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Desintegração, reintegraçãoDesintegraç ã o, reintegraç ã o
Fevereiro de 1979.
Chego a Dakar por volta das quatro horas da manhã, com minhas trê s filhas. A menor tem apenas dois meses. Meu pai me espera no aeroporto. Sempre tive uma espé cie de cumplicidade com este homem. Talvez por ele nã o viver conosco permanentemente. Eu era um pouco " falso menino" quando crianç a, e minha mã e me punia vez por outra, mas, se meu pai estivesse presente, ele intervinha sempre a meu favor. Eu compreendera o sistema, era bem comportada até meu pai entrar em casa; apó s o quê, eu podia fazer praticamente tudo o que quisesse estava sob sua proteç ã o. Baba jamais bateu em algué m, nem nos filhos nem na mulher. Eu sempre o adorei. Fora meu avô, que todos os netos respeitavam, Baba é minha referê ncia masculina. Um homem justo e bom. E Baba está lá, com seu bubu branco e seu boné vermelho. Tenho lá grimas nos olhos; ele estava ausente de Dakar quando eu deixei o Senegal, portanto fazia cerca de cinco anos que nã o o via. Ao nascer do sol, nó s tomamos o café da manhã juntos e eu tenho imediatamente a sensaç ã o de reviver. Meu paí s, meu pai, o sol, a comida... minhas filhas vã o finalmente aprender a conhecer suas raí zes, de onde eu venho, quem eu sou. Meu pai nos leva de carro à casa de minha mã e, em Thiè s, onde nos espera uma festa de boas-vindas. Toda a famí lia está lá, com vovô Kisima, sempre esbelto e de estatura imponente. Desde a morte de minha avó materna e de sua segunda mulher que me educou, ele vive com a terceira mulher e sua irmã. Há sempre avó s em casa. Mataram um carneiro para nossa chegada. Eu me vejo dentro do casulo desta casa familiar, livre e feliz; meu marido está longe, eu respiro finalmente, sozinha com minhas filhas, minhas amigas, minha verdadeira vida. Todas as minhas colegas do bairro vieram admirar as crianç as, a mais novinha, sobretudo, que passa de braç o em braç o. Eu reencontro o ambiente de minha pró pria infâ ncia, quando cada mulher cuidava indiferentemente de uma crianç a ou de outra. É natural, por exemplo, para uma vizinha, uma tia, uma amiga do bairro, ir pegar um bebê depois do banho da manhã e levá -lo para a casa dela durante o dia inteiro. Meu ú ltimo bebê faz a felicidade de todo mundo. o nascer, minha pequena Abi tinha a pele tã o clara que os tios, em Paris, ficaram preocupados! Um deles chegou a perguntar a meu marido se ele tinha certeza de ser o pai! Ele nã o tinha a menor dú vida: sua pró pria avó tinha a pele clara e do lado de minha mã e existem també m origens mauritanas. Na minha famí lia isso nã o causa espanto em ningué m; é comum, aliá s, que uma crianç a de tez clara ao nascer escureç a quando cresce. Mas a tez clara da minha filha vai suscitar uma confusã o divertida da qual tirarei um ensinamento. A cidade de Thiè s acaba de concluir a construç ã o de um grande está dio; milhares de pessoas vã o assistir a sua inauguraç ã o. Boto meu bebê sobre as costas, como uma verdadeira africana, e me meto na multidã o de espectadores com minhas amigas e minhas primas. De repente, uma senhora me interpela: — Minha pobrezinha, você está maltratando a filha do seu patrã o! A mulher me tomou por empregada de brancos que me teriam contratado para tomar conta da crianç a que eu carrego nas costas! Minha prima lhe responde: — Nã o é a babá, a menina é dela; é sua filha! E a mulher começ ou a rir. — Desculpe, minha filha, mas você é jovem demais. Está carregando ela mal! Tem de segurá -la melhor! Para carregar uma crianç a nas costas, é preciso utilizar duas tiras de pano que sã o presas à cintura e sob os braç os. O bebê fica dentro, como em um bolso, com as coxas bem afastadas. Os mé dicos, na Franç a, apreciam esse procedimento, que eles consideram excelente para o desenvolvimento dos quadris da crianç a. Muitas vezes, o pediatra me pedia para convencer minhas compatriotas imigradas a perpetuar essa maneira de carregar, pois algumas, na Franç a, a abandonam pelo canguru. Mas eu ainda nã o tinha assimilado perfeitamente a té cnica do bambado! Na volta, minha prima desencadeou a hilaridade geral na famí lia ao relatar meu incidente. É isto que é extraordiná rio na nossa casa: nó s podemos ser pobres, mas temos alegria de viver. Um nada nos dá vontade de rir e de fazer uma festa. Considerando as condiç õ es de vida na Á frica, o melhor é esquecê -las e brincar. Os senegaleses exercem facilmente o humor negro, e gracejam em qualquer oportunidade. A renda nacional por habitante é uma das mais baixas do mundo. Mesmo que Dakar aparente ser uma capital moderna, a chave da sobrevivê ncia, aqui, é o expediente: estar pronto para qualquer trabalho para escapar do desemprego, restaurar incansavelmente tudo que ainda pode servir, fabricar brinquedos com latas de cerveja ou cá psulas de soda, recuperar o plá stico e fazer com ele tiras para tecer bolsas, e até malas. E principalmente se divertir! Eu sei que tenho necessariamente que voltar à Franç a; contudo, nesse momento, a pró pria idé ia saiu da minha cabeç a. A mú sica, as brincadeiras em famí lia, os pratos tradicionais: eu saboreio o que vejo, deliciada. Adoro particularmente um prato tradicional, a sê mola de cuscuz guarnecida com um molho à base de folhas de feijã o e farofa de amendoim. No idioma soninké : dé ré . Mas o melhor momento continua sendo o café da manhã. Minha mã e corta o pã o, que ela distribui a cada um com um pouco de manteiga, se houver... Vou me sentar com minha xí cara de kinkeliba, o chá local, em cima de um banquinho no pá tio. Nessa hora matinal, o sol é bom, nã o faz muito calor. As crianç as pequenas chegam sonolentas, e uma avó diz: — Vá lavar o rosto e a boca antes de dizer bom-dia... Nã o se fala com as pessoas sem que se tenha feito esta limpeza matinal indispensá vel. E eu ouç o de novo isso. É uma verdadeira felicidade. Neste pá tio, estou em liberdade, longe do meu subú rbio parisiense, do cô modo estreito onde é impossí vel se mover. Aqui, eu posso correr sem medo de esbarrar em alguma coisa. Minhas filhas correm atrá s das galinhas e das bicicletas para apanhá -las. Elas sã o afagadas, rodeadas, e praticamente me esquecem! Aprenderam a reconhecer as avó s ou as tias que sempre tê m alguma coisa de mordiscar para elas. Entenderam que as duas casas da concessã o sã o ligadas, a do vovô e a da minha mã e, e que podem ciscar e receber mimos indiferentemente em toda parte. Meus sobrinhos e sobrinhas estã o orgulhosos de suas priminhas, e as levam para passear pelo bairro. Em nossa casa há sempre convidados, sempre algué m, amiga, tia ou vizinha, que chega com uma pequena tigela de comida para desejar boas-vindas para aquele ou aquela que voltou ao paí s. Uma maneira simples de mostrar que ele ou ela faziam parte da comunidade antes de partir para longe, e que ningué m os esqueceu. Mesmo que sejamos considerados " ricos", por viver na Franç a, nã o temos o direito de ser ricos a ponto de nã o se lembrar de como viví amos no paí s. Lá, há o Seguro Social, os salá rios-famí lia, trabalho, portanto alimento e cuidados. Aqui, há a famí lia, a solidariedade e a afeiç ã o de todos. Fui visitar a aldeia de meus pais, perto de Bakel, com as crianç as. Fazia calor, mas nó s tí nhamos que ir lá para cumprimentar os irmã os mais velhos de meu pai, e apresentar nossas condolê ncias pelo falecimento de um deles. É uma longa viagem atravé s das aldeias peuls e soninké , no vale do rio Senegal, até os limites das fronteiras do Mali e da Mauritâ nia. A linha da estrada de ferro que liga Dakar a Bamako pá ra em Kidira, ú ltima etapa antes do Mali. A partir daí, é preciso continuar a estrada (desconfortá vel), de carro, até Bakel e tomar, em seguida, uma piroga para alcanç ar a aldeia de origem de toda a minha famí lia, dos lados materno e paterno. O griot nos recebeu segundo a tradiç ã o e nó s ficamos lá uma semana. Vi as duas irmã s com quem eu tinha sido educada pela vovó Fouley. Nó s nos torná ramos adultas; foi comovente nos descobrir mulheres, e mã es de famí lia. Os habitantes da aldeia sã o ainda mais acolhedores e calorosos do que os da cidade. Na aldeia, tudo se partilha. Quando fomos embora, eu estava carregada, e minha mã e també m, de milhete, arroz, batatas doces, milho, cuscuz e amendoins. Com a missã o de distribuir esses presentes em Thiè s, por todo o bairro! Cada um tinha que receber sua parte. É a solidariedade africana. Até entã o, eu nã o tinha pensado mais na partida, na volta à Franç a, e eu me vi de volta ao aeroporto com o coraç ã o apertado, e em lá grimas. Tomei o aviã o com minhas filhas, e retornei à habitaç ã o, que me pareceu ainda mais exí gua comparada ao que eu acabara de deixar. Nã o mais o pá tio ao sol levante, nã o mais banquinho debaixo da mangueira, eu devia nã o só me reintegrar à vida europé ia, mas ainda à minha vida de casal: a coabitaç ã o com o pai de minhas filhas, o leito conjugal, sempre um perigo. Começ o a dizer que nã o quero mais filhos. Portanto, nã o mais relaç õ es sexuais. Uma recusa dificilmente aceitá vel para um marido, nã o vou levar tempo para me dar conta. Nessa é poca, nó s dispú nhamos de pequenas economias; como o valor do aluguel era mó dico, podí amos enviar todos os meses um pouco de dinheiro para a Á frica, mandar instalar o telefone e, sobretudo, realizar o sonho de meu pai, oferecendo-lhe sua viagem a Meca. Meu marido estava de acordo que ele viesse ficar conosco por um tempo em Paris e daqui tomasse o aviã o para a cidade santa. Uma organizaç ã o e providê ncias que exigem tempo. Na frente da nossa casa havia um outro pequeno apartamento de uma peç a e um banheiro. Nó s já tí nhamos nos interessado por ele desde o nascimento da terceira filha, meu marido já fizera um pedido ao patrã o, proprietá rio dos apartamentos, sem obter resposta favorá vel. — Vá vê -lo! Talvez a você ele atenda! Efetivamente, ele me atendeu. Assim que entrei no seu escritó rio, ele franziu os olhos. — Nã o é possí vel! Você é a mulher de Moussa? Mas que idade tem? E já tem trê s crianç as? Você é tã o jovem! Ele é muito mais velho do que você! Eu sorri, sem resposta. Mas ele concordava em nos alugar um quarto a mais, chegando o aluguel, em 1979, de dois " apartamentos", a trezentos e cinqü enta francos mensais. Assim, eu poderia alojar meu pai no quarto com chuveiro durante sua estada conosco, com as duas meninas mais velhas, ficando conosco apenas a mais nova. Mais tarde, eu tinha a intenç ã o de me instalar ali sozinha, com as crianç as, à noite, longe do perigo conjugal. Mas, no meio do ano, um de meus irmã os menores, o ú ltimo filho de meu pai, deixou-nos com cerca de quinze anos. Infelizmente, ele sofria de uma doenç a incurá vel desde o nascimento. Esta triste notí cia nos chegou por um telegrama de meu pai: “Irmã ozinho falecido, mas impede minha chegada. ” O texto havia sido mal redigido em Dakar, meu pai tinha querido dizer, na verdade: “Mas nã o impede minha chegada”. Tomei a frase ao pé da letra, no entanto, acreditando que ele nã o viria mais. Portanto, cancelei sua passagem para Meca. E num certo dia de outubro, o telefone toca em Paris e um primo me diz: — Algué m quer falar com você. Eu ouç o a voz de meu pai. — O que está acontecendo? Estou ligando desde cedo, você nã o veio me pegar no aeroporto. — Como? Mas você tinha me dito que nã o viria mais. — Eles se enganaram. Eu nã o disse isso. Eu nã o iria desperdiç ar o dinheiro da passagem! Seu irmã ozinho faleceu, nã o posso fazê -lo reviver, mesmo ficando lá. Portanto, meu pai morou um ano conosco, até a viagem seguinte para Meca. As passagens eram caras demais para fazê -lo voltar e vir novamente. Como ele agora estava aposentado, nã o tinha muita coisa para fazer no Senegal, e era sua primeira visita à Franç a. Aproveitando sua presenç a para tomar conta das crianç as, comecei minha formaç ã o em contabilidade. Meu marido nã o queria que eu voltasse à escola, diferentemente lá de casa, onde todo mundo me encorajava a retomar os estudos para ter um oficio. Minha mã e tendia para uma formaç ã o mé dica; ela dizia que uma enfermeira sempre encontra um emprego no Senegal. Optei pelo que era mais realizá vel de imediato, pois tinha a intenç ã o de um dia voltar para casa definitivamente. Fiz um curso de formaç ã o de auxiliar de contabilidade. Era pago, mas eu tinha feito um pedido de financiamento por intermé dio da Assé dic [3] para conseguir pagar. Foi por causa desse está gio de formaç ã o que as brigas começ aram, pois eu ficava fora o dia inteiro. Meu pai ficava com as crianç as; era fá cil, as duas maiores já iam à escola maternal, ele só precisava apanhá -las na saí da e vigiar o bebê, do que ele era perfeitamente capaz, alé m de fazer com prazer. Já meu marido era categó rico em relaç ã o a seu princí pio de base: Uma mulher nã o deve trabalhar, ela fica em casa! Por sua cabeç a, no momento do casamento, jamais passara a idé ia de que eu fosse trabalhar, ou mesmo de que fosse me conceder a mí nima independê ncia. É nisso, principalmente, que os africanos imigrados diferem de seus irmã os no paí s. Na nossa terra, as mulheres circulam livremente, trabalham segundo suas possibilidades para melhorar a existê ncia de suas famí lias. Uma senegalesa, seja qual for sua etnia ou casta, respeita o marido e a famí lia, mas é livre em seus movimentos. Ela nã o carrega o vé u como as mulheres á rabes, ela cobre a cabeç a, ela se veste decentemente, o que nã o a impede de ser uma boa muç ulmana, ela lida com a poligamia da melhor maneira que consegue. Os maridos deixam à s suas mulheres a possibilidade de ter seu pró prio comé rcio. Meu marido queria, na Franç a, me confinar em um quarto, tendo como ú nico status o de uma mã e poedeira, com o fito de (que Deus me perdoe, eu só me dei conta tarde demais) receber o má ximo de salá rios-famí lia para seu proveito pessoal, como um bom nú mero de homens. Eu me recusei a me enquadrar nesse padrã o restrito. Adoro minhas filhas, elas sã o carne de minha carne, mas, com quase vinte anos, tinha dado o que podia. A determinaç ã o de vencer me estimulou a acumular tarefas. Eu seguia os cursos de contabilidade, fazia serviç o domé stico para ganhar dinheiro, tomando conta de uma avó idosa. Uma amiga mauriciana saiu de fé rias e me pedira para substituí -la em sua funç ã o. Eu a acompanhava ao teatro, ao cinema. Ela me fez descobrir as grandes lojas de Paris, as Galeries Lafayette, a Samaritaine, o Bom Marché, que eu nunca tinha visto na minha vida... Nessa é poca, eu já havia subido uma vez em um ô nibus, sozinha, para fazer o tour de Paris. Quando eu nã o me sentia bem, quando a solidã o me pesava muito, eu tomava o PC, que me levava para dar uma volta por Paris, pelo preç o de um tí quete. À s vezes era o 75 até a Pont Neuf. Eu fazia minhas pequenas viagens antes de meu marido voltar do trabalho. Para conhecer a cidade, para esquecer minha tristeza olhando os pré dios, as belas construç õ es, os monumentos famosos. Eu nã o queria continuar sendo uma mulher africana imigrada inculta. Desejava conhecer essa Paris de cor. Essa cidade que oferecia tantas oportunidades de trabalhar e de vencer na vida. Trabalhar, vencer e saltar dentro de um aviã o para recomeç ar na minha terra. Pouco tempo antes do fim de minha formaç ã o em contabilidade, no iní cio de 1980, tornei a engravidar. Meu marido nesse momento está desempregado, sua fá brica fechou. Mas o bom Deus nã o me abandona, como sempre! Encontro um francê s que me propõ e trabalhar na sua empresa de manutenç ã o de escritó rios. Trata-se de gerir um edifí cio em Richelieu-Drouot, supervisionar, o trabalho de limpeza e també m de fazer um pouco de limpeza. Eu aceito e lhe apresento meu marido, que consegue, graç as a ele, um emprego de porteiro de pré dio. Obtenho um diploma de mecanografista e té cnica de contabilidade apó s o nascimento de meu quarto filho, um menino chamado Mory. Durante o perí odo do seu nascimento e de minha recuperaç ã o, suspendi as aulas para retomá -las em seguida. Nesse í nterim, mandei buscar minha irmã mais nova para me ajudar; as crianç as logo iriam para a escola. Minha irmã zinha chegou no final de 1981; eu retomei meu curso, obtive o diploma e me inscrevi em agê ncias de trabalho temporá rio na esperanç a de conseguir um emprego de tempo integral. Meu filho tinha, entã o, oito ou nove meses, e as brigas eram incessantes, a propó sito de minha ambiç ã o de trabalhar, a propó sito das relaç õ es sexuais que eu nã o queria mais. A propó sito do dinheiro que eu ganhava, e que eu tinha o " topete" de querer gerir sozinha. Tudo era tema de conflito. Aquele casamento se tornava uma armadilha. Eu precisava sair fora, mas como? E sem provocar estragos na famí lia. Meu pai viajou para Meca em 1981, ficou doente na volta e tive até que hospitalizá -lo por algum tempo antes de ele poder voltar para o Senegal. Nessa é poca, a comunidade dos homens em torno de meu marido o insuflava contra mim, e ele só escutava o conselho dos outros: — Você nã o devia deixar sua mulher fazer isto ou aquilo... — Aqui as mulheres trabalham, elas deveriam entregar seus salá rios aos maridos em vez de querer ficar com tudo e mandar para os pais. Isto nã o está certo. Foi você que a trouxe para cá, ela tem que entregar tudo a você. Ele continuava a comprar a comida, mas nã o queria mais me dar um tostã o, e eu esperava com impaciê ncia receber o telefonema que me diria: “Apresente-se no endereç o tal, tem trabalho para você... ” O telefonema finalmente chegou. Rua du Faubourg-Saint-Honoré, um bairro chique de Paris. Eu me visto à ocidental: saia, chemisier e casaco; minha irmã fica com as crianç as. Meu pai ainda está aqui. Eu me lanç o ao encalç o do primeiro verdadeiro emprego de minha existê ncia. Me explicam o trabalho, eu me integro com relativa facilidade logo na primeira semana e, milagre, o que era interino se transforma em emprego por um perí odo de seis meses. Sinto-me diferente, importante, trabalho em um escritó rio, para uma grande companhia de seguros, em um bairro chique! Tenho a possibilidade de ter uma tarde livre por semana para as crianç as. Tenho as mesmas vantagens que todo mundo, contanto que cumpra minhas cento e sessenta e nove horas mensais. Esqueç o tudo: as brigas, o leito conjugal. Almoç o com meus colegas em um bistrô da esquina. Eu sou algué m, vou vencer um dia! Ganho quase o dobro do salá rio do meu marido. De agora em diante, posso contribuir para as despesas da casa, esperando secretamente que ele, em troca, me deixe tranqü ila. A revolta amadurece na minha cabeç a. Até entã o, tinha suportado todas as tradiç õ es: a excisã o, o casamento obrigató rio, a sexualidade obrigató ria; eu me recuso a me tornar uma caixa registradora obrigató ria. Participo nas despesas da casa, mas mantenho minha autonomia. Um dia, eu lhe estendo uma pilha de notas, dois mil e quinhentos francos. — É a minha contribuiç ã o para as compras. Ele olha as notas com ar de desprezo e nã o as aceita. — É tudo que você vai me dar? Ele me atira isso diante de uma colega que me tranç ava os cabelos, que vergonha para mim! Eu replico: — Está certo, a partir de hoje nã o conte mais comigo. Acabou. Findas també m as gestaç õ es todos os anos. Passei a tomar pí lula com a ajuda do planejamento familiar. De agora em diante, eu respondo quando ele me ataca. Meu caso é grave; segundo ele, nã o demorarei a ir a julgamento diante da comunidade de tios e de primos. Minha irmã tem catorze anos. Ela me ajuda muito e nã o hesita em tomar o meu partido. Quando meu marido começ a a me insultar, ela o repreende asperamente, na hora. Enquanto meu pai esteve presente na casa, ele nã o ousou descarregar em mim, ou me proibir do que quer que fosse. Mas meu pai viu perfeitamente que o casamento nã o estava bem. Eu tive até a oportunidade de fazer minha primeira viagem a Londres, num fim de semana, com primos e primas, e trazer de lá belos tecidos para revender. Estava tentando o mais que podia me abrir para o mundo, ganhar dinheiro, ir adiante. Como dizí a minha mã e: “Você anda demais, minha filha! ” E eu andava, de fato, por um bom motivo, e, assim que me via fora do ambiente conjugal, andava bem. Eu tinha evoluí do, meu marido nã o, tampouco os homens que o cercavam e que se diziam seus amigos. Assim que meu pai foi embora, fiquei sozinha diante dele e do seu rancor. Ele ignora que eu tomo pí lula, nó s já temos motivos suficientes para brigas para que eu ainda acrescente um outro, igualmente sensí vel. De todo modo, seja qual for o motivo, por mais bobo que seja, estou sempre errada. Ele se queixa de meu comportamento com um tio, que me declara sentenciosamente: — Uma mulher nunca tem razã o diante de seu marido. No que eu presto atenç ã o, em compensaç ã o, é no conselho que o tio lhe dá: — Já que é assim, trate de mandar de volta para a Á frica a irmã dela. Ela se revolta porque a menina está aqui; sem essa ajuda, verá que sua mulher vai voltar ao normal. Em outras palavras, vã o retirar o apoio que minha irmã mais nova dá em casa, apoio que me permite trabalhar, ganhar a vida, portanto, me revoltar, para me recolocar no devido lugar, a fim de que meu marido recupere o poder. Entã o meu marido começ a a se mostrar odioso com minha irmã e as coisas se envenenam. E manda contar aos parentes que ela está estragando o casamento dele! Todo mundo o escuta falar, por carta ou por telefone, até o momento em que, cansada daquelas histó rias sem fim, minha mã e se aborrece e lhe diz ao telefone: — Se você nã o consegue ficar com minha filha menor, sua pró pria prima, me mande ela de volta! Eu tinha tomado as primeiras providê ncias para que minha irmã conseguisse um visto permanente, continuasse a escola na Franç a e aprendesse um ofí cio. Repentinamente, ele me anuncia um dia: — Está aqui a passagem da sua irmã; ela vai embora. A partir de entã o passei a odiá -lo, nã o apenas ele, mas todo o seu cí rculo. Fui obrigada a parar de trabalhar. Minha janela aberta para o mundo e para a independê ncia tornou a se fechar. E eu me vejo sozinha em casa, cuidando das crianç as, sem ningué m com quem falar à noite. Sobretudo à noite, eu podia ficar horas discutindo com minha irmã, e ele nã o gostava. À s vezes falá vamos em wolof uma com a outra, e, como ele nã o compreendia, ficava furioso. Este casamento foi um erro. Só meus filhos o salvam. Apesar das discussõ es, meu marido até entã o se comportara como um bom pai; ele gostava dos filhos e eu també m, mas mesmo este amor em comum nã o foi capaz de nos aproximar. Nã o consegui amar este homem; talvez fosse minha culpa, pela minha repulsa ao leito conjugal. Nã o sei. As mulheres africanas nã o fazem confidê ncias a esse respeito, é uma questã o de pudor. Eu ignoro, à é poca, se essa recusa é uma questã o pessoal ou se é conseqü ê ncia da excisã o. Tenho sé rias dú vidas, mas prefiro nã o saber. De que adiantaria? E assim meu destino prosseguiu. Na volta à s aulas em 1982, meu ú ltimo filhinho poderá ir para a escola maternal e vou recuperar um pouco de liberdade durante o dia. É a ú ltima esperanç a que me resta para procurar um novo trabalho. Foi por essa é poca que encontrei, por acaso, uma maliana que fazia parte da primeira associaç ã o africana em Paris, o CERFA, mantida por voluntá rios, e ela me aconselhou a ir até lá, vez por outra. Lá eu vejo mulheres, mã es de famí lia africanas, aprendendo a ler e a escrever. Na minha terceira visita, a maliana me propô s que eu mesma també m desse cursos de alfabetizaç ã o, na qualidade de voluntá ria. Encontrei nessa associaç ã o uma senegalesa com quem eu podia falar, me abrir um pouco, para nã o deprimir completamente. Pelo menos tenho alguma coisa para fazer, um objetivo no pequeno grupo de mulheres, onde sirvo para alguma coisa. E a segunda viagem para a Á frica está sendo preparada. Desta vez, " estã o me mandando" para o paí s para que meus pais me aconselhem e para que eu volte mais dó cil. Mas, ao contrá rio, o fosso se abre e, pela primeira vez na minha vida, sinto ó dio por esse homem que tenta me dominar. Para começ ar, eu nã o perdoei o fato de ele ter expulsado minha irmã com o ú nico objetivo de me impedir de trabalhar. Nó s estamos em 1983, eu batalho há oito anos para encontrar um lugar ao sol. Nã o tenho a intenç ã o de baixar a cabeç a. A diretora da escola maternal aceitou meu filho, as trê s outras vã o à escola, todo mundo está ocupado durante o dia. Logo no iní cio, eu vou apanhá -los ao meio-dia, depois a diretora me propõ e deixá -los fazer a refeiç ã o na cantina. E eu tenho a oportunidade de conseguir um está gio de costura e de aprimoramento de francê s por seis meses. Cuido dos meus filhos e as aulas destinadas à s mã es acabam na hora da saí da da escola. Eu consigo conciliar. Em casa, sou uma verdadeira selvagem: fico no meu canto, faç o o que tenho vontade de fazer, um ponto, um traç o. Ele me trata como uma inimiga. Ele, que tinha se gabado para a famí lia no começ o do casamento, dizendo que eu era uma boa esposa, a esposa que ele desejara, perfeita e dó cil, passa agora a enviar cartas aos meus pais me denegrindo. Sou uma mulher má, uma puta, desde o dia em que descobriu na minha bolsa as famosas pí lulas. — O que é isto aqui? — Remé dios! — Ah sim!... Você s, mulheres, é isto o que tomam para nã o ter mais filhos, e para andar atrá s dos homens! As mulheres que tomam pí lula sã o putas! Eu tinha quatro filhos e a vontade de ir atrá s de homens estava bem longe dos meus pensamentos. Se ele tivesse prestado um pouco mais de atenç ã o em mim, teria se dado conta de que eu era incapaz disso. Eu nã o podia sequer tentar discutir este assunto, expor meus argumentos, explicar meu cansaç o, as gestaç õ es muito pró ximas, menos ainda minha total incapacidade de suportar as relaç õ es sexuais. Ele nã o era um homem de diá logo. Aferrava-se a suas posiç õ es de macho que nã o tem explicaç õ es a dar a uma mulher, uma vez que ela sempre está errada perante o marido. Do ponto de vista ocidental, é dramá tico. Do ponto de vista africano, pelo menos na pequena comunidade de imigrados que ele freqü entava, era clá ssico. Alé m do mais, ele tinha quase vinte anos mais do que eu, jamais fora à escola, nem aprendera a refletir mais longe do que seu chapé u. E nã o era por ser analfabeto que ele era incapaz de refletir ou de ser inteligente. Mandou escrever uma carta para o Senegal, dizendo que eu tomava pí lula, afirmando de maneira injuriosa que era para ir atrá s de homens. E meu avô nã o agü entou, tocado em seu orgulho. — Se ele ousou insultá -la, insultou també m a sua mã e! Eu lhe dei minha neta e ele levou-a para lá para maltratá -la! Na minha casa, no seio da famí lia, eu me sentia mais forte. Era na Franç a que a comunidade nã o confiava em mim. Na Franç a, ele sempre tinha razã o, todo mundo lhe dizia que ele sempre tinha razã o. Razã o de querer se apropriar dos rendimentos do meu trabalho, razã o (contraditó ria) de me impedir de trabalhar. Razã o de me fazer um filho por ano, sempre razã o. Ele nã o era um homem ruim, era até uma pessoa delicada, a ponto justamente de só escutar os outros, sem ousar se impor, sem refletir por si mesmo. No ano de 1984, obtive o diploma de final de está gio. Na minha cabeç a, isto era apenas um começ o, eu visava à obtenç ã o de um diploma de modelista. Queria aprender toda a té cnica, do corte à realizaç ã o. Falaram-me de uma escola, mas nã o tinha mais vaga. O ano se escoa nesse ambiente desagradá vel de brigas em casa, com as crianç as crescendo. A mais velha estava na escola secundá ria, a segunda logo seguiria, a terceira estava no primá rio. Fazia tudo para que meus filhos estudassem bastante e praticassem esporte. Cada vez que a escola organizava um passeio, eles aproveitavam como os outros, e se o dia estivesse bonito, nos feriados, passeava com eles no parque, no bairro ou no Jardin des Plantes. Um domingo, depois de uma semana em que as brigas tinham sido constantes, meu marido chamou um tio à nossa casa para me repreender mais uma vez. — De verdade, eu nã o a entendo, você nã o escuta nada do que lhe falam. Segundo o que ele me contou esta semana, você está inteiramente errada. O que ele teria lhe contado? Coisas í ntimas e graves, ou simples bobagens sobre a minha maneira de viver? Sobre a pí lula? Sobre as minhas recusas? Sobre meus passeios por Paris? Eu me sinto realmente mal nesse dia. Decido nã o chorar mais, nã o escutar mais. Acabou. Chamo as crianç as. — Ponham os casacos, vamos para o parque. — Aonde você vai? — Vou passear com meus filhos no parque. — Nã o é a seu marido que você está faltando com o respeito, mas a mim! Eu é que fui deslocado para ví r até aqui ajeitar as coisas! — Para mim está terminado, nã o há o que ajeitar. Estou cansada. Se Deus existe, Ele será o á rbitro. Enquanto corriam todas essas histó rias penosas, eu levava as crianç as nas fé rias para a Normandia, para visitar meu tio-avô. Era o ú nico lugar de refú gio, onde eu me sentia em liberdade, no campo, uma verdadeira felicidade. Meu avô tinha um irmã o mais velho que ví veu na Franç a a vida inteira. Viera em 1916, tinha sido um dos soldados senegaleses que combateram pela Franç a. A Normandia se tornara, entã o, sua terra de adoç ã o. Ele nã o revira a famí lia desde a guerra. Os normandos eram sua nova famí lia, ele adorava aquela terra onde morava em uma fazenda imensa, e foi ele quem me transmitiu este amor pela proví ncia francesa. Sempre me lembrarei do dia em que meu avô me enviou o endereç o de seu irmã o mais velho. Tomei um trem com as crianç as e desembarquei na Normandia, na cidadezinha mais pró xima da casa dele para perguntar o caminho aos guardas. O chefe, que conhecia a fazenda de meu tio-avô, gentilmente nos conduziu até lá. Era verã o, os campos de milho estavam altos. Avistei um senhor sair com as mã os nas costas, de macacã o azul, a cabeç a bem desprovida de cabelo. Os poucos cabelos que lhe restavam eram todos brancos, ele já tinha quase noventa anos. Aproximou-se com um passo firme e, diante daquele rosto, tive a impressã o de estar vendo meu avô! Minhas lá grimas rolaram. Estavam tã o longe um do outro, um no Senegal a vida inteira, o outro na Franç a a vida inteira, e, apesar disso, o mesmo rosto, o mesmo porte esguio e digno. O que vivia na Franç a jamais esqueceu que seu paí s era pobre e sempre ajudou a famí lia. Tinha as fotos de todos os filhos de seu irmã o, portanto, de minha mã e, de suas irmã s, de seus irmã os. Fizera a pé os oitocentos quilô metros que separavam sua aldeia da cidade de Thiè s e, lá, o tinham " alistado". Fascinada, eu o ouvia contar como, naqueles tempos, os recrutadores tinham olhado a dentiç ã o, os mú sculos, a altura e a forç a dos futuros artilheiros. Eram, aliá s, magní ficos aqueles homens de uniforme que iam ser enviados para o front para defender a Franç a. Ele chegou em 1916, no pior momento da guerra. Ele me descreveu as trincheiras, onde tantos homens morreram. — Você nã o podia sequer ajudar o companheiro que acabara de cair porque era preciso correr, sempre correr e, se tentasse recolher o colega, gritavam-lhe para prosseguir. Falou do frio, da chuva, da neve, dos dias lú gubres. Como nã o aprendera a ler nem a escrever naquele tempo, ele nã o sabia bem onde estivera, falava de diversos fronts diferentes, sem conseguir citar um nome preciso. Ele me falou de sua aldeia natal como eu nunca tinha ouvido falar: os animais selvagens que era preciso matar para sobreviver na estrada, quando fez a grande viagem até Thiè s. Gazelas, bú falos, hienas, serpentes... — Nã o matei o leã o, ele fugiu! Você sabe, minha filha, um leã o só ataca quando está com fome. Pensei que ele sentisse saudade do paí s, e fiz tudo para convencê -lo a voltar por algum tempo à Á frica. Mas ele respondeu: — Você sabe por que eu nã o vou? Toda vez que quero partir, alguma coisa me impede. Na nossa terra, na aldeia, quando eu era pequeno, algué m lanç ou uma maldiç ã o para que os filhos de minha mã e se espalhassem e nunca mais voltassem. Ele vivia na Franç a havia anos e ainda acreditava nessa histó ria estranha de dispersã o da famí lia. Minhas avó s també m falavam disso com muita freqü ê ncia, como uma espé cie de maldiç ã o possí vel. Nó s deví amos permanecer todos unidos, e jamais nos " espalhar". O tio-avô nã o teve filhos. Depois da guerra, deixou seu regimento de artilheiros para entrar na Marinha. E se apaixonou por uma moç a normanda que, na é poca, só tinha quinze anos. A famí lia normanda, evidentemente, nã o queria saber daquele negro alto, muito bonito, que media um metro e noventa e oito. Mas a moç a queria casar-se com ele de qualquer maneira e eles acabaram cedendo. Casaram-se em cima de um barco. Uma histó ria de amor bem româ ntica! Infelizmente, ela nã o teve filhos e se foi muito cedo. Mais tarde, ele se casou com a enfermeira que cuidou dele depois de um acidente de moto. També m nã o tiveram filhos. Ele morreu na Normandia, quando devia ter pouco mais de cem anos. Na é poca do seu alistamento militar tinham-lhe atribuí do uma data de nascimento aproximada: 1898. Fui vê -lo muitas vezes na Normandia, praticamente a cada dois ou trê s meses. Cheguei a ficar lá um mê s inteiro de fé rias de verã o com as crianç as. Era uma delí cia beber o verdadeiro leite de vaca, fresquinho, comer as galinhas bem gordas. E quando eu voltava a Paris, no final das fé rias, ou no domingo à noite, levava uma caixa cheia de comestí veis. Ele tinha matado e cortado um carneiro, eu ganhava legumes, batatas da sua horta, frutas, creme, manteiga! Ele sentia amor pela terra, como meus avó s. Eu també m amo a terra. E a da Normandia, tã o farta e tã o rica, me fascinava. O contraste era violento com nossa terra do Senegal, onde as vacas sã o magras e, para pastar, tê m apenas cascas de amendoim secas ou até mesmo os restos de papelã o que elas ruminam na beira das estradas. Ao deixar aquela terra maravilhosa e provedora, eu refletia sobre a injustiç a desse mundo. Uns tê m tudo, outros nada. De um lado a pradaria, do outro o deserto. Aqui a chuva, em outro lugar a seca. A imagem de meu tio-avô se casando com sua pequena normanda de quinze anos em cima do convé s de um barco, todos dois apaixonados, essa imagem també m era uma injustiç a. Por que eles e nã o eu?
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