes de á gua e esfregar o corpo com isso.

       Depois que tomamos banho com aquilo, nossas cabeç as sã o cobertas com as cangas que acompanharam vovó até o tú mulo. Explicaram-me mais tarde a razã o desse ritual: para que a dor se atenue, que os pesadelos nã o nos torturem, mas que a defunta nã o seja esquecida.

       A irmã da vovó, que vivia no Congo, nã o pô de assistir ao enterro e só chegou alguns dias mais tarde. O corpo nã o espera na Á frica, é preciso enterrar imediatamente. Vovô era muito rí gido a este respeito, nã o se podia ficar com os corpos em casa, nã o se devia fazer grandes e custosas cerimô nias durante dias inteiros, como certas famí lias, e sobre isto ele falava:

       — Você perde algué m e você perde a fortuna.

       Quando essa tia chegou, eu já estava matriculada na escola. Depois de algumas semanas, ela voltaria para o vilarejo com minhas duas primas, suas duas filhas. Para ela, era natural que eu fosse viver com elas; uma vez que era sua irmã que educava todas trê s, competia a ela tomar o seu lugar. Vovó Fouley começ ara nossa educaç ã o, competia à irmã dela, tradicionalmente, terminá -la.

       Naqueles tempos, desde a morte de minha avó, eu me refugiava com mais freqü ê ncia junto de minha pró pria mã e, do outro lado da rua. A situaç ã o era um pouco delicada, nem minha mã e nem meu pai podiam se recusar, diplomaticamente, a me confiar a essa tia. Entã o meu pai respondeu que eu já estava matriculada na escola para o mê s de setembro, mas que eu iria à casa dela nas pró ximas fé rias escolares.

       Penso que minha mã e queria que eu ficasse junto dela, assim como meu pai que, apesar de seu trabalho e suas ausê ncias, era um pai acolhedor. Como nã o podiam oficialmente dizer que nã o tinham a intenç ã o de deixar partir a filha deles, serviram-se educadamente da escola como pretexto.

       Minha mã e fazia absoluta questã o que seus filhos, meninos ou meninas, se instruí ssem, pois ela era analfabeta. O que me livrou de ir parar numa pequena aldeia a oitocentos quilô metros de Thiè s, na margem do rio Senegal, uma aldeia sem escola, e onde eu nã o conhecia ningué m, fora as duas primas e um irmã o mais moç o do meu avô, que vinha de tempos em tempos nos visitar em Thiè s.

       Eu tinha medo de ir para lá. Queria ficar dentro do cí rculo familiar, com meus pais. Avó Fouley partira, mas havia ainda a mã e de minha mã e. O clã das avó s era, pois, sempre só lido, e eu adorava també m o meu avô.

       Quando eu ia lhe pedir moedas para comprar bombons, ele nã o recusava, mesmo que sua resposta fosse:

       — Só uma moeda! E desapareç a! Só pensa em comprar bombons; você sabe como se ganha dinheiro? Daqui a pouco a comida vai chegar e se você comer bombons agora nã o vai comer ao meio-dia.

       Mas, de todo jeito, eu tinha a moeda. Mesmo que ele respondesse:

       — Espere, vai voltar para pedir daqui a pouco ou amanhã...

       Assim que obtinha aquela moeda, eu saí a de casa para correr à loja ou à casa de minhas tias que sempre tinham alguma coisa para vender: um pequeno sonho, salgado ou doce, ou entã o um pastelzinho recheado com peixe ou carne, de acordo com os dias. O comerciante me dava o que ele tinha de bombons ou um sonho que eu devorava imediatamente, refugiada no quarto de vovó Fouley. Se tinha outras crianç as pequenas comigo, eu partia o bombom em dois ou em trê s com uma pedra para poder dar a elas uma migalha! Com cinco centavos se podia comprar um ou dois bombons. Na estaç ã o das frutas, podia-se ter uma ou duas mangas.

       Se fosse uma laranja, ela era descascada e cortada em gomos para fazer a divisã o, mas, se fosse uma manga, ela era lavada e bem enxugada, chupada com pele e tudo e depois oferecida à crianç a seguinte, que a chupava por sua vez.

       — Ei! Veja se nã o chupa tudo, deixe um pouco...

       Uma crianç a de cada vez, a manga era chupada até o caroç o. Até ser lambida e nã o restar mais nada. Eu me lembro de vovó Fouley nos dando um tapa na nuca.

       — Chega, agora, vá jogar fora este caroç o, já basta... E vá lavar a boca e as mã os!

       Meu banco ficava aqui, nesta casa. Meu lugar simbó lico no cí rculo familiar. E vovó reinava em minha vida, cheia de amor; ela era muito importante para mim. Vestia-me ao seu gosto, me lavava, me penteava, desfazia minhas tranç as para ensaboar meus cabelos, desembaraç á -los e refazer as tranç as. Levava toda uma tarde refazendo aquelas tranç as.

       Lavava minhas roupas, passava-as. Eu estava sempre limpa e bem vestida, pois ela era muito minuciosa; tudo tinha que estar posto no lugar, dentro do grande quarto onde é ramos trê s a viver com ela. Havia duas camas de verdade com colchõ es de rá fia costurados à mã o. Eu dormia com ela e minhas duas primas juntas na outra cama. De manhã, ao acordar:

       — Vá lavar a boca, nã o se diz bom-dia antes de lavar a boca!

       A educaç ã o era rí gida, a limpeza indispensá vel, tanto quanto o respeito devido aos outros.

       Aquela vida com minhas duas primas no quarto de vovó Fouley acabara ali.

       Fiquei pouco tempo na casa de meu avô, dois ou trê s meses. Ocorreu um evento que iria me alertar a respeito de meu destino futuro.

       O casamento da mais velha, minha irmã grande. Ela é adolescente, ainda freqü enta a escola. Me parece que, no dia em que foi pedida em casamento, tinha ido justamente apanhar os resultados de seus exames, que ela realizara brilhantemente, aliá s. Quando voltou, anunciaram-lhe o casamento. Ela nã o quer e declara em alto e bom som. Mas nó s somos educadas para ser futuras esposas. As mulheres se levantam cedo e se deitam tarde. As meninas aprendem a cozinhar, ajudam as jovens mã es e obedecem ao patriarca da casa.

       Todas nó s amamos vovô; crianç a, a grande felicidade era comer com ele. Ele era muito aberto, terno, mas, assim que pronunciava uma palavra, todo mundo se calava. A submissã o estava sempre presente sob sua autoridade. Eu o temia, assim como minhas irmã s e minhas primas, pois, se fô ssemos excessivamente levadas, bastava que uma das mulheres fosse lhe contar para que a puniç ã o nos aguardasse. Vovô nunca corria atrá s de nó s, ele sabia perfeitamente que cedo ou tarde serí amos obrigadas a entrar no seu quarto e a palmada ia ocorrer.

       Vovô chamou minha irmã mais velha.

       — Venha me escrever uma carta!

       Era na realidade sua maneira de convocá -la para uma conversa sé ria. Ele tinha famí lia na Franç a, e ela servia de escrivã. Meus avó s e minha mã e eram analfabetos, meu pai lia o Alcorã o, sabia-o de cor, era um grande religioso, respeitoso e tolerante. Mas minha mã e e meu pai tiveram a sabedoria de nos mandar à escola; é ramos oito na fraternidade, e os oito estudaram. Alguns mais tempo do que outros, mas todo mundo alcanç ou o ní vel do certificado de giná sio. Só os meninos completaram o segundo grau; o limite para as meninas era o giná sio, está gio em que era urgente para os pais casá -las. Minha irmã mais velha acabara, pois, de obter seu diploma, queria continuar os estudos, nã o pensava em se casar.

       Entrando no quarto do avô, ela pensou ingenuamente que viera efetivamente escrever uma carta. Ele já preparara seu instrumento para corrigi-la: uma corda. Por que ela nã o queria se casar com aquele homem?  Nã o é permitido dizer nã o! Ele a surra severamente. Ela jamais mudou de opiniã o, disse sempre nã o e nã o. Entretanto, teve que se casar com um homem que nunca amou. Só ficaram casados dois anos, durante os quais ela teve uma filhinha. Esse marido era mais velho do que ela, já tinha uma primeira mulher e filhos. Fiquei com minha irmã em Dakar durante algum tempo. Nessa é poca, quando uma irmã se casava, uma das mais jovens a acompanhava para ajudá -la e lhe fazer companhia. A primeira esposa nã o era nem um pouco simpá tica com minha irmã.

       Eu brincava com seus filhos, mas nó s nos sentí amos mal dentro daquele apartamento funcional; o marido era funcioná rio pú blico. Nã o era uma casa como a nossa: nã o tinha quintal nem mangueira sob a qual descansar à sombra; eu ficava trancada. Para meu avô e meus pais, aquele casamento era uma questã o de famí lia, como sempre. Só nos casamos entre primos, por vezes muito pró ximos mesmo. A situaç ã o do marido nã o entra necessariamente em consideraç ã o; o essencial é que ele seja do mesmo sangue.

       Era a é poca das modificaç õ es. Minha mã e se mudou para um dos pré dios da estrada de ferro de Thiè s para onde tinha sido transferido meu pai e, tã o logo me juntei à minha irmã menor, irí amos passar a viver junto com a segunda mulher de meu pai, numa casa colonial muito grande, magní fica.

       Mamã e nã o se dava muito bem com essa segunda mulher, mas seu temperamento calmo e tranqü ilo nã o provocava conflitos. Os escritó rios da estrada de ferro nã o eram longe, tampouco a estaç ã o. Viví amos muito bem lá. Nosso pai estava presente com muita freqü ê ncia; ele podia brincar com as filhas. Havia bastante alegria. As horas sombrias que eu havia enfrentado, a morte da avó Fouley, a excisã o, me pareciam distantes. Contudo, eu sentia que minha mã e nã o estava feliz. Nã o está vamos muito longe da casa de vovô, doze ou quinze quilô metros, e í amos até lá a pé. Mas viver com uma co-esposa (em soninké , nó s a chamamos de " Té hiné " ) com a qual ela nã o simpatizava era difí cil.

       Compreendi nesse tempo que a poligamia era muito difí cil de suportar para algumas mulheres; algumas a aceitavam melhor do que outras. A segunda esposa talvez tivesse querido meu pai só para ela; certamente minha mã e també m. O exemplo de minhas avó s, que se entendiam harmoniosamente e consideravam nossa tribo de crianç as como suas, nã o me havia preparado para o que eu estava descobrindo. A tradiç ã o polí gama na Á frica teve sua razã o de ser; ainda tem, mais quem paga freqü entemente seu preç o? As mulheres.

       Um dia, minha irmã menor disse que estava sentindo dor de barriga. No espaç o de trê s dias, foi ficando cada vez mais doente. Ela estava, entã o, com dez anos. Como minha mã e tinha ido ao mercado, no terceiro dia, e como seu estado piorava, meu pai levou-a rapidamente ao mé dico. O hospital era do lado e, sendo meu pai um funcioná rio, tí nhamos direito ao tratamento.

       Assim que minha mã e retornou do mercado, depositou seu cesto, entrou no quarto e me perguntou na mesma hora:

       — Onde está sua irmã?

       — Eles foram levá -la ao hospital.

       Ela saiu correndo para encontrá -los. Quando chegou ao local, disseram-lhe que a crianç a tinha sido transferida para Dakar. Minha irmã zinha ficou lá um dia ou dois e morreu. Eu nã o sei do quê. Essa morte era uma morte a mais. Eu me pus a odiar as pessoas, culpando todo mundo por sua partida. Naquela grande casa colonial, nó s duas brincá vamos. Como nã o havia muito diá logo entre minha mã e e a segunda esposa, cada mulher agia de maneira que seus pró prios filhos ficassem no seu canto. Minha irmã zinha estava morta e a casa estava cheia de gente em prantos.

       Nã o havia mais jogos, nem gritos de alegria como no tempo em que, terminada a prece, ao pô r-do-sol, nó s saí amos as duas rindo para brincar do lado de fora. Eu estava sozinha do lado de fora.

       Uma tarde, minha mã e me disse:

       — Volte para o quarto, agora você nã o tem mais com quem brincar.

       A tristeza me invadiu. E a partir desse momento, comecei a me encerrar pouco a pouco dentro de mim mesma. A morte daquela crianç a era injusta. Doente trê s dias de uma febre misteriosa e foi-se embora! Por quê? O que acontecera? Nã o nos disseram nada. Em nossa casa, havia sempre essa fatalidade, esse tabu em torno das doenç as. Era terrí vel, perdia-se algué m sem saber do quê. Os adultos deveriam saber. O hospital sabia. Será que os mé dicos consideravam meus pais ignorantes demais para compreender e nã o davam explicaç õ es? Ignoro-o.

       Algum tempo mais tarde, nó s deixamos a bela casa colonial. Meu pai foi transferido de novo por causa de seu trabalho, para Dakar, e minha mã e voltou para a casa de sua famí lia, ao lado do pai.

       Mas o tempo da grande escola tinha chegado!

       No começ o do curso preparató rio, eu era uma aluna bastante atrapalhada e nã o compreendia muita coisa. Aprender francê s aos sete anos é um tanto duro.

       Nó s tí nhamos uma professora assustadora. Mesmo tendo esquecido seu nome, revejo seu rosto, suas roupas. Uma verdadeira senegalesa, imponente em seu bubu. Ela nã o era má, mas muito rí spida. Para punir, se nã o tivé ssemos aprendido a liç ã o, juntava suas duas unhas, o polegar e o indicador, e nos beliscava as orelhas até sair sangue. Ela jamais ria. Levava de tal maneira o ensino a sé rio que traumatizava muitas crianç as.

       Se chegá vamos, na segunda de manhã, com os cabelos soltos, a diretora da escola dizia:

       — Volte para casa. Quando os cabelos estiverem tranç ados, poderá voltar à s aulas.

       Os cabelos soltos, mesmo que bem penteados, nã o lhe convinham. Uma menina devia ter tranç as para estar correta. Era 1968, o giná sio ficava quase em frente da escola e eu me lembro da greve, das revoltas e dos conflitos entre ginasianos e policiais. Eles jogavam pedras que caí am quase dentro da escola; eu recebi uma pela janela e sangrei um pouquinho. Vi um policial cair e levar uma surra. Era uma revoluç ã o geral, e os ginasianos corriam e atiravam pedras para todo lado bradando slogans. Nã o compreendia nada do que se passava. Estavam pedindo o quê?

       Nã o sei. Na Europa, era maio de 1968!

       Quando tive um professor que se interessou mais por mim, eu realmente me liguei mais à s aulas até a entrada na sexta sé rie.

       Nos dois ú ltimos anos do curso mé dio eu me dediquei a fundo, graç as a esse professor maravilhoso, que tive de novo na sexta sé rie. Havia tantos alunos e tã o poucos professores que ele ensinava també m nas classes mais adiantadas. Cada vez que cruzava com a minha mã e, ele perguntava a ela:

       — Como vai a minha jovem?

       Ele me ensinou que brigar na escola nã o era importante, que eu nã o era um menino incompleto, mas sim uma menina. Eu briguei até a CM1. Os meninos implicavam comigo, sobretudo um deles, que queria me " extorquir". Ningué m usava esta expressã o na é poca, mas o sistema já era o mesmo.

       — Me dê isto!

       Um pedaç o de pã o ou um sonho, uma fruta, qualquer coisa era objeto de uma ameaç a se eu nã o cedesse, e eu nã o queria ceder. Argumentava com palavras; as disputas eram diá rias e minha mã e me dizia freqü entemente:

       — Se você for tã o valentona quanto ele, na classe, vai ser melhor para você!

       Um dia, para completar a chantagem, o menino me agrediu.

       — Hoje à tarde, na hora da saí da, vou arrebentar a sua cara.

       — Sim, eu quero ver!

       Eu nã o me mexi: se os meninos sabem que temos medo, vã o nos bater todos os dias. Mesmo com o pavor que eu sentia, eu tinha que fingir. Decidi nesse dia que seria a ú ltima briga, da qual sairia vencedora. Ignoro onde fui buscar essa forç a e essa determinaç ã o.

       Ele era muito mais corpulento e mais velho do que eu, embora fô ssemos da mesma classe.

       Disse a mim mesma: Tenho que encontrar uma forma para me livrar disso para sempre.

       Em casa, sempre havia uns preparados bem apimentados para temperar o arroz e as mangas verdes. Decidi levar um pouco comigo, me dizendo: Se ele me pegar e eu nã o tiver outra saí da, atiro isto nos olhos dele.

       Na saí da da escola, por volta das quatro e meia, seu grupo de meninos estava lá para me prevenir.

       — Ele vai massacrar você hoje. Vai matá -la, você vai ver.

       Mesmo tremendo como uma folha, nã o podia me esconder. Meu pequeno grupo de colegas estava com tanto pavor quanto eu. Nó s é ramos " valentonas", como dizia minha mã e, mas nada alé m disso.

       Ele preparava os punhos, saltitando em volta de mim, como um boxeur treinando. Eu mantinha minhas mã os à s costas, escondidas, sem dizer palavra. Ele continuava seu nú mero, saltitando em torno de mim e falando palavrõ es, mas eu mantinha a calma, sempre respondendo aos insultos.

       — Chegue aqui se você for homem, em vez de dar pulinhos na minha frente.

       E de repente eu abri minha caixa e lhe atirei o conteú do na cara.

       Felizmente, nã o caiu tanto assim dentro dos seus olhos, apenas um pouco. Mas a pimenta fez efeito: ele começ ou a gritar e uma mulher que morava em frente saiu para ver o que estava acontecendo. Ela lavou-lhe os olhos rapidamente, zangando um pouco comigo, interpelando o grupinho de meninos:

       — É bem feito para você s. Estã o sempre amolando as meninas; isto vai ensiná -los a deixá -las em paz. E você? Nã o sabe que esta menina, mais tarde, pode se tornar a mã e dos seus filhos? Você s as perseguem no caminho da escola, mesmo sendo elas suas futuras mulheres? As futuras mã es de seus filhos! É preciso respeitá -las! Se você nã o for respeitado pelas meninas, jamais terá mulher.

       Era a primeira vez que eu ouvia uma mulher fazer um sermã o aos meninos, falando do respeito devido à s meninas, e evidentemente eu estava orgulhosa. Mas o outro, envergonhado e furioso, nã o queria largar a presa.

       — Pode esperar, amanhã vou lhe quebrar a cara, você vai ver!

       — Pois para mim está tudo terminado!

       Optei por ir prevenir o professor, que me aconselhou informar també m os pais do meu perseguidor.

       — Assim, se ele tocar em você, eu o punirei, e os pais dele també m.

       Ao meio-dia, ao deixar a escola, fui ver a mã e dele, que me respondeu:

       — Obrigada, menina, vou castigá -lo, e nã o se preocupe, ele nã o fará mais isso com você.

       Quando ele voltou à escola, rosnou na minha cara:

       — Medrosa, mentirosa, você foi contar para os meus pais?

       — Só assim você me deixa em paz. Eu devia deixar você me bater e nã o dizer nada?

       Na é poca, um comportamento desses era importante. Os pais nã o gostavam de saber de confusõ es com outras crianç as, e os sermõ es ou os corretivos bem administrados surtiam efeito. A pimenta també m. Depois dessa ú ltima briga, ele ficou bem calmo e nó s nos tornamos muito amigos. Discutí amos e quando eu nã o compreendia nada de uma aula, eu lhe perguntava. Eu tinha entã o onze ou doze anos, um professor excelente e, com ele, me tornei pouco a pouco boa aluna e mais bem comportada. Mudei muito ao participar de um grupo de teatro. A peç a representada era um conto africano que se chamava em francê s Coumba qui a une mè re et Coumba qui n'a pas de mè re (Coumba que tem uma mã e e Coumba que nã o tem mã e).

       Todas as noites í amos ensaiar. Havia algumas moç as do meu bairro e rapazes. Nosso diretor de ensaio era o pai de uma de minhas melhores amigas na é poca e foi ele quem teve a idé ia. Era um objetivo, uma ocupaç ã o que nos dava importâ ncia e que nos empolgava. A peç a mostrava a maldade de uma madrasta. Coumba tinha uma mã e e a outra Coumba nã o tinha. A mulher obrigava-a a fazer todos os serviç os, enquanto sua filha nã o fazia nada. Era um pouco Cinderela à africana. Nó s ensaiamos durante meses essa peç a. Eu tinha pressa de representá -la. Fiz os dois papé is alternativamente e interpretei també m num outro espetá culo, feito de canç õ es á rabes, com tambores e danç as. Eu me dedicava a isso de todo coraç ã o. Começ amos a fazer representaç õ es em alguns locais da cidade. Terí amos chegado até o estrangeiro, na Mauritâ nia. Mas um drama familiar me impediu.

       Minha mã e estava grá vida nessa é poca e eu tinha treze anos. A hora chegara. Eu preparei a refeiç ã o, o arroz e tudo o que era preciso bem depressa e, por volta das catorze horas, terminara tudo o que tinha para fazer. Tinha a intenç ã o de sair, mas minha mã e me pediu para ficar.

       — Você nã o vai sair hoje, vai ficar cuidando da refeiç ã o da noite, nã o estou me sentindo muito bem.

       Eu digo sim, mesmo nã o tendo a intenç ã o de obedecer. Assim que ouvi os tantã s depois do banho, escapuli na companhia de uma amiga para ir ver os mú sicos. Quando voltei, o sol já se pusera, e minha mã e estava cansada.

       — Eu tinha lhe dito para nã o sair. Esperei você e fui obrigada a me encarregar do jantar em seu lugar.

       Ela saiu para fazer sua prece e, sentindo-se mal, caiu desmaiada. Já estava perdendo muito sangue quando foi levada ao hospital. Eu estava sentada diante da casa discutindo com as amigas quando uma ambulâ ncia passou correndo pela rua. Nada me dizia que era minha mã e que estava passando, bem na nossa frente, transportada com urgê ncia de Thiè s para Dakar. O bebê estava morto havia muito tempo dentro de sua barriga e foi preciso operá -la para tentar salvá -la. Ela ficou sendo reanimada durante quase quatro meses e nó s nã o podí amos vê -la; apenas meu pai a visitava. Nã o era minha culpa, mas ela tinha me dito para nã o sair e minha irmã mais velha censurava freqü entemente a minha vontade de brincar com as amigas que moravam em frente, na casa dos mandingues.

       — Você nã o terminou de lavar a louç a, varra o quintal, arrume isso, faç a isso, faç a aquilo...

       Tã o logo eu me eclipsava, dois minutos mais tarde ela vinha me procurar.

       Se eu falava de teatro:

       — Você nã o pensa mesmo, sua mã e no hospital e você quer fazer teatro!

       Eu me senti culpada de tudo, pois ela quase morreu. Quinze minutos de atraso na estrada de Dakar e eu nã o teria mais mã e. Fiquei com isso na cabeç a durante muito tempo, traumatizada por uma grave culpa de crianç a. A ponto de, um dia, quando ela já estava no hospital fazia dois meses e eu estava na casa de vovô e de repente escutarmos berros, acreditar que minha mã e tivesse morrido. Mas eram os de uma velha cujo filho acabara de xingar de imbecil durante uma discussã o.

       Naquele momento, era no que todos tinham acreditado, no entanto. Eu rezava todos os dias para que o bom Deus nã o a deixasse morrer no hospital. Meu pai estava sempre me tranqü ilizando.

       — Ela vai sair dessa, nã o se preocupe, Deus é grande.

       E meus tios, minhas tias, todo mundo no bairro dizia:

       — O fato de anunciarem sua morte sem que ela tenha morrido quer dizer que ela vai se salvar.

       Finalmente ela voltou para casa, com boa saú de. Eu ia começ ar a sexta sé rie no colé gio, quando uma correspondê ncia chegou da Franç a. Uma má notí cia. O pedido em casamento de um primo desconhecido, que era a ú ltima coisa que eu desejava aos treze anos e meio de idade.

 

Uma pancada na cabeç a

 

       Minha irmã, que foi pedida em casamento pela segunda vez quando mal acabara de se divorciar de um homem que ela nã o amava, ao final de dois anos, vive conosco junto com seu bebê. Na qualidade de mulher divorciada, ela tem o direito de recusar, e é o que ela faz, comunicando à minha mã e e à minha tia:

       — Este primo, que já encontrei em Dakar com sua primeira mulher, é um primo que vive na Franç a. Eu disse nã o e papai nã o insistiu.

       Meu pai sabe perfeitamente que uma mulher divorciada é livre para decidir o que quer. Ele nã o tem mais o poder de lhe impor um marido que ela nã o escolheu. Eu, em compensaç ã o...

       Alguns dias mais tarde, meu pai me chamou no quarto. Está sentado na cama, minha avó materna diante dele, e eu me instalo respeitosamente ao lado dela.

       — Khady, há um primo na Franç a que quer se casar com você; você está de acordo?

       Estranhamente, eu nã o disse nada. Na minha lembranç a, esta cena é um pouco irreal. Creio que nã o me dei conta do que estava sendo preparado para mim. E, de um modo ou de outro, a forma como tinha sido educada fazia com que nem sequer me ocorresse responder. O pai pede o “de acordo” de sua filha jovem apenas por formalidade; ele é religioso, tolerante, o Alcorã o lhe ensina que tem o dever de fazer a pergunta, mas de fazê -la por princí pio, nada esperando como resposta.

       É minha avó que replica em meu lugar sob a forma do prové rbio em soninke.

       — Mesmo que se trate de um buraco de serpente, ela entrará nele.

       — Muito bem, eu escutei.

       As moç as bem jovens da minha idade vã o à escola, claro, elas tê m o direito a atividades extracurriculares, o teatro para mim, por exemplo, mas a educaç ã o que recebemos à é poca supõ e que o objetivo principal de uma moç a seja encontrar um marido. E, bem entendido, um " primo". É o nosso destino. Portanto, é impensá vel dizer nã o.

       Meu pai fez seu dever, cumpriu a formalidade. A causa foi compreendida. Se, por acaso, ou entã o por simples revolta, eu tivesse dito nã o, teria gerado um problema familiar, seguido de deliberaç õ es e talvez o casamento nã o acontecesse. Mas nã o havia nenhuma garantia e eu nã o ousei abrir a boca.

       Eu nã o era mais uma crianç a, tampouco uma moç a feita, ainda ia me tornar uma, por menor que fosse o tempo que me deixassem viver a adolescê ncia. Fazia teatro com as amiguinhas, tinha flertes bem inocentes, do gê nero “a gente se cruza escondido ao voltar do mercado ou de outro lugar, trocamos sinais”. Ou entã o, ao visitar uma vizinha, nos olhamos e nos cumprimentamos. Eu olhava para os meninos como todas as meninas de minha idade, no meu bairro.

       As meninas se encontram todas as tardes na casa de uma ou de outra, bebem chá com os irmã os mais velhos e os amigos. Fomos todos criados juntos, meninos e meninas, sem que os irmã os mais velhos tivessem um poder ou uma autoridade especial sobre nó s. Só o patriarca e em seguida as mulheres dominam o pequeno rebanho de crianç as pelo qual sã o responsá veis. E o respeito é a regra. Os " flertes", na minha educaç ã o, sã o apenas trocas de olhares, nada mais. O sonho comum de todas as garotas na Á frica, como em outros lugares, continua sendo encontrar o prí ncipe encantado... Os irmã os tê m autoridade sobre os mais jovens, mas nã o sobre os mais velhos.

       Ai de mim! A partir do momento em que uma menina passa a menstruar e que seus seios se tornam visí veis, os pais acham que ela está pronta para ser casada. E eles desejam um marido o mais depressa possí vel, por medo que ela fique grá vida antes do casamento. Nã o consideram absolutamente a adolescê ncia como uma passagem necessá ria, da formaç ã o fí sica e intelectual de uma futura adulta. Eu ainda estou na escola, tenho apenas treze anos e pouco, e saio daquele quarto sem experimentar sentimentos particulares.

       De qualquer forma, quer eu diga sim ou nã o, será a mesma coisa, terei que aceitar. Minha irmã mais velha já pagou o preç o de um casamento forç ado: dois anos de vida em comum com um desconhecido que terminou até maltratando-a. Eu teria desejado, é claro, que o futuro marido nã o fosse um desconhecido; gostaria de ser cortejada, convidada para sair, ir ao cinema com meu amigo; o sonho de toda moç a. Mas, se questionamos o casamento com um primo desconhecido com outras mulheres, a resposta será sempre a mesma:

       — Vai amá -lo mais tarde!

       Enquanto aguardava, eu me perguntava: nã o teria sido por causa da recusa de minha irmã que o primo da Franç a optara por mim? Talvez até atendendo a uma proposta dos meus pais...

       A tradiç ã o manda que o homem que esteja longe peç a à sua famí lia uma moç a para se casar em seu paí s. No caso, trata-se de um primo-irmã o (um filho do irmã o de meu pai) que pediu ao tio para lhe encontrar uma esposa. Portanto, vou ser eu.

       Minha avó e eu deixamos o quarto, sem emoç ã o especial, como se nada de importante tivesse se passado, uma formalidade familiar apenas. Minha mã e está na cozinha com minha irmã, eu interrompi minhas ocupaç õ es domé sticas, que consistem nesse dia em varrer a casa. Nesse momento, nã o penso muito no caso. Quando as coisas adquirirem um tom mais sé rio, começ arei a refletir.

       Contudo, o caso da minha irmã deveria ter suscitado essa reflexã o, bem como o de uma prima que executara um feito escandaloso, mas extraordiná rio! Um senhor havia pedido sua irmã mais velha em casamento. E a irmã mais velha, na é poca, ousara dizer nã o e tinha feito as malas para ir viver na casa de uma tia. Os pais fizeram tudo para que a irmã mais nova substituí sse a maior no projeto de casamento. Só que ela nã o queria, pois tinha um namoradinho! Apesar da recusa, os pais organizaram uma grande cerimô nia; ela se viu casada oficialmente e nã o protestou mais. Mas, na noite de nú pcias, instalaram-na no quarto nupcial, como de costume, para a consumaç ã o da uniã o, antes de fazer entrar o marido. Ela esperou se

ver só e, antes que o marido se apresentasse para deflorá -la, saiu pela janela e fugiu!

       Nada disso me alertou, embora eu conhecesse perfeitamente a histó ria.

       Poré m, as " mã es" contavam esse gê nero de histó rias para que entrasse bem na nossa cabeç a, insistindo no fato de que as meninas que dizem nã o estã o necessariamente erradas.

       — Uma moç a que recusa o que os pais lhe propõ em vai cair necessariamente com um mau marido! Porque os pais sempre acham um bom marido! Nunca um ruim!

       Na minha idade, eu nã o tinha a capacidade de discernir a minha educaç ã o, a tradiç ã o e meus pró prios desejos. Todas as amiguinhas à minha volta aspiravam a se casar, acabei concluindo que eu seria a primeira...

       Alguns dias depois dessa " conversa" com meu pai, a resposta chegou a seu longí nquo sobrinho: ele tinha agora uma noiva prová vel. Paralelamente, meu pai teve que consultar seus irmã os que moravam na aldeia, pois nã o podia tomar sozinho a decisã o de casar a filha, precisava da concordâ ncia deles. O sistema patriarcal é feito assim e sã o eles que validam a escolha. Se um primo no vilarejo lhes parecer mais interessante, terã o que negociar. O que nã o ocorreu no meu caso.

       Minha avó materna e as mamã es estã o felizes, tê m finalmente alguma coisa em mã os, um casamento para preparar! A grande ocupaç ã o das mulheres! Já os homens celebrarã o o casamento na mesquita, entre eles, sem a presenç a dos interessados, que nã o é necessá ria. Os preparativos da cerimô nia que deve se seguir nã o lhes dizem respeito. Tomei conhecimento mais tarde, tarde demais, que minha mã e nã o aprovava esse casamento. Mas eu jamais ousei lhe fazer a pergunta, e nã o conhecia, portanto, suas razõ es. Talvez por temor de que os casamentos familiares, como o de sua filha mais velha, estivessem destinados ao fracasso.

       Minha mã e amou seu marido, me disseram, e isto era visí vel. Ela talvez sonhasse com a mesma coisa para suas filhas, mas em segredo. Algumas semanas mais tarde, uma outra carta chega, trazida por um mensageiro vindo especialmente de Dakar. A carta traduz a satisfaç ã o com a resposta dada e o mensageiro traz dinheiro para as bodas. É o costume. Neste ponto, as coisas sé rias começ am. As mamã es se reú nem; ignoro o que elas dizem no quarto. Nã o sou consultada. Sei apenas que o mensageiro veio, que ele é bem recebido e que as discussõ es sã o encetadas por seu intermé dio, O mensageiro é tradicionalmente uma pessoa da casta, especialmente encarregada de fazer a ligaç ã o entre a famí lia do futuro marido e a minha. Ningué m trata diretamente; sem esse intermediá rio, seria muito malvisto. Deve-se encontrar a famí lia do noivo, discutir o dote, depois trazer o dote. É bastante rá pido em geral, tudo depende das negociaç õ es. No meu caso, trata-se de um casamento familiar consentido e, sendo o primo sobrinho direto de meu pai, as negociaç õ es nã o levam muito tempo. Um belo dia, eu estava voltando tranqü ilamente da torneira coletiva, a dez minutos a pé de casa, com minha bacia cheia de á gua em cima da cabeç a e rindo com as amigas, despreocupada, quando me dei conta, entre duas idas e vindas à torneira, de que os primos de meu pai tinham chegado de Dakar para visitá -lo. Eu estava simplesmente encantada de ver a famí lia reunida e, sem desconfianç a, prossegui na minha tarefa de buscar á gua. A torneira coletiva é o lugar habitual de encontro das meninas. Há uma em cada bairro nessa é poca. Elas fazem uma fila, discutem à s vezes, mas també m riem, pois a tarefa é menos penosa do que antigamente, quando era necessá rio tirar á gua do poç o coletivo arranhando as mã os numa corda á spera para subir o balde... O inconveniente trazido pela modernidade da torneira comum é o gosto! O sabor, a doç ura nã o tê m nada de compará vel com os dos poç os de meu avô. E quando há escassez e, portanto, racionamento, os vendedores de á gua, mauritanos geralmente, se aproveitam para aumentar os preç os.

       Na terceira ida e volta, dou de cara com meu pai, que me diz para interromper meu trabalho e ir tomar banho e me vestir. Sem perguntar por quê, isto nã o se faz, recolho a bacia e obedeç o. Como a famí lia está com visitas, o pedido nada tem de inquietante. Minha mã e está, inclusive, preparando comida. Eu vou, entã o, tomar banho, me visto normalmente e, no momento em que estou saindo do quarto, minha avó materna aparece na soleira da porta.

       — Sente-se! E nã o saia daí!

       Dito isso, ela me deixa sozinha.

       Pela maneira com que ela me disse para eu nã o me mexer, eu soube que se passava algo importante. Meu pai, seus irmã os e seus primos estavam na mesquita para a prece de cinco horas, eu supus que eles devessem apenas estar falando de nú pcias. Mas, de repente, enquanto eu estava sentada ali, sozinha, uma amiga de minha irmã mais velha chegou correndo e me deu uma pancadinha na cabeç a!

       Manda a tradiç ã o que, quando uma moç a se casa na mesquita, as outras moç as se precipitem para lhe dar uma pancada na cabeç a. Pois a primeira será a pró xima a se casar. Nos filmes americanos, a recé m-casada atira um buquê que as solteiras disputam para agarrar. No meu paí s, é umapancadinha na cabeç a.

       E aí eu compreendi. Acabou, eles me casaram na mesquita. A pancada é o sinal.

       Eu fico ali, como uma idiota, muda, incapaz de reagir diante da evidê ncia de meu status. Os homens voltam da mesquita. Vê m todos me ver, me dizer que eu honro a minha famí lia aceitando esse casamento, que o bom Deus me recompensará, que eles rezam para que o casamento dure, que a uniã o seja pró spera, que haja muitos filhos, que o casamento seja feliz, e que nenhum mau espí rito venha perturbar essa uniã o...

       Em suma, todos dizem a mesma coisa, sem um afeto especial.

       É o ritual.

       Faç o parte das moç as bem educadas que nã o contestam. Minhas irmã s, minhas primas també m acorrem para me dar parabé ns. Minha irmã mais velha está ocupada na cozinha, ela nã o me disse nada de especial antes, nenhuma recomendaç ã o de cuidado. Afinal, eu nã o dissera nã o... Tudo estava normal.

       E a noite vai passando. Alguns minutos depois, os homens trazem da mesquita a noz-de-cola, uma pequena bola amarga que é distribuí da com um pouco de dinheiro a todas as mã es e tias. Minha mã e recebe, com suas irmã s, uma parte do dote, que elas vã o repartir com a famí lia, em dinheiro e em cola, para indicar que o casamento foi feito na mesquita. Mas que ele ainda nã o foi celebrado oficialmente pela famí lia. A organizaç ã o de uma cerimô nia daquelas de fato leva tempo, sendo o ritual numa mesquita uma mera formalidade entre homens de cada famí lia. Uns dizem:

       — Nó s pedimos a mã o de sua filha para Fulano.

       E os outros respondem:

       — Nó s lhe damos a mã o nas seguintes condiç õ es...

       As condiç õ es dependem das negociaç õ es previamente aceitas.

       Na mesquita, o casamento é concluí do pela palavra. Ele nã o tem registro, nada escrito. Ao menos naquela é poca. E os homens fazem o que querem, uma vez que a lei senegalesa nã o interfere na religiã o. A administraç ã o nã o intervé m, a nã o ser em caso de regularizaç ã o de estado civil. Muitas mulheres africanas, ainda hoje, permanecem nessa situaç ã o, sem outra forma de papel! Em nosso paí s, a mulher nã o muda de nome, fica com o dela. Caso se divorcie, a ruptura é declarada da mesma maneira pelos homens de sua famí lia. O marido precisa apenas dizer trê s vezes, diante de, no mí nimo, trê s testemunhas, que está acabado, e está acabado. O divó rcio é, portanto, aparentemente fá cil, mas se o marido se recusa a se pronunciar porque nã o quer que sua mulher o deixe, ou porque tem vontade de criar problema para ela, os pais serã o obrigados a decidir dizendo:

       — Fomos nó s que fizemos este casamento e nó s o desfazemos.

       Essa tradiç ã o de casamento habitual, no qual a moç a nã o é pessoalmente envolvida, é virtual e, por isso, eu tenho dificuldade em integrá -la na minha vida. Eu sou " casada" aos olhos dos outros, nã o aos meus! E continuo a viver normalmente, com a ú nica diferenç a que a vigilâ ncia passou a ser muito mais severa agora. Sobretudo por parte das avó s.

       — Nã o se aproxime mais de meninos! Nã o toque neles! Nã o fale mais com eles.

       Acontece que eu adorava ir à casa de uma de minhas tias, que só teve meninos. Eles tinham um primo que me agradava e eu o agradava. Minha avó materna sabia disso. Minha mã e nã o queria que eu saí sse à tarde. Mas eu sempre descobria um jeito de escapar. Eu era terrí vel, levada, embora nã o fizesse nada de mais. Era uma brincadeira, ir me encontrar com as amigas ou amigos e bater papo. Mas eu també m nã o era boba.

       Uma tarde, na casa dessa tia, enquanto nosso pequeno grupo discutia dentro do quarto dos meninos, eu ouví de repente uma voz dizer bom-dia à tia! Minha avó! Nã o vi nenhuma saí da, a nã o ser me esgueirar para debaixo da cama, e todos os meninos saí ram do quarto, bem sonsos, sob o olhar inquisidor da avó materna.

       — Khady está aí?

       — Ah, nã o! Ela nã o está.

       Vovó nã o nasceu ontem, ela sabia perfeitamente que os meninos estavam mentindo. Ela entrou no quarto e nã o me viu,  mas, infelizmente, eu devia estar respirando muito alto, pois suspendeu a colcha na mesma hora.

       — Saia já daí!

       — Nã o estou fazendo nada de errado, eu estava justamente falando com...

       — Vamos! Ande logo! Volte para casa. Você nã o é mais livre para fazer o que quer, nem para ir aonde quer. Agora, você está casada, tem que ficar quieta, dar-se ao respeito, nã o pode mais visitar meninos.

       Para mim, era totalmente inocente, embora houvesse també m um pouco de provocaç ã o. Era difí cil para mim, suponho, abandonar uma adolescê ncia que mal começ ara. Quando estava com minhas amigas, eu me esquecia completamente daquela histó ria de casamento. Mas a vovó tomava suas precauç õ es. Talvez porque, na famí lia, uma prima tenha tido um bebê fora do casamento. É uma desonra ficar grá vida de outra pessoa enquanto se está noiva.

       No mê s de agosto de 1974, quando eu me aproximava dos catorze anos, o mensageiro familiar apareceu novamente. Ele nã o vinha necessariamente falar de casamento, mas trazer novidades em geral. Ele era da casta dos sapateiros, fazia parte de nossa famí lia e quando vinha anunciar um falecimento, por exemplo, era ao patriarca que se dirigia, nunca à s mulheres nem aos tios jovens. Mas, naquele dia, nó s brincamos com ele, como de há bito, pois ele era muito simpá tico e gracejava facilmente.

       — Ah! O mensageiro, o que você está trazendo hoje? Esperamos que tenha boas notí cias para nó s. E principalmente, nada de mortes!

       Mas ele partiu diretamente para a casa do vovô. Quando há um visitante, nó s nos afastamos, nã o ficamos para escutar, portanto eu voltei a minhas ocupaç õ es. E, meia hora mais tarde, meu avô mandou chamar minha avó, minha mã e e uma tia, todas as mulheres da casa. Elas saí ram novamente de lá meia hora depois e, ao chegarem na casa de minha mã e, eu as vi discutindo entre si, com ar preocupado. Como sempre, ningué m se dirigiu a mim imediatamente, fico sabendo da " má " notí cia um pouco mais tarde.

       O prometido chegou da Franç a ontem à tarde, está em Dakar e o casamento deve ocorrer e ser consumado muito depressa, pois ele nã o dispõ e de muito tempo. Está aqui de fé rias por um mê s e, durante este mê s, ele deve se casar, ir ver a famí lia na aldeia, o que vai lhe tomar pelo menos dois dias de viagem... Em suma, o casamento está marcado para a quinta-feira seguinte, nó s estamos na segunda-feira. Há urgê ncia. As mulheres estã o descontentes.

       — Muito pouco tempo! Muito pouco tempo!

       No mí nimo, para elas, deveriam ter sido advertidas com dois ou trê s meses de antecedê ncia. Esta precipitaç ã o é uma espé cie de falta de respeito pelo trabalho que elas devem realizar. Organizar uma cerimô nia de casamento leva tempo. É preciso informar o resto da famí lia, preparar o enxoval. Felizmente, com relaç ã o ao enxoval, pode-se esperar, uma vez que é um homem que vem da Franç a e para lá volta; será apresentado mais tarde à famí lia, como é de praxe fazer. O enxoval de uma moç a consiste de uma variedade de utensí lios de cozinha, roupas, tecidos, cangas para mandar tecer, tingir e costurar à mã o, o que leva meses. No final das cerimô nias, o enxoval completo deve ser apresentado à famí lia do

noivo. Para um enxoval normal, era preciso contar, na é poca, com o equivalente a, no mí nimo, setecentos euros. É uma verdadeira fortuna para as famí lias. E muitas meninas trabalham anos para isso, O dinheiro dado pelo futuro marido contribui para ajudar, mas é també m distribuí do entre a famí lia; cada um ganha sua parte. Quanto a mim, o dinheiro tem uma intervenç ã o simbó lica.

       Meu pai sempre disse:

       — Eu nã o vendo minhas filhas.

       Quanto a meu avô, ele era ainda mais rí gido a esse respeito:

       — Nã o se desperdiç a dinheiro com futilidades, ele é muito difí cil de ganhar.

       Vovó me advertiu severamente das novas proibiç õ es.

       — Você nã o sai mais de casa a partir de agora. Faç a as coisas que tem que fazer, mas dentro da casa, nã o pode mais ir até lá fora.

       As amigas ainda vê m me ver, mas nã o há mais riso de verdade. Estou encerrada, trancada, e começ o a ficar nervosa. Me restam só quatro dias...

       Durante esses quatro dias, todas as tardes, minhas amigas vê m à minha casa; cantamos, danç amos, brincamos, falamos bobagens;  a maneira que elas tê m de me fazer compreender que nã o faç o mais parte do clã: eu pertenç o a um outro, o das mulheres casadas.

No terceiro dia, uma tia vem cumprir seu papel de verificadora simbó lica da minha virgindade.

       — Você tem absoluta certeza? Se nã o tem absoluta certeza me diga agora.

       — Eu tenho absoluta certeza.

       Em nosso paí s, a palavra conta. Nã o praticamos o tipo de inquisiç ã o temí vel e brutal que certas mulheres sofrem em outros lugares. Nenhum exame indecente, nenhum lenç ol ensangü entado brandido no dia seguinte das nú pcias como um trofé u no meio do vilarejo.

       Mas a virgindade continua sendo importante, a vigilâ ncia exercida comprova este fato. É preciso ser virgem, ponto final. Em alguns momentos, achei que minha mã e estava sendo exageradamente severa durante o noivado.

        — Está vendo este traç o? Se você passar dele, eu lhe corto a perna.

       Desde que eu tive a primeira menstruaç ã o, de todo modo, minha liberdade tinha sido limitada. Foi nesse perí odo que passei a ouvi-la regularmente me chamar a atenç ã o.

       — Você anda muito! Por que você anda? Uma moç a deve ficar em casa. Mas você está toda hora na casa de um ou na casa de outro.

       — Mas só vou à casa das minhas amigas e amigos de sempre!

       — Há horas em que uma mocinha nã o deve andar mais!

       Efetivamente, segundo a tradiç ã o, uma moç a nã o deve mais sair. Mas como, naquele bairro, era só atravessar a rua para entrar em uma ou outra casa das minhas amigas, eu nã o via nenhum mal nisso. Minha mã e també m nã o, mas, para ela, era uma questã o de princí pio, eu devia me conformar. E se uma de minhas amigas lhe era estranha:

       — Quem é esta aí? Você se dá com a cidade inteira. Eu, que cresci nesta cidade, que me casei nesta cidade, ningué m me conhece! Você anda todo o tempo!

       Eu andava demais, portanto conhecia todo o mundo, metia o meu nariz em toda parte. Isto nã o era bem visto.

       As mã es começ aram os preparativos. Encontrar as grandes panelas. Comprar arroz, milhete, carneiros. Os pró ximos da famí lia chegam pouco a pouco de Dakar e de outros lugares, e se instalam na casa para ajudar. Alguns foram alojados na grande casa de meu avô, quando nã o havia mais lugar na nossa casa. Os vizinhos da frente se encarregaram de alguns outros. Um formigueiro se instalou. As pessoas de casta de minha famí lia vã o lá todos os dias, de manhã bem cedo, para providenciar a comida daquele mundo de gente.

       E, na quinta, é a grande festa. Pela primeira vez eu tomo consciê ncia do que me acontece, e caio em prantos na frente das minhas amigas. Choro por muitas razõ es, misturadas, difusas; nã o porque vou deixar a minha famí lia, nã o se trata disto. O marido vai voltar para a Franç a, e eu nã o temo o afastamento, ao menos no momento...

       Choro sobretudo porque vovó Fouley, que me educou, nã o está mais aqui. Adoraria que ela estivesse presente do meu lado no dia do meu casamento, e feliz. Já faz sete anos que ela se foi, mas ela permaneceu ancorada em mim, e permanece ainda hoje. Eu lhe devo minha infâ ncia, minha educaç ã o. Recebi muito amor graç as a ela, ela me ensinou o respeito e a dignidade, a retidã o. Sinto muita saudade dela. Tenho medo.

       Eu nunca vi esse homem, ignoro que aspecto tem, que idade tem. Só me disseram que ele já tinha tido uma mulher e que se divorciara há alguns dias. Parece que essa mulher engravidou na ausê ncia dele, pois ele ficou anos sem vê -la no vilarejo. Este seria o motivo de seu divó rcio. Saber disto, no entanto, em nada me consola. E eu ainda estou chorando quando

minha tia volta. Está na hora de ir me depilar. Com uma lâ mina de barbear, a mesma horrí vel lâ mina de barbear de meus sete anos. Nã o existem produtos especiais, nenhuma cera, eu devo me arranjar com isto.

       A intenç ã o é dar ao homem uma mulher que seja virgem de tudo, limpa de tudo. Inteiramente purificada, inclusive da pelosidade que, desgraç adamente, orna suas axilas e seu ventre. As amigas estã o lá, as panelas estã o fervendo, o carneiro foi degolado. A casa está estourando de gente. Nã o tenho outra coisa a fazer a nã o ser me raspar.

       — Quer que eu ajude?

       — Obrigada, minha tia, eu faç o sozinha.

       Esta maldita lâ mina desperta lembranç as esquecidas. Mal ouso tocar certos locais. Eu tremo segurando esta lâ mina de barbear que me cortou. É uma lâ mina nua, diabó lica, e eu executo mal, o trabalho nã o fica bem feito de tanto que a minha mã o treme. Pouco importa, eu faç o o que posso. É impossí vel para mim pedir ajuda, é í ntimo demais, e bastante assustador, afinal.

‘      Do lado de fora, as mulheres cantam e danç am, enquanto eu experimento emoç õ es contraditó rias: sinto-me desconfortá vel, assustada e, ao mesmo tempo, ingê nua e inocente. Orgulhosa, naquele momento, porque vou me casar, e porque devo fazer tudo isso como uma grande, uma verdadeira mulher... Eu me acalmo, pois as mulheres nã o me dã o tempo para refletir, vindo a cada cinco minutos para me lisonjear, e o griot, membro da casta dos etas mú sicos, vem contar a bravura de meus ancestrais paternos e maternos... Estã o todos tã o orgulhosos que eu tenho a impressã o de que dariam todo o ouro que possuem, de tã o orgulhosos que estã o de mim.

       Em relaç ã o ao que me aguarda em seguida, proí bo-me de pensar, de deixar surgir a menor imagem de uma noite de nú pcias de que ignoro tudo. Como ignoro tudo a respeito do marido. Rezo para que seja um homem tranqü ilo, com quem eu possa vir a fazer uma porç ã o de coisas. Eu me pergunto se ele teria um carro, se vamos sair à noite, ir ao cinema, comer um chawarma, um sanduí che grego ou libans, tomar sorvete de casquinha. Quando somos crianç as, nas ruas, compramos sorvetes por cinco ou seis centavos; os verdadeiros sorvetes de

casquinha sã o muito caros. Talvez ele seja suficientemente generoso para que eu possa ajudar meus pais a viver melhor. Será que ele vai me oferecer dinheiro para eu comprar jó ias, roupas mais bonitas, sapatos mais bonitos? Tudo isso fazia parte de nossas conversas entre amigas, durante cerimô nias precedentes, onde ví amos as mã es magnificamente vestidas.

       — Viu o anel dela? Espero um dia ter um... Viu o bubu dela?... Espero um dia...

       Mocinhas, vestimos saias longas, cangas, com a parte de cima bem simples, mas nã o bubus como nossas mã es. Eu tinha jó ias de prata, que tinham sido de vovó, mas muito poucas, pois pertenç o a uma famí lia que, sem ser pobre, nã o é muito rica. Já as mã es usam jó ias de ouro, ganhadas depois do casamento ou herdadas de seus pais.

       Fechada no meu quarto com minhas amigas, uso agora sobre o cabelo um pequeno turbante branco. À tarde, uma mulher vem fazer as tranç as da noiva, cuja té cnica é precisa. Uma grande tranç a no alto, duas tranç as em volta do rosto, e duas outras na nuca. Durante esse tempo, os tantã s batem mais alto, as mã es danç am e cantam. Talvez para nos fazer esquecer o que vem em seguida.

       Depois do jantar, depois que todo mundo danç ou, cantou, comeu a noite inteira, por volta da meia-noite, uma hora da manhã, vã o me fazer ir ao encontro do marido no quarto nupcial.

       Ele está presente junto com os homens, sentado em algum lugar, mas eu ainda nã o o vi, e ningué m me diz quem é, pois nã o devo vê -lo antes do casamento. Nas aldeias, se acontece de uma noiva cruzar com o noivo antes da cerimô nia, ela é escondida na mesma hora. Ele també m nã o deve vê -la.

       De todo modo eu nã o posso mais sair deste quarto e pouco a pouco sinto um peso aumentar sobre meus ombros: dor de cabeç a, vontade de nada, nem de comer nem de beber. Dores por todo o corpo. Deve ser mais psicoló gico do que fí sico. É a angú stia do que me aguarda, da noite que se aproxima. Esta noite devo ter relaç õ es sexuais com esse homem. Espero que ele nã o seja um homem grosseiro. À s vezes, escutando as mã es, ouvimos falar de certos homens que nã o sã o delicados com as mulheres na primeira noite. Até hoje ningué m falou de uma noiva que nã o fosse virgem. Se aconteceu, sua famí lia manteve em segredo, sobretudo para o marido. À s vezes, falam de uma moç a virgem que ficou de cama e doente vá rios dias depois da noite de nú pcias. Eu sei que " aquilo" dó i. Eu sei que vou sangrar. E chegou a hora.

       As tias vê m me buscar no quarto e pedem à s minhas amigas para ir embora, pois elas precisam me preparar, dar conselhos que só interessam a mim.

       Os conselhos sã o relativamente simples: a utilizaç ã o de diferentes perfumes, o emprego de um balde novo para me lavar. Tudo é novo nesse dia. Cangas brancas, um bubu, um foulard e um vé u de gaze. Só vejo minha mã e raramente, ela está muito ocupada com os convidados. Veio verificar se as tranç as estavam bem-feitas, desapareceu no formigueiro familiar e, num certo momento, me lanç ou um olhar inquieto, quase amedrontado. No que estaria pensando? Eu sou, neste momento, como se diz em nosso paí s, " uma moç a que vai para o quarto" . Minha mã e talvez esteja achando que sou certamente forte fisicamente, mas jovem demais de cabeç a e deve, sobretudo, estar se perguntando: “será que ela é virgem? ”... Seja ela ou as outras mã es, todas temem sempre, até o ú ltimo minuto.

       Nenhuma mulher admite que uma moç a excisada possa ter problemas no momento das primeiras relaç õ es sexuais e mesmo mais tarde. Contudo, elas mesmas os experimentaram ou entã o algumas de suas filhas. Mas elas nã o falam disso. E eu nã o suspeito de nada. Elas me fazem sair do quarto com uma cerimô nia particular. Tomam-me pela mã o para me fazer caminhar até o centro do pá tio, cercada por duas mulheres, as outras seguem cantando, soltando gritos agudos e batendo as mã os.

       No meio do pá tio, elas me sentam sobre um grande pilã o que serve para triturar o milhete, e que foi virado ao contrá rio, O balde de á gua novo está do meu lado, com uma pequena cuia. Elas puseram plantas dentro da á gua, perfume, incenso ao lado. Retiram o pano da minha cabeç a, depois o bubu, e eu fico com o torso nu, só com a canga. Agora é a hora de preparar simbolicamente meu corpo para o " sacrifí cio". Elas derramam um pouco de á gua na minha cabeç a e cantam enquanto me esfregam a pele com essa á gua perfumada. Sou uma boneca em suas mã os, durante uns vinte minutos. Apó s o quê, eu posso vestir de novo os bubus novos, perfumados com incenso, brancos, sí mbolo de minha virgindade e da purificaç ã o de que sou objeto. Uma canga mais grossa, mais pesada, e eu tomo a direç ã o do quarto nupcial, com a cabeç a escondida sob um vé u.

       Como nã o há mais lugar dentro da casa nesse dia de cerimô nia, o quarto foi preparado do outro lado da rua, na casa de vizinhos mandingues. Uma pequena peç a estreita de paredes altas, cuja superfí cie do chã o nã o pode conter mais do que um ú nico colchã o, um lenç ol branco que o cobre e um mosquiteiro. A mulher que me acompanhou até ali me deixa sozinha.

       É possí vel que a partir desse momento meu cé rebro tenha ficado bloqueado. É como se eu me recusasse a me lembrar do que aconteceu naquele quarto. Eu sei que ele entrou, mas eu nã o quis olhar para ele, e nã o retirei o vé u. Ele apagou a ú nica lâ mpada de petró leo, é tudo de que me lembro. Acordei no dia seguinte de manhã, por volta de quatro horas, com o sol nascendo. Gritos e youyous diante da porta acabavam de me fazer sair do coma no qual mergulhara. O marido nã o estava mais lá; já tinha ido embora. As mã es estavam felizes, tinham o que queriam, e minhas amigas me disseram:

       — Meu Deus! Que grito você deu ontem à noite! Todo mundo escutou no bairro.

       Eu me lembro da dor naquele momento, mas nã o do meu grito. Era uma dor tã o violenta que me mergulhou no escuro. Nã o vi nada, nã o ouvi nada, ausente de minha pró pria vida durante trê s ou quatro horas.

       Eu comecei a odiar e me esforç o para ignorar definitivamente essa parte do meu corpo, cuja í ntima ferida nã o cicatrizará jamais.

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.