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CAPÍTULO V



 

 

A manhã estava radiante. Os raios dourados do sol teciam desenhos em cima da cama no momento em que Donna acordou e espreguiç ou os braç os, vestida com uma camisola leve de ná ilon. Viu as manchas claras de luz que se moviam sobre os afrescos do teto e douravam os rostos dos anjos gorduchos, como se estivessem flutuando no alto das nuvens. Apó s cinco semanas na Villa Imperatore, Donna estava perfeitamente ambientada ao pequeno quarto confortá vel com corti­nas grossas, tecidas à mã o, e mó veis de vime. Da sacada do quarto ela avistava as cocheiras da casa. Até entã o nã o tivera tempo para andar a cavalo, mas Serafina insistia sempre para ela dar uma volta pelos arredores.

Muito frequentemente havia convidados na casa, que trotavam em cavalos bem tratados pelas alamedas de cascalhos miú dos que leva­vam ao pé do morro. Serafina costumava acompanhar seus amigos em um arreio de mulher, no qual as duas pernas caí am para o mesmo lado. Envolta numa manta verde e com um chapé u de abas largas encobrindo os olhos, ela parecia uma dama do iní cio do sé culo. Serafina usara esse traje num dos seus filmes favoritos e, como era atriz e fazia o que bem entendia, podia dar-se ao luxo de andar com essa indumentá ria sem parecer ridí cula.

Serafina passeava em geral a cavalo na companhia de Rick, muito bonito usando culote e botas de cano alto. Será que Rick se lembrava durante esses passeios da fazenda dos pais na Sicí lia? Tinha sonhos e ambiç õ es que nã o confiava a ningué m, nem mesmo a Serafina?

Os dois faziam um par invejá vel, pensava Donna, observando-os de trá s da cortina do seu quarto. Um dia ela ouviu uma voz alta chamá -la do pá tio.

— Donna, chegue na sacada!

Ela fingiu que nã o estava no quarto e permaneceu imó vel onde estava, certa de que Rick nã o podia vê -la atrá s da cortina.

— Eu sei que você está no quarto! Se você nã o aparecer na janela, eu vou subir aí!

— Nã o, nã o faç a isso! — exclamou Donna, aparecendo na sacada. — O que você quer?

— Quero pedir desculpa pelo que aconteceu.

— Nã o foi nada.

— Serafina ficou com ciú me de você.

— Eu percebi. A reaç ã o dela foi perfeitamente natural. Ela gosta de você e nã o quer dividi-lo com mais ningué m. Eu nã o quero ser motivo de briga entre você s dois. Prefiro ficar no meu canto. . .

— Isso inclui Adone també m?

— Claro.

— Pois nã o parece. Você s dois estã o muito amigos de uns tempos para cá. Outra noite ouvi as mú sicas que você s tocaram no piano. Por sinal, você toca muito bem. O que você vai fazer hoje à noite? Tem algum programa?

— Adone vai me levar a uma festa no iate de uns amigos — disse Donna, procurando aparentar naturalidade; na realidade, estava tensa com a presenç a de Rick embaixo da sacada.

Só o fato de falar em festa trazia à lembranç a a noite passada em Roma, quando os dois danç aram até de madrugada. Ela tentara transferir para Adone o que sentia por Rick, mas era impossí vel. Desejava ardentemente o contato fí sico de seus braç os e a distâ ncia que mantinha dele era mais dolorosa do que uma separaç ã o definitiva. A dor fí sica podia ser suportada com paciê ncia, mas o sofrimento da frustraç ã o era insuportá vel. — Ele nã o disse nada a você?

— Nã o. Tenha juí zo — acrescentou Rick, com a fisionomia repen­tinamente dura. — Adone é muito insinuante e obté m tudo o que deseja. Eu preferia que você nã o fosse a essa festa. Adone tem alguns amigos que nã o sã o absolutamente do meu agrado.

— Você nã o manda na minha vida! — exclamou Donna, com um risinho nervoso. — Desde quando você toma conta de mim? Aliá s, para iní cio de conversa, você é muito mais perigoso do que Adone.

— Ouç a o que eu estou dizendo. Eu conheç o Adone como a palma da minha mã o. Ele possui um temperamento ardente e nã o admite ser contrariado em nada. E já observei a maneira como ele olha para você. Vi o desejo nos olhos dele.

De fato, havia um aspecto perigoso em Adone, um traç o que ele herdara, por sinal, de Rick.

— Nã o tem perigo — disse Donna, com a voz aparentemente segu­ra. — Eu sei tomar conta de mim mesma e Adone respeita meus sentimentos.

— Que sentimentos? Para que dar esperanç as quando você sabe que nã o pretende satisfazê -las?

— O que você quer dizer com isso?

— Meu pensamento está bem claro. Você nã o é mais crianç a. Ouç a o que lhe digo: mantenha distâ ncia de Adone e dos amigos dele. Para o seu pró prio bem.

— Chega de conselhos! — exclamou Donna, furiosa com a atitude paternalista de Rick. — Nã o banque meu pai. Eu vou aonde eu bem entendo no meu tempo livre. Guarde seus conselhos para Serafina.

— Seja razoá vel. Eu estou dizendo isso para nã o acontecer alguma coisa desagradá vel com você s dois.

— Eu corro um risco maior quando me encontro com você nas costas de Serafina! Você pode estar acostumado a esse joguinho clan­destino, mas ele nã o me agrada nem um pouco. Eu gosto de agir à s claras!

— E com Adone, você age à s claras?

— Claro! Serafina finge que nã o sabe de nada.

— Foi sempre assim. Ela faz todas as vontades do filho. É por isso que as namoradas que Adone teve até hoje nã o foram mais que simples distraç õ es. Ele nunca se prendeu a nenhuma delas.

— E o que sã o as namoradas para você?

Rick guardou silê ncio durante alguns segundos, como se nã o sou­besse o que responder.

—Eu só nã o quero que você se arrependa mais tarde... Quem avisa, amigo é.

— Eu me arrependo mais quando me encontro à s escondidas com você. Por que você está tã o preocupado comigo? Será que está com ciú me de Adone?

— Nã o seja boba! — respondeu Rick, impaciente.

No silê ncio que se seguiu, ouvia-se apenas o canto das cigarras e os ruí dos metá licos que o cavalo fazia quando balanç ava a cabeç a e sacudia as argolas do freio.

— No fundo, você é igualzinho a Adone — disse Donna apó s um momento. Ela estava com os lá bios tã o secos que tinha dificuldade de falar claramente. — Você nunca percebeu a semelhanç a que existe entre você s dois?

De novo houve um intervalo de silê ncio. Somente o canto estri­dente das cigarras feria o ar quente da manhã.

— Já, já percebi — disse Rick por fim, com a testa franzida. — Mas isso nã o vem ao caso no momento. Se você tem juí zo na cabeç a, eu lhe peç o de todo o coraç ã o que mantenha distâ ncia de Adone. Claro, você é livre para fazer o que bem entender. Tome cuidado, poré m! Quando menos esperar poderá suceder um imprevisto de que você nã o vai gostar.

Rick deu um puxã o na ré dea e dirigiu o cavalo para a cocheira. Donna afastou-se da sacada e voltou ao quarto. Por que Rick nã o sentia nenhuma afeiç ã o por Adone e só via no rapaz os defeitos de sua pró pria juventude? Ele nã o aceitava por acaso a paternidade do filho? E o marido real de Serafina, onde morava atualmente? O que fazia? Existiria em carne e osso ou fora inventado apenas para justi­ficar a existê ncia do filho ilegí timo?

Donna sentou-se no sofá e colocou a almofada atrá s das costas. Em dado momento, ocorreu-lhe que Serafina nunca fora casada e que ela contava essa histó ria só para salvar as aparê ncias. Algué m cui­dara de Adone durante os anos que passara em Hollywood, pelo menos até ela estar em condiç ã o de ter uma casa onde pudesse viver tranquilamente com Rick, o ú nico homem de sua vida.

Fora assim desde o iní cio, quando os dois criaram essa lenda para afastar as suspeitas.

Serafina escolhera essa soluç ã o deliberadamente, como se sua exis­tê ncia privada fosse um. filme dramá tico, repleto de misté rios e de subentendidos. Tanto ela quanto Rick gostavam de viver à margem da sociedade, numa espé cie de conspiraç ã o particular. Sem falar que esse clima de misté rio tinha a vantagem de manter os importunos à distâ ncia, intimidados com a publicidade que havia em torno do guarda-costas temí vel e do sistema de seguranç a montado na casa para impedir a aproximaç ã o dos estranhos e dos indesejados. Todos os marginais sabiam que Rick havia matado um membro da poderosa Má fia.

Donna deu um suspiro e correu a mã o pelos cabelos curtos. Talvez fosse preferí vel seguir a sugestã o de Rick e desmarcar a ida à festa naquela noite com Adone. Aliá s, para falar a verdade, nã o estava com a menor vontade de sair. Alé m disso, os amigos de Adone nã o eram pessoas de seu ní vel social. Eram todos filhinhos de papai, uma raç a privilegiada que nunca soubera o que era ganhar a vida e que só tinha uma ideia na cabeç a: divertir-se a qualquer preç o.

Donna acendeu a luz do quarto de vestir, passou os dedos pelo vestido de crepe indiano que tinha separado para usar naquela noite. Podia dar a desculpa de que estava com dor de cabeç a, se bem que, ao agir assim, seguindo a sugestã o de Rick, estava obedecendo ao ho­mem que nã o tinha o direito de mandar na sua vida.

Inquieta, agitada pelas dú vidas, Donna andou de um lado para o outro do quarto e levou um susto quando o belo reló gio de porcelana bateu as horas em cima da cô moda. Adone combinara encontrar-se com ela à s sete e meia no hall da entrada. Tinha apenas meia hora para tomar banho, escovar os cabelos e vestir-se... a menos que encontrasse nesse meio tempo uma desculpa para nã o ir à festa no veleiro.

Por outro lado, se nã o fosse à festa, era bem prová vel que Adone bebesse demais, jogasse cartas até tarde e acabasse aprontando uma das suas. Donna nã o tinha ilusõ es a respeito de Adone, mas notara que ele levava uma existê ncia mais comportada depois que começ ara a sair com ela. Num certo sentido, gostava dele, de sua conversa franca e divertida, embora nã o pudesse fingir por um só momento que Adone era Rick. Ah, que Rick fosse para o inferno! Por que tinha que se meter na sua vida?

Mais por rebeldia do que por vontade, Donna apanhou o robe de chambre e dirigiu-se ao banheiro que ficava no corredor. Tomou um banho rá pido de chuveiro e protegeu a cabeç a com a touca, porque, nã o tinha tempo para secar os cabelos. Passou talco no corpo e saiu à s pressas do banheiro com a toalha molhada na mã o. No momento em que ia entrar no quarto, esbarrou em algué m que estava passando naquele momento pelo corredor sombrio.

Procurou se apoiar na parede para nã o cair quando duas mã os a seguraram com forç a e praticamente a levantaram do chã o. Voltou a cabeç a, assustada, e encontrou os olhos de Rick fixos nos seus. O tempo parou repentinamente quando os dois se encararam fixamente, abraç ados no meio do corredor. Por entre as pestanas compridas, Donna avistou as pá lpebras entreabertas, no fundo das quais brilha­vam dois olhos negros. Ela continuou deitada nos braç os dele, com os olhos lâ nguidos, como se tivesse acabado de acordar naquele instante. Rick fitou-a atentamente, como se quisesse memorizar cada detalhe do seu rosto, inclusive as manchas rosadas que avivavam a cor da face. O coraç ã o dela disparou como se fosse sair pela boca.

— Sabe o que eu devia fazer com você?

— O quê?

— Devia trancá -la no quarto e nã o deixar você sair hoje à noite. Meu conselho entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Você vai à festa?

— O que você tem contra isso? Afinal, nã o é a primeira vez que saio à noite com Adone e nunca aconteceu nada demais.

— Eu nã o simpatizo nada com o dono do iate. Ouvi dizer que ele é desonesto no jogo. Adone pode ser um malandro com as mu­lheres dos outros, mas é de uma honestidade total no jogo. Se souber que o dono do iate é um jogador profissional que vive disso, certa­mente haverá uma briga sé ria entre os dois. É isso o que eu receio.

— Mais uma razã o para eu ir à festa! Adone se comporta me­lhor quando está comigo.

— E como ele se comporta quando você s estã o sozinhos? — per­guntou Rick, segurando-a pelos cabelos e afastando a cabeç a para trá s, de modo a observá -la fixamente no fundo dos olhos.

— Melhor do que você, isso eu garanto.

Ela tinha que se defender de Rick e o ataque era a melhor saí da neste caso. Rick, poré m, nã o se deu por vencido. Puxou-a para si com um gesto brusco e beijou-a nos lá bios com tal intensidade que ela teve a sensaç ã o exata de que ia desfalecer nos braç os dele.

— Divirta-se — disse Rick, soltando-a por fim. — Talvez você esteja mais segura com Adone do que comigo.

Donna entrou correndo no quarto, fechou rapidamente a porta atrá s de si e apoiou-se no batente com as pernas bambas. Estava ofegante e com a pele toda arrepiada quando tirou o robe de chambre e enfiou o vestido pela cabeç a. Ouvira falar num tipo de percepç ã o fí sica superaguç ada, numa espé cie de alquimia que une dois corpos que se dese­jam intensamente. Era isso o que estava ocorrendo entre Rick e ela.

Instintivamente, levou as mã os aos quadris e teve consciê ncia do pró prio corpo como um homem teria naquelas circunstâ ncias. Sentiu a pele macia, a forma dos seios, a carne jovem e palpitante sob os dedos. Rick a desejava ardentemente, isso estava claro como o dia. Ela també m o desejava de todo o coraç ã o, mas algo lhe dizia que essa uniã o era maldita e que terminaria mal para os dois.

Mesmo assim, nã o podia esquecer a sensaç ã o do beijo trocado no corredor. No fundo, Rick a castigava sexualmente por suas pequenas agressõ es. O que podia fazer? Ela era forç ada a dizer coisas grosseiras porque nã o podia ser carinhosa com ele. Se fosse terna e meiga, como desejava, essa atitude levaria a complicaç õ es ainda maiores.

Ao se mirar no espelho, Donna ficou perplexa com a excitaç ã o que havia em seus olhos. O rosto, inclusive, parecia estar inchado de pra­zer e até mesmo os cabelos estavam mais sedosos e macios. Sentou-se na beira da cama, calç ou os sapatos pretos de salto alto e colocou os brincos de topá zio nas orelhas. Seu pai costumava dizer que ela se parecia com a mã e e que as duas tinham muita classe. Donna sorriu ao se lembrar desse comentá rio e apanhou o casaquinho de veludo que combinava com o vestido. No momento em que desceu a escada, rezou para que Adone já tivesse se despedido de Serafina e estivesse aguardando por ela no hall de entrada, como estava combinado. Ela nã o queria entrar na sala e encontrar Rick na companhia de Serafina. Ao descer o ú ltimo degrau, ouviu vozes que vinham da sala.

— Nã o se meta na minha vida! Eu só devo contas à minha mã e e a mais ningué m! Nã o se esqueç a de que você é apenas um empre­gado da casa. Apesar desse seu porte imponente, você nã o passa de um mero guarda-costas. Faç a o favor de calar essa boca!

— Calma, meu filho — disse Serafina, procurando dominar a fú ria de Adone com sua voz melodiosa. — Rick tem razã o nesse caso. Você andou perdendo muito dinheiro no jogo ultimamente e isso nã o está certo. Você precisa dar um jeito, filho. Você já gastou toda a mesada que lhe dei?

— Eu tenho uma dí vida que deve ser paga sem falta! — exclamou Adone, com voz de desespero. — E nã o posso passar por caloteiro!

— Você devia ter pensado nisso antes.

— Cale essa boca, seu! Nã o foi com você que eu falei!

— Nã o lhe dê mais nenhum dinheiro, Serafina — disse Rick, com voz impassí vel. — Se ele deseja jogar pô quer, que trabalhe primeiro para ganhar o dinheiro.

— Eu já disse que tenho uma dí vida! — exclamou Adone, louco de raiva. — Nã o se meta na minha vida, Rick! Você nã o manda nada aqui! E nã o pense que eu tenha medo de sua carranca de bandido siciliano. Sei que você é faixa preta de karatê e que matou um homem a sangue-frio. Mas nem por isso vou tremer de medo diante de você!

— Silenzio! — gritou Serafina, com a voz alterada. — Nã o fale nesses termos com Rick, filho! Eu nã o admito que você use essa lin­guagem insolente nem que faç a referê ncia a coisas que sã o do pas­sado. Por favor, Rick, nã o leve a mal o que ele disse. Ele nã o sabe o que diz. . .

— Nã o foi nada — disse Rick, com a mesma voz impassí vel de antes. — Eu só desejo esclarecer um assunto. Você vai à festa para danç ar ou para jogar cartas?

— Para danç ar, é ló gico! — respondeu Adone de má vontade. — Foi por isso que eu convidei Donna para ir comigo. É isso que está preocupando você?

— Onde você está querendo chegar?

— Nã o sei. . . Percebi que ultimamente você está dirigindo uma atenç ã o muito especial a ela. Reconheç o que Donna é uma garota atraente, tem cabelos cor de mel e um corpo que deixa qualquer um com á gua na boca. . .

— Chega de conversa! — explodiu Rick, impaciente. — Se eu me preocupo com ela é porque sei na companhia de quem você anda. Ela nã o está habituada a se misturar com parasitas sociais, muito menos com mulheres que trocam de marido como quem troca de roupa. . .

Foi nesse ponto da conversa que Donna decidiu entrar na sala e tirar Adone de uma situaç ã o embaraç osa, antes que os dois se atra­cassem numa luta corporal por sua causa. Com ar casual e um sorriso no rosto, ela entrou na sala como se nã o tivesse ouvido uma ú nica palavra da discussã o anterior.

— Ah, desculpe meu atraso, Adone. Eu me demorei um pouco mais do que contava porque sequei os cabelos. . .

— Nã o tem nada, querida — disse Adone, beijando-a no rosto. — Você está cheirosa como se saí sse de um canteiro de papoulas!

Adone segurou-a pelo braç o, despediu-se da mã e e saiu da sala sem olhar para Rick.

— Ah, como eu odeio esse cara! — murmurou no pá tio, ao abrir a porta do carro para Donna entrar. — Eu nã o entendo como mamã e suporta a presenç a desse cretino. Ela acha que o mundo vai desabar no dia em que botar Rick na rua!

— Nã o se aborreç a à toa — disse Donna. — Sua mã e provavel­mente tem necessidade dele.

— Eu sei disso. Mas por que ele tem que meter o nariz onde nã o é chamado? Ah, ele que vá para o inferno!

No instante em que o pequeno carro esporte partiu a toda veloci­dade pela estrada estreita, Donna apertou instintivamente as mã os em cima do colo. Adone, pelo visto, estava de pé ssimo humor e ela se arrependeu amargamente por nã o ter ouvido o conselho de Rick.

— Adone. . .

— O quê?

— Eu estou com um pouco de dor de cabeç a. Você nã o se importa de me deixar em casa? Eu nã o estou realmente com disposiç ã o para ir a essa festa.

— Você diz isso agora?

— Desculpe. . .

— Você se pintou e se vestiu toda para ficar em casa? Nã o seja desmancha-prazeres, querida! Você vai ser o sucesso da festa. As ou­tras mulheres podem estar cobertas de jó ias, mas elas nã o tê m essa pele macia nem esses cabelos dourados que você tem. Até Rick ficou com ciú me de mim. . .

— Eu sei que você está morrendo de vontade de ir a essa festa. . .

— Você també m estava quando eu sugeri! — interrompeu Adone com vivacidade. — Você disse que seria gostoso danç ar no deck iluminado, vendo as marolas quebrarem no casco, lembra? O que aconteceu de lá para cá? Por que você mudou de ideia de repente? Você ouviu por acaso nossa conversa na sala? Você tem medo que aconteç a alguma coisa?

— Nã o, nã o é isso. . .

— É de Rick que você devia ter medo, querida, nã o de mim! É ele quem convive com marginais e nã o eu! Ele sabe mais coisas sobre os sindicatos de crime e sobre os mafiosos que andam pelas ruas da cidade do que eu poderia saber na minha vida inteira! Foi ele quem perseguiu um homem anos a fio pelos bares mal frequen­tados do cais. Nã o fui eu! Você precisa ver como ele embaralha as cartas do baralho, como um jogador profissional, sem mais nem me­nos! Nã o há marginal ou delinquente que nã o conheç a Rick de vista. Ele é o " homem com o brinco de ouro na orelha". Pergunte a quem você quiser.

— De quem é aquele brinco?

— É a alianç a que a mã e usava. Rick retirou-a do seu dedo antes dela ser sepultada. Os sicilianos sã o dramá ticos por natureza. Sã o tã o severos em questõ es de honra quanto os có rsicos. É por isso que Serafina é tã o ligada nele. Ela interpretou tantas vezes esses dramas româ n­ticos no cinema que considera Rick um grande personagem do pas­sado. Rick, por sua vez, aceitou o papel na hora. Afinal, nã o é todos os dias que você encontra uma mulher bela e rica como madrinha!

— Eu nã o creio que seja só por isso — observou Donna, tomando veladamente a defesa de Rick.

— Por que mais, entã o?

— Qualquer pessoa percebe imediatamente que os dois se amam sinceramente.

— Amor fí sico, você quer dizer?

— Talvez.

— É isso que nunca pude entender! Quando se trata de mamã e, eu sou terrivelmente moralista. Se um dia eu apanhar os dois em fla­grante, vou fazer o maior bafafá deste mundo! Rick poré m é muito vivo, é esperto como o diabo e até hoje eu nã o pude surpreendê -lo. Ele tem um faro tremendo...

No momento em que Adone acelerou o carro e os pneus guincha­ram no asfalto molhado, Donna teve o ní tido pressentimento de que naquela noite sucederia um desastre. Minutos depois, numa das cur­vas do caminho, Adone foi obrigado a brecar bruscamente, a fim de evitar a colisã o com uma barreira que desabara na noite anterior e que obstruí a uma parte da pista. O carro esporte rodopiou alguns metros no asfalto molhado antes de parar completamente. No instante em que estacou, Adone foi jogado para a frente pela forç a da freada e bateu com o rosto no volante. Donna ouviu o gemido de dor e, no instante seguinte, viu o sangue jorrar da boca ferida.

Ela soltou rapidamente seu cinto de seguranç a — Adone nã o estava usando o dele — e deitou com todo o cuidado a cabeç a de Adone no banco.

— Você se feriu? — perguntou com voz ansiosa.

— Ah, está doendo terrivelmente!

— Nã o se mexa! Eu vou limpar seu rosto.

Donna enxugou o sangue com o lenç o e avistou o corte fundo no lá bio inferior. Alguns dentes da frente també m estavam abalados em consequê ncia da batida. Adone teria que ser medicado imediatamente.

— Vou chamar o mé dico! — exclamou Donna, alarmada.

— Um mé dico nã o, um dentista! — disse Adone, com o lenç o na boca. — Eu nã o posso perder um dente da frente!

Durante o trajeto até o dentista, Adone comportou-se com uma bravura incrí vel. Nã o gemeu nem se queixou uma só vez, aguentou firme até o final com uma coragem admirá vel.

Donna passou as duas horas seguintes na sala de visitas com a mulher do dentista. As duas tomaram café e conversaram até tarde, enquanto Adone estava sendo medicado. Embora ele fosse em parte responsá vel pelo acidente, devido à maneira alucinada como dirigia, Donna admirou sua paciê ncia na adversidade. Adone manteve a calma e nã o perdeu a cabeç a um só momento durante o acidente. Pouco antes de sentar-se na cadeira do dentista, Adone pediu a Donna que nã o comunicasse nada a Serafina.

— Ela é muito nervosa e vai se assustar à toa.

— Está bom, eu nã o vou falar nada. Você precisa de alguma coisa?

— Nã o, obrigado. Eu estou bem.

Donna despediu-se de Adone e voltou para a sala de visitas, onde a mulher do dentista havia preparado um pequeno lanche para as duas.

A angú stia da expectativa terminou algumas horas depois, quando o dentista deu por encerrada a intervenç ã o cirú rgica.

— Ele tem dentes muito fortes e bonitos — comentou o dentista, chegando à porta da sala. — Seria uma lá stima perder um dente da frente. Ele ficará com uma cicatriz no lá bio inferior, mas nã o será muito visí vel. Felizmente correu tudo bem. Logo ele estará bom de novo.

— Ele pode voltar para casa? — perguntou Donna.

— Eu acho preferí vel ele passar a noite aqui. Ele perdeu muito sangue e está um pouco abatido. Eu fiz um raio X do maxilar e nã o há sinal de fratura. Mesmo assim, seria conveniente ele ficar algumas horas em observaç ã o. Nó s temos um quarto de hó spedes onde ele poderá passar a noite.

Donna concordou com a sugestã o do dentista.

— Neste caso eu vou me despedir dele — disse ela, dirigindo-se à saleta onde Adone estava deitado no sofá, com o rosto muito pá lido e desfeito.

Ele estendeu a mã o para ela e deu a entender que nã o podia falar devido ao curativo que tinha no lá bio.

— Entã o, está mais calmo agora?

Adone balanç ou a cabeç a e deu um sorriso triste.

— O dentista me contou como foi a operaç ã o. Deve ter doí do terri-velmente. Ainda está doendo muito?

Adone tornou a sacudir a cabeç a, dando a entender que esta­va bem.

— Procure descansar bastante. Eu vou voltar para casa e amanhã venho buscar você aqui.

Adone segurou a mã o dela com forç a.

— Eu preciso ir, Adone. Eu volto amanhã. Talvez sua mã e queira vir comigo. Adeus, querido.

Ao entrar na sala de visitas, Donna avistou o telefone e ficou na dú vida se devia comunicar o ocorrido a Rick. Apó s um instante de indecisã o, acabou desistindo da ideia. Era preferí vel deixar Adone descansar a noite toda em paz na casa do dentista do que tentar removê -lo para casa.

— Muito obrigada por tudo — disse ela ao despedir-se do dentista.

— Você vai voltar sozinha?

— Que remé dio? — disse Donna com um sorriso, dirigindo-se ao carro que estava estacionado no portã o.

Ela tomou a mesma estrada que tinham usado na ida. Como estava nervosa em consequê ncia dos acontecimentos recentes, procurou dirigir com todo o cuidado, a fim de evitar algum problema imprevisto que agravaria ainda mais a situaç ã o.

Estava a meio caminho de casa, apó s ter deixado para trá s a bar­reira caí da no lado da estrada, que fora a responsá vel pelo acidente, quando o motor do carro morreu repentinamente. Ela só teve tempo para manobrá -lo em direç ã o ao acostamento.

Apó s dar a partida diversas vezes, sem o menor sucesso, desligou a chave do contato com um gesto de impaciê ncia.

— Logo agora! — exclamou em voz alta, louca de raiva e de frustraç ã o.

Felizmente, ela tinha parado numa reta e o farol alto do carro ilu­minava até uns cinquenta metros adiante. De qualquer maneira, estava no meio de uma estrada que tinha pouco movimento à noite, sem saber o que fazer e sem nenhuma disposiç ã o para andar a pé o resto do trajeto. O melhor jeito era continuar dentro do carro, trancar as portas e deitar-se no banco de trá s, embrulhada na manta que havia ali. Na manhã seguinte, bem cedo, partiria a pé para casa. Era prefe­rí vel isso do que andar por uma estrada deserta no escuro, vendo as sombras que se formavam na beira do caminho e que causavam uma impressã o desagradá vel.

A fim de confirmar a escuridã o da noite, ela apagou os faró is du­rante alguns segundos. A noite estava negra, sem a menor claridade. A lua estava encoberta pelas nuvens, pelo visto. Ela sentiu um arrepio de medo e tornou a acender os faró is do carro.

Tremendo de frio, encolheu-se toda no banco de trá s, cobriu-se com a manta de lã e fechou os olhos. No mesmo instante, lembrou-se das palavras de Rick, do conselho que lhe dera para nã o ir à festa no iate. A noite inteira fora um desastre, do começ o ao fim. Em vez de estar deitada confortavelmente na sua cama, lendo um livro, estava perdida no meio de uma estrada deserta, sem ningué m para lhe fazer companhia. Se Rick ao menos estivesse ali para conversar com ela. . .

Bem ao longe podia avistar as luzes dos barcos de pesca que esta­vam ancorados no canal, aguardando a madrugada para saí rem em direç ã o ao mar alto. O cé u estava negro como piche e algumas estrelas brilhavam como faró is. Somente uma jovem apaixonada podia esca­lar o cé u, como dissera Rick, com as asas brilhantes da inocê ncia. Somente algué m que nã o jogasse o amor fora, como se fosse um sentimento sem valor. Algué m que guardava o corpo e o coraç ã o puros para o homem que amava.

Esse homem, poré m, nã o poderia nunca ser Rick. . . Rick andara muito tempo pelos antros do crime e do ví cio. Era preciso encontrar algué m que tivesse os olhos puros. Mesmo porque a vida dele estava definitivamente ligada á Serafina.

Era loucura pensar que podia tomar o lugar dela. Depois que terminasse o trabalho na casa de Serafina, partiria dali e apagaria da memó ria todas as recordaç õ es dos ú ltimos meses.

Um dia, muitos anos depois, esqueceria ate mesmo que conhecera certa vez, no alto do Coliseu, um homem belo e moreno que a fascinara com suas palavras misteriosas.

 

 



  

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