|
|||
CAPÍTULO VII
Pela dé cima vez, Serafina segurou a fotografia do filho e examinou-a com atenç ã o. — Ele era tã o bonito quando esta fotografia foi tirada, um ano atrá s — murmurou, inconformada. — Essa cicatriz no lá bio alterou completamente sua fisionomia. Ele adquiriu uma expressã o amarga. . . — Eu nã o acho — disse Donna, sentada na cadeira ao lado do sofá onde Serafina estava reclinada no robe amplo de seda grená. Donna estava com o bloco aberto no colo, pronta para anotar pacientemente as palavras que ela ditava. Naquela manhã, contudo, a narrativa nã o estava progredindo rapidamente. — Como nã o? Basta olhar para um e para outro. Eu conheç o meu filho melhor do que você, cara. — Disso eu, nã o duvido. Eu disse apenas que Adone tinha um lá bio mais cheio antes do acidente e que a cicatriz alterou ligeiramente essa caracterí stica. Mesmo assim, Adone continua sendo um rapaz extraordinariamente belo. — Você acha mesmo? — disse Serafina, com um sorriso de falsa modé stia. — De qualquer maneira, esse acidente o amadureceu. Ele perdeu o ar infantil de antes. Ele sofreu muito com o corte, cara? — Sofreu terrivelmente. — E suportou com coragem a operaç ã o? — Ele se comportou com uma coragem admirá vel. O dentista nã o deu anestesia para nã o haver relaxamento dos mú sculos da face. Adone aguentou tudo sem gemer uma vez. — Fico contente em saber disso. E você acha mesmo que ele continua belo como antes? — Mais. Ele adquiriu uma expressã o de homem maduro. . . — Ainda bem — disse Serafina, pensativa. — Depois do acidente, há alguma coisa de semelhante entre Rick e Adone. Donna també m havia percebido isso. Quando Adone sorria, a boca assumia uma ligeira alteraç ã o muscular que acentuava a semelhanç a entre os dois. Serafina recostou a cabeç a na almofada e observou sua secretá ria com atenç ã o. Os olhos verdes estavam muito brilhantes naquela manhã e a pele do rosto estava esticada e macia. — Você simpatiza com meu filho? — perguntou Serafina por fim, a entonaç ã o da voz cuidadosamente estudada, os olhos claros percorrendo os traç os delicados de sua secretá ria inglesa que usava naquela manhã um vestido simples de trabalho, com mangas curtas e saia rodada. Depois que chegara à Itá lia, a pele clara assumira uma tonalidade dourada, que combinava maravilhosamente com os cabelos louros. Por sinal, Donna passara a usá -los mais curtos que antes, com uma franja em cima dos olhos. — Nã o sou só eu — respondeu Donna, com um sorriso. — Todas as moç as que eu conheç o simpatizam muito com Adone. Serafina sabia que os dois faziam muitos programas juntos, tomavam banho de piscina todas as manhã s, passavam algumas horas conversando e tomando sol no gramado em frente à casa. Depois do acidente, Adone tomara mais juí zo e nã o corria como antes quando dirigia o carro esporte. Deixara també m de jogar cartas, como era seu há bito, e passava mais horas em casa, na companhia da mã e e de Donna. Alé m da piscina, a casa tinha um grande salã o de jogos, onde havia uma mesa grande de snooker, impecavelmente cuidada, uma outra de pingue-pongue, um alvo de cortiç a para o lanç amento de pequenos dardos de metal e até mesmo um brinquedo eletrô nico que Rick levara para casa porque Serafina achava divertido apertar os botõ es e ver as luzes se acenderem. Havia també m uma sala especialmente montada para projeç ã o de filmes. Era muito divertido assistir à s fitas antigas em que Serafina fazia o papel principal, bem como algumas comé dias hilariantes da é poca á urea de Hollywood. Sentada na poltrona macia de couro, Donna era forç ada a reconhecer que a Villa Imperatore oferecia todo o conforto de um hotel de luxo. Entretanto, o tormento de estar constantemente ao lado de Rick — e ser obrigada a manter uma distâ ncia respeitá vel — nã o compensava o prazer das pequenas distraç õ es. Ela passou a sofrer de insô nia. Ficava horas acordada na cama, rolando de um lado para o outro, pensando obsessivamente em Rick que, à quela hora, estava dormindo nos braç os de Serafina. Todas as manhã s, quando nã o havia material novo ditado no gravador, Donna sofria os tormentos do ciú me. Se Serafina nã o tivera tempo livre para continuar sua narraç ã o é porque se entregara a uma ocupaç ã o mais divertida e absorvente na companhia de Rick. Ah, maldita a hora em que fora amar um homem que estava preso de corpo e alma a outra mulher! Naquela manhã Serafina chamou-a ao seu quarto para ditar algumas anotaç õ es porque o gravador nã o fora usado na noite anterior. Donna sentiu uma pontada de ciú me ao avistar as olheiras azuladas que Serafina tinha no rosto. — Adone e eu conversamos ontem à noite sobre você — disse Serafina apó s um momento, acompanhando com a unha o desenho da almofada. — Ah, sim? Falaram muito mal de mim? — Pelo contrá rio. Adone simpatiza muito com você. — Ah, é porque eu sou novidade — disse Donna, procurando colocar-se na defensiva. — Isso vai passar com o tempo. Por falar nisso, eu queria agradecer a você por poder usar todas as comodidades da casa, como a piscina, o salã o de jogos, a sala de cinema. . . — A casa é sua, cara — disse Serafina, com um sorriso de satisfaç ã o, feliz com o elogio que era feito à sua generosidade. — Nã o faç a cerimô nia. — Muito obrigada. — Quanto a Adone, eu só queria preveni-la de que ele é muito volú vel, como sempre foi, aliá s, desde pequeno. Eu nã o quero que você sofra mais tarde com isso. Ele já magoou outras moç as com esse comportamento leviano. Pelo que observei, você é uma jovem de princí pios. . . Rick observou a mesma coisa. — Eu nã o gosto de brincar com os sentimentos — disse Donna, corando ligeiramente ao ouvir a menç ã o de Serafina à opiniã o de Rick. Pelo visto, os dois haviam discutido a presenç a de Donna na casa e Rick deu a entender provavelmente que Adone estava tomando certas liberdades que nã o lhe agradavam. Serafina percebeu o embaraç o dela e procurou esclarecer o assunto segundo seu sistema habitual, que consistia em fazer perguntas discretas, sem deixar transparecer que estava interessada em ouvir uma confidê ncia. — Você deixou algum namorado na Inglaterra? — Nã o, por quê? — Porque você corou quando mencionei a simpatia que Adone nutre por você. — Eu corei? Nã o percebi. — Agora estou começ ando a entender as coisas! Meu filho é realmente irresistí vel e você se deixou seduzir completamente por suas palavras doces como mel. . . — Juro que nã o há nada entre nó s — murmurou Donna, procurando tirar partido da confusã o que Serafina fazia sobre a situaç ã o. — Eu sei que Adone está acostumado com moç as livres, que fazem o que bem entendem. Você, poré m, é reservada e bem-comportada. Só isso já é uma qualidade aos olhos de um homem exigente. Alé m disso, você s dois sã o opostos em tudo, tanto fí sica quanto moralmente. Adone saiu a mim. É extrovertido e sociá vel. Você é introvertida e reservada. Adone é impulsivo. Você é controlada. — Concordo plenamente. Nó s dois somos muito diferentes. — Por falar nisso, Adone mencionou alguma coisa a respeito da noiva que tem em Florenç a? — Nã o, nã o falou nada — disse Donna, procurando mostrar-se atô nita com a revelaç ã o de Serafina. Na realidade, poré m, a notí cia nã o despertou nenhuma surpresa especial nela. Que diferenç a fazia se Adone casasse com uma italiana ou com uma francesa? — É estranho que ele nã o tenha comentado nada com você. Vai fazer um ano que os dois estã o praticamente noivos. Ela se chama Isabela e estuda num colé gio de freiras em Florenç a. — Provavelmente ele pensou que esse assunto nã o me dizia respeito. — Isabela vai terminar os estudos no ano que vem e aí os dois vã o marcar a data do casamento. Eu sou francamente favorá vel ao casamento, por sinal. — Faç o votos de que os dois sejam muito felizes. — Queira Deus! Isabela é uma moç a muito bem-educada e eu me dou muito bem com os pais dela. Ela tem tudo para ser uma esposa fiel e dedicada ao meu filho. — E será, com certeza. Serafina pelo visto desejava dirigir a vida de Adone da mesma forma que governava a vida na casa. Seu sentido de propriedade estendia-se igualmente a Rick e ao filho. — Você entende a situaç ã o, querida? — Entendo perfeitamente. — Eu estou falando isso porque queria preveni-la. — Muito obrigada por sua atenç ã o. — Sou eu quem lhe agradeç o, cara, por sua compreensã o. Donna entendia claramente a razã o pela qual Serafina escolhera Isabela para ser a esposa do filho ú nico. Uma jovem submissa e obediente, recé m-saí da de um colé gio de freiras, nã o criaria nenhum problema na casa. Ela se deixaria levar pela mã o como um cordeirinho. Os dois, evidentemente, iam morar na Villa Imperatore, na companhia de Rick e de Serafina. Desta forma, Adone estaria sempre sob a dependê ncia da mã e e continuaria a levar a existê ncia submissa de filho ú nico, até perder completamente as reservas de energia e de vitalidade que poderiam ajudá -lo a vencer sozinho na vida, por conta pró pria. — Que idade ela tem? — Ela vai fazer dezoito anos em junho. — Ela é bem jovem. — As moç as na Itá lia amadurecem cedo. Serafina recostou-se na almofada e apoiou a cabeç a nas mã os, de maneira que as mangas amplas do robe deixaram os braç os praticamente descobertos. Ela estava com uma pulseira de ouro no pulso, a insí gnia das mulheres escravas na cultura islamita. Serafina poré m nã o era escrava de ningué m. Pelo contrá rio, era ela que tiranizava os outros com seu temperamento possessivo. Mas que homem podia resistir ao encanto da ex-atriz? Apesar das mechas mais claras nos cabelos, Serafina continuava sendo uma mulher extremamente bela e desejá vel. A cabeleira negra que caí a em ondulaç õ es sobre o pescoç o e os ombros lhe dava um aspecto de mulher fatal. Ela se espreguiç ou com a graç a de um felino e deu um pequeno bocejo de cansaç o, sinal de que a conversa estava no fim. É insuportá vel pensar que Rick pertence a essa mulher, pensou Donna, sentindo uma pontada no coraç ã o. Ela só tinha um objetivo na vida: satisfazer seu egoí smo. O amor-pró prio estava visí vel nas menores linhas do rosto. A pele esticada e macia era a da mulher que encontrou uma satisfaç ã o completa nos braç os do amante. — Estamos entendidas? — Perfeitamente. — Você é uma moç a sensata e nã o se deixará seduzir pela lá bia do meu filho. Claro, eu nã o posso impedir que você s dois namorem. . . Afinal, você s sã o maiores e tê m a liberdade de fazer o que bem entenderem. Por falar nisso, imagino que Adone seja um especialista neste assunto. O pai dele é macho até a raiz dos cabelos. . . Serafina, evidentemente, estava dando a entender de uma forma sutil que se orgulhava da paternidade de Adone, e Donna foi forç ada a reconhecer que, de fato, Adone tinha muitos traç os em comum com Rick, especialmente a virilidade exacerbada. Fez um gesto mais brusco e o caderno de anotaç õ es caiu no chã o. Ela se inclinou para apanhá -lo e evitou encarar Serafina, com receio de que ela percebesse seu embaraç o. — Meu Deus, já sã o quase onze horas e ainda nã o tomei meu banho! — exclamou Serafina, com um gesto estudado de espanto. — Até mais tarde, cara. Vamos terminar esse capí tulo numa outra hora. Aproveite que o sol está quente para tomar um banho de piscina. Adone deve estar à sua espera no jardim. Nã o se esqueç a de passar o creme no rosto, e tome cuidado com o sol na cabeç a. — Vou tomar — disse Donna, levantando-se do banquinho. — Até mais tarde. Ela estava tensa, irritá vel, mas nã o era devido ao noivado de Adone. Conhecia muito bem a razã o do seu mau humor — Rick tinha passado aquela noite com Serafina! As olheiras fundas dela eram uma prova evidente. Embora nã o pudesse impedi-lo de agir assim, doí a saber que ele saí a dos braç os de uma para atirar-se nos braç os da outra! Com suas maneiras sensuais e sedutoras, Serafina levava-o a esquecer as horas que passara com Donna na casinha rú stica no meio do bosque, quando tinham trocado tantos beijos e abraç os, que só de lembrar a deixavam toda arrepiada. O dia estava belo e ensolarado, mas Donna nã o tinha a menor vontade de tomar banho de piscina com Adone, muito menos ficar sozinha na companhia do cavaleiro de pedra no pá tio interno da casa. Dirigiu-se por isso ao jardim da frente, que era mais alegre e arejado que o dos fundos. Ela desejava estar sozinha para refletir sobre tudo o que conversara com Serafina, mas seu desejo nã o foi atendido. Mal deu alguns passos embaixo dos galhos frondosos de uma á rvore, avistou Adone e Rick sentados numa mesa do jardim. Adone voltou-se ao ouvir seus passos e cumprimentou-a com um sorriso alegre. — Que bom você ter aparecido, querida! Eu queria mesmo conversar com você. Os dois homens estavam bebendo vinho tinto e beliscando uns pedacinhos de queijo com azeitonas. Havia també m fatias de pã o integral, presunto cru e bolachas de á gua e sal. Rick estava com uma camisa esporte aberta casualmente no peito. Donna gostaria de poder dizer que estava profundamente magoada com seu comportamento leviano, que era uma traiç ã o aos beijos e abraç os que os dois haviam trocado no dia anterior. A presenç a de Adone, poré m, impedia qualquer confissã o í ntima. — Eu estou sem trabalho — disse Donna, lanç ando um olhar de relance para Rick. — Serafina está com preguiç a de terminar o capí tulo do livro. Parece que ela dormiu muito bem ontem à noite. . . — Tome um vinho conosco — disse Rick, sem manifestar o menor sinal de que ouvira a indireta de Donna. — Adone, por favor, apanhe mais um copo e outra garrafa de vinho na copa. — Pois nã o — disse Adone, levantando-se da mesa e acariciando o braç o de Donna com os dedos. — Há um momento atrá s, quando você entrou no jardim, eu tive a impressã o exata de que você estava no claustro de um convento. Nã o sei se foi devido ao seu vestido claro ou à expressã o de tristeza no seu olhar. Você dormiu bem à noite? — Dormi como uma pedra. — Você nã o se importa de ficar um minuto sozinha com Rick? — Nã o, de jeito nenhum! — exclamou Donna, com uma risada. — Eu me sinto perfeitamente à vontade na companhia dele. Ele nã o me assusta mais como antes. Afinal, Rick é apenas um homem como outro qualquer. Ele també m tem seus furos na armadura, a despeito da aparê ncia de homem inacessí vel. — Ah, finalmente encontrei algué m que nã o se intimida diante da aparê ncia severa de Rick. Eu volto num minuto, querida. Adone dirigiu-se à porta da frente e Donna acompanhou-o um instante com a vista. Ao voltar a cabeç a, encontrou o olhar de Rick fixo no seu. Ele estendeu a mã o e segurou-a pelo pulso. Um tremor percorreu-lhe o corpo inteiro, como uma corrente elé trica. Ela retirou a mã o de cima da mesa e afundou as unhas na palma, para desfazer a impressã o que a presenç a dele produzia. — Adone está certo de que você quer namorar com ele — disse Rick em voz baixa. — E daí? Que mal há nisso? Você se julga porventura o ú nico homem desejá vel nesta casa? Eu sou inglesa, meu caro. Nã o se esqueç a de que somos uma raç a emancipada e voamos de flor em flor, como as abelhas, provando o sabor de cada uma. — Essa atitude cí nica nã o faz seu gê nero — disse Rick com o rosto sé rio, inclinando-se para trá s na cadeira de braç os, com o copo de vinho tinto na mã o. — Eu preferia como você era antes. — Eu també m nã o gosto quando você assume esse ar de superioridade — retrucou Donna, encarando-o no fundo dos olhos. — Nã o sou sua criada para você me tratar desse jeito. — Por que você acordou tã o agressiva? Já tomou café? Nã o quer provar um pedacinho desse queijo gorgonzola com presunto cru? É uma especialidade da casa. Prove uma fatia. — Muito obrigada, nã o estou com fome. — Ela afastou a cabeç a e observou uma trepadeira coberta de flores brancas e amarelas. — Os machos das borboletas atraem as fê meas levando o perfume nas asas — comentou Rick, acompanhando o olhar dela. — O sistema é inverso entre os seres humanos. — Nã o sei. . . O aroma do fumo e do creme de barbear é muito excitante. Felizmente, nã o sã o todas as mulheres que se deixam seduzir por essas ninharias. Algumas tê m a cabeç a no lugar. . — Ah, sim? — Ontem eu estava sonhando. . . delirando. — E agora você acordou? — Exatamente. Acordei para a realidade. Eu devia estar fora do meu juí zo normal quando permiti que você me beijasse. — Pelo que me lembro, você estava perfeitamente só bria. O que aconteceu nesse meio tempo? Por que essa amargura repentina? — Você nã o adivinha? Donna lembrou-se de Serafina, reclinada languidamente no sofá, as pá lpebras pesadas de langor sensual. — Nã o t& iiho ideia. — Sua amante está sabendo que você pula a cerca quando ela vira as costas? — Minha amante? Que amante? — Ah, nã o se faç a de sonso! Você sabe muito bem de quem estou falando. — Você se refere a Serafina? — É, ela mesma. Donna lembrou-se da sensaç ã o que experimentara no dia anterior. Rick conhecia a arte de excitar e satisfazer uma mulher. Só que para ela nã o podia haver satisfaç ã o duradoura. A amargura acompanhava sempre os momentos privilegiados de volú pia. Era insuportá vel morar na mesma casa que a mulher que possuí a o coraç ã o de Rick. A rejeiç ã o dele estava presente na sua lembranç a como um espinho na pele. — Você aprova agora a minha decisã o de nã o dar um passo precipitado? Está contente com isso? — Contentí ssima! — exclamou Donna, com insolê ncia. — Sua honestidade me deixa comovida. — O que você quer? Eu sou honesto por natureza — disse Rick com um risinho irô nico. — Se bem que eu també m caia em tentaç ã o, à s vezes. — Coitadinho! Você é tã o frá gil.. . — Eu tenho um coraç ã o sensí vel, querida. També m sofro, como os outros. — Pois nã o parece! — retrucou Donna, furiosa. — Por que você nã o me deixou em paz como eu pedi? Por que você tinha que me beijar e fingir que gostava de mim? — Fingir? — exclamou Rick sem se conter, apertando o copo de vinho na mã o. — Quem disse que eu fingi? — Você nã o estava fingindo, por acaso? Você brincou de apaixonado com a coitadinha da secretá ria inglesa. . . como nessas comé dias antigas que agradam tanto a Serafina! Você se divertiu à s minhas custas! Quando Serafina o solta da coleira, você dá suas fugidinhas em Roma e aborda as moç as desacompanhadas que estã o admirando as ruí nas da cidade. . . — Fale baixo! Adone vai voltar de um momento para o outro e ele nã o precisa saber que estamos discutindo. — Desculpe. Eu nã o vou falar mais nada. De fato, no instante seguinte Adone voltou com a garrafa e o copo na mã o. — Aqui está seu vinho, querida — disse Adone, servindo o vinho. — Rick, Serafina perguntou por você. Ela quer que você confira umas contas atrasadas. Ela diz que já pagou uma delas. . . — Eu vou ver do que se trata — disse Rick. Ele virou o resto do vinho e levantou-se da mesa. Donna voltou deliberadamente a cabeç a na outra direç ã o. Adone sentou-se ao lado dela com um sorriso de alegria. — À sua saú de, querida! — À nossa — disse Donna, encostando de leve no copo dele. — O que você s estavam conversando? — Nada de muito importante. — Você está uma tentaç ã o esta manhã, carina. Seus cabelos parecem um cá lice de champanhe cheio até a borda e sua pele é da cor de mel. Sua boca é grande, sensual. . . Posso provar o gosto que ela tem? — Nã o! Lembre-se de que você tem uma noiva em Florenç a. Adone arregalou os olhos. — Ah, era isso que você s estavam conversando na minha ausê ncia? Foi por isso que você s se calaram de repente quando eu cheguei! — Os olhos dele tornaram-se repentinamente frios, como duas contas verdes. A cicatriz no lá bio transformou-se numa careta de raiva. — Foi Rick quem contou isso a você? — Nã o, foi sua mã e. Ela está preocupada com a nossa intimidade. Eu expliquei a ela que nó s dois somos apenas bons amigos e que nã o passava disso. — O que mais ela falou? — Ela disse que Isabela é um doce de garota, que foi criada num colé gio de freiras e que fará você muito feliz. — Feliz uma ova! — exclamou Adone, furioso. — Você acha mesmo que eu vou me casar com essa guria? — Você nã o sente amor por ela? — perguntou Donna, com um risinho. — Sua mã e pelo menos está felicí ssima com o casamento. — Imagine! Na ú ltima vez que eu vi essa garota ela estava com um chapeuzinho vermelho afundado na cabeç a e duas tranç as caindo sobre os ombros. — Você nã o gosta de crianç as? — Eu aceitei o noivado na brincadeira, certo de que mamã e ia se esquecer disso daí a uma semana. — Mas ela nã o esqueceu. Pelo contrá rio, está fazendo muitos planos. Já marcou até a data do casamento. — Eu vou conversar com ela hoje mesmo e desmarcar esse casamento ridí culo. Era só o que faltava. . . eu me casar com uma garota educada num colé gio de freiras! Eu nã o sinto a menor atraç ã o por essa guria. Aliá s, para falar a verdade, eu já tinha me esquecido completamente dessa histó ria. Que situaç ã o absurda! O amor é desejo, é fome. . . e nã o isso! — Pelo jeito, você nã o tem outra saí da. — Quem disse? Vou anunciar a Serafina que vou me casar com você. A notí cia inesperada deixou-a muda de espanto. — Comigo? Você está sonhando! — Com você eu me sinto homem... O desejo arde em mim quando eu toco em você, querida. — Isso nã o é amor nem aqui nem na China! — Ló gico que é! Você nã o é mais crianç a, Donna. Você sabe tã o bem quanto eu que o amor é desejo fí sico, mesclado de tolerâ ncia e de ternura, sem falar nos conflitos habituais que ocorrem na vida do casal. Na minha noite de nú pcias eu quero ter nos braç os uma mulher ardente, e nã o uma guria trê mula e assustada, que nã o tem ideia do que deve fazer para agradar ao marido. Eu quero cabelos louros como champanhe sobre o travesseiro, uma boca de lá bios rosados colada à minha. Quero sentir a mulher desfalecer nos meus braç os. . . Os olhos dele estavam brilhantes de excitaç ã o e havia uma semelhanç a incrí vel com o olhar que Rick dirigia a Donna quando estavam a só s, como sucedera no dia anterior. — Você está delirando! — Juro que estou falando sé rio. — Vamos mudar de assunto, por favor! Toda essa histó ria de amor e de casamento é pura conversa fiada. Você nã o quer provar uma fatia desse presunto cru? Rick disse que é uma especialidade da casa. — Rick, Rick. . . Que me importa a opiniã o de Rick? Você só pensa nele? — Desculpe. Adone ajeitou-se na cadeira e bebeu um gole de vinho. — Por falar nisso, você já reparou que Serafina tem uma cicatriz no pulso? — Já. O que foi? — Ela cortou o pulso um dia. — Que horror! A troco de quê? — Rick tem um clube em Roma, que atualmente está sob a supervisã o de um gerente. Ele queria tomar conta do clube pessoalmente, mas Serafina nã o lhe deu autorizaç ã o para se afastar daqui. Ele insistiu, poré m, e ela, só de raiva, cortou o pulso. . . — Que horror! — Terrí vel, nã o? Algumas mulheres sã o capazes de tudo para conservar o homem de quem gostam. — Ela deve gostar, muito dele, nesse caso. — Você faria isso por um homem? — Quem, eu? Nunca! Preferiria sofrer as piores privaç õ es, mas nã o faria nunca uma coisa dessas. — Você é boa. Eu vejo isso nos seus olhos. Você é igual por fora e por dentro. Ê por isso que eu gosto tanto de você! Adone segurou-a pelas mã os e puxou-a na sua direç ã o. — Juí zo, Adone! Você prometeu que ia se comportar bem. — Eu quero você para mim, Donna. Seja minha mulher, minha amiga, minha irmã! — Nã o! — exclamou Donna com um gesto brusco, levantando-se da cadeira. — Você nã o pode romper o noivado e deixar Isabela de coraç ã o partido. Você tem que manter a palavra que deu. Você sabe como essas coisas sã o levadas a sé rio na Itá lia. — Mas nó s podemos fugir para longe, você e eu! Ningué m vai nos encontrar. — E nó s vamos viver de quê? De brisa? Você nunca trabalhou na vida, Adone. Você dependeu sempre da mesada de sua mã e. . . Adone virou uma fera ao ouvir aquelas palavras. Os olhos verdes estavam brilhantes de ó dio. Donna ficou tã o assustada que saiu correndo por entre as á rvores em direç ã o à sua sala de trabalho, que ficava nos fundos da casa. Ouviu Adone correr ao seu encalç o. Ofegante, morta de medo, ela entrou precipitadamente na sala e tentou fechar a porta atrá s de si. Adone, poré m, foi mais rá pido. Ele a segurou pelos ombros com violê ncia e rodou-a na sua direç ã o, de modo a encará -la de frente. Os olhos dele estavam injetados e brilhantes como os de um felino. Donna ficou aterrorizada com a expressã o primitiva e cruel que havia na fisionomia dele. — Solte-me! — berrou, transida de medo, tentando libertar-se das mã os dele. — Você está me machucando, seu bruto! Os dedos dele afundaram sem piedade na carne macia dos seus ombros. — Diga outra vez que eu vivo à s custas de uma mulher! Antes que Donna pudesse se defender, Adone a levantou nos braç os e atirou-a no chã o. Sem perda de tempo, saltou sobre ela e rasgou o vestido até a cintura, com a brutalidade de um selvagem. Donna debateu-se e deu pontapé s, desesperadamente. Adone no entanto possuí a uma forç a incrí vel, que parecia triplicada pela fú ria que o assaltava naquele momento. Donna lembrou, horrorizada, da histó ria que ouvira contar certa vez. Um homem furioso matou uma mulher sem querer, ao possuí -la à forç a. — Por que você me rejeita? — Adone rosnou, puxando-a pelos cabelos. — Você tem nojo de mim? Era um verdadeiro pesadelo. Quanto mais forç a ela fazia para se libertar das mã os dele, mais resistê ncia encontrava. — Pelo amor de Deus, Adone! Você está me sufocando! — Pode rogar por todos os santos do cé u! — exclamou Adone, desferindo um tapa com a mã o-aberta na boca dela, que arrancou sangue dos lá bios. — Você vai aprender o que é se meter comigo! — Pare com isso! Pare! Socorro! Donna continuou gritando sob as mã os fortes que a seguravam pelos cabelos. Adone parecia realmente um animal selvagem que era impossí vel dominar. Até mesmo a voz estava alterada pelo desejo e pelo ó dio. Alé m disso, estava com os olhos injetados, vermelhos e um fio de baba escorria de sua boca entreaberta. Era esse o belo Adone que Serafina desejava transformar num í dolo do cinema? No momento ele nã o tinha nenhuma semelhanç a com Rick. Ele parecia simplesmente uma figura odiosa. Donna enterrou os dedos no tapete da sala e aguardou com ansiedade o momento em que Adone se distraí sse para derrubá -lo no chã o com uma pernada. Ao notar que havia chegado o momento oportuno, ela levantou o joelho na altura da virilha e golpeou-o sem piedade no seu ponto sensí vel. Adone deu um berro de dor e caiu para trá s, contorcendo-se em cima do tapete. Donna nã o perdeu um segundo. Pulou de pé e saiu correndo pela porta da sala, com um desespero que nunca experimentara antes na vida. Estava ofegante e com o coraç ã o batendo alucinadamente quando chegou ao hall da frente. Mirou-se rapidamente no espelho que havia ao pé da escada e viu que o vestido estava rasgado até a cintura. Alé m disso, uma alç a do sutiã tinha se partido durante a luta corporal. Ela apertou os panos rasgados do vestido contra o peito e subiu as escadas de dois em dois degraus, tremendo dos pé s à cabeç a e procurando apoiar-se no corrimã o para nã o escorregar. Por que Adone se comportara daquela forma alucinada, como se tivesse duas personalidades distintas, uma delicada e carinhosa, a outra selvagem e primitiva? Donna lembrou-se da luta travada no tapete da sala e estremeceu ao pensar que podia ter sido possuí da brutalmente por um homem que estava fora do juí zo normal. Era verdade entã o o que diziam nos tribunais. . . Muitas vezes um homem furioso perdia a cabeç a é brutalizava a mulher que conhecia na intimidade e com quem convivia na mais perfeita harmonia. Ao chegar ao ú ltimo degrau da escada, ela se dirigiu rapidamente para seus aposentos no fim do corredor. No mesmo instante, poré m, avistou Rick parado diante da porta do quarto de Serafina. A perplexidade estava estampada em sua fisionomia. A visã o que tinha diante dos olhos era tã o surpreendente e inesperada que ele ficou mudo durante alguns segundos, com a boca aberta e os olhos arregalados.
|
|||
|