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CAPÍTULO IV



 

 

Havia sempre um capí tulo novo no gravador para ser batido à má quina. Serafina nã o dormia bem à noite e aproveitava essas horas para ditar as recordaç õ es de sua vida. Como a narraç ã o era interes­sante, repleta de episó dios dramá ticos, Donna encontrava sempre um estí mulo novo no trabalho.

Foi ao ouvir essas narrativas no gravador que Donna compreendeu a verdadeira razã o pela qual os homens se apaixonavam pela ex-atriz. A voz de Serafina era quente, comunicativa, acariciante e tinha um timbre envolvente. Segundo contavam, muitos atores e produtores de cinema tinham tentado obter seus favores. Sem falar em polí ticos influentes, magnatas, banqueiros poderosos.

Serafina mencionava na autobiografia as jó ias que ganhara de presente dos seus admiradores, os casacos de peles que recusava sistematicamente, porque nã o admitia que animais belos como a marta fossem sacrificados por razõ es tã o frí volas. Poucas mulheres, na opi­niã o dela, podiam rivalizar em elegâ ncia com o leopardo, em beleza com o tigre, em graç a com o filhote da foca. Se bem que alguns homens, especialmente os italianos que ela conhecera na Sicí lia, tinham a agilidade do leopardo. Segundo Serafina, os atores italianos em geral tinham mais seduç ã o, cortesia, sensualidade e bravura do que os outros. Nã o era de admirar que um dos astros mais conhecidos de todos os tempos, Rodolfo Valentino, fosse natural da Itá lia.

Donna sorriu ao ouvir as confissõ es da ex-atriz. Nã o havia dú vida alguma de que Serafina era franca em suas opiniõ es. Entretanto, havia intervalos inexplicá veis em algumas seç õ es da narrativa, sobretudo nas que se referiam à s primeiras partes do livro.

Por exemplo, Serafina nã o mencionava nunca a existê ncia de Rick. Qual era a razã o desse sigilo? Ela temia por acaso que Adone lesse suas memó rias e descobrisse os fatos verdadeiros de sua paternidade? Ningué m, a nã o ser Rick, tinha consciê ncia desse segredo. Se Donna suspeitara de alguma coisa, foi devido à semelhanç a incrí vel que havia entre os dois homens. De certa forma, era um segredo explosivo. Os comentá rios maldosos nã o terminariam tã o cedo se os conhecidos descobrissem que Adone era filho ilegí timo de Rick.

Em dado momento, os dedos há beis de Donna pararam sobre o teclado da má quina de escrever. Lembrou-se repentinamente do baile à fantasia em Roma, quando danç ara de rosto colado com Rick, sob os lustres esplê ndidos de cristal que refletiam milhares de facetas lumi­nosas no teto. Recordou a emoç ã o que experimentou ao ser enlaç ada por Rick, a conversa interminá vel que tiveram no terraç o do hotel. Ele desempenhara provavelmente um papel româ ntico naquela ocasiã o. Deixara-a entrever o fatalismo que aproximava duas pessoas e que as separa em seguida para sempre.

Rick nã o devia ter representado esse joguinho, pensou Donna, repentina-mente furiosa, sobretudo porque sabia perfeitamente que ela fora contratada por Serafina como secretá ria de lí ngua inglesa e que os dois voltariam a se encontrar muitas e muitas vezes no futuro, pelo menos durante o perí odo em que durasse a elaboraç ã o do livro. Rick derrubara impiedosamente suas defesas naquela noite. Ela abandonara a cautela que mantinha habitualmente nos encontros com desconhecidos. Rick a seduzira de uma forma traiç oeira e Donna sentia-se agora triste e magoada com seu comportamento. De repente, nã o suportou mais ouvir a voz melodiosa de Serafina no gravador. Desligou o aparelho com um gesto brusco, atravessou a sala e dirigiu-se ao pá tio interno, onde estava a está tua equestre do cavaleiro negro. Estava a meio caminho do seu destino quando pressentiu a presenç a de algué m apoiado ao tronco do abacateiro, semi-escondido pelas folhagens dos arbustos. Do lugar onde estava, podia avistar apenas a fumaç a azulada que subia por entre os ramos baixos da á rvore.

Sua primeira reaç ã o foi voltar à sala. Entretanto, estava muito perto dele para recuar. Apó s vencer o primeiro movimento de indecisã o e de pâ nico, continuou a caminhar lentamente em direç ã o ao banco de pedra que havia perto da está tua e sentou-se ali com toda a natu­ralidade, como se estivesse descansando alguns minutos do trabalho ininterrupto.

— Senti sua falta ontem à noite. Onde você estava?

— Trabalhei até tarde. Havia um problema no quinto capí tulo e fui obrigada a rebatê -lo.

— Você está trabalhando demais! Olhe lá, nã o vá cair doente.

— Nã o tem perigo. Eu estou gostando muito do trabalho e o livro está progredindo rapidamente.

— Você está abatida.

Donna voltou-se na direç ã o da voz é avistou o brinco de ouro na orelha, por baixo dos cabelos negros. Notou també m que Rick estava usando uma camisa de seda preta, justa no corpo, e botas de cano alto. Ela estremeceu quando seu olhar esbarrou no dele.

— Acordei com um pouco de dor de cabeç a esta manhã. Mas nã o é nada, logo vai passar.

— Você nã o quer tomar um copinho de vinho rose? Os sicilianos costumam dizer que o vinho rosado cura todos os males da alma e do corpo.

— É mesmo? É bom eu saber. . . Mudando de assunto, por que esse cavaleiro de pedra está aqui no pá tio? Por alguma razã o especial?

— Você conhece a histó ria da está tua que ressuscitou numa noite de luar?

— Conheç o. A está tua se aproximou da janela de um chalé, onde morava uma rapariga de cabelos louros, e deixou de lembranç a com a moç a um dedo de má rmore.

— Ah, os romances gó ticos sã o terrí veis! Eles marcam a memó ria da gente. — Rick replicou, zombando.

— Todas as histó rias româ nticas deviam ser confinadas na nossa imaginaç ã o.

— O que você diria se esse valente cavaleiro de pedra subisse um dia na janela do seu quarto? Você gritaria? Chamaria por socorro?

— Nã o sei o que eu faria.

Embora Donna percebesse que havia nos olhos de Rick uma ex­pressã o visí vel de ironia, a pergunta nã o deixava de ter seu lado sé rio. Assustada com a possibilidade de que o sonho se concretizasse um dia, ela se levantou do banco com um movimento brusco e voltou à sala de trabalho. No instante seguinte, poré m, ouviu os passos mar­telados das botas nas pedras miú das do pá tio. Tensa e assustada, apoiou-se na mesa de trabalho e fixou de olhos arregalados a figura alta e morena que estava na sua frente.

— Por que você está fugindo de mim ultimamente? Pensei muito em nó s dois desde aquela noite em Roma.

— Por favor, vá embora. Você nã o pode ser visto aqui.

— Nã o precisa ter medo. Eu nã o vou pular a janela do seu quarto à noite. Vim aqui apenas para ver como está o trabalho. Afinal, eu també m sou personagem do livro. Ou será que meu nome foi omitido?

— Até agora você nã o apareceu nenhuma vez.

Donna esforç ou-se para manter a calma e comportar-se com natu­ralidade, na presenç a de Rick, mas era impossí vel. Seu coraç ã o dispa­rava toda vez que se encontrava a só s com ele.

— Que curioso! Quer dizer que Serafina preferiu silenciar sobre minha existê ncia?

— Talvez.

— Se você escrevesse um livro de memó rias, o que você diria de mim?

Donna encarou-o no fundo dos olhos, sem pestanejar.

— Eu diria que você é o tipo de homem que vai para a cadeira elé trica com um cigarro na boca.

— Errou! Eles nã o deixam ningué m fumar nessa hora. Eles amar­ram o pobre coitado na cadeira e põ em uma venda nos olhos.

Donna tremeu ao ouvir a descriç ã o realista de Rick e esfregou os braç os, como se estivesse com um arrepio de frio. No mesmo ins­tante, ele apanhou o telefone em cima da mesa e discou o nú mero da copa. Em lugar do cafezinho habitual, pediu ao copeiro que arru­masse uma bandeja com os bolinhos de minuto, alguns sanduí ches de queijo e um copo de vinho rose.

— O vinho rose de nossa colheita — repetiu.

— Por que você fez isso? — indagou Donna, sem jeito, ligeira­mente corada. — Eu nã o devo beber quando estou trabalhando.

— Hoje é uma exceç ã o. Você está muito pá lida e um copo de vinho lhe fará bem. Infelizmente eu nã o posso lhe fazer companhia porque Serafina está me esperando.

Donna ouviu a desculpa com a sensaç ã o exata de ter raspado o rosto numa cerca de arame farpado. Era natural que Serafina gozasse de prioridade. Rick podia flertar com a secretá ria para se distrair, mas nã o se atrasava um minuto no seu dever — que era acompanhar Serafina a toda parte, como um fiel guarda-costas.

— Nã o se atrase por minha causa. Vá embora antes que ela fique impaciente.

— Nã o há pressa.

— Depois nã o vá botar a culpa em mim.

— Nã o tem perigo. Por falar nisso, você está gostando daqui ou está se sentindo muita sozinha neste mato?

— Estou gostando muito. Nã o fazia ideia de que a costa italiana fosse tã o bela.

— Há alguns lugares realmente lindos. Você gostaria de conhecê -los?

— Quando?

— Depois do almoç o. Durante suas horas livres.

Donna lembrou-se de que Serafina costumava descansar no iní cio da tarde, da uma à s trê s, regularmente, nã o apenas para manter a aparê ncia jovem como també m porque dormia mal à noite.

— Eu nã o posso.

— Por quê? Você tem alguma coisa contra os encontros secretos?

— Nã o, nada, a nã o ser que sã o muito arriscados, especialmente no meu caso.

— Escute, minha querida, vamos deixar as decisõ es sensatas para as pessoas de mais idade. Nenhum de nó s dois está nesse caso. Você quer tomar parte numa conspiraç ã o?

Donna sentiu o impulso de recusar e, ao mesmo tempo, de aceitar a proposta estranha.

— Nã o, de jeito nenhum! — exclamou por fim, seguindo a adver­tê ncia de seu bom senso de que havia um perigo enorme em aliar-se a Rick numa conspiraç ã o contra Serafina.

— Você nã o refletiu suficientemente sobre o assunto.

— Nã o é preciso refletir duas vezes para saber que esse joguinho é perigoso.

— Tudo é perigoso — comentou Rick, com um sorriso irô nico no canto dos lá bios, que lembrava incrivelmente o de Adone em certas ocasiõ es. — Você tem medo de arriscar a pele, é isso?

— Eu nã o quero perder meu emprego.

— Prometo que tudo será feito com extrema discriç ã o. Você nã o confia em mim?

— As moç as que confiam nos homens sempre saem perdendo.

— Você diz isso por experiê ncia pró pria?

— É. Eu nã o quero me envolver com você. Está claro agora? Por que você nã o me deixa em paz no meu cantinho? Você disse certa vez que deví amos manter distâ ncia um do outro, como se fô s­semos estranhos.

— Isso diante dos outros. Mas nã o na intimidade.

— E quem disse que eu desejo manter intimidade com você? Você pertence a Serafina, é seu escravo dedicado e fiel.

— Eu nã o sou escravo de ningué m, bella.

— Como nã o? Você faz tudo o que ela manda.

— Há coisas na minha vida que nã o quero mencionar. De qual­quer maneira, a decisã o é sua. Podemos nos encontrar em segredo, sem ningué m saber. Se você nã o tem coragem ou nã o quer correr o risco, tudo bem...

— Eu nunca mantive uma relaç ã o clandestina com ningué m e nã o vai ser agora que vou fazer uma exceç ã o.

— Sei perfeitamente que você nunca manteve. Você acha que eu, um siciliano, nã o perceberia isso? Por acaso eu dei algum dia essa impressã o?

O rosto dele tornou-se frio como pedra, mas Donna nã o queria que Rick fosse de pedra. Desejava passar algumas horas furtivas com ele, vê -lo sorrir, ouvi-lo falar, fingir que ele era dela e nã o de Serafina. Notou que havia uma grande solidã o na vida dele, a despeito do relacionamento que mantinha com Serafina, mulher possessiva, egoí sta, a quem faltava o verdadeiro calor humano.

— E nã o é isso que você quer ter comigo? Uma simples aventura?

— Nã o, juro que nã o! — exclamou Rick, impaciente, correndo os dedos entre os cabelos negros. — Você lembra daquela noite em Roma? É só isso o que quero, juro!

— Ah, eu conheç o você. . .

O desejo de se atirar nos braç os dele era incontrolá vel. Desde a primeira noite em, Roma algo se acendera dentro dela e o fogo ardia em surdina desde entã o. Toda vez, poré m, que se encontrava a só s com ele, a chama ardia com mais intensidade e Donna lutava para se controlar. Se fossem surpreendidos por Serafina nos braç os um do outro, haveria uma cena terrivelmente desagradá vel. Rick pertencia a ela e nada podia alterar essa fatalidade, nada.

— Você aceita minha sugestã o? — insistiu Rick, dando um passo à frente.

No instante seguinte, como se ele també m tivesse perdido o controle da situaç ã o, Donna foi enlaç ada pelos braç os fortes e estreitada con­tra seu peito. Imediatamente ela teve a impressã o de ser uma massa informe nos braç os dele. Era a sensaç ã o mais assustadora e excitante que já experimentara na vida. Parecia que estava se derretendo, que ia desfalecer de um momento para o outro, que nã o havia uma uniã o mais total que aquela. E era inevitá vel que isso sucedesse, mais dia menos dia... Os lá bios se encontraram e se derreteram um no outro, até o instante em que Donna sentiu falta de ar e afastou a cabeç a, de olhos arregalados, com uma expressã o de pâ nico.

— Nã o, por favor, nã o!

— Fale baixo — murmurou Rick, segurando-a pelos cabelos e fitando-a no fundo dos olhos, a porta está aberta e se ouve tudo do corredor.

— Isso nã o está certo!

— Nada está certo.

Rick estreitou-a nos braç os e afundou a cabeç a nos seus cabelos. Apó s uma breve tentativa para se soltar, Donna abandonou-se final­mente ao prazer do momento. Que importâ ncia tinha tudo o mais? Era sua fome de amor que precisava ser saciada.

— Isso tinha que acontecer, mais cedo ou mais tarde — sussur­rou Rick junto ao seu ouvido. — Como é possí vel morar na mesma casa, comer na mesma mesa e evitar as ocasiõ es de cair em tentaç ã o? Você é a minha sina e eu perco a cabeç a. Eu nã o posso deixar de querê -la.

Ela estava trê mula e lâ nguida quando Rick a beijou no rosto, nos ouvidos, no pescoç o, no colo descoberto, segurando-a pelos cabelos e virando a cabeç a dela de um lado para o outro, segundo ditava seu desejo do momento, como se ela fosse uma boneca em suas mã os, fazendo-a desfalecer de prazer quando a beijava na nuca — um beijo ú mido que parecia entrar pele adentro —, ou mordia os ló bulos de suas orelhas com dentes de animal feroz.

— Você me mata!

— Juro que nã o é só desejo que existe em mim! Você acredita?

— Acredito, Rick!

Ele deu um suspiro fundo e passou a palma da mã o sobre o rosto molhado e vermelho de prazer.

— Você gosta de mim?

— Eu adoro você. E você sabe disso e se aproveita de mim. Ele sorriu e encarou-a no fundo dos olhos.

— Você nã o tem medo de mim? Eu viro bicho quando perco a cabeç a.

— Ah, Rick, nã o diga essas coisas. Você me assusta!

Ele afastou a mecha de cabelos louros que caí a sobre a testa suada de Donna.

— Passe um pente nos cabelos antes que algué m entre na sala e suspeite de alguma coisa. Você está com cara de quem andou fazendo o que nã o deve...

— A culpa é sua.

Donna abriu a gaveta da escrivaninha e apanhou o pente e o estojinho de maquilagem. Sentou-se na cadeira e penteou os cabelos com as mã os trê mulas. No fundo do seu coraç ã o havia um leve senti­mento de culpa pelo que tinha acontecido. Rick nã o era livre para fazer o que bem entendia e nã o podia jamais esperar o perdã o de Serafina por ter beijado uma outra mulher nas suas costas.

Ela tinha acabado de guardar o pente ê o estojinho de maquilagem na gaveta quando ouviram passos no corredor. Os dois se voltaram ao mesmo tempo e avistaram Serafina parada no meio da soleira, como se estivesse emoldurada pela porta, com um vestido longo cinza-prata, de mangas amplas e um decote fundo que descobria os seios bem-feitos.

Os cabelos soltos batiam em cima dos ombros e um colar de pé ro­las brilhava no colo roliç o. Quando ela deu um passo à frente, Donna avistou alguns fios prateados entre a massa negra de cabelos lisos. Rick continuou apoiado na beira da mesa, como se estivesse absorto na leitura de uma pá gina datilografada do livro de memó rias. Com a mã o livre, acendeu o cigarro que estava apagado entre os lá bios.

— Ah, você está aqui! — exclamou Serafina, dirigindo-lhe um olhar severo por baixo das pestanas compridas que acentuavam o ar sombrio dos olhos. — Eu o procurei pela casa inteira. O que você está fazendo aqui?

— Vim ver como está indo o livro. Fiquei curioso em conhecer o conteú do.

— O que você deseja saber?

— Muitas coisas.

— Quais, por exemplo?

— Por que você silenciou sobre minha existê ncia?

Serafina balanç ou os ombros com petulâ ncia e voltou a cabeç a na direç ã o de Donna, os olhos duros e frios como pedras verdes. Ela percorreu a secretá ria com a vista de alto a baixo, sem cerimô nia. Exteriormente, Donna estava perfeitamente apresentá vel; por dentro, no entanto, o tumulto e a desordem tomavam conta de sua mente. Seus nervos estremeceram de susto ao imaginar a cena que Serafina faria se houvesse surpreendido os dois alguns minutos antes.

— Você nã o usa ó culos para trabalhar?

— Uso — respondeu Donna, sem jeito.

— Por que você os tirou? Para ficar mais bonita diante das visitas?

— Nã o, nã o foi por isso! — respondeu Donna, com vivacidade. Os ó culos estavam ao lado do bloco de anotaç õ es, no mesmo lugar onde Donna os colocara quando se dirigira ao pá tio, a fim de descan­sar alguns minutos de um trabalho ininterrupto. Teria sido mil vezes preferí vel nã o ter saí do da sala e nã o ter encontrado Rick lá fora.

Agora, pelo menos, nã o estaria morrendo de vergonha diante da figu­ra severa de Serafina.

— A culpa é minha — disse Rick, com indolê ncia, ainda segu­rando a folha batida à má quina. — Fui eu que vim aqui perturbar o trabalho de sua secretá ria.

Havia um ar de insolê ncia tã o grande na sua postura que nã o condizia em absoluto com sua funç ã o de guarda-costas. Era evidente que Rick nã o vivia sob as asas de Serafina e que punha as manguinhas de fora toda vez que julgava necessá rio.

Donna apanhou os ó culos em cima da mesa e apertou-os com forç a na palma da mã o. Era ridí culo pensar que um homem com as qualidades de Rick sacrificaria todos os seus desejos e ambiç õ es a fim de dedicar-se exclusivamente a uma mulher como Serafina — apenas por uma questã o de lealdade profissional. Donna compreen­deu pela primeira vez que Rick era o verdadeiro senhor da casa. Alé m de proteger Serafina e sua fortuna, impunha o regime do patriarcado. Como ela nã o percebera isso desde o primeiro momento? Rick nã o afirmara certa vez que nã o se considerava escravo de mulher alguma?

— Eu já estou atrasada — disse Serafina, estendendo a mã o para Rick. — Você podia ter me avisado ao menos que ia passar aqui primeiro.

— Desculpe. Eu me esqueci — disse Rick, beijando a mã o que Serafina lhe estendeu.

Donna sentiu uma pontada de ciú me ao presenciar a intimidade que havia entre os dois e desejou de todo coraç ã o poder odiá -lo e nã o ser sujeita à s oscilaç õ es de humor que experimentava na presenç a dele.

Agora a verdade estava clara como o dia! Serafina é que era a escrava de Rick, e nã o o inverso, como havia pensado inicialmente. Donna estava com as mã os trê mulas quando colocou as folhas de carbono na má quina, entre as có pias que ia bater.

— O que você achou das pá ginas que leu? — perguntou Serafina. A curiosidade em ouvir a opiniã o de Rick foi mais forte que sua pres­sa em sair da sala. — Você gostou?

— Gostei muito. Tenho certeza de que o livro será um sucesso.

— Eu me limitei a contar os fatos interessantes de minha carreira no cinema.

— Você fez bem. Esta é a maneira mais viva de narrar uma histó ria.

— Você acha que os leitores vã o entender?

— Claro que sim! Você tem alguma dú vida?

— Deus o ouç a, meu querido! — exclamou Serafina, com um sorriso de felicidade. — Eu quero ter muitos leitores. . .

Serafina e Rick estavam de saí da quando o criado entrou na sala com a bandeja do café. No instante em que Serafina avistou o copo de vinho rose, franziu a testa com uma expressã o de contrarie­dade.

— O que é isso? Quem mandou você trazer esse copo de vinho?

— Fui eu que mandei — interveio Rick, com vivacidade. — Sua secretá ria nã o estava passando muito bem e eu pensei que um copo de vinho rose lhe faria bem.

— O que ela tem? — perguntou Serafina, com voz gelada, sem se voltar para Donna.

— Você tem que reconhecer, querida, que Donna está traba­lhando demais e que ontem ela ficou acordada até tarde para rebater um capí tulo.

Serafina voltou-se para Donna com a fisionomia fechada.

— Você se queixou com algué m de que eu estou lhe dando tra­balho demais?

— Nã o, claro que nã o! — respondeu Donna, controlando com dificuldade sua indignaç ã o. — Nã o fui eu que pedi esse copo de vinho. Se eu estou meio pá lida esta manhã é porque nã o tenho tomado sol nestes ú ltimos dias.

— Coitadinha! Você nã o tem tempo para vestir seu biquini e expor-se seminua aos olhares dos empregados da casa. . .

— Eu nã o uso biquini — disse Donna, vermelha como um pimentã o.

— Como você toma banho de sol, entã o? Nua em pê lo?

— Eu nã o tenho esse há bito. Reconheç o que vim aqui para tra­balhar e nã o para tomar banho de piscina. Sei que nã o sou uma convidada da casa, muito menos uma hó spede. Gosto do meu trabalho e nã o estou me queixando de nada.

— Ainda bem. Eu estou lhe pagando um excelente ordenado e nã o vejo motivo para você se queixar de excesso de trabalho. Outra coisa... No futuro, prefiro que você nã o beba vinho nem outras bebidas alcoó licas durante o trabalho.

Donna sentiu uma onda de calor lhe subir à cabeç a. Sua primeira reaç ã o foi atirar o copo de vinho na cara de Serafina. Controlou-se com dificuldade e ouviu em silê ncio a repreensã o que nã o merecia. Sua raiva deve ter transparecido no rosto, pois Rick conduziu mais do que depressa Serafina para fora da sala.

— Vamos, querida. Por que fazer uma cena por causa de uma bobagem insignificante? Há mais vinho na adega da casa do que podemos beber a vida inteira. . .

Donna respirou aliviada quando os dois saí ram finalmente da sala. Voltou a sentar-se diante da má quina e afundou a cabeç a entre as mã os. Tudo saí ra errado naquela manhã. Ela se sentiu completamente confusa e desorientada. Nã o sabia o que pensar de Rick. Estava sendo honesto com ela ou se aproveitava de sua inexperiê ncia? Era terrí vel estar tã o apaixonada assim por um homem, especialmente por um homem maduro e vivido que pertencia de corpo e alma a outra mulher.

Lembrou-se da conversa que tivera com Adone no carro. Rick se vingara a sangue-frio do assassino de sua mã e. Era prová vel que essa tragé dia da infâ ncia o houvesse transformado no homem que era atualmente. Nã o apenas tinha endurecido seu coraç ã o como mar­cado sua mente.

Serafina era bela, fascinante como poucas e tinha o talento da representaç ã o dramá tica. Mas será que sabia confortá -lo nos momen­tos de tristeza? Na ú nica noite em que passaram juntos em Roma, Donna notou que Rick sentia falta de calor humano e era essa quali­dade provavelmente que Serafina nã o tinha para lhe dar.

Ou será que ela estava sendo de novo terrivelmente ingê nua na sua opiniã o sobre Rick? Assassino, jogador, amante de uma milioná ria que vivia apavorada com a ideia de ser sequestrada. . . Rick era tudo isso, no fundo.

Donna estendeu a mã o e passou a ponta do dedo na beira do copo de cristal. Rick dissera que o vinho rose aquecia o coraç ã o até de uma está tua de pedra. Era isso que ela desejava no í ntimo — que algué m aquecesse seu coraç ã o. Sentiu um calafrio e, sem pensar duas vezes, levou o copo de vinho aos lá bios.

No mesmo instante o vinho correu pelas veias, provocando uma sensaç ã o deliciosa de calor. Era inegá vel que havia um prazer doce-amargo nos momentos que passava na companhia de Rick. De agora em diante, no entanto, estava decidida a manter distâ ncia dele, pelo menos enquanto estivesse sujeita a essas flutuaç õ es de humor na sua presenç a. Acima de tudo, nã o podia correr mais o risco de ser nova­mente beijada por ele.

O olhar que Serafina lhe lanç ou da porta, antes de sair da sala na companhia de Rick, era cortante e gelado como o fio de uma navalha. Serafina faria qualquer coisa para impedir que uma outra mulher lhe roubasse o amante. O laç o entre os dois estava cimentado há muitos anos e nã o podia ser desfeito de uma hora para a outra, muito menos por algué m inexperiente como ela. A verdade indiscutí vel, contra a qual era inú til se revoltar, era que Rick pertencia de corpo e alma a Serafina. Nenhum dos dois era livre para romper o laç o forte que os unia.

 



  

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