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CAPÍTULO VII



CAPÍTULO VII

 

A irmã de Malraux passou uma semana em coma, e ele não arredou pé do hospital, com a esperança de que ela voltasse a si e recuperasse a vontade de viver. Todos os dias Rachel levava as roupas limpas de que ele precisava e trazia informações sobre o estado da enferma.

Robert recebia notícias mais otimistas do que verdadeiras, e, durante aqueles dias de espera, Glenda tomou conta dele, fazendo o impossível para que não se sentisse solitário e triste. Seu professor particular foi dispensado até Jeanne ficar fora de perigo, pois o garoto se encontrava muito nervoso e preocupado. Não tinha a mínima condição para acompanhar as aulas.

Glenda o levava a passeios, jogava com ele, fazia todo tipo de brincadeiras para entretê-lo, mas ele insistia, implorava, queria a todo custo visitar a mãe. No entanto, havia recomendações expressas de Malraux no sentido de que isso não acontecesse, uma vez que seria muito chocante submetê-lo à visão da mãe presa a uma máquina que a ajudava a manter-se viva.

Certa manhã, porém, escapando à vigilância de Glenda, num momento em que ela se encontrava no quarto, Robert conseguiu se esconder no banco traseiro do carro esporte de Rachel. Se não tivesse espirrado na hora em que a porta se abriu para a moça entrar, sua presença não teria sido notada e ele acabaria tendo a chance de finalmente chegar ao hospital. Rachel teve que arrastá-lo para fora do veículo e ele fez tal escândalo, que seus gritos chamaram a atenção de Glenda, que veio correndo e levou a manhã toda para acalmá-lo.

— P-por que não posso ir? — perguntava ele, soluçando. — Eu… eu quero ver maman e odeio você p-porque não quer me deixar ir até lá!

— Vai poder visitá-la quando ela estiver se sentindo melhor. Sua mãe agora está dormindo a maior parte do tempo e você não quer incomodar, quer?

— E se ela acordar, perguntar por mim e eu não estiver lá?

Robert não se consolava, e a profundidade de seu sofrimento era tanta que Glenda se sentiu abalada. Lembrava-se da própria insistência em ficar no hospital na noite em que Edith morreu. Ninguém, nem mesmo Simon, fora capaz de convencê-la a sair da cabeceira da mãe adotiva. Era como se seu coração pressentisse que tinham que dizer adeus.

Por volta do meio-dia, Glenda decidiu que era crueldade obrigar o menino a ficar longe da mãe, por piores que fossem suas condições. Num gesto impulsivo, agarrou o telefone, ligou para a garagem e pediu ao motorista para levá-los até o hospital. Em seguida, conversou com o, garoto, explicando aonde iam, e desde logo preveniu-o de que Jeanne se achava sob tratamento intensivo e por isso devia estar muito abatida.

— Seu tio vai ficar muito zangado comigo — acrescentou, tentando não demonstrar o quanto estava apreensiva. — Quero que prometa que será obediente. Vai somente dar uma olhadinha em sua maman, e depois voltaremos para casa.

Abaixou-se para dar os últimos retoques na aparência de Robert. Depois de ajeitar a gravatinha e pentear outra vez seus cabelos negros, deu uma rápida olhada na roupa e concluiu que ele estava muito bonito e elegante naquele terninho azul.

— Por que tio Mall vai ficar bravo com você?

— Porque não gosta que ninguém desobedeça suas ordens.

— Mas você é a mulher dele, e não acho que ele vai brigar.

— Pois acho que vai, sim — disse ela, sincera.

Reparando na expressão intrigada de Robert, ela podia imaginar o que lhe passava pela cabeça naquele momento. Aquele garoto era filho de pais que se adoravam e devia ter presenciado muitas vezes suas demonstrações de afeto e amor mútuo. Por isso, era natural que ele acreditasse que todos os homens tratavam as esposas com carinho e que todas as mulheres respeitavam os maridos. Glenda reconhecia que havia muita gente que se deixava dominar pelo amor. No entanto, não achava que alguém devia ser tão dependente de outro a ponto de a vida perder o sentido sem aquela pessoa.

Sabia que amava Simon, mas não sentia uma necessidade doentia de estar sempre ao lado dele. Admirava sua aparência, gostava de apreciá-lo jogar pólo, partilhava a alegria de passeios a cavalo através dos campos, e gostava de conversar com ele. Tinha plena convicção de que o amor era uma forma de companheirismo e que grandes lances de paixão poderiam levar uma pessoa à ruína ou deixá-la à mercê do desespero… como acontecera com Jeanne.

Glenda e Robert se acomodaram no banco traseiro do Renault e partiram logo em seguida, atravessando os campos verdes do vale do rio Loire.

O mais longo dos rios da França, profundo e tranqüilo, corta uma região rica e de paisagem encantadora. Nos dois lados da margem crescem árvores frutíferas em abundância e o perfume das nêsperas enche o ar.

“Um dia dourado de verão e esse pobre garoto indo ver a mãe que está entre a vida e a morte”, pensou Glenda com tristeza.

Haviam chegado à cidade e Robert estava muito quieto, o rosto voltado para a rua estreita onde se viam nas calçadas mulheres tecendo renda… para véus de casamento e lingerie.

Glenda também as observava, fascinada, e cada vez se sentia mais distante daquele que tinha sido seu mundo até então, feito de uma paisagem bucólica, com a mansão estilo Tudor dominando o cenário, em vez de um castelo com torres e torreões, como o de seu marido…

Marido! Até mesmo a palavra era suficiente para deixá-la com medo, acuada, o coração apertado.

Estavam se aproximando do hospital e Robert estendeu a mãozinha e segurou a dela. Seu rosto pálido e apreensivo obrigou-a a se questionar se havia sido uma decisão acertada trazê-lo e se aquela visita era aconselhável.

De qualquer modo, era tarde demais para voltar atrás pois o motorista já tinha aberto a porta.

— Não vamos nos demorar — avisou ela com voz baixa e grave.

Ele tocou a aba do boné num rápido cumprimento e os viu entrar no prédio, localizado no meio de um imenso jardim, onde vários pacientes estavam sentados, lendo ou conversando.

A recepcionista ouviu com atenção as explicações de Glenda sobre o motivo da visita e convidou os dois a se sentarem, enquanto telefonava para a terapia intensiva.

— Preciso saber antes se o médico vai dar permissão, a senhora deve entender — disse, dirigindo um olhar compreensivo para o filho de Jeanne.

Glenda sentou-se numa cadeira da sala de espera, tendo Robert ao seu lado, e pegou uma revista. Mas sua intenção era apenas disfarçar o nervosismo. Estava morrendo de medo de que Malraux entrasse pela porta furioso, ou de que fossem informados do agravamento do estado da enferma.

Os minutos passavam vagarosamente, e ela quase deu um pulo quando a porta se abriu para deixar passar um enfermeiro, e não a figura autoritária do marido.

— Madame d'Ath?

— S-sim…

— Por favor, me acompanhe.

— Posso levar comigo o filho de mme. Talbot?

— Não há problema, madame.

Merci. Pegou Robert pela mão, e seguiram o enfermeiro uniformizado de branco. Atravessaram o hall, subiram um lance de escada e entraram por um longo e sinuoso corredor. Glenda sentia as batidas agitadas do próprio coração e os dedinhos de Robert apertando sua mão. Era um bom ou um mau sinal o garoto ter conseguido permissão para ver Jeanne? Será que Malraux já sabia que eles estavam ali? Como reagiria ao vê-los?

Pararam diante de uma porta dupla de vaivém e o homem abriu um dos lados para deixá-los entrar. Repleta de leitos altos, separados uns dos outros por divisórias, aquela unidade de tratamento intensivo tinha um aspecto carregado e perturbador. Sons estranhos, vindos dos vários equipamentos eletrônicos, enchiam o ar. Aqui e acolá se ouvia o gemido de alguém.

A mãozinha de Robert apertou ainda mais a de Glenda quando eles se viram à entrada de um dos compartimentos… Naquele instante ela estava duvidando seriamente sobre o acerto de ter levado o menino àquele lugar cheio de pacientes mais mortos do que vivos, seus frágeis corações palpitando à força de máquinas.

Quando o enfermeiro abriu a cortina que escondia o leito de Jeanne, a atenção de Glenda concentrou-se logo no homem desolado que se encontrava ao lado da enferma. Num primeiro momento só teve olhos para Malraux cuja expressão dura e preocupada lhe provocara um frio no estômago. Seus olhares se encontraram e ela teve a impressão de captar no dele um brilho irônico.

— Entenda, por favor — começou a dizer aflita. — Robbie estava doente de tanto desespero, e eu…

— … Você decidiu trazê-lo apesar das minhas recomendações.

— Sim.

Desviou o olhar para Robert, que contemplava a figura pálida e imóvel da mãe. Um tubo entrava por uma de suas narinas, e um frasco invertido, preso a um suporte, soltava gota a gota um líquido incolor que lhe era injetado no braço.

— Como pode ver, Jeanne não precisa mais do coração artificial. Eles a trouxeram de lá ontem à noite. Eu não quis avisar logo porque vocês , podiam alimentar falsas esperanças. Mas falei com o médico há uma hora e ele acha que ela vai melhorar daqui para a frente.

— Está dizendo que…

— Jeanne abriu os olhos ontem à noite e me reconheceu. E pode abri-los outra vez a qualquer momento. Por isso é bom que Robert esteja aqui agora. Vá para perto de sua mãe e fale com ela — disse ao sobrinho.

O menino soltou a mão de Glenda e aproximou-se da cama.

Maman…?

Como não houve resposta, levantou o olhar ansioso para o tio.

— Segure a mão dela — murmurou Malraux.

Robert fez como ele disse, pegando com extremo cuidado os dedos completamente inertes. Observando a cena, Glenda levou a mão à garganta, como se sentisse falta de ar. Os segundos pareciam horas. Começou a murmurar uma prece para Jeanne dar algum sinal de que sabia da presença do filho.

Voltou-se então para Malraux e reparou em seu olhar fixo na irmã e no sobrinho.

Não achava estranho a dedicação dele por Jeanne. O que a surpreendia de verdade era constatar que aquela aparência de dureza não significava que ele era um homem insensível. Era uma defesa, que o tornava inatingível… Esta descoberta a fez sentir-se insegura e ainda mais nervosa. De repente, Malraux virou-se e seu olhar pareceu penetrá-la até o fundo da alma, prendendo-a como se um gancho de aço a segurasse.

— Você é mesmo um pouco bruxa, não é? — disse ele, a voz controlada.

— Não… não estou compreendendo…

Malraux fez um gesto indicando Robert.

— Você trouxe o menino aqui, não trouxe? Teve algum pressentimento de que Jeanne tinha melhorado?

— Eu pensei… isto é… achei que ele tinha o direito de vir.

— Quer dizer que eu agi errado quando decidi mantê-lo longe da mãe?

Glenda balançou a cabeça devagar, num sinal de assentimento.

— Robert estava com muito medo do que pudesse acontecer. Deixá-lo em casa só podia piorar as coisas porque ele ia ficar imaginando bobagens. Sei como é isso porque eu amava Edith… minha mãe.

— Ah sim, Edith… Glenda notou uma leve inflexão na voz dele, mas não teve tempo de pensar sobre o assunto porque naquele instante Jeanne abriu os olhos e Robert deu um gritinho.

— Mamãe! Querida mamãe, você está melhor!

Jeanne olhava para o filho com uma expressão muito abatida. Seus lábios tentavam pronunciar o nome dele e Glenda de repente teve a sensação de que era uma intrusa naquele ambiente. Segurando as lágrimas, saiu do quarto e foi até o corredor, onde ficou esperando sentada num banco. Dava graças a Deus por Jeanne ter escapado. Era ainda muito moça e com o tempo sua dor ia ficar mais suportável, e ela acabaria se conformando.

Uma enfermeira passou por onde Glenda estava e entrou na unidade de terapia intensiva. Ela imaginou, então, que dentro de alguns minutos Malraux viria trazendo Robert.

E estava certa. Logo os dois apareceram e ela se levantou, examinando aquele homem muito alto e moreno, e o menino cujos olhos escuros brilhavam outra vez.

— Estou tão contente… — disse Glenda, com um sorriso tímido.

Dando um passo à frente, Robert correu e a abraçou pela cintura.

— Venho ver mamãe outra vez, amanhã. Vão levá-la para um quarto bonito, e titio disse que vai mandar uma porção de flores para ela ficar alegre. Estou tão feliz, Glenda!

— Eu também estou feliz, Robbie, muito feliz — olhou para Malraux.

— Você teve uma semana muito difícil… parece morto de cansaço!

— É desse jeito que eu me sinto. Malraux passou os dedos pelos cabelos negros. Depois observou-a com um ar muito intrigado, como se não entendesse por que ela se mostrava preocupada com o seu sofrimento naquela última semana. Seus olhos cansados tinham um brilho irônico, expressando com clareza que ele achava falso o interesse dela.

Lendo tudo isso na expressão dele, Glenda teve vontade de negar, dizer que sabia o que era ficar ao lado da cama de alguém que a gente amava, observando o rosto lívido no travesseiro e esperando que acontecesse algum milagre e que a morte não fechasse aqueles olhos para sempre.

— Estou cansado e com fome. Vamos comer alguma coisa — disse Malraux.

Dirigiram-se a um restaurante ao ar livre. Malraux pediu uma garrafa de Jasnières, assim que se acomodaram na mesa. Contou que aquele vinho a cada dia se tornava mais raro.

— Vai tomar comigo, não é mesmo, Glenda? — depois ordenou ao garçom que a servisse e enchesse a metade do copo de Robert. — Acho que você também merece, meu rapaz. Por ter sido corajoso.

Ele ficou encantado, mas Glenda disse que achava melhor que pedisse logo alguma coisa para comer.

— Não vamos querer ficar tontos, não é?

O menino riu e cheirou o conteúdo do copo. Malraux sugeriu como entrada patê de codorna com torradas. Parecia agora um pouco mais descontraído, sorvendo a bebida com vagar, recostado na cadeira de junco.

— Vai ser um luxo dormir numa cama confortável esta noite. A que me deram lá no hospital era macia, mas curta demais para mim.

Glenda brincava com o copo, imaginando se naquelas palavras não havia uma ameaça velada. Sabia que estava sendo observada e seus pensamentos provavelmente lidos. Era a esposa que não o queria como marido, mas se ele precisasse de apoio e calor humano e não encontrasse nela boa receptividade, se transformaria numa fera, tinha certeza disso.

Espalhou o patê na torrada, comendo em seguida com uma calma extraordinária. O jardim em volta, muito tranqüilo e agradável, tinha roseiras e vários outros tipos de flores. Tio e sobrinho conversavam e riam alegremente. Afinal, fazia uma semana que não se viam. Para as pessoas das outras mesas, os três davam a impressão de estar muito felizes. Contudo, não era bem isso o que acontecia. Glenda estava dando voltas à cabeça e tentava a todo custo achar uma solução para seu impasse. Podia ter abandonado Malraux enquanto ele se encontrava de plantão no hospital, mas a preocupação com o menino a havia impedido de tomar alguma decisão.

Malraux tinha que saber disso! Ele era suficientemente perspicaz para ter percebido que ela só ficara no castelo para dar ao menino o carinho de que ele tanto precisava. Sua preocupação com a irmã demonstrava que ele possuía sentimentos e com certeza ia escutá-la e compreender quando explicasse que não podia levar adiante aquele casamento.

Depois do almoço Robert estava sonolento e foi cochilar debaixo de uma macieira. Ele e Glenda haviam comido peito de pato assado com batatas e cenouras. Malraux tinha escolhido um guisado de carne de caça, flambado no conhaque, e como sobremesa os três pediram amoras com creme, e finalmente café, o de Robert com creme chantilly.

O menino mal tinha se alimentado durante aquela semana, mas agora, que havia esperanças na recuperação da mãe, havia devorado tudo.

— Quero lhe agradecer, ma chère, pela maneira como cuidou do garoto — disse Malraux enquanto acendia uma cigarrilha. Pôs o fósforo apagado no cinzeiro e olhou para ela, através da fumaça.

— Gostei de poder ser útil.

Agora que estavam a sós, Glenda voltou a ficar nervosa, mas não queria demonstrar o quanto ele a perturbava. Por mais que tentasse não conseguia aceitar o fato de tê-lo como marido e saber que aos olhos de todos, inclusive aos de Simon, pertencia a Malraux d'Ath.

Sim, realmente ela pertencia àquele homem alto e moreno e, diante de seu olhar, sentia-se indefesa, completamente desamparada. Irritava-se consigo mesma por ter essa reação instintiva. Afinal, ele era apenas um homem e não ia matá-la se o abandonasse.

— Foi uma semana difícil para todos nós — continuou ele. — Nada parecido com uma lua-de-mel, não é?

Ela sentiu um fogo percorrer-lhe o corpo e o rosto ficar muito vermelho.

— Temos que conversar sobre isso…

— Realmente, temos, Glenda — ele disse com uma calma enganadora, que o brilho irônico do olhar desmentia. — Nós mal nos conhecemos, somos dois estranhos. Como bem me lembro, você não foi muito receptiva aos meus avanços conjugais e ainda estamos um pouco cerimoniosos um com o outro.

— Mall… — começou a dizer, mas, sem encontrar as palavras adequadas, parou.

— Estava querendo falar alguma coisa, minha querida esposa? — perguntou ele, batendo a cinza da cigarrilha e obrigando-a a encará-lo.

— Deve ter sido um imenso alívio que Jeanne esteja fora de perigo.

— Ela quase morreu, escapou por pouco.

— Sei que você queria muito que ela vivesse.

— Eu tenho uma vontade de ferro, é verdade.

O olhar dele percorreu o corpo da esposa, pousando na saia de couro fino, depois na blusa de seda pura. Uma corrente de ouro rodeava-lhe o pescoço gracioso e ela a segurava com força, sem perceber o que fazia.

— Vai acabar arrebentando o cordão. Por que tanto nervosismo, ma chère? Minha irmã está a caminho da cura, o sol está brilhando, e nós almoçamos muito bem. Eu a deixo abalada?

— Tenho que ir embora, Malraux! Afinal, você já conseguiu o que queria.

Essas palavras foram pronunciadas de uma só vez, apesar do medo que a dominava. Seus olhos dourados o encararam, implorando que ele a libertasse com dignidade.

— E você não conseguiu também?

Ela mordeu os lábios nervosa.

— Não pode ser generoso comigo?

— Tão generoso quanto a família Malraux foi com Edith Hartwell, por tantos anos?

Glenda sentiu o coração bater mais apressado, com medo… havia alguma coisa na voz de Malraux que a assustava. O que ele sabia? Será que suspeitava de alguma coisa?

— Como deve saber, ma chère, Jeanne pretendia mesmo morrer e me deixou uma carta. Não falei com ninguém sobre isto e omiti o caso das autoridades porque nela há uma confissão de suicídio. Mas há uma frase… Quer saber qual é?

Glenda ficou imóvel, sem conseguir pronunciar palavra alguma, mas sabendo que a frase se referia a ela.

— Jeanne me alertou para que eu me certificasse de sua verdadeira identidade.

O coração dela quase foi parar na boca.

— Por que ela… ela escreveu uma coisa dessas?

— Diga-me, seu nome é realmente Glenda?

— Claro que sim!

— Não acredito! — ele a olhou bem nos olhos. — Tiveram que me lembrar que a menina que veio ao Château Noir como convidada de meu avô tinha olhos verdes. Hoje em dia a natureza é muito ajudada por meio de tinturas, cirurgia plástica, lentes de contato coloridas — parou e riu sarcástico. — Que falha, que falha imperdoável, mocinha, você não ter investido num par de lentes para dissimular a cor dos olhos, como a tintura que alterou a cor dos cabelos.

— Como ousa! — Glenda sentiu-se revoltada, pois pelo menos a cor de seus cabelos era natural. — Nasci com os cabelos desta cor!

— Mas não é filha de Edith Hartwell, é? Pode me contar a verdade. Não sou tolo para acreditar que olhos verdes podem de alguma maneira mudar para dourados. De onde você surgiu? O que aconteceu com a verdadeira Glenda Hartwell?

— Eu… sabia que isto ia acontecer, que mais cedo ou mais tarde alguém desconfiaria de que eu nunca tinha estado antes no Château Noir. Pensei que talvez pudesse evitar isto porque… pretendia abandoná-lo. Nunca quis ficar e continuar fingindo…

— Exijo que me diga agora mesmo quem é você — disse ele, a voz cortante. — Uma aventureirazinha barata, que se aliou com aquela mulher para continuar explorando a fortuna dos Malraux?

— Não a chame de “aquela mulher”!

— Eu a chamarei como quiser! Eu posso compreender sua gratidão pela quantia que lhe tocou na generosa renda que meu avô destinava a ela, com a condição de que um dia a filha se tornasse minha esposa! O que aconteceu à menina?

— Ela morreu há dez anos.

Ele respirou com dificuldade, a irritação evidente.

— E como morreu?

— Ficou doente durante um cruzeiro que fazia com a mãe pelo Mediterrâneo — explicou Glenda, tentando manter a calma, enquanto o olhar de Malraux a cobria de um frio desprezo. — Edith a enterrou na ilha de Malta. Mas você tem que entender que…

— Tenho mesmo?

— Edith estava acostumada a uma vida confortável, boas roupas, viagens, e o testamento de seu avô não a tinha contemplado, somente à sua filha. Sem aqueles rendimentos ela ficaria na miséria, pois nunca foi de economizar.

— Quando você entrou nesta trama?

— Edith me adotou. Eu estava num orfanato em Gales. Desde o dia em que me tirou daquele lugar melancólico, deu-me tantas coisas lindas, e sempre me tratou como se fosse minha verdadeira mãe.

— Mas que tocante!

— Oh, Deus! — Glenda cobriu o rosto com as mãos, numa tentativa inútil de fugir ao justificado sarcasmo. — Eu era apenas uma criança, não sabia o que a tinha levado a agir assim. Quando me contou eu já a amava demais para julgar seus atos… e ela estava morrendo quando me implorou para… para me casar com você, para que ninguém soubesse que durante nove anos espoliara a fortuna dos Malraux.

— Então você admite que houve fraude e que tomou parte dela?

— O que mais posso fazer a não ser admitir? — respondeu Glenda, sustentando a frieza do olhar dele. — Em defesa de Edith, e na minha, só posso dizer que se você tivesse passado a infância num orfanato poderia compreender como uma criança se sente grata quando aparece alguém e a escolhe como… como companheira. Edith foi realmente boa para mim.

— Ela podia se dar ao luxo de ser, e você tinha a maior parte dos requisitos exigidos, não é? A idade certa, o mesmo cabelo ruivo, e obviamente ela contou com o fato de que a maior parte das pessoas ou não repara na cor dos olhos dos outros ou se engana quanto a isso. Francamente, vocês duas tiveram topete!

— Eu… eu não me casei com você por causa do dinheiro — defendeu-se Glenda.

Parecia tão indefesa, ali sentada, com o sol batendo nos cabelos vermelhos… Como aquele homem que agora a acusava podia saber que Edith a protegera, tratara-a com amor, como se ela fosse sua própria filha? Aquela fisionomia dura parecia indicar que ele só pensava o pior dela… que a considerava uma aventureira.

— As coisas foram… acontecendo — ela disse, desamparada.

— É mesmo? Não diga!

As faces dela queimavam.

— Eu não esperava mesmo que você compreendesse. Afinal, é feito de ferro.

— Talvez você pensasse que eu era feito de gesso… um tolo sem fibra que pudesse ser manipulado. Deve ter sido um belo choque quando me conheceu e descobriu que precisava bem mais do que uma pele branca e cabelos ruivos para me tornar maleável. Dieu, mas você é mesmo surpreendente, sabe disso? — exclamou ele, sacudindo a cabeça e depois olhando-a nos olhos como se esperasse encontrar neles algo que pudesse considerar anormal. — E ainda tem a audácia de me dizer que ama esse tal Brake, embora tenha ido até a igreja para se casar comigo! Que tipo de mulher é você?

— Eu… eu lhe disse… fiz tudo por Edith!

— Minha cara, ninguém é assim dedicado!

— Precisa ser tão sarcástico? — perguntou ela, sentindo que ia chorar. Mas não queria chorar na frente dele. Tinha que buscar forças no próprio orgulho e não lhe dar a satisfação de humilhá-la tanto. Afinal de contas quem era aquele homem para tratá-la com tanto rigor? Ele fora até a igreja e se casara com ela só para poder pôr a mão num amontoado de torres!

— Pois acho que tenho o direito de ser sarcástico — respondeu Malraux. — Não esqueça que tive que assistir a uma bela farsa na noite de nosso casamento. Suponho, mesmo para alguém como você, que deve ter sido muito assustador ver-se repentinamente casada com um estranho. Dieu, não sei se o velho Duval acharia esta situação engraçada ou se ficaria furioso! — depois, inclinando-se na cadeira, sorriu com ironia. — Muito bem, mulherzinha, agora vai ter que pagar as despesas, não vai?

Glenda o olhou, sem compreender a que estava se referindo.

— O que foi que disse?

— Não me venha com essa cara de órfãzinha, por favor —- disse ele, rindo de forma ameaçadora, as cicatrizes acentuadas pelo sorriso. Jogou no chão o cigarro, depois cruzou as mãos e apoiou o queixo nelas. — Sabe muito bem do que estou falando, portanto pode dispensar encenações. Já fingiu bastante!

— Mas eu… eu não sei mesmo do que está falando! — sustentou ela com firmeza, embora, bem no íntimo, algo a tivesse abalado, pois podia adivinhar o que ele estava insinuando: cama.

— Está vendo estas mãos? — perguntou ele, abrindo-as, mostrando as palmas e depois os dorsos, onde os pêlos negros realçavam os pulsos fortes; os dedos, longos e flexíveis, agora pareciam ameaçadores. — Pois você está nelas, ma chère — enquanto falava, Malraux fechou as mãos como se na verdade a tivesse presa ali dentro.

Glenda prestou muita atenção àquele gesto e depois levantou vagarosamente o olhar para o rosto inflexível.

Talvez ele fosse mesmo insensível… Pelo menos assim parecia a Glenda, que tinha certeza de estar revelando naquele momento a angústia que trazia no coração. Ela o havia enganado e por isso dava a ele o direito de ficar furioso. Mas o que mais a abalava era a frieza que via naquele olhar.

— Você deve me desprezar muito — disse ela, a voz rouca. — Mas mergulhei numa apatia intensa… como se estivesse sonhando. Só despertei quando me vi na sacristia, tendo que assinar o livro de registros. Foi horrível… meu coração quase parou…

— Mas não parou, e você simplesmente desmaiou a meus pés. E desmaiou também de choque, desconfio, porque o seu herói não foi salvá-la.

— Oh… como pode ser tão grosseiro? Será que não tem um pouco de misericórdia?

— Sim, mas não pretendo gastá-la com você. Posso até acreditar que você pretendia salvar a honra da querida Edith, mas ao mesmo tempo queria que o galante Simon a impedisse. Mas ele não o fez. E quer que lhe diga por quê?

— Sei que vai dizer mesmo que eu não queira!

— Sim, eu lhe direi, porque está mais do que na hora de você aprender as verdades da vida. O jovem Brake adora usar uniforme e parecer um cavaleiro andante, mas quando chega a hora de arremessar a lança, fica firme como uma estátua, e decide que a prudência é mais importante do que a coragem…

Ultrajada, abalada por aquelas palavras, Glenda ficou imóvel, desejando ter uma lança nas mãos para atirar no coração de Malraux d’Ath.

— Você não sabe absolutamente nada sobre Simon — disse ela, as palavras saindo com dificuldade, tal sua revolta — e está sendo mesquinho porque sabe que eu… que eu o amo.

— Ama? — perguntou ele, com ironia. — Você nunca vai saber o que é o amor, minha cara! Não passa de uma mulherzinha tola, que se envolveu comigo, que não sou feito da mesma matéria podre que seu oficialzinho loiro, com seus botões dourados brilhando. Ele não é feito de aço, como eu. Talvez seja um amante ideal, ma belle, mas eu sou o seu marido.

Ela estremeceu ao ouvi-lo dizer isso. Marido… Sim, aquele homem era seu marido e, por estranho que pudesse parecer, Glenda começou a reparar que ele tinha um certo charme… uma certa sensualidade. Afastou isso do pensamento e continuou a falar:

— Mas nós… nós temos que nos divorciar. Agora você já sabe toda a verdade, o que de certo modo é um alívio para mim. Odiei ter que mentir esse tempo todo e admito que errei ao permitir que meu amor por Edith tivesse me convencido — parou e o fitou atentamente. — Por que está me olhando assim?

— Nunca houve um divórcio em nossa família — informou ele. — E não pretendo ser o primeiro.

— Mall… — os lábios dela estavam trêmulos. — Não brinque comigo… por favor!

— Não? — o olhar pousado nela revelava uma certa admiração. — Brincar com você, Glenda, é uma coisa que eu não desprezaria. Olhando-a agora não consigo ver aquela menina e sim uma mulher extremamente atraente que por acaso é minha esposa. Será que me fiz entender?

Glenda observou aquele corpo, moreno e poderoso, sentindo-se tão desesperada quanto um animal encurralado. Até mesmo na maneira como ele a encarava havia uma certa ameaça. Assustada, implorou:

— Deixe que eu vá embora, Mall.

— Eu não a estou segurando, minha cara — disse ele, abrindo as mãos num gesto de zombaria.

— Você sabe o que quero dizer.

— Quer voltar correndo para seu galante Simon?

— Eu… eu já disse que o amo.

— Sim, lembro que me contou um monte de mentiras.

— Isso não é mentira.

— Ah, não? Pois você não soube fazer outra coisa, Glenda, desde que entrou naquele castelo. Até agora tudo foi uma farsa. Mas as verdades estão aparecendo; minha Bela Adormecida acordou e não foi um Príncipe Encantado quem a despertou, infelizmente. Sei o que as mulheres sentem ao ver meu rosto… o que você sente, principalmente ao compará-lo ao clássico perfil do jovem Brake. Mas, como já lhe disse antes, você não vai ver as cicatrizes quando a luz estiver apagada.

— Pelo que me lembro, parece que você não gostou quando pedi que apagasse a luz.

— É verdade, minha querida, mas agora as coisas mudaram. Pelo menos no que se refere a você, sei que é uma mentirosa, uma ladra.

Ela recuou como se tivesse recebido um tapa no rosto.

— Você não mede as palavras, não é? Está disposto a me humilhar, a me machucar, mas não me dará o divórcio mesmo tendo todas as provas de que precisa.

— O divórcio está fora de cogitação.

— Por quê? — perguntou ela, desnorteada. — Você me acusou de ser cúmplice de uma fraude e… e sabe o que sinto por Simon. O que quer mais?

— Será que não é esperta o suficiente para descobrir? — quis saber ele, com um leve sorriso. — Será que seus instintos de fêmea não lhe dizem nada? Na noite de nosso casamento, ma chère, você estava me contando como era experiente.

Glenda ficou vermelha de vergonha e não conseguiu sustentar o olhar dele.

— Pare com isso! Você não pode continuar casado comigo, isso não faz sentido! Já conseguiu o que queria com o casamento. Sonhava com o castelo e agora ele é seu, e também o controle das fundições. Indiretamente eu o ajudei, então por que você não pode ser justo?

— Ser justo? De todas as bobagens que você falou até aqui, Glenda, esta é a que ganha o prêmio! Será que você foi justa quando chegou naquela igreja, tão imaculada em seu vestido branco de noiva, representando o papel de uma menina morta e enterrada há dez anos? Eu poderia ter o castelo e as fundições sem nada daquilo; tudo de que precisava era que me contassem que a verdadeira Glenda Hartwell estava morta. O casamento seria cancelado na hora. Não era possível que você não soubesse. Afinal, sei que não é a ingênua que aparenta ser.

— Obrigada! — exclamou ela, trêmula pela violência daquelas palavras. — Você vê tudo de seu ângulo, não é? Não quer compreender a minha posição!

— Sua devoção por Edith Hartwell? É isso o que quer dizer?

— Não ridicularize este sentimento, Malraux. Pela maneira como trata as pessoas provavelmente não sabe o que é isso.

— Pois acho que a tratei com tolerância — retrucou ele —, considerando a maneira como você retribuiu. E pretendo ser compensado por isso.

— E pensa que eu o compensarei? — perguntou ela, erguendo o rosto e fingindo uma coragem que estava longe de sentir.

— Exatamente, minha querida.

— Está se recusando a me dar o divórcio?

— Definitivamente.

— Mas não vai me impedir de abandoná-lo. A não ser que pretenda me aprisionar naquela torre.

— Parece uma boa idéia; sou capaz de levá-la em consideração.

— Vai me querer, mesmo sabendo o que houve entre Simon e eu?

— Ele provavelmente segurou-lhe a mão por alguns minutos, ma chère; talvez até a tenha beijado, mas é muito medíocre para ir mais longe com uma ingênua como você. Homens como ele procuram coristas ou prostitutas experimentadas com quem possam fazer suas farrinhas.

— Como você fez? — revidou ela, enfurecida com o sarcasmo com que ele falava de Simon.

— Como eu? — perguntou ele, imperturbável. — Não sou um velho precisando de uma bengala. Eu tenho trinta anos.

— Pois parece bem mais.

— É por causa de minhas cicatrizes — disse ele, sério. — E elas existem por causa de algo nobre, se isso representa alguma coisa para você.

— Não pense que pode me intimidar com suas histórias!

— Não ouse falar desta maneira! — disse ele, a voz fria e impiedosa. — Você é uma ladrazinha insolente que precisa de uma boa surra. Foi mimada por aquela mulher preguiçosa e fútil, que a tirou de um lugar decente, onde teria aprendido uma profissão, para transformá-la numa moça bonita, mas inútil!

— Como pode me dizer coisas tão grosseiras? — Glenda afastou a cadeira e ficou em pé. — Eu podia ter fugido há uma semana, mas fiquei por causa de Robert. Fui bem mais útil do que aquelas suas primas! Uma delas fica o tempo todo pensando no patrão enquanto a outra daria qualquer coisa para estar em meu lugar, casada com você. Eu… eu o odeio. Malraux d'Ath!

— Odeia mesmo? — perguntou ele, ficando também em pé, e num movimento ágil, aproximando-se de Glenda.

Ela recuou, assustada, e esbarrou num arbusto de mimosas. As florzinhas delicadas se desprenderam e caíram em seus cabelos, enquanto uma raiva surda e impotente a fazia tremer. Se não fosse pela criança, poderia estar livre das garras de Malraux d'Ath… poderia já estar na Inglaterra.

— Sim — disse ela, ofegante. — Acho que você é detestável!

— Pois então vamos nos entender muito bem — disse ele, enquanto a alcançava e a puxava para si. — Não preciso me preocupar com seus sentimentos e você não precisa se preocupar com os meus. Um dos aborrecimentos que as pessoas apaixonadas têm é que perdem muito tempo se preocupando umas com as outras, mas nós dois podemos viver sem estes empecilhos provincianos…

 

 



  

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