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CAPÍTULO VIIICAPÍTULO VIII
Não podia haver mal-entendido naquelas palavras. Malraux tinha sido muito claro, assim como as mãos dele, em volta do corpo de Glenda. Ele pretendia continuar casado e não deixá-la ir embora. — Você… você está louco se imagina que vou ficar em sua companhia! Não estamos mais na Idade Média, mesmo que você continue se comportando como um seigneur reinando sobre os servos! Não pode ordenar a seus criados que me amarrem numa árvore, e façam uma fogueira embaixo! — Como a sua imaginação é rica, Glenda! Não admira que Edith Martwell tivesse sido capaz de convencê-la de que era uma fada-madrinha. Suas mãos se endureceram, e com a maior facilidade ele a puxou ainda mais para perto. Há muito as pessoas que estavam nas mesas em volta tinham ido embora, e o silêncio só era interrompido pelos passarinhos nas árvores e as abelhas voando pelas flores. Robert estava adormecido debaixo da macieira do restaurante, e, pela janela, um garçom discreto via um homem e uma mulher juntos, no que parecia um abraço. Ele encolheu os ombros de modo significativo e resolveu dar-lhes mais cinco minutos antes de levar a conta. Amantes, pensou, vivem num mundo só deles. Malraux sorria, cínico: — E certo que não estamos mais na Idade Média, mas ainda existe gente que não quer ser envolvida num escândalo… Por exemplo, um jovem oficial da Guarda Real, sem grande fortuna familiar, e com pretensões a subir no Regimento. Não vai ser nada agradável para o jovem Brake se todos ficarem sabendo que sua namorada era uma criança abandonada, adotada por uma mulher que a usava com finalidades de extorsão, crime passível de cadeia. Pode até ser que você fosse considerada inocente antes de se casar comigo, mas agora também é culpada. Essas palavras ficaram ecoando no ar, e parecia não haver nada que Glenda pudesse dizer que abrandasse a fúria de Malraux. Ele havia se negado a considerar as razões que a levaram a aceitar o casamento, assim como as circunstâncias que a obrigaram a fazer-se passar por Glenda Hartwell, a menina que ele conhecera há dez anos. Da mesma forma, tinha escarnecido da sinceridade de seu amor por Edith, desconsiderando todos os argumentos dela. Em troca, apresentava apenas aquele ultimato assustador. Realmente, um oficial jovem e ambicioso como Simon não tinha condições de ver sua reputação manchada, e Glenda lia nos olhos de Malraux a intenção de levar o assunto até o fim. Se insistisse em deixá-lo, ele envolveria o rapaz no escândalo do casamento deles. E revelaria que Edith tinha roubado e mentido, além de ter traído a confiança de Duval Malraux. Nenhuma daquelas revelações o atingiria… só atingiriam as duas pessoas que Glenda amava. — E você faria isso, não faria? — ela falou, a voz quase um sussurro. — Sim — disse ele, o olhar sustentando o dela, impiedoso. — Fico surpreso de ver até onde podemos chegar quando somos provocados. — Provocados? Você — exclamou ela, cheia de ironia. — É seu ego que não pode me perdoar por eu tê-lo enganado; você continuaria acreditando que eu era a filha de Edith Hartwell se Jeanne não tivesse reparado que os meus olhos não eram verdes. Para você eu não valho tanto quanto a verdadeira Glenda, mas você precisa me possuir, não é? — Sou um ser humano normal — disse ele, obrigando-a a colar o corpo ao seu, como se quisesse deixar evidente o quanto era humano. — E você tem uma pele muito bela, tão branca, tão macia! Por que esperava que a deixasse ir embora? Agora você me pertence, e no que é meu nenhum outro homem encosta a mão. — É esse o seu lema? — perguntou ela, imóvel, sentindo que seria inútil tentar resistir àquele contato. Droga! Ele parecia ver através da teia de mentiras a verdade a respeito de Simon. O jovem oficial a tinha tocado, mas não assim. Ele a beijava algumas vezes, mas havia menos sensualidade em seus beijos do que no olhar de Malraux sobre sua pele! Querido, querido Simon… ele a tinha respeitado. — Digamos antes que é o nosso lema, minha querida — respondeu Malraux, levantando o queixo dela com um dedo e forçando-a a enfrentar seu olhar. — Eu a aconselho a se esquecer de Simon Brake e a lembrar-se de que, se ele valesse o sal que come, a tinha levado embora daquele altar, sem dar a mínima para o que pensassem dele. Você pode arranjar mil desculpas, mas no íntimo está decepcionada porque ele ficou imóvel, metido naquele uniforme cheio de dourados, e permitiu que você dissesse que me amava — ele fez um gesto de zombaria. — É o que se chama de “agüentar firme”, não? Ele é bom nisso; eu sou bom em outras coisas, e digo sem a menor modéstia. — Você é inacreditável! Eu amava Edith sim, mas teria fugido para os confins do mundo se soubesse o que me esperava aqui. Você não é um… cavalheiro! — Nem você é uma dama, minha cara — retrucou ele. — Você era uma criança sem dono que a astuta Edith recolheu, e tenho certeza de que não faz a mais remota idéia de quem possa ser a sua mãe… — Não faço mesmo — disse Glenda, muito magoada. — Por que, então, não me deixa ir se nome e posição social contam tanto para você? Malraux examinou aquele rosto suave, de pele alva e perfeita, e se deteve nos olhos, que demonstravam muita preocupação. — Para onde vai se eu lhe der o divórcio? — O mais longe possível de você — respondeu ela, apesar de tudo ainda esperançosa de que ele a deixaria partir. — Afinal de contas, que tipo de casamento nós teríamos? — Pois acho interessante descobrir — revidou ele, arrastando as palavras. — Agora, vá acordar o garoto enquanto eu pago a conta. — Malraux… tenha coração! — Você mesma disse que meu coração é de ferro, ma chère, não se lembra? — afrouxou o abraço e empurrou-a de leve. — Chame Robert; já estamos indo para casa. — O castelo não é minha casa… Nunca será! — Então que seja sua prisão, madame! Não estou me importando nem um pouco com isso. Glenda viu-o afastar-se em direção ao caixa… Aquele homem de andar tão seguro tinha-a sob seu completo domínio. Estava sendo cruel, sim, ao recusar a separação, mas em situação idêntica outros homens agiriam de forma mais brutal. Alguns talvez até batessem na esposa! Entretanto, requintado como ele era, tocara apenas onde o dano seria menos aparente… mas onde com toda certeza ela o sentiria mais. O que fazer para sair daquela situação? Não podia simplesmente fugir e tentar conseguir o divórcio por conta própria. Se ousasse isso, Malraux faria exatamente como tinha dito e envolveria até Simon naquela história vergonhosa. Ele estava furioso demais, fervendo por dentro, e não seria preciso muito para fazê-lo explodir. Sempre conseguira o que queria e agora, talvez pela primeira vez na vida, achava-se diante do único problema que fugira ao seu controle: ter uma esposa a quem detestava como pessoa… e com reciprocidade. Mas… uma esposa era uma mulher… e poderia dar a ele o que todo homem de fortuna ambiciona: o herdeiro. Sim, isso ele desejava mesmo! Afinal, para quem deixaria o Château Noir e as Fundições Malraux? Glenda olhou nervosa à sua volta, como se ali existisse uma maneira de escapar. Mas como? Se saísse correndo ele a alcançaria em poucos minutos… como um perdigueiro no encalço de uma presa. Esconder-se? Onde? Malraux em nada se parecia com o refinado e bem-educado Simon. Ao contrário, era um homem cuja infância havia sido roubada por um avô rígido, que se empenhara em transmitir à criança apenas as próprias esperanças que tinha em relação às fábricas da família. O resultado não se fez esperar. Malraux dava a impressão de não ter outra preocupação a não ser o minério. Não era à toa que vivia dizendo que era de aço! — Vamos embora de uma vez! — a voz dele interrompeu seus pensamentos. Glenda se voltou e deu com Malraux carregando Robert no colo, de maneira muito carinhosa. Acompanhou-os em silêncio até o carro e ajudou o marido a acomodar a criança, que ainda dormia, no banco traseiro. Meia hora depois eles haviam deixado para trás as ruas arborizadas e avistavam o castelo desenhado ao longe, contra o céu azul, envolto numa atmosfera de sonho, com as matas que cobriam as encostas. O sol reluzia nos vidros das janelas góticas, que se destacavam entre a hera que subia pelos muros. — As torres têm chapéus de feiticeira — disse Robert, que havia acabado de acordar e agora se debruçava sobre o banco da frente, abraçando Glenda pelo pescoço. Malraux deu uma risada e olhou-a de soslaio enquanto manobrava para atravessar o portão. — Aqui é o lugar ideal para uma feiticeira viver, você não acha, Robert? — Ele está falando de você, é, Glenda? — Sim, Robbie, seu tio tem muito senso de humor. — Não acredito que ela seja feiticeira, tio — disse o menino, sério. — Se fosse, teria uma verruga na ponta do nariz. — Não tenha tanta certeza, rapaz — disse Malraux estacionando o carro — Tome cuidado, principalmente com aquelas que têm olhos claros; nessas a gente não pode confiar. São as que envolvem um homem e acabam virando a cabeça dele às avessas, se o sujeito não for esperto. É preciso ser muito duro para não se deixar enganar por uma mulher. Você ainda vai me agradecer por este conselho quando crescer. Robert arregalou os olhos, muito assustado, e depois apertou o nariz contra a nuca de Glenda. — Eu gosto das mulheres — comentou, — são tão cheirosas! — Isso também faz parte da feitiçaria, mon ami — respondeu o tio, olhando com certo desagrado o abraço dos dois. — Mall, pare de tentar desiludir o garoto! — protestou Glenda. No mesmo instante o olhar de Malraux procurou o dela. — Estou apenas querendo transmitir a ele a lição que me custou tanto aprender, querida esposa. — Não seja ridículo! Mulheres perversas como eu não andam às dúzias por aí — ela ousou provocá-lo. — Tenho certeza de que Robbie nunca vai conhecer uma “impostora” como eu. — O que é impostora? — o menino quis saber. — Uma mulher mentirosa e fingida — respondeu o tio. Ao ouvir aquilo, Glenda sentiu uma dor profunda no peito; estava indefesa contra a verdade, mas lhe parecia excesso de crueldade dizer essas coisas diante de uma criança… A não ser que a intenção dele fosse jogar o menino contra ela. Seria essa uma forma a mais de castigá-la? Como saber? Aquele rosto moreno e cínico, aquele sorriso misterioso não indicavam com clareza o que ele pretendia. — Não soa muito agradável, não é? — perguntou Malraux. — Bem que você gostaria de negar com esses belos e mentirosos lábios; mas sabe que não pode. — Mall, por favor… — ela fez um gesto rápido na direção de Robert e continuou: — Isto fica entre nós, sim? Diga o que quiser quando estivermos sozinhos, mas… — … Mas deixe que os outros acreditem que você é doce e angelical! Ela ficou muito corada. — Nunca pretendi ser um anjo e não gosto que me chamem de doce. No entanto, mesmo sabendo que você não vai acreditar, sou uma pessoa que age muito mais com o coração do que com a cabeça. — Isso não deve acontecer com muita freqüência, tenho certeza. Dizendo isso, ele desceu do carro e abriu a porta de trás. — Agora saia, rapaz. Está contente depois que viu maman e se convenceu de que ela está bem? — Por que ela tentou… fazer aquilo, tio? Ela queria morrer, é? — Algumas vezes, meu pequeno, não é que queremos morrer, mas não temos razões para viver. Isso pode acontecer com qualquer um. Le bon Dieu não fez ninguém perfeito e desconfio que uma pessoa sem defeitos seria até maçante. Os três estavam atravessando o pátio de entrada; Robert segurava a mão do tio e Glenda estava ao seu lado. — Quando maman vai voltar para casa? Eles não vão querer deixá-la no hospital muito tempo, vão? — Jeanne vai ter que ficar lá até melhorar bastante, mon ami. — Entendo. Posso continuar dormindo em seu apartamento na torre, tio? — Não. Acho que já é tempo de você retornar a seu quarto. Você é um menino crescido e deve compreender que eu e Glenda queremos ficar sozinhos em nosso recanto. É o que os casais fazem. Robert lançou um olhar aflito para Glenda, e ela sentiu um aperto no coração. Mas o que podia fazer? Tinha pensado em sugerir a permanência dele na Tour Etoile até a mãe voltar para casa, mas depois da recusa categórica de Malraux não ousava nem tocar no assunto. — Glenda… — o menino murmurou. — Sinto muito, Robbie, mas quem manda é o seu tio. — Fico satisfeito por você ter descoberto isso — disse Malraux. — Você é ruim! — gritou Robert, soltando a mãozinha e correndo em direção à porta. Revoltada, Glenda fez menção de segui-lo mas o marido a impediu, segurando-a pelo braço. Então ele explicou: — Os avós do garoto estão vindo dos Estados Unidos e eu concordei em deixá-lo viajar com eles por um ou dois meses. Jeanne vai precisar de tratamento psiquiátrico e já tenho em mente uma boa clínica para ela ficar, em Paris. Foi uma lástima! Eu devia ter tomado providências antes que ela ficasse tão deprimida a ponto de tentar o suicídio. É que os negócios me absorveram muito e depois… o nosso casamento — fez uma pausa e olhou para Glenda com um interesse nunca antes demonstrado. Depois exclamou: — Diabo! Por que não me lembrei da cor dos olhos daquela menina? — Mall, por favor… Ela tentou se soltar mas os dedos fortes se fecharam ainda mais, machucando-lhe o braço. Os olhos dele brilhavam mais escuros no rosto e as cicatrizes pareciam mais assustadoras do que nunca. — Agora já está feito! — disse ele, com os dentes cerrados. — Somos marido e mulher, quer você goste ou não. E tem mais: você é muito atraente e eu não sou nenhum monge. Ela reteve a respiração, assustada, e um sorriso irônico arqueou os lábios de Malraux. — E não me venha mais com mentiras sobre a sua suposta experiência com Brake… Você acredita mesmo que eu não saiba que você nunca dormiu com um homem? Quando isto acontece, minha querida, o olhar da mulher se altera… fica mais brilhante. E seus olhos, Glenda, estão muito sem vida, apagados! — Mas você vai suportar fazer amor com uma mulher que não o ama? — ela perguntou, desafiadora. — Tenho certeza de que não vai ser desagradável, principalmente com você — disse ele, deslizando o dedo pelo rosto dela até o pescoço; depois traçou o caminho de volta, alcançando o lóbulo da orelha. Em seguida abaixou a cabeça e roçou os lábios em sua pele macia, num beijo suave. — Eu a farei esquecer seu soldadinho — sussurrou-lhe ao ouvido, o hálito quente fazendo cócegas e provocando um arrepio no corpo de Glenda. — Simon tem meu coração… — Ma chère, isto mais parece conversa de revista feminina. De que adianta ele ter o seu coração se não tem o que eu consegui, o seu corpo? — Você é… horrível! — disse ela, traindo o embaraço que sentia. — Certamente — zombou ele —, sou mesmo um monstro e tenho um rosto que prova isto. — Oh, não é o seu rosto, é a sua atitude! — Agora que entre nós dois ficou tudo esclarecido, acho que a minha atitude é muito razoável. Afinal, sou a parte ofendida! — Pois me dá a impressão de que está se divertindo muito, como um menino cruel, que prende uma mosca numa garrafa! — E você está pensando que vou arrancar as suas asas? — caçoou ele. — Sua opinião sobre mim é muito pouco envaidecedora… Estou me sentindo abalado. — Não acredito que nada neste mundo consiga abalar você. Acho que os seus sentimentos estão protegidos sob uma capa muito dura. — Com a quantidade de mulheres iguais a você que existe por aí, um homem tem que se cuidar. Esse seu ar inocente, vulnerável, esconde uma audácia muito grande. Você teve a coragem de casar-se com um estranho! Eu ficaria até bem impressionado com tanto sangue-frio… se o envolvido não fosse eu… Claro, admito que você tenha ficado um tanto apreensivo depois que me conheceu. Afinal sou bastante diferente daquele inglês molenga e disciplinado, por quem você insiste em dizer que está apaixonada. — Como você também tem sangue inglês, talvez eu esperasse que você fosse um pouco… galante. — Um Dom Quixote cretino? É isso o que quer dizer? Glenda não conseguiu sustentar o olhar desconcertante que ele lhe dirigiu. Que homem mais perturbador! Parecia enxergar no interior dela, lendo-lhe os pensamentos com a mesma facilidade com que se lia um livro. Nunca sentira isso com outra pessoa! — É inútil tentar resistir — continuou ele. — A situação em que se meteu foi criada por você própria; resolveu enganar um homem e agora vai ter que viver com ele. Acho melhor que faça como eu… que se conforme. — Você não deixa dúvida quanto a isso! — Nenhuma sombra de dúvida, ma belle! Antes que ela pudesse perceber o que estava acontecendo, Malraux a tomou nos braços e cobriu sua boca com a dele, com violência e paixão. Glenda viu-se obrigada a entreabrir os lábios… Não tinha forças par enfrentá-lo e ao mesmo tempo começava a sentir um estranho amolecimento no corpo, uma sensação que nunca experimentara antes. Era como se um calor muito intenso a estivasse derretendo por dentro. De repente, Glenda teve medo das próprias reações e fez menção de empurrá-lo. — Não! — ele conseguiu dizer e voltou a beijá-la. Momentos depois mantendo-a estreitamente abraçada, voltou a falar: — Não vou permitir que recuse meus beijos. Agora você é minha e vai parar de pensar no capitãozinho Brake, de sonhar com o rosto dele e com suas atenções langorosas. Não se aflija! A partir de hoje você vai ter tudo que andou procurando. Eu sou o homem com quem se casou! Claro! Não era possível negar isso. Aquele homem moreno e alto, dominador e ardente era o marido dela e tinha o direito de beijá-la, abraçá-la… possuí-la. Desesperada com esse pensamento, Glenda o olhou, mas não teve tempo de esboçar qualquer resposta. Malraux a levantou nos braços com a mesma desenvoltura com que levantava Robert. — Mais uma vez eu a carrego para transpor as portas do castelo, querida — zombou ele. Logo depois, com passos ágeis e firmes, ele subiu os poucos degraus de entrada e alcançou o hall. O dia estava chegando ao fim e a luz dourada do sol atravessando os vitrais da janela batia-lhe no rosto e parecia queimá-lo outra vez. Glenda o observou: os cabelos negros e lisos, o nariz reto, os olhos brilhando e aquele sorriso de vitória nos lábios lembravam-lhe muito mais um aventureiro roubando uma mocinha do que um marido! Por alguns segundos… ou minutos?, ele permaneceu parado no meio do imenso salão; depois, com uma expressão enigmática como se estivesse vendo tudo aquilo pela primeira vez, girou sobre si mesmo, olhando em volta e falando: — Preste atenção, Madame d'Ath, nós dois iremos partilhar tudo isso! — parou e assumiu um tom grave. — Mas… se algum dia você permitir que algum homem, seja lá quem for, toque em você, eu a estrangularei e a Corte dirá que foi um crime passional. Entendido? “Não!” Realmente ela não conseguia compreendê-lo. Sua vida com Edith não a tinha preparado para conviver com alguém capaz de tanta violência. A que se devia o caráter daquele homem? Será que o fato de ser meio francês, meio inglês fizera com que não assimilasse os valores nobres nem de um povo nem de outro? Tudo indicava. Parecia que nele a sagacidade e audácia características dos franceses havia dominado o sentimentalismo inglês, substituindo-o Por uma lógica implacável. Já que estavam casados tinham que viver juntos… não importava se existisse ou não amor entre eles. — Você nunca amou alguém? — Glenda perguntou. Malraux deu um sorriso zombeteiro enquanto a depositava vagarosamente no chão; manteve, porém, as mãos em volta dela, sobre os quadris. — O que você chama de amor? Um ideal romântico… tipo Tristão e Isolda, Dante e Beatriz, Jane Eyre e Rochester? — Eu nem imaginava que você conhecesse todos esses pares — disse ela, tentando ignorar as mãos que lhe acariciavam as nádegas. — Você deve considerá-los uns tolos sentimentais que perderam tempo amando-se. Acho que sua capacidade de amar é toda voltada para portões de ferro fundido e grades trabalhadas! Ele deu uma risada, sem interromper as carícias perturbadoras que quase a deixavam sem fôlego. — Conheço muito bem a diferença no trato do metal e no de uma mulher, Glenda. Qualquer dia destes vou levá-la à fábrica para que veja como o ferro Malraux é obtido. A fundição vai ser parte de sua vida… como eu já sou. — Você… já tomou alguma decisão definitiva? — Sobre você? — Sobre… nós… — Mais oui, madame — ele respondeu vagamente provocador, mas a expressão dos olhos era dura. — Minha resolução é que você vai continuar aqui no Château Noir. Este castelo é o seu lar e é aqui que você vai viver… com o homem com quem se casou! — Então… não vou ser perdoada? — Se o que entende por perdão é eu mandar você de volta para a Inglaterra, não — a voz dele agora estava firme. — Muita gente, sem dúvida, acharia que o castigo que estou lhe impondo é leve. Você, ao contrário, considera terrível que o marido, com o rosto deformado, esteja insistindo para que fique ao lado dele. Pois considere-se com sorte, porque eu não estou pedindo que… que me ame. — Amar você? — Não desmaie, minha querida — o sol já havia se escondido no céu e o hall estava cheio de sombras, mas mesmo assim ela podia ver o brilho nos olhos de Malraux. — Exigirei tudo, menos isso, pode ficar descansada. Glenda não soube o que dizer. Será que ele não percebia que quando uma mulher tinha que dar tudo a um homem, menos o amor, na realidade não estava dando nada e não tinha nada como retribuição? Nesse momento, ecoaram passos no hall e logo um criado apareceu para acender os lustres de ferro. Aproveitando a presença daquele empregado, já que Malraux soltou-a assim que o viu, Glenda pediu licença e foi embora, sentindo-se muito triste e desamparada. Não sabia bem para onde ir e por isso resolveu seguir a criada que estava levando um carrinho de chá para a biblioteca. Com as pernas trêmulas entrou no salão quente e aconchegante e foi direto à lareira. Deixou-se cair numa poltrona confortável, ao lado de Héloise, que estava cochilando, e estendeu as mãos geladas para o fogo. Quando o sol desaparecia no vale, as noites esfriavam muito durante a primavera, e aquilo fazia Glenda lembrar-se de sua casa, das vezes em que ficava diante do fogo acolhedor tomando chocolate quente. Héloise acordou de repente e, depois de esfregar os olhos, reparou no rosto preocupado de Glenda. — Jeanne piorou? — Oh, não. Está bem melhor e vai ser transferida para um quarto particular. O processo de recuperação dela agora vai ser rápido. — Graças a Deus! Foi uma loucura aquilo que ela fez! Vamos esperar que tenha aprendido a lição e que não a esqueça. Glenda… por favor, pode me servir um pouco de chá? Sem açúcar, que isso não faz bem a ninguém. Me passe também uns biscoitos Marie. Glenda trouxe o carrinho para mais perto e serviu o lanche para Héloise, aliviada porque Malraux não tinha ido fazer-lhes companhia. Ela gostava daquela tia dele. A velha senhora era tão preocupada com a própria saúde que nem tinha tempo de pensar na vida dos outros. Edith também sempre fora uma mulher que não se intrometera com os assuntos de ninguém e esta era outra faceta que Glenda admirava e prezava nela. Edith tinha pavor daqueles que tentavam mandar na vida dos demais; que achavam que tinham o direito de criticar a maneira como uma mulher penteava os cabelos, escolhia a maquilagem ou as roupas. Era como se aquelas pessoas desejassem que todos vestissem uniformes escolhidos por elas. “Faça isso, faça aquilo, mas não faça o que realmente lhe dá prazer!”, era este o lema. Edith nunca impusera seus gostos a Glenda, que tinha aprendido a apreciar aqueles que não interferiam também nos problemas pessoais de cada um. Todos tinham o direito a ter suas fobias, seus gostos e antipatias! Consciente e formada com essas idéias, Glenda desenvolvera uma personalidade avessa a qualquer tipo de atitude dominadora. Por isso, irritava-se com a autoridade que Malraux exercia sobre os outros. Ao mesmo tempo, tinha medo de pouco a pouco ser absorvida por ele e chegar ao ponto de não poder fazer nada a não ser aceitar seu despotismo. — Alguma coisa a está preocupando, Glenda? — perguntou Héloise. Glenda, que estivera com os olhos fixos nas chamas, a xícara esquecida na mão, sacudiu a cabeça numa negativa, mas a velha não pareceu nem um pouco convencida. — Pode confiar em mim, minha filha. Já fui casada e sei que às vezes o casamento pode ser uma bênção discutível. Malraux a está tratando bem? Não quero ser intrometida, mas, como você já não tem a mãe a seu lado, pode contar comigo, se precisar de conselhos. — É muita bondade sua, tia, mas no momento não estou precisando. — Então tem sorte! Porque, quando me casei, percebi que a realidade do convívio diário com um homem era bem diferente das minhas idéias românticas a respeito. Os homens pensam diferente de nós, são mais lógicos e não entendem, às vezes, que as mulheres são mais sensíveis, que ficam mais afetadas por uma frase, um olhar, uma entonação de voz. Acredite em mim, filha, a pele do homem é mais grossa em vários sentidos do termo. Eles não conseguem entender que um dardo atirado pode penetrar bem mais fundo do que pretendiam. Malraux disse alguma coisa que a feriu? — Alguns comentários dele são um tanto agressivos —: murmurou Glenda. — Eu… eu não sei se ele quer mesmo ferir ou não sabe o quanto fere. Ele sempre foi assim tão… duro? — Mall sofreu muita influência do avô, para quem os negócios de família significavam tudo. Foi um grande desapontamento para meu paisó ter tido filhas e não filhos. Assim, quando Malraux nasceu, minha irmã sofreu forte pressão para que o deixasse ser educado na França, aqui no castelo. Naturalmente, quando aconteceu aquela tragédia na África, foi bom que Malraux e Jeanne estivessem vivendo aqui e não na Argélia. Quando as revoltas começaram, era suicídio para os europeus viverem naquele país, mas o meu cunhado tinha investido muito dinheiro nas fazendas de lá, e realmente não foi surpresa que ele e minha irmã tivessem sido vítimas da rebelião. Malraux foi preparado para tomar ai direção das fundições, e, como tinha habilidades ambição, Duval ficou encantado. Héloise fez uma pausa para respirar e depois prosseguiu: — Tenho que acrescentar que meu pai tinha um raciocínio tão enrolado quanto as voltas do ferro que fabricava. E às vezes era irracional! Queria continuar dominando a vida do neto mesmo depois de morto. Por isso, Mall só podia herdar o castelo se cumprisse todas as cláusulas do testamento, uma coisa nada fácil para um homem voluntarioso, numa época em que os casamentos arranjados estão completamente fora da realidade. — Apesar de eu não aprovar certos excessos — continuou a velha —, acho compreensível que Malraux sinta-se impaciente com uma mulher que lhe foi imposta. Mas ele não é cruel demais, é? E, depois da preocupação toda criada por Jeanne, você não pode esperar dele um comportamento apaixonado. — Não espero… e nem quero — disse Glenda, e no mesmo instante se arrependeu de ter falado. Afinal, Malraux era o seu marido! Ou melhor, o homem com quem havia se casado, pois não o “sentia” como marido, assim como não se sentia como esposa. Contudo, não podia dizer à tia dele que o que mais queria era abandoná-lo e correr para os braços de Simon, um homem que não a abalava quando entrava numa sala, quando olhava para ela… principalmente quando a tocava! Essa confissão chocaria Héloise porque era evidente que ela respeitava e amava o sobrinho. Além disso, o fato de a velha senhora ter um filho que havia sido preterido na divisão da herança podia causar-lhe certo ressentimento contra Malraux, que era quem detinha a maior parte de tudo. — Sei o que está pensando — disse a velha. — Se Malraux não tivesse se casado com você Matthieu herdaria esta propriedade e também a direção das fábricas. Pois estou contente que ele não tenha herdado. — Mas como a senhora pode dizer uma coisa dessas sendo a mãe dele? — perguntou Glenda, espantada. Será que nunca compreenderia aquela família? — Não me entenda mal, querida. Matthieu é meu filho e eu o amo, mas ele cometeu um erro que homens bonzinhos, mas fracos, têm a tendência de cometer: casou-se com uma mulher insatisfeita e invejosa, que adoraria ser a dona do Château Noir. E, se Matthieu tivesse também herdado a maior parte das ações, a mulherzinha ia meter o nariz em tudo e as coisas iriam dar erradas: ela provocaria uma briga séria entre meu filho e meu sobrinho. Do jeito que as coisas estão agora, ela nada pode fazer a não ser tornar a vida de Matthieu miserável, com sua constante insatisfação. Quanto a isso, não posso mexer uma palha e tenho que esperar que algum dia ele fique farto e a abandone. — Eles não têm filhos? — Não, o que é uma sorte. Mulheres do tipo dela não dão boas mães. Eu observei como você trata de Robert… Você dará uma ótima mãe, e Malraux parece que deseja uma família. Ele tem senso de responsabilidade e foi bondoso em me convidar para morar no castelo. Minha nora pensava em me mandar para uma casa de repouso para velhos. Eu preveni Matthieu, mas ele não quis me acreditar. — A senhora deve se preocupar muito com ele, tia. — Você vai descobrir que maternidade e preocupação andam de mãos dadas, mas naturalmente sem as lágrimas não apreciaríamos o riso, não é? Mas, voltando a Malraux, ele às vezes é brusco, mas pode também ser um homem extremamente carinhoso. Quando minha saúde começou a declinar, ele não hesitou em me oferecer um apartamento aqui no castelo. Meu próprio filho tinha ficado indiferente. Mas é assim — continuou Héloise, agitando as mãos cheias de anéis —, quando as pessoas envelhecem têm que aceitar o inevitável. — Eu tenho que aceitar mesmo sendo jovem — disse Glenda, emocionada. — Está se referindo ao seu casamento sem amor com Malraux? — Eu não tinha imaginado… todas as implicações… — Mas certamente não estava esperando que ele aceitasse um casamento apenas de nome, não é? Era o que você esperava, minha filha? — Não sei, tia. Aceitei tudo como uma criança numa brincadeira, uma atriz fazendo um papel. Quando acordei para a realidade era tarde demais. — Mas você não… não tem repulsa por ele? Glenda olhou para o fogo e teve a impressão de ver nele o vulto alto e impressionante, o rosto com uma metade marcada por cicatrizes, os olhos cinzentos e brilhantes, cercados por longas pestanas negras. — Ele não gosta de mim — disse, num impulso, e depois desejou dizer toda a verdade, pois sentiu ter em Héloise uma aliada em sua dor. Já que aquela mulher era tão parecida com Edith, saberia entender o que se passara. — Deus do céu! — exclamou a velha. — E meu sobrinho já sabe? — Sim — disse Glenda, com o rosto muito pálido. — Jeanne descobriu que eu não era a menina que tinha vindo aqui e deixou isso escrito em seu bilhete de suicida. - Ah, então ela deixou um bilhete! Malraux não disse nada e agora estou vendo por quê! O que você fez foi um erro, minha filha, e muito ousado. Ele é um homem orgulhoso! Não me admiro de que você esteja apreensiva, mas em seu lugar eu já teria fugido. Durante esta última semana ele teve que estar com Jeanne e não veio ao castelo. Por que você ficou aqui quando sentia tanto medo dele? — O menino precisava de mim… oh, eu não quero bancar a santa — acrescentou Glenda, depressa. — Gosto de Robert, mas também… também parecia que era uma espécie de compensação. Não sou a aventureira que Mall me considera. Nunca prejudiquei ninguém, mas… Edith estava morrendo e ela foi tão maravilhosa comigo! O que eu podia fazer? — Podia ter dito a ele toda a verdade antes de ter mergulhado um casamento. Desse modo, ele a respeitaria; mas agora só desconfia de você. Normalmente, ma petite, os homens não compreendem as mulheres, imagine só quando ele olha para você e vê uma moça sincera, mas depois sabe que esta moça mentiu, enganou-o perante o altar e o fez cúmplice de um casamento nulo e sem valor, pois a verdadeira Glenda morreu há uma década! — Héloise balançou a cabeça branca. — Você tem a minha simpatia, minha filha. O que mais posso dizer? — Será que você poderia conversar com Malraux e explicar que não sou tão ruim quanto ele acredita? —Não, Glenda. Quando vim morar aqui, fiz uma promessa a mim mesma, de nunca me meter na vida de meu sobrinho. Mantive a promessa e não pretendo quebrá-la. Este problema é seu, filha. Se o que espera receber de Malraux é só amargura, abandone-o! — Ele se recusou a me deixar partir. Quer que eu fique para poder continuar me castigando. Disse ainda que se eu for embora vai contar a todos que Edith recebeu dinheiro dos Malraux durante dez anos, mesmo sabendo que não tinha este direito. Se eu achasse que isso era só ameaça, então iria, mas ele vai fazer o que disse! A senhora não acha? — Conhecendo Malraux, tenho que concordar com você. Um homem de honra exige honra dos outros, e ele pode ser muito cruel. Sim, filha, você está num dilema e nada posso fazer para ajudá-la. Não era surpresa ver que Héloise estava do lado dele; era uma vã esperança pensar que ela intercederia a seu favor, pedindo que não a culpasse tanto, ou pelo menos anulasse o casamento. — Não quero me envolver num problema que você mesma causou — a velha insistiu. — Mas vou lhe dar um conselho, que você deveria ser bastante sábia para seguir. Há uma maneira para amolecer um homem: é a cama. Pense nisso. Era exatamente o que Glenda não queria fazer… pensar nela e Malraux juntos na cama.
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