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Desconhecido



 

       Durante toda uma semana de isolamento, vou ficar sob a proteç ã o das tias dentro da casa de vovô. Elas tê m a incumbê ncia de mudar as cangas manchadas pelo horror da vé spera, de me alimentar levemente, pois eu devo permanecer " leve", eu ignoro o porquê, e de me ajudar a me lavar. Durante esse perí odo de casamento tradicional, a moç a deve permanecer com o vé u do casamento e nã o deixar o quarto nupcial durante oito dias. E o marido volta todas as noites. Fui instalada no antigo cô modo de vovó Fouley, transformado em quarto nupcial, com um colchã o no chã o, e começ o a chorar pensando nela. Talvez ela tivesse me protegido; nã o tivesse suportado que me casassem à forç a.

       Durante o dia, o quarto fica cheio de gente: minhas amigas me fazem companhia; à noite, o quarto se esvazia e o marido chega. À s vezes ele faz uma incursã o de dia, mas nã o fica muito tempo. Eu olho esse estranho com o canto do olho, furtivamente, sem nenhuma atraç ã o nem desejo de conhecê -lo. Ele tem quase vinte anos mais do que eu e, mais do que infeliz, estou decepcionada.

       Eu desejava e esperava um homem jovem, algué m que me correspondesse mais. No quarto dia, minha decepç ã o se agravou, pois amigos com quem eu fizera teatro vieram me visitar e ele criou um caso enorme. Rapazes, segundo ele, nã o tinham nada para fazer ali!

       Monsieur estava com ciú me? Quem sabe me amava... Eu diria, mais especificamente, que era possessivo e machã o. Uma das tias tentou acalmá -lo.

       — Pare com isso, está exagerando um pouco, sã o amigos dela, esses meninos vivem com ela neste bairro desde sempre, eles tê m o direito de vir cumprimentá -la!

       — É uma mulher casada! Esses meninos nã o tê m que entrar no quarto dela, nem se sentar perto dela!

       — Fique com seu ciú me para você! Neste caso, você nã o tem nenhuma razã o para sentir ciú me!

       Ele se dirigia à minha tia, sem me olhar, em lí ngua soninké, pois nã o falava wolof. Minha reaç ã o foi imediata.

       — Meus amigos tê m o direito de vir me ver!

       Era a primeira vez que eu lhe dirigia a palavra e ele nem sequer se virou para mim.

       No ú ltimo dia de reclusã o, todas as pessoas do bairro começ aram uma grande lavagem; era preciso lavar no mí nimo uma roupa, ou uma canga, por casa. Ignoro o significado desse costume, imagino que se trate, ainda, de uma forma de purificaç ã o. Algué m lavará meu espí rito ou minha alma?

       A cerimô nia chega ao fim nesse dia. Matam um boi ou um carneiro, depois me tiram do quarto para me vestir com um bubu especial, tecido à mã o, tingido de í ndigo. Eu me torno uma outra mulher, pois o marido possui, de fato e para sempre, sua mulher assim que ela torna a vestir o bubu simbó lico. Devo ir até ele diante de todo mundo, apertar-lhe a mã o e me ajoelhar diante dele como sinal de submissã o.

       Continuo a nã o sentir nada por esse homem desconhecido, a nã o ser medo e rancor pelo que ele me fez. Esse medo e esse rancor voltam todas as noites.

       Ele nã o soube me docilizar, compreender que eu era uma menina inocente a quem ele devia ensinar tudo. Nã o chegou a ser brutal, mas nã o tivemos nenhuma troca, nenhuma conversa, a nã o ser banalidades: “será que eu queria comer ou beber alguma coisa? ” Sua educaç ã o nã o lhe permitia docilizar uma mulher e considerá -la outra coisa alé m de um corpo deitado em cima de um colchã o. Contudo, ele vivia na Europa, mas num ambiente de homens imigrados do qual nunca saí a.

       Eu me resignei, pois de um jeito ou de outro nã o podia voltar atrá s. Adotei a indiferenç a, o ú nico sentimento de que era capaz. Como ele devia ir embora, era um momento que ia passar; o jeito era ter paciê ncia, fechar os olhos e apertar os dentes. Poré m alguns dias mais tarde ele me levou à prefeitura, pois precisava levar para a Franç a uma prova de seu casamento civil, supostamente para seu empregador. Eu nã o entendi perfeitamente na hora, mas ele estava mentindo: na realidade, queria se beneficiar do reajuntamento familiar.

       Viera se casar comigo com a idé ia de nã o me deixar no paí s! Como sua primeira mulher o enganara na aldeia, estava decidido a nã o ter que passar de novo pelo mesmo processo. Mas eu ignorava que ele tinha a intenç ã o de me fazer deixar minha famí lia.

       E assim partimos para a prefeitura. Eu me vesti como uma grande dama pela primeira vez: bubu branco e todas as minhas jó ias, que fez com que minhas amigas de classe rissem um bocado.

       Nunca mais me esquecerei daquele funcioná rio do registro civil! Se ele fosse branco, teria ficado cinza de desaprovaç ã o. Começ ou perguntando a data de nascimento da madame.

       — 1959.

       Ele permanece uns bons trê s segundos sem reagir, depois:

       — Repita, por favor.

       — 1959...

       — Lamento, senhor, ela nã o tem o direito de ser casada; ela nã o é maior.

       Nessa é poca, a maioridade no Senegal para o casamento das meninas era quinze anos, mais tarde passou para dezoito anos.

       Teria adorado pular no pescoç o dele, mas nã o podia! Meu marido está acompanhado de um intermediá rio que fala wolof, e insiste veementemente.

       — Pode-se fazer isso, sim!

       Mas o funcioná rio nã o tem a intenç ã o de deixar passar, ou mesmo de se corromper.

       — Nã o, nã o... ela nã o é maior, ela nã o pode se casar.

       — Mas ela já está casada com este senhor, ele precisa da certidã o para o casamento realizado aqui.

       — Lamento, ela nã o tem idade!

       Meu marido decidiu se servir da arma má gica na Á frica. Com uma nota tudo se arranja!

       — Bom, pergunte quanto ele quer.

       Traduç ã o diplomá tica do intermediá rio, metade em francê s, metade em wolof.

       — Nã o dá para resolver isso? Podemos fazer alguma coisa?

       — Nã o sei o que é preciso fazer para isso, senhor; tudo o que eu sei é que esta menina nã o pode se casar, pelo menos nã o na prefeitura. Nenhuma lei no Senegal a autorizará a receber uma certidã o de casamento. Ela nã o pode!

       Eu nã o tenho direito à palavra, nã o posso beijar aquele funcioná rio atravé s do guichê, nã o posso pular de alegria, de alí vio, mas, ao sair daquele cartó rio de registro civil, eu me senti segura. Aquele homem me devolveu a infâ ncia, me ajudou a compreender o quanto eu nã o estava pronta para o casamento.

       Meus pais ignoravam essa regra da maioridade aos quinze anos. Para eles, os casamentos civis nã o contavam, nã o havia muitos nessa é poca. Só contava a cerimô nia na mesquita. Meu marido está zangado, o intermediá rio també m, todo mundo está zangado, menos eu e o funcioná rio ofendido, que fez seu trabalho bem-feito.

       Evidentemente, na Á frica, há soluç õ es para tudo, sobretudo no ní vel administrativo. Sempre se acha o amigo de um primo, o tio do Fulano, que conhece um funcioná rio mais maleá vel em outro lugar...

       Continuo sem saber se vou partir um dia para a Franç a, mas logo no dia seguinte fomos até uma cidade do interior, onde, no final de quatro horas, me vejo casada duplamente contra minha vontade. Contudo, nada mudou alé m da data do casamento, evidentemente! Minha idade continuou oficialmente a mesma.

       Apó s uma curta viagem à aldeia natal de meu marido, portanto a mesma de meu pai, no vale de um rio, o marido vai retornar ao seu ambiente de imigrados na Franç a. Nos ú ltimos dias em Thiè s antes de sua partida, nó s brigamos praticamente uma vez por dia, por causa de detalhes que eu nã o podia suportar: meu irmã o mais velho nã o teria o direito de se deitar na minha cama para conversar e rir comigo.

       — Isto nã o se faz!

       Seu ciú me, sempre seu ciú me. Ele vai, aliá s, nos envenenar a vida.

       Este homem vive na Franç a desde a dé cada de 1960, mas nã o evoluiu, nem sequer procurou aprender a ler e escrever. Só pensou em trabalhar para trazer dinheiro, e nã o é o ú nico neste caso. É o objetivo da grande maioria dos imigrados dessa é poca e ainda hoje em dia. Mais tarde me darei conta de que as comunidades africanas imigradas, em Paris por exemplo, vivem num cí rculo fechado, e de que suas regras e sobretudo seu comportamento social estã o fortemente ligados ao dinheiro.

       Quanto ao seu casamento, meu marido conciliava todas as tradiç õ es. Casava-se no paí s com algué m da famí lia, uma soninké, originá ria de seu pró prio vilarejo. Divorciara-se de sua primeira esposa, da qual tinha vergonha, e se apressava para trazer para a Franç a uma menina bem jovem, recentemente deflorada que, segundo seus crité rios de imigrado, nã o lhe traria problemas de submissã o, recuperando, assim, seu status de macho e sua honra.

       Muitas vezes escutei esta frase da boca de homens imigrados:

       — Tive problemas com minha primeira esposa, por isso voltei ao paí s para me casar com uma menina!

       Eles acham que podem modelar uma garota segundo sua conveniê ncia, porque ela nã o tem a maturidade necessá ria para lhes resistir.

       Com treze anos e meio, eu estava perfeitamente dentro dessa categoria; salvo que ainda ia à escola: eu sabia ler e escrever, só faltava aprender a pensar. E també m ter paciê ncia.

Ele partiu e eu fiquei aliviada; podia começ ar a sexta sé rie, reencontrar meus colegas e me acreditar libertada do dever conjugal, que me provocava medo; alguma coisa em mim fora definitivamente bloqueada, que eu lamentarei por toda a minha vida. Pois tive a oportunidade de me aproximar de mulheres desabrochadas, felizes, cuja existê ncia nos fazia sonhar, minhas colegas e eu.

       Tia Marie! Extraordiná ria tia Marie! Eu tinha mais ou menos catorze anos quando ela se casou com um de meus tios. Ela é um turbilhã o de seduç ã o, um exemplo da mulher senegalesa independente.

       É uma grande comerciante. Viaja entre Dakar e Bamako para comprar e vender mercadorias. É o gê nero de mulher que pode fazer tudo por seu marido. Submissa, mas sob certas condiç õ es e com limites. Quando se casou com esse homem, já tinha tido dois maridos de quem se divorciara.

       Ela tem cerca de quarenta anos, é autô noma e independente. Mesmo casada com esse tio que ela adora e que a ama, conserva sua casa e é ele que vem vê -la. Ele tem duas outras mulheres, mas tia Marie vive a poligamia com tranqü ilidade pelo fato de nã o morar com elas. É um casamento de amor extraordiná rio.

       Quando o marido vai visitá -la, ela primeiro prepara um jantar de rei. O quarto é perfumado, há incenso em toda parte, os lenç ó is brilham de goma. Ela mesma prepara o incenso: uma mistura de grã os triturados macerados em á gua de lavanda. Acrescenta muitos perfumes provenientes da Ará bia, almí scar e outras plantas aromá ticas. As senegalesas fazem sua pró pria mistura de perfumes, e disputam entre si para obter a invenç ã o mais sutil e mais embriagadora. Tia Marie é da casta dos ferreiros, sem nenhum complexo, como as mulheres da casta dos griots e outras. É a grande diferenç a entre elas e a casta dos nobres. Em nossa casa, nã o se fala de sexo abertamente, ao contrá rio delas, que sã o livres a este respeito e se expressam com facilidade.

       Eu a escutava à s escondidas explicando à s meninas mais velhas como usar os perfumes, as pé rolas e os bubus, para seduzir um marido ou um homem que as cortejasse.

       — Na casa, tudo deve estar limpo e envolto em incenso, mas só na quantidade necessá ria. Jamais exagerar. E quando o homem chega, você o acolhe. Neste momento, sua atitude deve mudar. Seus olhos devem brilhar ao vê -lo. É preciso també m saber como servi-lo. Primeiro você o ajuda a se livrar das roupas. À mesa, você deve ficar junto dele. Se preparou peixe, é preciso retirar as espinhas. Se for carne, corte para ele. Se for galinha, separe os pedaç os do tamanho de sua boca. Quanto à s bebidas, você deve saber fazer misturas. O bissap (a flor do hibisco), o suco de " pã o-de-macaco" (fruto do baobá ), o tamarindo, o gengibre, prepare-os antecipadamente. É preciso acrescentar especiarias que lhes dê em um gosto especial: aç ú car, noz-moscada, gengibre, flor de laranjeira, extrato de banana, extrato de manga... Mas principalmente encontrar seu toque pessoal, como no caso do incenso.

       — Quando ele tiver terminado a refeiç ã o, nã o o deixe se deitar antes de você. Instale-se primeiro, de maneira a esperá -lo na cama. Ele deve compreender, ao chegar, que você está pronta para ele. Fique apenas com a sua pequena canga na cintura, e ela deve ser a mais bonita, e use sempre pé rolas em volta da cintura. As pé rolas servem para seduzir.

       — E entã o, depois que tudo tiver corrido bem, você poderá lhe pedir a lua: ele vai buscá -la para você!

       De tempos em tempos, à noite, nó s ví amos tia Marie passar, vestida como uma rainha deslumbrante, do lado do marido vestido com o mesmo tecido da mulher. Tia Marie sempre trazia de suas viagens soberbos tecidos para fazer para ele roupas que combinassem com as suas. Eles desciam de um tá xi para saudar minha mã e e iam ao cinema.

       O casal me fazia sonhar. Ela avanç ava com um passo soberano, no seu bubu fulgurante, o rosto negro como é bano, tã o bela em sua naturalidade, deixando no caminho um rastro de perfume de incenso inigualá vel. Mas tia Marie era també m uma mulher capaz de dizer ao marido, caso brigassem: " Tenho uma faca debaixo do meu travesseiro! " ou " Nã o quero ver você. "

       E as outras esposas sentiam raiva, pois nã o podiam concorrer com ela; nã o eram autô nomas, portanto estavam reduzidas à submissã o, ao passo que tia Marie era quem usava calç as no seu casamento. Um dia, durante uma festa, ela se aborreceu com o marido depois de uma discussã o qualquer (ela havia lhe dito: “Nã o quero ver você! ”). As outras esposas estavam presentes na festa, as pessoas danç avam, os tantã s tradicionais acompanhavam a danç a dos ferreiros e todos os homens corriam para a pista. Tia Marie, ao ver o marido se levantar para danç ar, observando as duas outras esposas no seu canto, avanç ou como sempre majestosamente, afastando as pessoas na passagem com seu bubu magní fico e, com um ú nico movimento, enlaç ou o marido para levá -lo para a danç a.

       Ela nos fazia rir muito. Algué m do meu lado disse:

       — Pelo menos esta mulher sabe o que quer.

       Eu adorava aquela mulher. Nã o me sentia absolutamente preparada para viver como ela e sabia que nã o poderia. Ela amava e era amada, alé m de possuir a liberdade de mulher da casta de ferreiros, esta era a grande diferenç a.

       O prazer fí sico, para uma mulher excisada, é possí vel; mas ela nunca fala disso, pois a educaç ã o que recebe lhe põ e na cabeç a, desde a mais tenra idade, que o prazer nã o é para ela. Nã o nos dizem isto de maneira tã o explí cita, apenas nos previnem pudicamente que nunca devemos dizer nã o ao marido, mesmo se estivermos doentes. Só nos dã o regras e deveres em relaç ã o ao marido: Escutar as palavras do marido, nã o ir aonde o marido nã o quer, nã o visitar amigas de que o marido nã o gosta, em todas as circunstâ ncias obedecer somente ao desejo dele, só ele tem o direito de desejar e, portanto, direito ao prazer.

       Lavam nosso cé rebro, impõ em-nos o peso de uma proibiç ã o vitalí cia: seu corpo nã o lhe pertence, sua alma nã o lhe pertence, seu prazer nã o lhe pertence. Nada lhe pertence. O local que podia nos oferecer essa sensaç ã o de desejo e depois de prazer nos foi retirado para impedir qualquer desejo sexual. E como a jovem esposa ainda crianç a cai em cima de um marido cuja educaç ã o, tradiç õ es, o impedem de evoluir, ele se satisfará com ela à guisa de objeto, só a levará em consideraç ã o pelos filhos que seu ventre vai lhe dar, sem se dar conta de que sua pró pria sexualidade de macho també m se torna triste e empobrecida, reduzida à descarga fí sica, sem prazer compartilhado. A ú nica chance de uma mulher excisada libertar-se dessa proibiç ã o, tanto fí sica quanto mental, é encontrar um homem atencioso, paciente, e, sobretudo, verdadeiramente apaixonado por ela e, ainda assim, ela nã o terá direito ao orgasmo, com o qual nem sequer poderá sonhar.

       Quando compreendi que ia partir para a Franç a para me encontrar com aquele desconhecido, é claro que nã o fiquei encantada. Se eu o tivesse amado, aquela partida teria sido mais fá cil de aceitar, mesmo que, na minha idade, ningué m deixe facilmente a famí lia, as colegas e seu paí s.

       Tinha esperanç a de que aquela viagem nã o se realizasse e vivi nessa esperanç a um ano inteiro.

       Tinha, portanto, catorze anos e meio quando o tio de meu marido, que morava em Dakar, me fez ir até lá para fazer um passaporte e as vacinas de praxe. Tive que abandonar a escola no primeiro trimestre depois do meu casamento. Para os pais, " a escola acabou"! Mesmo que os professores insistissem, a famí lia achava que nã o valia mais a pena, a filha tinha um futuro: seu marido. Inscreveram-me, enquanto aguardava, num curso de formaç ã o para a costura e o bordado.

       Felizmente para mim, eu me dedicara seriamente durante meus dois ú ltimos anos de escola, o que me permitiu dominar o francê s bastante bem, inclusive escrevê -lo. Meu marido alimentou em mim a falsa esperanç a de que eu poderia retomar a escola na Franç a e ter um diploma, promessa que ele se absteve de manter. Era a chave de minha independê ncia, pois tinha sido educada por mulheres independentes que, embora tradicionalmente submissas, jamais esperaram de seus maridos a garantia de sua sobrevivê ncia.

       Eu aprendi, entã o, costura, tricô e crochê, naquele centro de formaç ã o onde eu podia també m continuar a aperfeiç oar meu francê s.

       Em Dakar, o tio me fez tirar fotos, tomar vacinas, um passaporte. Eu partirei de aviã o e, enquanto aguardo, volto a Thiè s, o tempo exato de assistir à morte de minha avó materna. Ela, que dissera a meu pai que eu " entraria pelo buraco da serpente" , nos deixa, ví tima de uma doenç a que, mais uma vez, nada nos dizem sobre ela.

       Toda manhã, quando lhe dizí amos:

       — Vovó, bom dia, como vai a sua saú de?

       Ela respondia:

        — Me escutem bem! Eu sei que vou morrer, mas você s devem permanecer unidas, pró ximas umas das outras, e escutar suas mã es.

       Ela entrou no hospital para nã o mais sair. Vovó Aí satou presidira meu casamento e me deixava no exato momento em que eu ia ter que enfrentá -lo de perto. Ela nã o tinha mais do que uns sessenta e cinco anos.

       O mensageiro habitual chegou de Dakar no final das fé rias para anunciar que o passaporte estava pronto e que só está vamos esperando a passagem. Eu devia me aprontar para a partida. Nesse mê s de outubro de 1975, meu pai está na Costa do Marfim por alguns meses. Somente minha mã e e sua irmã me acompanham. Eu nã o dou pulos de alegria, sinto tristeza por deixar minha famí lia, a casa onde fui feliz, mas, ainda assim, quero partir, pois partir també m significa sustentar minha mã e. Meu objetivo é aprender um ofí cio, ter um salá rio para, como todas as outras moç as senegalesas, ajudar mamã e, dar a ela condiç õ es de vida melhores e realizar seu desejo de ir a Meca. É o sonho de toda crianç a senegalesa, se ela tiver meios um dia. Pequena, eu era mais pró xima de vovó Fouley, que me educava, do que de minha mã e; na adolescê ncia, comecei a admirá -la e a apreciá -la. E, sobretudo, a compreender os sofrimentos que ela vivera sem jamais demonstrar. Eu via nela uma grande dama; mesmo analfabeta, fizera tudo para nos educar. E cada vez que a escola nos pedia um dinheiro para um caderno, mesmo que tivesse que comprá -lo a cré dito, ela corria para buscá -lo. Ela se sacrificava por nó s, nada comprava para ela. Comida, roupas, cuidados: ela se encarregava de tudo.

       Durante trê s dias, ela preparou minha partida, comprou condimentos, temperos, tudo que eu podia levar para minha nova vida na Franç a.

       Estou agora no aeroporto de Dakar, diante deste aviã o, deste pá ssaro de ferro que contemplo de perto pela primeira vez. Devo subir nele e ele vai levantar vô o. Atravessarei os mares para chegar lá aonde vou. Será que vou conseguir? Será que este aviã o nã o vai cair no mar? Será que este pá ssaro nã o vai quebrar sua asa? Me disseram que precisava de um dia inteiro para chegar lá. Subo neste aviã o com uma verdadeira apreensã o e me instalo ao lado de uma outra moç a ainda mais assustada do que eu. O barulho, as portas que se fecham, os motores que ressoam... Eu me agarro no assento, crispada, com a impressã o de que minha ú ltima hora chegou.

       Eram cerca de duas horas da manhã quando o aviã o decolou e, ao ver as casas, o porto, o mar se apagar dentro das nuvens, eu chorei de verdade, copiosamente; compreendi que estava acabado, que era tarde demais para saltar, para escapar daquele futuro desconhecido.

       Muitas imagens me atravessaram o espí rito naquele momento, como um á lbum de fotografias da infâ ncia: a escola, os amigos e amigas, as avó s que partiram e seus carinhos, vovô que reza por mim enquanto eu deixo a casa, minha mã e e minha tia, no aeroporto, levantando a cabeç a para este aviã o que me leva embora, chorando certamente por me deixar partir sozinha e sem ajuda. Estava de fato sozinha. Aos catorze anos, eu ia me encarregar de uma casa desconhecida, de um homem desconhecido, em um paí s que eu nunca tinha visto a nã o ser na televisã o.

       Uma vez dentro das nuvens, uma senhora nos traz bandejas com refeiç ã o. A moç a do meu lado contempla a bandeja com um ar angustiado, sem tocar nela.

       — Você nã o vai comer?

       — Nã o, nã o tenho dinheiro para pagar.

       Imediatamente minha tristeza se dissipou e eu desatei a rir. Pelo menos meu tio me advertira de que eu podia comer no aviã o, pois a refeiç ã o estava incluí da no preç o da passagem. Para ela, ningué m havia dito.

       — Eu també m nã o tenho dinheiro, mas aqui nã o se paga nada.

       Como ela nã o tinha o ar convencido, eu faç o a pergunta à aeromoç a para tranqü ilizá -la. Finalmente ela compreendeu que podia comer.

       De qualquer modo nã o está vamos, de fato, com fome, todas duas tinham um nó na barriga. É uma moç a peul da minha idade, que vai se juntar ao marido, como eu, pela primeira vez: ela nem sequer o conhece. Nem uma nem outra sabem para onde vã o exatamente. O marido dela deve esperá -la no aeroporto, o meu també m, é tudo. Eles vã o nos levar para algum lugar. Onde? Misté rio!

       Eu pensava que, se ele nã o estivesse lá, eu estaria completamente perdida e preparada para tomar o aviã o de volta. A aeromoç a, uma africana muito simpá tica, devia estar curiosa a nosso respeito, ou talvez tenha compreendido o objetivo de nossa viagem. Ela voltava regularmente para perguntar:

       — Tudo bem? E você? Tudo bem?

       Quando uma voz nos disse que o aviã o ia pousar, nã o havia mais sol. Era a segunda tristeza dessa viagem, eu nã o via mais do que nuvens cinzentas; a noite já caí ra naquela tarde de outubro sobre um aeroporto sinistro.

       Haviam me informado uma coisa importante: se você nã o sabe como fazer ao chegar em algum lugar, faç a como os outros. Se você nã o sabe para onde ir, siga os outros. Eu ignorava onde recuperar as bagagens, acreditava, tolamente, que nos seriam entregues na saí da do aviã o! Como nã o tinha visto nada, eu segui a multidã o.

       Deram nossos passaportes, olharam. Eu passei. Mas a moç a nã o, eles lhe disseram para esperar. Talvez seus papé is nã o estivessem completos, ou ela devesse esperar pelo marido. E eu a perdi de vista. Todas aquelas escadas rolantes, em Roissy, era a primeira vez: fui seguindo as pessoas. E descobri as esteiras com as malas em cima. Eu me dizia: “Onde estã o minhas malas? ” E quando eu as vi, ali... O modernismo.. na verdade nã o sã o pessoas que trazem as malas, elas chegam sozinhas. Eu tinha isto dentro da minha cabeç a: é preciso fazer cara de inteligente e de quem sabe de tudo, mesmo que nã o se saiba nada. Quando avistei a minha mala, um senhor me disse:

       — É a sua mala?

       — É sim.

       Ele a apanhou para mim. Eu a peguei. E continuei a seguir as pessoas.

       Este mesmo senhor me disse:

       — Suba por ali, a saí da é lá em cima, faç a como todo mundo. Eu fui para lá. E quando estava em cima daquela escada, ocorreu uma coisa que eu nã o esperava de jeito nenhum. Eu só tinha uma vontade, que era de partir novamente, nã o queria mais continuar. Quando a escada chegou no alto, eu queria descer pela outra escada. Mas havia pessoas fazendo sinal para me chamar. Meu marido estava ali, com dois amigos. O aviã o estava cheio de africanos e de brancos misturados. Era a primeira vez que eu via tantos brancos, de tã o perto. Eu via alguns de tempos em tempos, cruzara com uns em Dakar, mas nunca tantos. A impressã o que tinha deles acabara de se dissipar porque, ali, eu descobria seres humanos como eu. Por que as mulheres tê m cabelos tã o longos e tã o lisos, tã o bonitos? Ou, por que eu tenho cabelos crespos? Foi o que me abalou. E també m, por que os brancos tê m sempre um nariz muito comprido, bem pontudo? E a coisa que me impressionou foram seus olhos. Ver olhos verdes, olhos azuis... Olhos verdes, isto me chocou. Disse a mim: “Sã o olhos de gato. ” Eu tinha medo de pessoas de olhos verdes. Quando você passa por essa gente e olha nos olhos delas, e elas olham você nos olhos, isso provoca um choque.

       Naquele momento, eu nã o sentia diferenç a. Mas eu me sentia estrangeira. Eu me dizia: “Mas o que você veio fazer aqui? ” Era a primeira vez que eu via tantos brancos gritando, falando. Na televisã o, é sempre gente fina, bem vestida, chique, e ali, no aeroporto, era gente normal, gente comum. Quando vi os trê s homens me esperando, disse a mim mesma que nã o podia mais fazer meia-volta, que era preciso continuar. Sã o imagens que ficam.

       Eu nã o dei um sorriso. Apertei a mã o de cada um deles. Eles me perguntaram se eu fizera boa viagem, como eu estava, como estava a famí lia etc. E nó s partimos. Pegamos um tá xi. E aterrissei em Luas. Porte des Luas.

 



  

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