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CAPÍTULO III



 

 

Nos dias seguintes, Donna entregou-se de corpo e alma ao trabalho na sala mais encantadora que já ocupara em sua carreira profissional. A mesa era do estilo renascenç a e a má quina de escrever, com sua capa de plá stico, estava completamente desambientada no meio dos mó veis antigos. Os afrescos do teto eram da mesma é poca que a mobí lia antiga e representavam cenas mitoló gicas. A de que Donna gostava mais era uma comitiva de jovens com vestes transparentes e flores nos cabelos. O grupo estava descansando à beira de um riacho e as figuras se refletiam na á gua parada como se fosse um espelho polido.

As paredes da sala eram revestidas de madeira escura e o assoalho estava coberto por pequenos tapetes persas. Pela janela envidraç ada que dava para o pá tio avistava-se um á rvore coberta de flores ver­melhas que Donna identificou à primeira vista com um magní fico flamboyant. Entretanto, o que lhe causou maior surpresa foi a está tua equestre do cavaleiro que montava sentinela junto à fonte do pá tio interno. Com a cabeç a ligeiramente inclinada, ele segurava na mã o uma colossal espada de pedra. Donna se lembrou das palavras que dissera a Rick alguns dias antes: " Você é uma espé cie de cavaleiro andante de Serafina".

Era uma ideia româ ntica, evidentemente. No fundo, ela queria dourar a funç ã o verdadeira de Rick na casa. A realidade era outra: Rick estava ali na funç ã o de guarda-costas e seu principal objetivo era proteger uma mulher riquí ssima dos assaltantes e sequestradores. Fazia quantos anos que Rick levava essa existê ncia de cã o de guarda?

Esses anos tinham sido suficientes para fazê -lo perder os sentimentos humanos?

Desde a noite do episó dio desagradá vel no terraç o da casa, Rick procurara conservar uma certa distâ ncia de Donna e nã o demons­trava, nem mesmo por uma piscadela, que nutria o mais leve interesse pela secretá ria inglesa. Donna nã o sabia se devia sentir-se contente ou despeitada com essa atitude. A verdade é que havia algo perigo­samente excitante no comportamento do homem que correra em sua defesa no terraç o, um homem maduro e vivido que nã o tinha nada dos jovens impetuosos que conhecia. Rick parecia mais um personagem saí do das pá ginas de um romance antigo, em que os homens duelavam e se matavam por causa do amor de uma mulher.

De qualquer maneira, ela estava contente com o fato de Adone ter se retirado momentaneamente de sua presenç a. Nã o ficou sabendo ao certo se Serafina tomou conhecimento do episó dio e da causa que o motivara. Era prová vel que nã o. Caso contrá rio, Donna teria rece­bido um convite polido para fazer as malas e partir rapidamente da Villa Imperatore.

Adone, por sua vez, devia estar muito bê bado naquela noite, uma vez que nã o tinha uma lembranç a exata dos fatos.

— Eu importunei você, querida? — perguntou ele um dia.

— Nã o, de forma alguma — respondeu Donna, omitindo a pequena cena desagradá vel que ocorrera entre os dois.

— O italiano deve beber somente vinho — comentou Adone. — Ele fica alegre com vinho, mas se torna agressivo e violento quando bebe uí sque. O que foi que eu fiz, exatamente?

— Você disse uma coisa de que Rick nã o gostou.

— Ah, foi por isso entã o que recebi aquele murro na cara? Eu nã o brigo com Rick quando estou só brio. Ele é forte demais para mim, alé m de ser frio como um lutador profissional. É essa frieza por sinal que Serafina mais aprecia nele. Ele nã o perde a cabeç a nunca, aconteç a o que acontecer.

— Felizmente tudo terminou bem — comentou Donna, procu­rando dar por encerrada a conversa.

Adone debruç ou-se sobre a mesa onde ela estava sentada.

— Nossa, como está tudo tã o arrumado! Você é de fato uma secre­tá ria tremendamente organizada e eficiente.

— Eu fui educada num colé gio de freiras.

— Estou vendo. Você nã o gostaria de sair um pouco para se dis­trair? Podí amos aproveitar a hora do almoç o e ir a um restaurante maravilhoso que conheç o, onde fazem uma lasanha divina. Vamos?

— Infelizmente, eu nã o posso sair — disse Donna. — Eu só tenho uma hora para almoç ar, e se sair com você nó s vamos voltar no meio da tarde. Sua mã e é muito generosa, mas nã o admite atrasos no tra­balho. Alé m disso, eu prezo demais meu emprego para perdê -lo por causa de um almoç o na praia, por mais delicioso que seja.

— Você é incorrigivelmente sé ria — disse Adone, andando de um lado para o outro da sala, com a testa franzida.

Adone estava de roupa esporte, e os cabelos compridos, ondulados e macios, davam-lhe realmente um aspecto muito atraente. Era uma pena que Serafina nã o fizesse uma forcinha para o filho trabalhar e ganhar a vida honestamente. Ele passava os dias numa ociosidade total. À tarde flertava com mulheres casadas e afogava as má goas nos copos de uí sque à noite. Essa rotina nã o fazia nenhum bem a seu temperamento ardente. Ele vivia numa frustraç ã o permanente.

— Você nã o tem vontade de trabalhar? Nã o sente que está des­perdiç ando a energia e a saú de numa rotina monó tona de prazeres que o deixam insatisfeito, tanto fí sica quanto espiritualmente?

Adone apoiou-se na mesa de trabalho com a expressã o de algué m que estava farto de tudo, inclusive dos conselhos que podiam lhe dar.

— O que você sugere?

— Você joga tê nis como poucos. Por que nã o se dedica seria­mente a isso? Você pode dar aulas. . .

— Ah, já sei! Manter o corpo ativo e em forma. Eu tenho a impressã o de que você é meio careta, garota. Você está querendo salvar minha alma?

— Eu estou falando sé rio, Adone. Você tem condiç ã o para dirigir um clube, com quadras de tê nis e de squash, piscinas, raia de compe­tiç ã o. . . Por que nã o aproveita seu talento, bolas? Claro, se você deseja jogar a vida fora, ningué m tem nada a ver com isso. A vida é sua.

O sorriso de zombaria que havia nos olhos de Adone desapareceu momentaneamente. Donna estava com os ó culos de aros redondos que usava quando trabalhava. Os ó culos e os cabelos curtos davam à fisionomia inocente o ar de uma jovem bem-comportada e cumpri­dora de seus deveres. Provavelmente era essa aparê ncia que exercia um fascí nio tã o grande sobre Adone.

— Sabe o que eu gostaria de fazer com você?

— Nã o, nã o tenho ideia — disse Donna, impassí vel, fitando-o no fundo dos olhos.

— Gostaria de botar você num sanduí che e comê -la.

— Cretino!

Com um gesto rá pido da mã o, Adone retirou os ó culos que estavam caí dos na ponta do nariz e lhe deu um beijo estalado na boca.

— Você é adorá vel, deliciosa, um poç o de virtudes! Você tem toda razã o, amor, eu estou jogando fora minha vida, como se fosse um milioná rio que tivesse muitas outras existê ncias guardadas num cofre. Mas eu vou tomar jeito. Você quer casar comigo para me endireitar?

Donna deu uma gargalhada e arrancou os ó culos da mã o dele.

— Você morreria de medo se eu dissesse sim. Vamos procurar o padre e nos casar naquela capelinha que tem lá no alto do morro.

— Você está redondamente enganada! Eu ficaria feliz da vida se você aceitasse meu pedido — disse Adone, tocando na pequena cruz de ouro que Donna tinha no pescoç o. — Você, sim, é que teria medo que eu fosse um marido infiel e corresse atrá s das outras mulheres.

— Quem sabe? Olhe, o papo está muito gostoso, mas eu tenho trabalho à minha espera. Sua mã e ficaria uma fera se soubesse que estou perdendo meu precioso tempo com conversas fiadas, em vez de bater o capí tulo que ela ditou ontem à noite. E vou ter que prestar conta do meu trabalho hoje à tarde.

— Se você casar comigo, nã o terá mais que trabalhar como uma escrava.

— E nó s vamos viver do quê? Da mesada que sua mã e dá?

— Nã o seja agressiva, amor! Eu pensei que seu coraç ã o fosse macio como sua pele. Aliá s, você é toda fofa. Aveludada, deliciosa, apetitosa. . .

— Por favor, chega de conversa mole! — exclamou Donna, impa­ciente. — Por que você nã o procura um trabalho para fazer em vez de me atrapalhar com essa conversa fiada? Olhe só o que eu fiz! Bati uma frase inteira errada. Vou ter que começ ar tudo de novo. Por favor, Adone, deixe-me trabalhar em paz!

Donna arrancou com raiva as folhas da má quina e atirou-as na cesta de papel.

— Eu vou embora se você prometer sair comigo.

— Eu nã o prometo coisa nenhuma! Deixe-me em paz!

— Neste caso, vou continuar aqui, infernizando sua paciê ncia.

— Ah, você é realmente um garotã o insuportá vel! Você precisa realmente aprender um pouco de bons modos.

— Que culpa eu tenho de me sentir atraí do por você? Você é desejá vel, gostosa, atraente... Se você for jantar comigo, eu deixo você bater em paz essas memó rias escandalosas da minha querida mã e.

— Elas nã o sã o escandalosas, para iní cio de conversa!

— Claro que sã o! Eu as conheç o de cor. Mamã e sente a neces­sidade incontrolá vel de estar na primeira pá gina dos jornais. Ela faz questã o absoluta de que o livro seja um best-seller. E, hoje em dia, você só escreve um livro de sucesso se botar os podres para fora. Ela está guardando as confissõ es escandalosas para o fim! E você, com esse seu ar de freira carmelita, vai ficar chocada quando ela contar os casos í ntimos das pessoas com quem conviveu em Hollywood. Quer fazer uma aposta?

— Antes de mais nada, eu nã o tenho cara de freira carmelita. Segundo, nã o vim aqui imaginando que ia bater à má quina as me­mó rias de uma santa. Terceiro, meu pai trabalhou com Serafina e me contou como era a vida dos atores em Hollywood. Eu estou sa­bendo das coisas. . .

— Ah, é? Você concorda entã o com o que Hitchcock disse das lourinhas ingê nuas?

— O que foi que ele disse?

— Que por dentro elas sã o um vulcã o.

Donna sorriu sem querer.

— Está bom, eu concordo. Agora vá embora e me deixe terminar esse capí tulo.

— Quer dizer que você aceita meu convite para jantar? — Adone inclinou-se e tocou no queixo dela com a ponta do dedo. — Nã o seja desmancha-prazeres. Ceda uma vez na vida. Eu conheç o um restaurante divino, de frente para o mar. . .

— Você se julga irresistí vel, nã o é mesmo?

— O que eu posso fazer? — disse Adone, com um sorriso mali­cioso nos olhos verdes. — É minha sina. Qual é a moç a que nã o gosta de jantar fora depois de um dia exaustivo de trabalho? Espe­cialmente na companhia de um rapaz simpá tico que possui um carro esporte.

— Depende da cor — disse Donna, impassí vel.

— O meu é azul-metá lico. Conversí vel. Estofamento de couro legí timo. Ar condicionado para os dias quentes.

Donna refletiu rapidamente e chegou à conclusã o de que o convite era de fato sedutor. Entretanto, nã o podia esquecer as maneiras livres de Adone e nã o tinha a menor vontade de terminar a noite no pico descampado de um morro, defendendo-se de uma tarado sexual.

— Você nã o desiste, hein?

— Nã o, nã o desisto.

Donna olhou em volta para a bela sala onde estava instalada. Em seguida, para o pá tio interno, onde estava a está tua do cavaleiro medieval, de espada em punho. Afinal, por que teria medo de Adone? Ele era um garoto, no fundo. A ú nica coisa que importava era con­servar o emprego na Villa Imperatore. Tudo o mais era secundá rio.

— Está bom. Você ganhou. A que horas você quer sair?

— À s sete e meia. Assim teremos tempo para passear à vontade. Há muita coisa interessante para se ver. — Adone deu um sorriso de triunfo e dirigiu-se à porta da sala. — Arrivederci, cara.

— Ciao, bambino.

Donna voltou a bater à má quina e procurou esquecer o programa da noite. Ela só tinha um receio. . . Nas estradas do litoral nã o havia nenhum cavaleiro andante que acudisse ao seu grito de socorro.

Sorriu com esse pensamento. Rick nã o era absolutamente um cavaleiro andante. Muito pelo contrá rio, era mais perigoso que Ado­ne. Nenhuma mulher na posiç ã o de Serafina empregaria um guarda-costas que nã o fosse capaz de agir impiedosamente com aqueles que ameaç avam sua seguranç a. Aliá s, segundo o que Adone contara, Rick salvara a vida de Serafina de um bando de sequestradores que estavam armados até os dentes.

Era muita ingenuidade de sua parte imaginar que um homem como Rick podia ter algum interesse nela. Serafina era a mulher de sua vida. Todas as outras nã o eram mais que simples distraç õ es. Sera­fina atraí a Rick com sua beleza e sensualidade como se fosse um bichinho de estimaç ã o.

Donna apertou o botã o do gravador e escutou Serafina relatar os incidentes de sua infâ ncia miserá vel, passada na Sicí lia. Tanto ela quanto Rick eram originá rios do mesmo meio social. Os dois sabiam o que era crescer rodeado de misé ria por todos os lados e aceitar essa realidade com uma coragem indomá vel. As ruas estreitas e insa­lubres dos bairros pobres estavam sempre apinhadas de gente. As roupas eram penduradas em varais improvisados nas janelas das casas. O barulho durante o dia era ensurdecedor. Gritarias, vendedores ambu­lantes, brigas, gente que berrava de uma janela para a outra, verdureiros com alto-falantes improvisados de lata ou papelã o. Alé m de tudo isso, havia o aspecto terrivelmente só rdido das ruas, cobertas de lixo pelas calç adas, a falta dos recursos bá sicos, as filas de mu­lheres que transportavam latas de á gua nas cabeç as.

Serafina fugira desse ambiente triste e miserá vel graç as à sua beleza incompará vel. Rick, por sua vez, usara a coragem e a forç a fí sica com o mesmo objetivo. Ele nã o temia as ruas mal frequentadas da cidade depois que a noite descia. Sabia defender-se sozinho dos assal­tos, das brigas à mã o armada, das rondas policiais.

Donna estremeceu ao pensar nessas coisas e desejou de todo o coraç ã o poder afastar da imaginaç ã o a imagem de Rick, da mesma forma que afastara a do belo Adone, que a pedira em casamento com a mesma naturalidade com que algué m oferece um doce a uma crianç a.

Rick, poré m, nã o tinha sido um menino mimado como Adone. Suas lembranç as da infâ ncia estavam marcadas a ferro na memó ria, como cicatrizes indelé veis. Aliá s, foram esses acontecimentos terrí veis do passado que o transformaram no homem duro e impiedoso que era hoje. Os sentimentos ternos e bondosos foram relegados ao fundo do coraç ã o, até que um dia deixariam completamente de existir. Aí entã o, ele seria frio e inflexí vel como a está tua equestre no pá tio da casa. Mais tarde, se transformaria finalmente numa está tua de pedra e nunca mais as chamas do amor brilhariam nos olhos negros de siciliano, lanç ando mensagens para a jovem inglesa que cruzara seu caminho numa noite em Roma.

— Ah, que horror! — Donna murmurou em voz alta, levando a mã o aos olhos como se quisesse afastar da vista a imagem do cava­leiro de pedra.

Ela estava se deixando contaminar pela atmosfera româ ntica do sul da Itá lia. Rick a fascinava porque nã o se parecia com nenhum homem que conhecia. Entretanto, ele nã o era um cavaleiro andante que se orgulhava da armadura brilhante e imaculada. Rick era um mero guarda-costas, um bandido, no fundo, contratado por Serafina para defendê -la de outros bandidos. Adone contara que Rick entrava e saí a do quarto de Serafina com a maior liberdade do mundo e so­mente algué m muito inocente podia ignorar a intimidade que havia entre os dois.

Donna deu um suspiro quando ouviu a porta da sala abrir-se e um criado entrar com o bule de café e uns bolinhos de minuto que a cozinheira fazia todas as manhã s. Desta vez, poré m, havia també m algumas frutas colhidas no pomar da casa e um queijo fresco, de leite de cabra, uma especialidade do sul da Itá lia.

— Ah, que maravilha! — exclamou Donna, com um sorriso para o criado. — Tudo isso é para mim?

— Foi o signore quem arrumou pessoalmente a bandeja do café.

— O signore. . . Que signore?

— O signore Neri.

— Ah, sim! Agradeç a a ele por mim.

Donna comeu os pê ssegos que Adone escolhera para ela, os boli­nhos de minuto e, por ú ltimo, levantou-se com a xí cara de café na mã o e foi admirar mais uma vez a bela está tua de pedra que havia no pá tio.

Ela nunca se considerara antes uma criatura especialmente româ n­tica. Entretanto, depois que chegara ao sul da Itá lia, conduzia-se como a mais româ ntica das româ nticas. . . No fundo, estava se compor­tando exatamente como as heroí nas dos romances que se sentem atraí das à primeira vista pelo belo desconhecido que encontraram por acaso num passeio. . . o italiano alto e moreno que perturbou sua mente desde o primeiro olhar que trocaram.

Como se sentisse falta de ar, Donna levou instintivamente a mã o à garganta e murmurou:

— Ah, deixe de me perseguir!

Ela atravessou o pá tio interno e agora estava parada defronte da está ­tua do negro cavaleiro andante. Ele estava com a cabeç a inclinada sob o capacete que encobria praticamente todo o rosto e segurava com firmeza o punho da espada. Alguns pá ssaros cantavam e saltavam de galho em galho na tranquilidade do pá tio que lembrava o claustro de um convento. Indiferente a tudo, o belo cavaleiro continuava mergu­lhado no mais profundo silê ncio, atento somente à sua eterna vigí lia.

Donna vestiu-se cuidadosamente para o jantar com Adone. Passou colô nia no pescoç o, nos braç os, na nuca e penteou os cabelos até ficarem brilhantes. Apanhou no guarda-roupa o vestido verde de meia-estaç ã o que usava com um casaquinho em cima dos ombros. O efeito agradou-a quando se mirou no espelho da penteadeira. Fal­tava apenas uma jó ia, e Donna colocou brincos de pé rolas nas orelhas.

Adone estava pronto quando ela desceu a escada.

— Che bella! — exclamou ao vê -la. Estendeu a mã o e segurou-a delicadamente pelo pulso. — Você está irresistí vel, querida. Simples­mente adorá vel com esse vestido verde que lembra a primavera!

— Você també m está muito elegante.

Adone estava vestido a rigor com uma camisa azul-clara imacula­damente passada e abotoaduras de safira nos punhos rendados.

— Grazie, carina. É assim que deve ser. Um casal combinando em tudo, em elegâ ncia e beleza. Imagine só como seriam nossos filhos.

— Uns amores, sem dú vida alguma! — exclamou Donna, com uma risada.

Adone segurou-a pelo braç o e conduziu-a em direç ã o à sala de estar.

— Nó s vamos jantar fora, mã e! — disse da porta para Serafina, que estava reclinada no sofá, à meia-luz.

Rick estava sentado ao lado dela, com o cigarro aceso nos lá bios, e Donna teve a impressã o de que ele franziu imperceptivelmente a testa quando a viu na companhia de Adone.

— Juí zo, filho! Nã o dirija como um louco, como se você esti­vesse disputando uma competiç ã o.

— Falou, mã e.

— Olhe que Donna nã o está acostumada com essas correrias. Eu conheci o pai dela e sei como ela foi educada. . .

— Pode deixar. Eu vou tomar conta dela, mã e, como Rick toma conta de você — disse Adone, com um sorriso irô nico em direç ã o a Rick, que se limitou a soltar uma baforada de fumo pelo nariz. — Você está tranquila agora?

— Está ouvindo, Rick? — perguntou Serafina, com um gesto lâ n­guido de mulher amada, dirigindo o olhar sensual dos olhos verdes para a figura impassí vel do guarda-costas siciliano. Quando Rick voltou a cabeç a na sua direç ã o, Serafina piscou os cí lios compridos, como se nã o pudesse fitá -lo sem pestanejar. — Há poucos homens como Rick neste mundo, filho, e eu gostaria muito que você se pare­cesse com ele. Mas você saiu a seu pai. Você tem a natureza ardente e impetuosa dos latinos. Divirta-se, querido, mas nã o volte muito tarde para casa.

— Pode ficar tranquila, mamã e.

Adone aproximou-se do sofá onde Serafina estava reclinada e bei­jou-a de leve no rosto.

Donna aproveitou que os dois estavam entretidos na despedida para lanç ar um olhar de relance para Rick. Por que eles nã o se casavam?, pensou. O divó rcio era aceito na Itá lia e Donna tinha certeza agora de que os dois eram amantes. Como era possí vel um homem passar tantas horas na companhia de uma mulher atraente como Serafina e nã o fazer amor com ela?

Os olhos de Rick estavam sombrios como na primeira vez que Donna os viu no alto do Coliseu. Ela teve a sensaç ã o exata de ser tocada fisicamente por seu olhar. Estremeceu como se o contato fosse verdadeiro. Olhou para ele e seus olhos diziam: " Nã o toque em mim! Eu nã o quero saber o que Serafina sente quando você a estreita nos braç os! "

Levou um susto quando Adone a puxou pela mã o.

— Vamos, querida, antes que fique tarde.

Ela saiu da sala com a impressã o de que uma parte vital de si ficara ali, presa naquelas quatro paredes. Era loucura sentir-se atraí da da­quele jeito por um homem que pertencia a outra mulher. . . uma mulher possessiva, ciumenta ao extremo, dotada de um temperamento terrí vel, cujas unhas compridas arranhariam seu rosto sem piedade se a surpreendesse nos braç os de Rick.

Adone evidentemente notou a reaç ã o que ocorrera com ela diante de Rick. Ao pararem ao lado do pequeno carro esporte, ele se voltou e fixou-a com atenç ã o.

— Você nã o precisa ter medo de Rick, amor.

— Mas eu morro de medo, mesmo assim. Nã o foi você quem disse que ele matou certa vez um homem a sangue-frio?

— Ah, isso foi há muito tempo. No meio de uma briga. Rick acertou um soco em cheio no queixo do seu adversá rio. O homem perdeu o equilí brio, bateu com a cabeç a no meio-fio e apagou na hora. Rick fugiu, naturalmente. Mais tarde ele foi absolvido, quando ficou provado que seu adversá rio era um membro da Má fia, acusado de ter matado um parente de Rick.

— Um parente? Você nã o sabe os detalhes?

— Contam que a mã e de Rick foi assassinada misteriosamente. Ela morava com o marido num sí tio no sul da Itá lia. Quando o marido morreu, ela acusou publicamente a Má fia pelo ocorrido. Disse que o marido fora assassinado porque se recusara a pagar uma deter­minada quantia à organizaç ã o para obter a proteç ã o de sua vida. Um belo dia ela foi encontrada morta em casa. Rick era um garoto nessa é poca. Mesmo assim, jurou que ia encontrar o assassino da mã e e tirar vinganç a do crime.

— Que horror!

— Pois é. Rick cumpriu a palavra. Se o homem nã o tivesse batido com a cabeç a no meio-fio, provavelmente seria morto pelas mã os dele.

— Que drama!

— É uma histó ria chocante, sem dú vida, mas Serafina se sente segura na companhia de Rick. Ele nã o tem medo de nada nem de ningué m. Quantas vezes for preciso, ele arriscará a vida para prote­gê -la. É por isso que ela confia cegamente nele e nã o vive o tempo todo apavorada com a ideia de ser sequestrada. Mas você nã o precisa ter medo dele, amor. Rick é de toda confianç a. Alé m disso, ele nã o se interessa por nenhuma outra mulher, a nã o ser por Serafina.

— E quando ele viaja sozinho? — perguntou Donna impulsivamente, lembrando da maneira como fora abordada por Rick no alto do Coliseu.

— Isso eu nã o sei — disse Adone, abrindo a porta do carro. — Ouvi contar que ele é só cio de um clube em Roma, onde costuma ir nos fins de semana. Mas, se encontra outras mulheres lá, com o conhecimento ou nã o de Serafina, isso eu nã o posso afirmar. Seja como for, minha mã e confia cegamente nele, como você mesma obser­vou. Rick é inteiramente dedicado a ela. As outras mulheres nã o passam de uma distraç ã o. Até hoje nã o ouvi um boato de que Rick tivesse um caso com uma mulher em Roma. Aliá s, por estranho que pareç a, Rick é de uma discriç ã o absoluta nesses assuntos. Ele é mais frio que um lagarto. Pelo visto, é inteiramente insensí vel ao encanto feminino.

No instante em que Adone segurou nas mã os o volante do pequeno carro esporte, sua atenç ã o voltou-se exclusivamente para a estrada. Donna sentia a mã o dele roç ar na sua perna toda vez que trocava as marchas do carro. Com um gesto discreto, ela afastou a perna para o lado.

— O que foi, querida? Você sente có cegas nas pernas?

— Morro de có cegas. Aliá s, eu morro de medo també m da veloci­dade. Você nã o se importa de ir um pouco mais devagar?

— Medrosa! Eu conheç o mulheres que adoram a velocidade.

— Acredito, há gosto para tudo. Você deve ter uma grande expe­riê ncia nesse campo.

— Você tem alguma coisa contra os homens experientes?

— Gosto da boa companhia, mas nã o aprecio especialmente os exibicionistas.

— Você está me chamando de exibicionista, amor?

— Nã o sei, mas tenho a impressã o de que você está tentando provar alguma coisa, talvez a si mesmo. Um homem seguro nã o sente necessidade de proclamar sua virilidade.

— Nã o diga!

— Sabe qual é o seu problema? Você é bonito demais, alé m de ser mimado pela mã e, que faz todas as suas vontades.

— O que mais?

— Você tem consciê ncia, ao mesmo tempo, de que está desperdi­ç ando a vida com frivolidades. As mulheres nã o respeitam os homens irrealizados, que só se sentem seguros quando estã o fazendo amor ou dirigindo um carro a toda velocidade.

— Que juí zo você faz de mim! Quer dizer que você prefere os homens esforç ados aos indiví duos da minha espé cie?

— Ló gico. Os primeiros, pelo menos, estã o fazendo forç a para alcanç ar um objetivo. Os outros se contentam apenas com o que lhes passa pelas mã os.

— É um homem assim que você deseja encontrar? Um verdadeiro cavaleiro andante, de espada em punho, que preza a honra acima de tudo?

— Quem sabe. . .

— Você acha realmente que vai descobrir um homem assim hoje em dia?

— Por que nã o?

— Nó s vivemos no mundo do capital, meu bem, e os ideais româ n­ticos estã o completamente superados.

— Que pena! Seria maravilhoso viver numa é poca em que os homens prezavam a virtude e a honra acima de tudo, como essas está ­tuas de pedra que nos ficaram do passado.

— Você é uma româ ntica incurá vel! — exclamou Adone, com uma risada divertida. — É a santa perdida no mundo dos pecadores. Você acredita realmente na virtude ou está falando apenas da boca para fora?

— Claro que acredito! Meu pai me levou certa vez para ver uma dessas imagens esculpidas na pedra. Eu me lembro até hoje das palavras que estavam gravadas no pedestal: " A coragem é a alma do homem e a honra é a espada imaculada que segura na mã o".

— Que pensamento sublime! — exclamou Adone, com ironia. — Neste caso, o que vai ser de mim, menina?

Donna sorriu sem querer. Adone era realmente divertido com seu exagero tipicamente italiano, sem falar na gesticulaç ã o expressiva e fascinante que acompanhava cada uma de suas palavras.

— Eu nã o sou ingê nua a esse ponto. É claro que nã o vou topar pela frente com um cavaleiro andante, muito menos com um Prí ncipe Valente. Como você disse, nó s vivemos num mundo tremendamente materialista, que só valoriza o dinheiro e o sucesso. Os sentimentos humanos foram relegados a um segundo plano. O homem que eu mais odeio é o magnata sem coraç ã o, que adora o dinheiro acima de tudo. Nã o sei como algué m pode gostar de um homem assim. É o mesmo que amar um criminoso de guerra, como Adolf Hitler!

— Ah, você é uma graç a, querida! Eu morro de rir com suas teorias. E eu pensava que a secretá ria inglesa de mamã e seria uma mulher velha e feia, com um coque no alto da cabeç a! Que surpresa deliciosa foi encontrá -la na sala! Eu fiquei bobo com minha sorte. . .

— Nã o se esqueç a de que eu sou a secretá ria inglesa de sua mã e e que nã o vim aqui para namorar você. Por falar nisso, Serafina nã o está vendo com bons olhos nossa camaradagem.

— Quem disse?

— Está na cara.

— Vai ver que ela tem medo que eu a corrompa com minhas ideias.

— Pode ser.

— Mal sabe ela que é você quem vai acabar me convertendo. . .

Neste momento, a baí a surgiu ao longe, salpicada pelas luzes dos barcos de pesca que estavam ancorados no canal. Mais adiante, avis­tava-se um farol antigo construí do no alto de uma rocha, cuja luz piscava a intervalos regulares.

Adone estacionou o carro no pá tio do pequeno restaurante de frente para o mar. A mú sica fluí a pelas janelas abertas e dava ao local um encanto particular. O restaurante rú stico nã o podia ser mais sossegado e era o lugar ideal para conversas í ntimas.

Adone desligou a chave e voltou-se no banco. O rosto dele era belo e perfeito como o de uma moeda antiga.

— Eu sonho todas as noites com você. Eu a desejo mais que tudo no mundo. Quero estreitá -la nos braç os, beijá -la, acariciá -la. Nunca conheci ningué m como você antes. Você é inteligente, desem­baraç ada, temperamental, ingê nua. . .

— Adone, você prometeu que nã o ia me namorar mais! Foi isso o que combinamos antes de sair. Você está jogando todo seu charme em cima de mim, como os italianos costumam fazer quando convidam uma mulher para jantar fora. Isso nã o vale! Você é um rapaz rico que está querendo se distrair à s minhas custas. Nã o adianta a gente se iludir. Eu sou uma criatura simples e você é um homem sofisti­cado, experiente. . . Nossos mundos nã o combinam.

— Você está inteiramente equivocada, amor. Eu nã o sou a pessoa que você imagina. Há muitas coisas que gostaria de lhe dar, de cora­ç ã o aberto, sem nenhuma malí cia. Antes de mais nada, quero me dar a você, completamente.

— Por favor, Adone, vamos mudar de conversa. Estou morrendo de fome. Vamos entrar e beliscar alguma coisa?

— Está bom, vou fazer sua vontade.

Donna estava sentada na mesa do restaurante, diante de Adone, quando a ideia lhe ocorreu pela primeira vez. Era possí vel que a beleza má scula e a seduç ã o de Adone fossem herdadas de Rick? Ela fez os cá lculos rapidamente e suas suspeitas foram em parte confir­madas. Serafina e Rick eram quase da mesma idade e podiam perfeitamente ter um filho de vinte e poucos anos — bastava terem sido amantes desde a juventude.

— O que foi? — perguntou Adone, fitando-a atentamente. — Por que você está me olhando com essa cara?

— Nã o foi nada! — murmurou Donna, com os olhos esbugalhados. Era verdade! Isso explicava tudo, se bem que a explicaç ã o fosse amarga como fel! Adone era o filho ilegí timo de Rick! Ela notara a semelhanç a entre os dois desde a primeira vez que os vira juntos. Tinham a mesma estrutura dos ossos da face, o mesmo perfil afilado da estatuá ria antiga.

Ela sabia desde o iní cio. Seu instinto feminino lhe dissera que havia algo profundo na uniã o entre Rick e Serafina. Há vinte e poucos anos, Serafina ficara grá vida de Rick, e, de lá para cá, os dois man­tinham um relacionamento que era fruto do amor e da maternidade.

Era horrí vel, poré m, que nã o houvesse amor entre o pai e o filho, pensou Donna, profundamente abalada com sua descoberta. Rick nã o fizera o menor gesto para se aproximar do filho. Adone dirigira todo o seu afeto exclusivamente para a mã e. Ou fora Serafina quem dese­jara possuir egoisticamente o amor do filho e relegara o pai à condiç ã o de simples guarda-costas?

Enquanto Adone escolhia o vinho na lista que o garç om lhe esten­deu, Donna dirigiu, sua atenç ã o para a torre distante do farol. Visto daquela distâ ncia, o farol antigo parecia muito triste e solitá rio, batido incessantemente pelas vagas.

— As pessoas estã o pensando que nó s somos namorados — co­mentou Adone, colocando a mã o em cima da dela. — O que você vai querer, amor? Que tal pedir um presunto cru com melã o? Ou você prefere uma, salada de abacate?

— Escolha você.

— Você confia em mim?

— Em questõ es de culiná ria, sim.

— Ó timo. Já é alguma coisa. Eu gosto de tudo em você inclusive desse ar distante com que você me olha. É excitante, como se fosse um desafio. . .

— Como se chama essa praia? — perguntou Donna, procurando desviar a atenç ã o de Adone para outros assuntos.

— Praia da Enseada.

— Que bonito nome!

— Está vendo aquele farol no alto da pedra?

— Estou. Foi a primeira coisa que eu vi quando me sentei aqui.

— Há muitos anos, servia de mirante para localizar os barcos dos piratas sarracenos. Quando um deles se aproximava da costa, a populaç ã o escondia os objetos preciosos e as filhas solteiras no alto do morro. O mais engraç ado é que as moç as faziam tudo para serem capturadas pelos piratas e levadas para os navios. Só assim nã o tinham que casar com os noivos escolhidos pelos pais!

— Nã o diga!

— Em geral, somente os velhos podiam pagar o preç o exigido pelos pais como dote das filhas solteiras. E elas, naturalmente, fugiam dos velhos como o diabo da cruz!

— Pois olhe, meu pai tinha mais de cinquenta anos quando mor­reu e muitas mulheres o consideravam extremamente desejá vel. . .

— Foi seu pai quem instilou em você o amor pela virtude?

— Foi, por quê?

— Porque só os pais desejam o impossí vel para os filhos. Há outras virtudes, alé m da honra e da coragem. . .

— Quais, por exemplo?

— A tolerâ ncia é uma delas. Nã o há nada pior que ser intransi­gente e condenar as fraquezas dos outros. Felizmente você é uma criatura generosa e apaixonada por natureza, que tem horror das atitudes mesquinhas.

— Como você pode saber como eu sou? Você mal me conhece!

— Eu vejo isso escrito em seus olhos.

— Acredito realmente na dedicaç ã o a um ideal e penso que as pessoas idealistas tornam a existê ncia digna de ser vivida pelos outros.

— O que nã o deixa de ser uma atitude irrealista — disse Adone, com um sorriso irô nico. — O que você prefere? Um homem idea­lista, mas insuportá vel, ou um outro cheio de defeitos que é uma simpatia?

— Eu nã o disse isso — confessou Donna, forç ada a reconhecer que havia muita verdade nas palavras de Adone. Um relacionamento distante nã o satisfaria nunca seu coraç ã o de mulher.

Ela corou repentinamente ao se lembrar do encontro que tivera com Rick no alto do Coliseu, na primeira noite em que os dois se encontraram. Adone julgou que a transformaç ã o na fisionomia dela era o sinal de que estava cedendo ao seu argumento e deu um sor­riso de triunfo.

—Confesse que você só se casará com algué m quando estiver perdidamente apaixonada. . . Isso, sim, é uma atitude realista que merece todo o meu respeito. Você gostou da salada de abacate?

— Gostei muito. Você quer que lhe sirva um pouco mais?

— Nã o, muito obrigado.

O charme de Adone podia ser herdado de Serafina, pensou Donna, mas seu raciocí nio ló gico vinha diretamente de Rick. Isso estava evidente agora. Ela lembrou do Rick que conhecera em Roma, na noite em que danç aram até de madrugada no baile à fantasia. Ele tinha a mesma maneira de argumentar, de convencer, de persuadir. . . Só que por Rick ela sentia um desejo intenso, que estava presente nos menores gestos, na palpitaç ã o das veias, nos olhos brilhantes de excitaç ã o que acompanhavam cada palavra que ouvia.

Ela sabia, poré m, que era extremamente perigoso amar algué m cujas raí zes e lealdades estavam irremediavelmente associadas à s de outra mulher. Sobretudo em se tratando de uma mulher bela e fasci­nante, incomparavelmente mais experiente e vivida do que ela, que só tinha dos homens um conhecimento vago e imperfeito.

— Você gostou do jantar?

— Estava uma delí cia.

— Onde vamos agora?

— Onde você quiser, só que nã o posso voltar muito tarde para casa.

— Combinado.

Eles deram um passeio de carro e, à meia-noite em ponto, Adone estacionou o carro diante da entrada imponente da Villa Imperatore.

 



  

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