Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





CAPÍTULO III



 

 

Rachel nã o esperou o carro parar completamente para descer. Fazia mais de uma hora que estava fora de casa e o pensamento de que Sara podia ter acordado e procurado por ela fez com que corresse para a porta.

— Espere! — exclamou Joel, alcanç ando-a com o rosto tenso e abatido. — Vou entrar com você.

— Essa casa nã o é minha, Joel — disse Rachel sem jeito. — Nã o posso convidá -lo para entrar sem autorizaç ã o do coronel.

— Você disse a mesma coisa ao meu pai? — perguntou com frieza. Rachel deu um suspiro fundo.

— Seu pai conhece o coronel.

— Ah, entendi... Os dois sã o cú mplices nessa histó ria.

— Nã o seja ridí culo! — exclamou, nervosa. — Eu vou dizer ao coronel que você está aqui.

— Nã o se incomode. — Adiantou-se e abriu a porta. — Vamos. Você nã o vai me deter mais tempo.

Rachel dirigiu-lhe um olhar de raiva ao entrar no corredor sombrio. Joel fechou a porta atrá s de si. Ela nã o sabia o que fazer. A casa estava silenciosa. O coronel costumava descansar à tarde. Levaria Joel até seu quarto sem pedir primeiro a autorizaç ã o do dono da casa?

— Vamos!

Joel estava impaciente. Rachel tirou o casaco que vestia e pen­durou-o no cabide do corredor. Sem fazer barulho, caminhou pelo corredor sombrio em direç ã o à escada. O quarto era no primeiro andar. Joel acompanhou-a de perto, examinando com curiosidade o ambiente da casa.

Rachei virou à esquerda no primeiro lance da escada e dirigiu-se para uma porta no fim do corredor. A sala era pequena, mas acolhedora e mobiliada com bom gosto. Havia quatro portas, que

davam para o quarto de dormir, o quartinho de Sara, uma kitchenette e o banheiro.

Joel parou na entrada da sala e apoiou-se no batente.

— Onde ela está?

— Talvez esteja dormindo — disse Rachel, tensa e preocupada, temendo o momento em que Joel veria a menina pela primeira vez. Sara nã o era bonita. Era muito pá lida e angulosa e, quando nã o simpatizava com algué m, como acontecia com Andrew, podia ser muito desagradá vel.

Enquanto Rachel permanecia indecisa no meio da sala, adiando o instante inevitá vel, a porta do quartinho se abriu e a menina apa­receu na soleira, piscando os olhos, a calç a jeans amassada, a blusa manchada do ovo que comera no café da manhã. Cabelos pretos e lisos, semelhantes aos de Joel, caí am sobre os ombros finos; o rosto chupado e os olhos escuros eram evidentemente da famí lia Kirigdom.

— Mamã e — murmurou com voz de sono, olhando sem jeito para o homem que estava apoiado na porta. — Mamã e... você me acordou.   

Rachel procurou controlar-se, sem olhar para Joel.

— Desculpe, querida — murmurou, aproximando-se da filha. — Eu trouxe uma visita para você.

— Quem é? — perguntou Sara, os cí lios movendo-se rá pidamente. Estava com a cara amarrada e nã o havia nenhum indí cio de que ia sorrir e amenizar os traç os tristonhos do rosto.

Joel adiantou-se.

— Sou eu — disse sem jeito, fechando a porta. — Eu... seu... — Fez uma pausa ao perceber a expressã o horrorizada de Rachel,   

— Um amigo seu — emendou a tempo.

— Eu nã o tenho amigos — disse Sara com desconfianç a, fitan­do-o impassivehnente.

— Ah, nã o? — Joel agachou-se ao lado dela. — Pois eu tenho certeza que você tem. — Os dois estavam quase da mesma altura.

— E o coronel, e o tio Andrew?

— Eu nã o gosto de Andrew — exclamou Sara com franqueza.

— E o coronel é muito velho.

— E os amiguinhos com quem você brinca?                                

— Eu nã o sei brincar — respondeu Sara com uma candura infantil. — Eu fico logo cansada. Eu sou aleijada...

— O quê? — exclamou Joel, levantando-se do chã o, com os olhos espantados. — O que ela quer dizer com isso? O que você escondeu de mim?

— Nada, nada — disse Rachel com nervosismo. — Sara tem apenas uma pequena deficiê ncia sanguí nea, mais nada. Está sendo tratada.

Joel nã o pareceu muito convencido.

— O que ela tem exatamente?

— Eu já disse que nã o é nada sé rio. Nã o vamos falar nesse assunto agora, por favor!

— E quem disse que você era aleijada, Sara? — insistiu Joel.

— Mamã e! — murmurou a menina com a fisionomia ansiosa.

— Talvez tenha sido o coronel — interveio Rachel rapidamente. — As pessoas de idade falam sem pensar...

— Nã o, nã o foi o coronel — disse Sara. — Eu ouvi as pessoas falarem isso no hospital. Um homem disse: " Onde está a menina? " E uma mulher perguntou: " Que menina? " O homem disse: " A alei-jadinha". Eu ouvi eles falarem isso no hospital.

— Eles nã o estavam falando de você — interveio Rachel.

— Em que hospital, Sara?

— No hospital da cidade. Eu vou sempre lá...

— Escute, vamos mudar de assunto! — interrompeu Rache! com o rosto em brasa.

— Eu quero saber tudo a esse respeito! — insistiu Joel.

— Por favor, nã o vamos brigar agora por causa disso. Por favor, Joel!

— O que foi, mamã e? — Sara percebeu que os dois nã o estavam se entendendo e amarrou a cara para Joel. — Por que você está olhando para a mamã e desse jeito? Por que você veio aqui? Você nã o é meu amigo. Está só fingindo. Eu nã o gosto de você!

— Sara, tenha modos! — exclamou Rachel colocando a mã o no ombro da menina. — Nã o seja indelicada com as visitas. Peç a desculpa pelo que você disse.

— Nã o peç o!

Soltou-se da mã o de Rachel, atravessou a sala e foi apanhar uma boneca que estava dentro de um carrinho de crianç a. Joel observou-a com atenç ã o, enquanto Rachel avaliava em silê ncio sua reaç ã o. O que Joel pensava da menina cuja existê ncia ignorava até aquele dia? Julgava-a feinha? Estava decepcionado por nã o ser uma menina de rosto corado, com olhos de boneca e cabelos ondulados. Sara, no entanto, tinha muito mais que isso. Era leal e afetuosa, muito inteligente e, mais do que tudo, possuí a uma riqueza de amor que até entã o fora dirigida unicamente para a mã e. E qual seria a reaç ã o dela se soubesse que Joel era seu pai?

Mais tarde era prová vel que Sara aceitasse o fato de Rachel ter ocultado a existê ncia do pai durante tantos anos. Mas compreen­deria o motivo que a levara a agir desse modo, ou sua simpatia iria na outra direç ã o? Angustiada pelo pensamento, engoliu em seco e abafou o soluç o que subia na garganta. Nã o queria nada de Joel. Nada. Nem mesmo por amor de Sara.

— A deficiê ncia sanguí nea é sé ria? — perguntou Joel em voz baixa, apó s o longo silê ncio.

Rachel esfregou as palmas das mã os.

— Eu já disse a você que nã o. Ela vai melhorar.

— Você consultou algum especialista?

— Diversos. O caso dela nã o é muito raro. Há outras crianç as exatamente com o mesmo problema.

— Mas nã o sã o minhas! — murmurou Joel entre os dentes.

— Nem Sara tampouco! — retrucou Rachel. — Ela é minha, nã o se esqueç a.

— Nã o me esqueç o de nada. Nunca me esqueci do que aconteceu entre nó s.

— É meio difí cil de acreditar.

O rosto dele tornou-se repentinamente tenso.

— Rachel, Sara é minha filha tanto quanto sua! Os motivos que você teve para ocultar isso de mim sã o seus, exclusivamente seus, mas nã o creio que o juiz vá pensar da mesma forma.

— O juiz? Você tem a audá cia de me falar em juiz? Sara nã o significou nada para você nestes anos todos! — exclamou sem se conter e voltou-se rapidamente para o canto da sala onde Sara brincava com a boneca. Felizmente ela nã o ouvira nada.

— O que eu podia fazer? Eu nã o sou adivinho, Rachel. — Encarou-a com insistê ncia. — Como podia adivinhar que você estava grá vida?

— Você nunca se interessou por isso.

— Como você pode saber?

— Você nã o quis casar comigo na é poca — ela o acusou.

— Se eu soubesse...

— Claro, se você soubesse que eu estava grá vida tudo seria diferente... O que você teria sugerido? Adoç ã o ou aborto?

Joel deu um passo na sua direç ã o quando a porta da sala se abriu e Andrew apareceu na soleira.

— Rachel, eu ouvi vozes... Ah... você está com visita!

— Estamos conversando — disse Rachel com um sorriso sem graç a. — Joel já está de saí da. Ele queria conhecer Sara, nã o é mesmo, Joel?

Ele enfiou as mã os no bolso da calç a com uma expressã o de poucos amigos.

— Nã o sabia que estava na hora de ir embora. Ainda nã o ter­minamos nossa conversa. Os olhos de Rachel imploraram sua aceitaç ã o, mas Joel nã o

estava com disposiç ã o para condescender em nada. Andrew pro­curou ocultar a curiosidade e disse:

— Eu só queria avisar, Rachel, que o coronel acordou e está esperando o chá.

— Ah, muito obrigado, Andrew. — Ela havia esquecido com-pletamente as obrigaç õ es do presente diante da realidade inquie-tante do passado. Forç ou-se a olhar para Joel. — Desculpe, mas eu tenho trabalho para fazer.

Joel voltou-se para ela, depois para Andrew e finalmente para Sara, que olhava para os trê s com a mesma fisionomia fechada.

— Vou ficar mais um pouco com Sara — disse por fim. — Nã o se prenda por minha causa. Vou brincar um pouquinho com Sara.

— Eu nã o quero brincar, mamã e — disse a menina atravessando a sala e enfiando o rosto nas pernas da mã e. — Eu nã o quero ficar aqui com ele. Eu quero ir com você.

Andrew interveio.

— Nã o se preocupe, Sara. Ningué m vai obrigá -la a fazer o que você nã o tem vontade. Ele já está de saí da.

— Eu sugiro que você nã o interfira na conversa — disse Joel com rispidez. — Nã o tem nada a ver com você.

— Joel, por favor!

Joel fingiu nã o ouvir a intervenç ã o de Rachel e insistiu:

— Você prefere nos deixar a só s ou prefere que eu tome a iniciativa?

Andrew voltou-lhe as costas e resmungou entre os dentes que ia comunicar o fato ao coronel.

— Ah, Joel! — exclamou Rachel segurando Sara no colo. — O que você está querendo provar? Vá embora, por favor. Vá antes que faç a alguma coisa irrepará vel.

— Está na hora de terminar com esses segredos, Rachel! — exclamou com irritaç ã o. — Você acha realmente que vou deixar as coisas ficarem nesse pé? Você ainda nã o me contou por que pretende casar com meu pai. E eu faç o questã o de saber. Há mais motivos nessa decisã o que a simples conveniê ncia.

Rachel fechou os olhos por um segundo, em agonia.

— Nã o tenho tempo agora para discutir esse assunto.

— O que vou fazer entã o? Ficar esperando no hotel?

— Nã o, nã o — balanç ou a cabeç a com nervosismo. — Está bem, vou contar meus planos. Vou mudar para Londres na semana que vem. Seu pai arrumou um apartamento para mim até... até o dia do casamento. Ele acha que é melhor para Sara. Para poder vê -la mais frequentemente. E... depois... depois vamos morar em algum outro paí s...

— Em outro paí s? — perguntou Joel perplexo. — Em que paí s?

— Na Gré cia... Seu pai tem uma casa lá...

— Sim, eu sei. Em Lyarchos. Quer dizer que você s vã o morar lá? — Fez uma pausa. — E o barco?

— Nã o tenho idé ia. Ele achou que seria melhor para Sara.

— Quer dizer que tudo isso tem a ver com Sara! — disse, batendo com a palma da mã o na testa. — Rachel, eu nã o vou permitir...

— Você nã o pode me impedir!

— Mas posso tentar.

Sara observava os dois em silê ncio, com os lá bios trê mulos, como se suspeitasse da violê ncia que pairava no ar. Fixou Joel com ressentimento, julgando que tudo era por culpa dele. Joel surpreendeu o olhar intenso da menina e tentou sorrir.

— Eu vou embora, Sara, mas nó s vamos nos encontrar outra vez.

— Eu nã o gosto de você! — disse a menina com o rosto fechado.

— E pena, porque eu gosto de você, eu gosto muito de você. — A fisionomia endureceu quando se voltou para Rachel. — Você vai receber notí cias minhas em breve!

Voltou-se e saiu da sala. Rachel ouviu os passos rá pidos que desciam a escada, a porta que bateu no andar de baixo e o ronco do motor do carro.

Sara levantou a cabeç a quando o carro se afastou.

— Você s nã o vã o brigar mais? — perguntou com ansiedade. Rachel inclinou-se e abraç ou-a.

— Nã o, querida, nã o vamos brigar mais.

— Quem é esse homem, mamã e? — insistiu Sara com o rosto preocupado. — É o pai dele que vai ser meu papai? Ele també m vai morar conosco?

— Nã o, filhinha, ele nã o vai.

— Mas ele nã o disse que você vai casar com o pai dele? Eu ouvi a conversa.

Rachel nã o sabia o que responder. Sara ouvira o bastante para sentir-se ansiosa e preocupada com a notí cia. Nã o deviam ter dis­cutido o assunto diante dela. Mas quem podia silenciar Joel?

— Sara, o homem... o homem que estava aqui é filho do tio James, mas ele tem uma casa e nã o mora mais com o pai.

— Por quê?

— Porque nã o mora. Quando as pessoas crescem, vã o morar

sozinhas.

— Eu nã o vou morar sozinha.

— Como você pode saber, boneca? — Se ela viver até lá, pensou Rachel com um aperto no coraç ã o. Mas Sara ia crescer, precisava viver, repetiu consigo mesma. Esforç ou-se para sorrir e disse com ternura: — A menina já crescida encontra um rapaz e gosta dele. Depois casa e saem de casa, e tê m filhos como os pais.

— Como você?

— Humm, como eu — disse Rachel com a voz insegura.

— E por que papai morreu?

Rachel deu um suspiro. Fazia tempo que esse assunta nã o era mencionado entre as duas e, depois da cena com Joel, nã o estava em condiç õ es de abordá -lo de novo.

— Olha, filhinha, eu vou preparar o chá do tio.

— Pois eu nã o vou casar — disse Sara com firmeza. — Nã o vou encontrar um rapaz nem vou casar. Vou ficar sempre com

você, a vida toda.

— Você é um amor, querida — disse Rachel com os nervos tensos. — Agora eu preciso ir. Já perdi muito tempo. Você vem comigo ou vai ficar brincando aqui?

— Vou com você. — Voltou-se e foi até o carrinho, — Vou levar Helga comigo. Ela també m gosta de ver você preparar o chá.

Helga era a boneca de pano que Rachel tinha feito trê s anos antes, para o Natal, Velha e desgrenhada, em geral sem nenhuma roupinha no corpo, ocupava um lugar importante nas afeiç õ es de Sara, que a levava consigo para toda parte.

Rachel esperou a menina voltar, controlando a impaciê ncia. Feliz­mente, tinha alguma coisa com que se ocupar. Quando aceitou o ca­samento que James lhe propô s, sabia que mais cedo ou mais tarde iria encontrar-se novamente com Joel, mas nunca imaginara que o encontro seria tã o amargurado e doloroso. As ú ltimas duas horas ti­nham sido realmente uma tortura e os nervos tensos estavam preci­sando de repouso. Pela primeira vez desejou que James estivesse ali para consolá -la. Talvez ele soubesse uma maneira de controlar o filho.

Era tarde quando Joel entrou finalmente em Londres. Fora obrigado a parar na estrada para comer e beber alguma coisa, parque o cansaç o e a fome estavam começ ando a vencê -lo e queria estar em forma antes de chegar.

A casa do pai era alta e imponente, toda pintada de branco, num bonito estilo arquitetô nico do sé culo passado. Suas origens eram des­conhecidas, mas dizia-se que servira antes de cavalariç a. Quando James o adquiriu, no entanto, o velho casarã o já passara por muitas reformas. Um casal de idade morava num dos quartos de empregados, nos fundos do quintal, e dividia os serviç os da casa. A mulher cozi­nhava e arrumava a casa, enquanto o marido servia a mesa, fazia compras e dirigia o carro. O pai possuí a també m unta pequena casa de campo, onde Joel morara até estar bastante crescido para ir à ' escola. Foi entã o que James se casou pela segunda vez. Francis nasceu do segundo casamento e, desde entã o, tudo mudara na vida da famí lia. O pai passava pouco tempo na casa de campo e Joel pensava que isto era devido a estar muito ocupado no banco.

Estacionou o carro em frente à porta da entrada, pintada de branco e com dobradiç as de cobre. Nã o havia luzes acesas na casa, mas isto nã o significava que James estivesse dormindo. Ele pas­sava a maior parte do tempo livre na biblioteca que ficava no fundo da casa, ao lado de um pequeno jardim.

Joel apanhou a chave da porta e procurou entrar sem fazer barulho. Subiu a escada que levava ao salã o espaç oso decorado com mó veis suecos e poltronas de couro. Acendeu a luz da sala e olhou em volta. A bandeja do jantar estava em cima da lareira, mas nã o havia sinal de James. Sem se deter ali, atravessou ra­pidamente a sala e foi sair no corredor sombrio. Uma luz aparecia embaixo da porta no fim da passagem, onde era a biblioteca. Joel caminhou até lá e abriu a porta sem bater primeiro.

James Kingdom estava sentado diante de uma mesa comprida, trabalhando, provavelmente. Pelo menos parecia estar ocupado diante da quantidade de papé is que estavam espalhados em cima da mesa. Levantou a cabeç a com curiosidade para o visitante e deu um sorriso irô nico ao reconhecer o filho, Os dois eram muito parecidos, exceto que a fisionomia de James revelava mais matu­ridade e experiê ncia, sem falar nos cabelos brancos.

— Joel! Que surpresa agradá vel! — exclamou, levantando-se da cadeira.

Joel fechou a porta e apoiou-se no batente, fixando o pai com o rosto impassí vel.

— Nã o precisa fingir. Você sabe por que estou aqui.

— Ah, sim? — perguntou James levantando as sobrancelhas espessas.

— Tenho certeza de que sabe — repetiu Joel afastando-se da porta. Foi até uma mesinha e serviu-se de uma garrafa de uí sque que havia ali. Virou de um gole a metade do conteú do do copo e voltou-se para o pai, enxugando a boca com as costas da mã o, James Kingdom tornou a reclinar-se na poltrona.

— Por favor, sirva um uí sque para mim. Afinal, sou o dono da casa.

Joel fez uma careta de contrariedade mas atendeu o pedido; voltou à mesa com o copo na mã o e colocou-o propositalmente em cima do documento que o pai estava examinando.

— Aí está seu uí sque. Posso me servir de outro?

— E se eu disser que nã o?

— Tenho certeza de que você nã o vai dizer isso — comentou Joel com um sorriso mordaz, dirigindo-se novamente à mesinha das bebidas.

Ao servir o segundo copo, seu rosto perdeu o ar de zombaria. Aquele nã o era o momento oportuno para brincadeira. O pai estava tentando afastá -lo do caminho, deliberadamente.

— Entã o? — perguntou James Kingdom saboreando a bebida com um prazer evidente. — A que devo essa honra? É sua segunda visita nos ú ltimos seis meses.

— Andei muito ocupado ultimamente — disse Joel com secura.

— Faç o idé ia. Sobretudo com as encomendas que lhe mando.

— De fato, ser o filho de James Kingdom tem suas vantagens, por mais obscuras que sejam. Mas eu gostaria de deixar claro que me mantenho do meu talento, e nã o do seu nome.

— Sem falar na heranç a de sua avó.

— També m. Embora nos ú ltimos anos tenha investido a maior parte dos juros.

— Ah, sim? Nã o sabia que a profissã o de artista era tã o lucrativa...

— Eu sou pintor, pai, e nã o um artista. Quando as pessoas falam em artistas, referem-se a uns tipos excê ntricos que andam de boinas e aventais cobertos de tinta.

— Disso pelo menos ningué m pode acusá -lo!

— Nem você, tampouco — replicou Joel com ironia.

— Pensei que você nã o fosse mais abordar o motivo da visita — disse James endireitando-se na poltrona e acendendo um cha­ruto. — É sobre Rachel, naturalmente.

— Como você adivinhou? — perguntou Joel com a voz sarcá stica.

— Nã o adivinhei, realmente. Francis me contou.

— Ah, bom — Joel bebeu o ú ltimo gole de uí sque. — Como você arrancou essa confissã o do pobre coitado?

— Para falar a verdade, há tempos que desejava conversar com você. Como você nã o estava em casa, perguntei a Francis se sabia do seu paradeiro.

— E ele contou tudo, sem mais nem menos?

— Nã o. Foi muito reticente, por sinal. Disse que você tinha viajado, provavelmente com É rica, e ia passar alguns dias fora.

— E aí?

— Telefonei para É rica.

— Claro, você nã o ia perder essa oportunidade. O que ela disse?

— O que você lhe contou, evidentemente. Que fora até o interior para resolver um negó cio urgente.

— Certo. Nã o precisa continuar. Eu seio que aconteceu em seguida. Francis morre de medo de você. De qualquer maneira, nã o tem a menor importâ ncia que você tenha descoberto o motivo da minha viagem. Eu estive com Rachel e fiquei conhecendo minha filha.

— Sua filha?

— E, minha filha. E se você pensa que vou deixá -lo tomar a menina de mim você está redondamente enganado.

— Pelo que sei, você nã o pode opinar no caso — disse James com a voz serena, mas encolheu-se instintivamente quando Joel se apro­ximou da poltrona. — E nã o pense que você me intimida, filho.

Joel apoiou as mã os no encosto de couro.

— Tem certeza?

O pai deu um suspiro de impaciê ncia.

— Pelo amor de Deus, homem, vamos parar com essa brinca­deira de mau gosto! Eu sei que você é fisicamente mais forte que eu. E daí? Você pensa que Rachel vai aprovar essas tá ticas brutais e primitivas?

— Vamos deixar Rachel de fora neste momento.

— Impossí vel. Ela está muito por dentro do assunto. — James levantou-se da poltrona, como se a presenç a do filho debruç ado sobre a cadeira o incomodasse. — Somos pessoas civilizadas, Joel. Lembre-se disso.

— E civilizado aceitar que meu pai se case com a mã e de minha filha?

— Você nã o tinha idé ia de que Rachel era mã e!

— E você, sabia?

— Sim, sabia.

— Como? — exclamou Joel aproximando-se do pai. — Nã o en­tendi o que você quis dizer.

— Você ouviu muito bem — disse James com um suspiro de impaciê ncia. — Eu sabia que Rachel estava esperando um filho seu.

Joel balanç ou a cabeç a incredulamente. Nã o podia acreditar nas palavras do pai. Segurou-o com forç a pelo braç o e fixou-o com os olhos contraí dos.

— Como você podia saber que Rachel estava grá vida? Ningué m sabia a nã o ser ela.

— Pois eu lhe digo que sabia — disse James procurando sol­tar-se da mã o que o segurava. — O que há de mais nisso? Rachel me procurou. Estava desesperada. Ela me pediu auxí lio.

— Pediu auxí lio a você? — repetiu Joel com a voz gelada. — O que você podia fazer?

— Podia lhe dar dinheiro para o aborto.

— Aborto?

— Mas ela nã o aceitou essa soluç ã o. Preferiu viajar para o norte. O dinheiro que dei manteve-a durante a gravidez.

— E você sabia disso? — exclamou Joel com uma expressã o de ó dio.

— Nã o, nã o sabia. Eu dei o dinheiro para o aborto. Nã o sabia que ela tinha viajado.

Joel empurrou o pai com tanta violê ncia que ele esbarrou na es­tante e segurou-se com dificuldade no canto da mesa. Joel, poré m, estava atento a outra coisa. No momento em que empurrou o pai, sentiu uma pontada no estô mago, uma â nsia de vô mito, mais forte do que quando ouviu Rachel contar que ia casar com seu pai. Entã o ela tinha procurado seu pai e pedido dinheiro para o aborto? Evitara procurá -lo, a ú nica pessoa a quem podia confiar seus problemas!

Respirando com dificuldade, voltou-se e encarou O pai novamente.

— Por que você nã o me contou isso antes?

— Rachel insistiu para guardar segredo.

— Desde quando você respeita o segredo dos outros? James sentou-se lentamente na poltrona de couro. Inclinou-se

para trá s e observou o filho com a fisionomia fechada.

— Se a crise passou, sugiro que discuta esse assunto de uma maneira educada e racional — disse com rispidez.

— Como, por exemplo?

— Eu preferia que você nã o se envolvesse nessa histó ria. Ela só diz respeito a Rachel e a ruim... a mais ningué m.

— Ah, é? Pois eu gostaria de saber quem lhe deu o direito de pagar a Rachel para destruir minha filha!

— Você está sendo melodramá tico, Joel! — exclamou James batendo com o punho fechado em cima da mesa. — Procure en­tender que Rachel estava desesperada. Você nã o queria casar com ela. Preferia que a mandasse embora sem nada?

Joel aproximou-se novamente da mesa.

— Você podia ter me chamado. Podia ter me contado!

— Você acredita que ela teria aceito? Ver você?

— Sobretudo porque você nã o gostaria que isso acontecesse, nã o é verdade? — indagou Joel com desprezo. — Você queria uma oportunidade para ser bonzinho... Era sua grande chance de se vingar de mim por todas as vezes que desobedeci suas ordens!

— Você está delirando!

— Estou? Estou? — repetiu Joel com escá rnio. — Pois eu nã o acho.

— Por que Rachel nã o o procurou diretamente? Já pensou nisso?

— Ela sabia que se me procurasse eu nã o daria dinheiro para o aborto.

— O que você faria entã o? Joel hesitou um segundo.

— Eu me casaria com ela. James encarou-o incredulamente.

— Ah, é? E você acredita sinceramente que Rachel aceitaria casar-se nessas circunstâ ncias? Nã o seja convencido, Joel! As vezes eu me pergunto a quem você saiu...

— Carne de sua carne, pai!

— Comporte-se! — exclamou James com raiva. — Rachel nã o o procurou porque sabia que você era um egoí sta de marca, um medonho ambicioso! Você é dez anos mais velho que ela, mas isso nã o impediu que se aproveitasse dela, que arruinasse sua vida...

Joel se afastou.

— Nã o foi nada disso! — murmurou com irritaç ã o. — Eu a amava.

— Amava! — zombou o pai. — Que palavra foi mais abusada que essa? Amava. Você nã o sabe o significado dessa palavra.

— E você sabe, por acaso? Depois de casar duas vezes, você devia ter mais juí zo na cabeç a!

A fisionomia de James tornou-se sombria e distante.

— Eu gostava de sua mã e, Joel. Ningué m pode negar isso. Eu a adorava. Quando ela morreu... — balanç ou a cabeç a. — Com a mã e de Francis foi diferente. Nosso casamento nunca foi um en­contro de amor. Cada qual levava sua vida.

— Bem libertina, por sinal. Eu nã o era nenhuma crianç a para ignorar o que se passava na casa. E você nã o era nenhum santo! Você se senta aí falando de egoí smo e ambiç ã o. E você, nã o era egoí sta? Nã o era ambicioso?

— Por você s, Joel, somente por você s.

— Por mim?

— É a pura verdade. Você é o filho mais velho, o filho da mulher que eu adorava. Muito natural que quisesse moldá -lo...

— A sua imagem! — interrompeu Joel andando com impaciê ncia pela sala. — Olhe, essa conversa nã o está levando a parte alguma. Eu nã o vim aqui para rememorar o passado. Você já matou su­ficientemente sua saudade. Eu só quero saber como você encontrou Rachel... como a pediu em casamento. E, mais importante que tudo, por que ela aceitou. Eu sei que isso tem a ver com Sara. O que se passa com a menina? Por que ela vai ao hospital? E por que ela foi chamada de aleijada por algué m de lá? James jogou fora a ponta do charuto.

— Por que você nã o perguntou tudo isso a Rachel?

— E a você que estou perguntando, bolas!

— Se ela nã o pô de responder, eu també m nã o posso.

— Pai, olhe o que eu vou lhe dizer...

— Nã o, Joel, sou eu que lhe digo. Afaste-se de Rachel! Durante anos você se manteve ausente desta casa, você nunca vem aqui e nunca sei que fim você levou. Você nã o se preocupa a mí nima com minha saú de e meu bem-estar. Até agora a situaç ã o nã o era do meu agrado. Mas agora é. Agora eu desejo que você mantenha distâ ncia desta casa, passe seu tempo com as pessoas de que você gosta. Eu sei que você nã o suporta a idé ia de Rachel preferir minha companhia à sua, mas você tem que aceitar isso.

— Você nã o gosta dela.

— Pelo contrá rio, gosto muití ssimo. Sempre gostei. Mesmo nos anos em que você envenenou a cabeç a dela contra mim.

— Com boas razõ es, como você há de convir.

— Talvez. Reconheç o que nem sempre fui um pai benevolente. Mas os tempos sã o outros.

— Os tempos mudam, mas você continua o mesmo.

Joel podia sentir a pulsaç ã o na testa. Lentamente, mas de ma­neira irrevogá vel, a situaç ã o escapava de suas mã os, e a impotê ncia de sua posiç ã o enfurecia-o. Por quê? Por quê? Já se esquecera de Rachel havia muitos anos. Tudo que sentia por ela no momento era o ressentimento cego de ter sido passado para trá s, de ter sido ignorado num momento de extrema gravidade.

— O que você disse a ela a meu respeito?

— Nã o costumamos conversar sobre você — disse James com um ligeiro movimento dos ombros. — Rachel está atravessando um pe­rí odo difí cil ultimamente. Pretendo tornar sua vida mais agradá vel.

— Casando-se com ela? — Joel passou os dedos entre os cabelos. — Você podia ajudá -la de outra maneira.

— Ah, é? — exclamou James com um sorriso irô nico e Joel teve vontade de esganá -lo. — E deixar o campo aberto para você?

Nã o, essa nã o. O acordo que Rachel e eu fizemos inclui um contrato de casamento, meu filho.

Joel voltou para o apartamento com uma dor de cabeç a insu­portá vel. Saí ra da casa do pai antes de perder completamente o controle. Sentia-se enjoado, humilhado, com uma sensaç ã o de vazio na boca do estô mago — e mais furioso do que supunha ser possí vel. Procurou imaginar o que sentiria se Rachel se casasse com outro homem, se Sara nã o fosse sua filha, mas nã o conseguiu. Era im­possí vel separar as duas coisas. Entretanto, ao pensar no casa­mento do pai com Rachel, nã o pensava em Sara, e sua imaginaç ã o criou quadros mais penosos do que podia pintar numa tela. As lembranç as do namoro com Rachel voltaram de uma forma aguda, e o espasmo que sentia no estô mago era algo real e fí sico...

Deixou o carro na garagem do pré dio e subiu no elevador até o ú ltimo andar. Ao abrir a porta, surpreendeu-se ao avistar uma lâ m­pada acesa na sala de visitas e uma moç a dormindo no sofá. Ela acordou com o barulho da porta e passou as mã o no rosto sonolento.

— Joel, querido! — exclamou com um sorriso, estendendo os braç os para ele. — Pensei que você nã o vinha mais...

Joel desabotoou o casaco e desceu os degraus que levavam à sala.

— Faz tempo que você está aí? — perguntou com a voz tensa. É rica levantou as sobrancelhas finas.

— Que rosto preocupado, querido! O negó cio nã o foi bem? Joel passou por ela sem responder e foi diretamente ao carrinho

das bebidas. Bebeu um gole de uí sque antes de indagar:

— Heron estava em casa quando você chegou?

— Estava. Faz umas quatro horas que estou aqui. O que acon­teceu, Joel? Você nã o está contente de me ver?

Levantou-se do sofá e aproximou-se dele, esguia e segura no vestido de tafetá cor-de-rosa. Os cabelos castanhos ondulavam em volta do rosto pequeno, e os saltos altos acrescentavam altura à sua estatura pequena. Rachel era bem mais alta que É rica, pensou Joel, procurando afastar o pensamento da cabeç a.

— Desculpe, É rica. Estou cansado da viagem. E só isso. Sem falar que estou morrendo de dor de cabeç a. Vou tomar um banho e deitar um pouco.

— Ah, querido! Fosso fazer alguma coisa por você? Quer tomar uns comprimidos ou uma á gua tô nica bem gelada?

— Obrigado, É rica. Nã o quero nada — passou a mã o na testa. — Eu nã o estou realmente bom para conversar...

— Eu vou embora — disse É rica, apanhando o casaco de pele que estava em cima do sofá. — Telefono amanhã para saber se você melhorou.

Joel observou-a com impaciê ncia. Nã o queria tratá -la mal, mas, no momento, nã o estava com disposiç ã o para ser delicado. Nã o adiantava pensar que É rica nã o devia estar ali, porque em outras ocasiõ es gostara de encontrá -la em casa, à sua espera. Ela exigia pouco dele. Era independente e estava sempre disponí vel. Sabia que Eriç a tinha planos de casar-se um dia com ele, mas isto nunca o incomodou. As exigê ncias de sua profissã o permitiam que adiasse indefinidamente o casamento e É rica nã o era favorá vel a ter filhos. Nã o tinha jeito para mã e, como dissera muitas vezes; era inteli­gente e bastante ambiciosa para vencer na sua profissã o, e era isso no fundo que Joel queria de uma mulher. De repente, no entanto, o egoí smo desse tipo de vida revoltou-o e lembrou-se obs­tinadamente dos olhos escuros de Rachel que o fixavam com de­sagrado. Era idiota admitir, mas aqueles dois olhos o perseguiam. E era idiota porventura gostar da pró pria filha?

Nã o podia explicar nada disso a É rica, e ela foi obrigada a tirar suas pró prias conclusõ es do mau humor dele. Passou o casaco de pele em cima dos ombros e caminhou para a porta. Joel acom­panhou-a com um esforç o visí vel.

— Sim, telefone amanhã — disse, inclinando-se para beijá -la no rosto. — Boa noite, É rica.

— Boa noite, Joel.

O sorriso de É rica estava marcado de impaciê ncia, mas conse­guiu controlar o impulso de agredi-lo. Joel encostou a porta com um suspiro de alí vio, apoiou-se no batente e fechou os olhos. Sabia exatamente o que É rica estava pensando, mas nã o podia fazer nada para confortá -la.

Atravessou a sala, soltou o nó da gravata e atirou o casaco em cima de uma cadeira. Um pequeno corredor levava ao quarto de dormir. O banho de chuveiro, no boxe luxuoso, ajudou a aliviar a sensaç ã o de desâ nimo que sentia apó s a discussã o com o pai. Passou uma toalha em volta da cintura e dirigiu-se para o quarto. Os abajures iluminavam as paredes marrons e a cama larga de casal estava coberta com uma colcha bege. Sentou-se na beira da cama e, em seguida, deitou-se ao comprido com as mã os atrá s da cabeç a. Estava cansado, exausto — mas nã o era apenas um cansaç o fí sico. Estava cansado de pintar retratos de mulheres da sociedade, cansado de recepç õ es e de festas, onde comia e bebia mais do que devia e fazia bem à saú de; estava farto de prostituir a alma em benefí cio do corpo. Em resumo, estava insatisfeito cora a vida que levava.

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.