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CAPÍTULO V



CAPÍTULO V

 

Quando o gongo soou, anunciando que o almoço estava servido, Glenda teve um sobressalto. Malraux ofereceu-lhe o braço.

— Você deve estar faminta. Vamos.

Ela não podia resistir à sua autoridade, e não havia nada que pudesse fazer naquele instante, a não ser acompanhá-lo até a sala de jantar e sentar-se a seu lado, na enorme mesa oval.

O ambiente era mobiliado em estilo provençal, e a decoração devia ter sido feita depois que a família Malraux adquirira o castelo. As janelas abertas davam para um pátio onde havia uma fonte.

Será que Edith e a filha tinham jantado ali, depois do casamento ter sido acertado com Duval Malraux, um homem determinado a dominar a vida de seus herdeiros mesmo depois de morto?

Glenda olhou para o marido e, vendo sua expressão absorta, perguntou-se no que ele estaria pensando. Estaria também recordando o acontecimento que decidira seu futuro e o obrigara a receber uma mulher completamente estranha como esposa?

Tentou concentrar-se na refeição e tomou seu creme de cogumelos, escutando sem interesse a conversa de Renée, que falava sobre um homem chamado Jacques.

— Vamos ser obrigados a ouvir histórias sobre esse vinhadeiro durante todo o almoço? — perguntou Rachel.

— Com ciúmes porque ninguém está interessado em você? — retrucou a irmã com um sorriso de vingança nos lábios. — Todo mundo está sabendo o quanto ficou decepcionada, querida!

— Cale essa boca, senão… Ou acha que alguém aqui acredita que um homem em seu juízo perfeito pode querer você? Desconfio que tudo isso não passa de imaginação sua…

— Você é quem vive imaginando coisas e…

— Não diga bobagens!

A voz irritada de Malraux as interrompeu:

— Que discussão é essa? Vocês duas não conseguem concordar em nada, e ainda resolvem brigar diante de todos, na hora do almoço? Glenda vai pensar que nossa família é um enxame de vespas!

— E será que ela tem medo de ferroadas que possam marcar sua pele de lírio? — era evidente a má vontade de Rachel para com Glenda.

— Se perturbar minha esposa vai ter que se ver comigo!

— Que mandão, Malraux! Só espero que as moças inglesas não gostem de receber ordens. Você está calada, Glenda, mas gostaria de saber o que pensa a respeito.

Glenda ergueu a cabeça e encontrou o olhar de Rachel, fixo nela.

— Não creio que aqui na França seja diferente, mas acho que a maioria das mulheres inglesas gosta de homens dominadores, desde que eles reconheçam nela uma pessoa, não uma propriedade.

— Está escutando, Malraux? Espero que concorde com o que sua mulher está dizendo. Você sempre foi autoritário e acredito que faria qualquer coisa para ter a fundição e o Château Noir, ainda que para isso tivesse que vender a alma ao diabo.

O fato de ele sorrir e não contestar a prima, fez com que Glenda sentisse um calafrio pela espinha. Quase recusou o prato que ele lhe ofereceu em seguida:

— Prove estas ostras, estão deliciosas.

Eram enormes, servidas em bandejas com rodelas de limão. Ele lhe ensinou a saboreá-las. Era preciso retirá-las com cuidado da concha, mergulhá-las no molho e engolir de uma só vez. Convidou o sobrinho para provar uma, sob o olhar assustado da mãe.

— Cuidado para ele não se engasgar…

— Deixe o garoto em paz, querida irmã! — e olhando para Robert: — Como é, meu rapaz, gostou?

C’est bon, mon oncle! — disse Robert sorrindo, e com a boca lambuzada de molho ele parecia um pouco mais feliz.

— Robert, limpe a boca! — ordenou a mãe. — E pare de comer essas ostras, senão vai acabar doente.

— Ora, Jeanne, não seja desmancha-prazeres!

— Como pode ser tão insensível! — respondeu ela, as lágrimas começando a escorrer, os lábios trêmulos. — Seu coração deve ter sido forjado naquela fundição… Deus queira que Glenda o agüente!

Dieu! Mulheres são diabos! Não podemos ter uma refeição sem discussões? Glenda é quem vai começar a duvidar que possa suportar esta família! Talvez eu devesse pôr todas vocês para fora de casa, e deixar de bancar o idiota que sustenta o bando todo!

Héloise fez um ar choroso.

— E para onde eu iria, na minha idade? Não ligue para a sua irmã, Malraux. Ela vive com os fantasmas do passado, e, como eu sempre digo, isso não pode ser bom para ninguém.

— Por piedade! — exclamou Renée. — Não podemos ser mais otimistas e fingir que nos amamos?

Rachel não perdeu a oportunidade para criticar a irmã gêmea:

— Lá vem você falando de amor, outra vez. Só tem romantismo na cabeça, mas vai aprender, como todo mundo, que o amor só existe nos livros. E por isso que todos gostam tanto de lê-los, por causa dos finais felizes. A vida real não pode dar esta garantia… Olhe só o que aconteceu à pobre Jeanne.

— Jeanne precisa fazer um esforço para esquecer o que aconteceu com ela… — disse Malraux aborrecido. — Agora seria pedir muito que dessem mais atenção ao Quiche Lorraine? E quem deseja mais vinho?

— Eu não — respondeu Renée. E acrescentou: — Jacques está produzindo um vinho branco excelente. Vou pedir a ele que mande uma garrafa para você provar.

— Eu agradeço, chérie — Malraux sorriu, irônico. — Mas estou desolado que ache o vinho de minha adega inferior ao dele. E também me surpreendo que com um ano você tenha aprendido tanto sobre bebidas. Nesse passo, daqui a algum tempo será a maior autoridade sobre o assunto. Uma verdadeira conaisseur.

Rachel deu uma gargalhada gostosa e ergueu o copo para o primo, num cumprimento bem-humorado.

— Malraux não é páreo para você, querida. Acho que a língua dele também foi temperada na fundição…

— Concordo com sua irmã, Renée. Não queira correr antes de saber andar. Sei que está fascinada com o ramo de fabricação de vinhos, mas deixe que lhe conte que estudo a indústria do ferro desde adolescente e acho que ainda tenho o que aprender! Agir com cautela também ajuda nos negócios. Aceite este conselho.

— Pois eu não gostaria nada de trabalhar para você, Malraux.

Touché — disse ele, inclinando a cabeça. Depois virou-se para Glenda: — Não fique assustada, esta família adora discutir. Você vai se acostumar a isso.

— Vou mesmo?!

— Certamente, ma chérie — pousou a mão direita sobre a esquerda dela, um gesto significativo por si mesmo. — Nós latimos mas não mordemos.

Ela gostaria de acreditar naquela afirmação, mas esperava encrenca quando lhe dissesse que ia abandoná-lo. Devia-lhe uma explicação, e perdera a coragem de simplesmente ir embora, deixando apenas um bilhete pregado em algum lugar. Em todo o caso, ele não era pessoa fácil de ser enganada, e tentar escapar sem um carro para chegar ao aeroporto seria impraticável.

Sabendo que ela era a esposa de Malraux d'Ath, os habitantes da região não teriam interesse em ajudá-la a fugir. Ele era o patrão de quase todos, e isso tornava altamente improvável que se dispusessem a enfrentar sua ira. E Glenda não tinha a menor dúvida de que, quando zangado, ele era muito perigoso.

A sobremesa era uma deliciosa torta de ameixas com chantilly e Glenda mal pôde acreditar nos próprios ouvidos quando a mãe do pequeno Robert disse que em vez do doce ele devia comer um pedaço de queijo.

Sem refletir no que estava fazendo, intercedeu pelo garoto:

— Oh, Jeanne, deixe que Robert coma um pouquinho. Está tão gostosa…

— Seria uma pena se ele perdesse os dentes. Sei o que é melhor para o meu filho, e açúcar provoca cáries. Quando você tiver os seus, Glenda, faça como quiser, e se eles acabarem com dentaduras, o problema será seu. Malraux e eu nunca comemos doces quando crianças e veja os belos dentes que temos. Pode parecer maldade, mas Robert sabe que faço isso para o bem dele.

O menino comeu o queijo sem reclamar, e aparentemente não pareceu ter vontade de provar a torta.

Respondendo ao olhar interrogativo da esposa, Malraux deu sua opinião:

— Jeanne tem razão. Algumas vezes temos que saber o que é melhor para as crianças.

Os olhos dourados de Glenda mostraram indignação.

— Pois eu acho que um pouco de mimo não faz mal a ninguém. Edith sempre me deu guloseimas e nem por isso precisei usar dentaduras. Desde que a criança aprenda a limpar bem os dentes que mal pode haver?

- Cada mãe faz as coisas a seu modo — ele falou, procurando evitar atritos. Depois, com um sorriso maroto nos lábios, completou: — Da minha parte, prometo que não vou protestar se você quiser dar a nosso filho um pouco de torta, Glenda.

Muito vermelha, ela abaixou a cabeça. Ouviu a risada de Renée.

— Você é terrível, primo. Nem bem começou a lua-de-mel e já está pensando em ser pai!

— Vamos mudar de assunto? — reclamou Jeanne, irritada. — Não somos apanhadores de uvas para estar discutindo essas vulgaridades na mesa!

— Se eles fazem isso, acho muito saudável. Mostra que são desinibidos e gozam suas vidas, coisa que você não tem coragem de fazer, Jeanne. Passa a maior parte do seu tempo enfiada na capela, acendendo velas para os mortos…

— Como ousa…?

— Mas é a verdade! — continuou Renée. — Ninguém deseja a morte de ninguém, mas essa fatalidade tem que ser aceita. Nunca teremos de volta os entes queridos que se foram, nem poderemos partilhar nada com eles. Sei o quanto amou Gilles, mas ele se foi, e você é jovem ainda e não devia continuar a se comportar como se sua vida fosse uma… uma tragédia grega!

— Como é que essa menina ousa falar assim comigo? Se qualquer um, qualquer um de vocês tivesse sofrido tanto quanto eu…

— Malraux sofreu! — interveio Rachel. — Seu rosto marcado é prova disso… Ele não precisava voltar àquela caldeira em chamas para salvar o capataz, mas voltou! Salvou uma vida, como Gilles salvou a sua, mas não posso acreditar que seu marido desejasse vê-la assim tão infeliz.

— Ele deve estar se virando no túmulo escutando como vocês me tratam! Venha, Robert, não quero que escute as palavras cruéis que dirigem à sua pobre mãe. Você sabe, chéri, como eu sofro, não sabe?

Levantou-se da cadeira e tomou o filho pela mão. Preparava-se parar sair, quando Malraux interrompeu:

— Quero que Robert leve Glenda para dar uma volta pelo castelo. Não posso fazer companhia a ela porque tenho que examinar alguns documentos no escritório. Além disso, tenho que concordar que você se esforça para ser infeliz, com essas contínuas lamentações… Isso não faz bem para o garoto, será que não percebe? Dentes! O que são dentes, comparados com uma mente sadia?

Jeanne olhou chocada para o irmão.

— Nunca esperei que se voltasse contra mim, Malraux! Mas imagino que agora que tem uma esposa não vai mais dar atenção para a irmã. Meu pobre coração despedaçado o irrita!

— Tolice, Jeanne. Sente-se aí e espere pelo café. Seja razoável, e não procure exagerar. Rachel está certa quando diz que não podemos nos enterrar vivos, por mais que veneremos nossos mortos. Gilles foi um homem maravilhoso e provou isto até o fim. Sinta-se abençoada por ter sido amada por ele, e aceite sua morte. Ele não gostaria de vê-la assim, sabe muito bem disso!

— Sei…? — perguntou ela, crispando o rosto que um dia fora belo, mas que agora estava cheio de desespero com as rugas vincando os cantos da boca.

Glenda estava surpreendida pelo amor apaixonado que existira entre Jeanne e o esposo; uma capacidade de dedicação que provavelmente também corria nas veias de Malraux. Do marido que ela não queria.

Malraux se levantou, moreno e perturbador, com seu culote negro e botas que chegavam até os joelhos, a fina camisa de seda moldando os ombros musculosos.

— Jeanne, insisto que pare de se atormentar por não ter morrido com Gilles. Foi o destino.

Glenda sentiu o coração bater surdamente no peito quando ele se aproximou da irmã e a abraçou.

— Aceite o que lhe aconteceu, ma belle. Aceite ou será destruída pela dor, e então o que será de Robert?

Jeanne apoiou a cabeça contra a seda negra de sua camisa, o corpo frágil, visivelmente agitado. Ele acariciou-lhe os cabelos, sua mão curtida pelo sol contrastando com o prateado dos cabelos dela, o corpo forte enfatizando a fragilidade da irmã.

— Não sou insensível, Jeanne, acredite. É meu rosto marcado que cria esta imagem.

— Oh Mall… será que nossa família foi amaldiçoada? Olhe só como nossos pais morreram! E depois, quando tudo parecia esquecido… aconteceu novamente! O que virá agora? Tenho receio de que ocorra algo de mal com meu filho. Você não agiria como eu ajo?

— Não sei. É claro que você se preocupa com Robert, mas ele precisa aproveitar a infância, ou depois terá queixas, quando for homem. Não deseja isto, deseja?

— Eu… não quero que nada lhe aconteça. Ele é tudo o que me restou de Gilles, e tenho que evitar que alguma maldição que exista sobre a nossa família…

— Não existe maldição alguma! Tragédias acontecem em todas as famílias. Agora tome seu café e vá descansar, enquanto Robert faz companhia a Glenda. Que mal pode haver em que eles passem a tarde juntos?

Sem parecer convencida, Jeanne se sentou novamente. Robert segurou sua mão e olhou preocupado para ela.

— Posso ir com Glenda, mamãe?

— Você quer ir, chéri?

— Sim… se não se importar…

— Então faça o que seu tio pede. E você, Glenda, quero que me garanta que não vai deixar Robert fazer travessuras.

— Tenho certeza de que seu filho é bem-comportado.

Mas pensava que seria até bom para o seu desenvolvimento se ele fizesse alguma traquinagem de vez em quando.

O garoto possuía um sorriso meio misterioso, algo parecido com o de Malraux. Era possível que este, quando tinha a sua idade, se parecesse com ele, embora Robert fosse mais claro.

Malraux tinha a pele morena, que tornava os olhos cinzentos ainda mais penetrantes. Quando rapazinho, ou mesmo adulto, antes do acidente, devia ter sido extremamente atraente, o bastante para encantar a verdadeira Glenda Hartwell. Ele se lembrava dela como uma menina muito precoce, fascinada pela idéia de morar um dia no castelo. Era trágico pensar que uma garota tão cheia de energia tivesse morrido tão cedo. Será que Jeanne tinha razão, e todos os que se aproximavam da família Malraux também se tornavam vítimas de uma terrível maldição?

De acordo com a lenda, uma jovem mulher, que acusavam de ser feiticeira, tinha sido queimada viva nas terras do castelo. Será que a nuvem negra, que se erguera das chamas daquela fogueira, pairava há séculos, como uma praga, sobre os moradores do Château Noir?

“Oh, isto é uma superstição absurda”, pensou Glenda. Ela estava deixando que a imaginação se soltasse porque Malraux d'Ath tinha o rosto quase destruído pelo fogo, e porque Jeanne Talbot escapara da morte nos braços do marido, sendo resgatada dos escombros ainda agarrada ao morto.

No entanto, olhando para os dois irmãos, não pôde deixar de pensar que era impressionante como a tragédia se abatera sobre ambos. Era plausível acreditar que aquele castelo tinha sido amaldiçoado por uma jovem mulher, torturada até sofrer uma morte terrível!

A família se dispersou logo depois do café, e Glenda viu-se acompanhada pelo sobrinho do marido, num passeio pelos arredores do castelo.

Ela pedira para ver primeiro o salgueiro da lenda, e agora os dois estavam sob os galhos verdes. Tudo parecia muito quieto, como se nenhum pássaro ousasse ir cantar naquela árvore.

Logo uma mãozinha agarrou a sua, trazendo-a de volta ao presente. Robert a olhava, os expressivos e solenes olhos castanhos fixos nela.

— Existem bruxas? — perguntou ele, muito sério.

— Somente nas nossas cabeças, Robert. A gente acredita em todo tipo de fantasias, e de certa maneira isso é bom. Mostra que temos mentes ativas, e que não somos insípidos, gente sem imaginação.

— Você se parece com a feiticeira do quadro que está na biblioteca.

— Muito obrigada, rapaz!

— Ela é muito bonita e tem cabelos ruivos, como os seus.

— Depois você me mostra esse quadro. Vamos passear um pouco. Caminharam pela grama aveludada, passando ao largo da quadra de esportes, e atravessaram o campo de alvos para prática de arco-e-flecha, até chegarem aos estábulos.

Lá havia os mais belos cavalos que Glenda já vira. Um deles, negro brilhante, colocou a cabeça sobre a meia porta do compartimento e ela o acariciou. Surpreendeu-se ao ouvir uma voz avisando que tivesse cuidado.

Um homem de culotes, as pernas em arco, veio ao seu encontro.

— É perigoso aproximar-se de Armide, madame. Ele é imprevisível, arisco, e não faz muito tempo deu uma mordida num dos cavalariços.

— O animal parece calmo, monsieur. Talvez o rapaz o tenha irritado. Continuou com a mão na cabeça de Armide. Aprendera a montar logo depois de ter sido adotada, e, como toda menina tímida, tinha se tornado muito amiga dos animais. Percebia a resposta instintiva do cavalo e não sentia medo.

— Quem o monta? — perguntou.

— Pertence ao patrão. É raro outra pessoa montá-lo.

— É árabe?

Mais oui, madame — respondeu o homem, enfiando as mãos nos bolsos da calça, e olhando rapidamente Glenda, de cima a baixo. — O patrão não iria querer que a senhora arriscasse o pescoço, montando Armide, e também não acredito que ele queira arriscar Armide deixando uma mulher cavalgá-lo.

Glenda riu.

— Não está convencido de que eu saiba como lidar com um cavalo?

— Não duvido, mas estou analisando o que o patrão pensaria.

Monsieur Malraux é assim tão temível?

O homem encolheu os ombros e nada respondeu. Mas não tirou os olhos dela e de Robert até os dois estarem fora da cavalariça. O menino contou que ele se chamava Restif Gerent, era argelino e trabalhava antes na fazenda dos Malraux na África.

— Para onde vamos agora, Robert? — Glenda perguntou.

— Até o lago. É bem grande e está cheio de carpas.

Desceram alguns degraus de pedra, cercados de flores vermelhas. Dali podiam ver o castelo desenhado contra o céu, e Glenda se deteve um instante, fascinada pelas altas torres que se erguiam acima das muralhas de pedra acinzentadas, com seus telhados negros e pontudos.

Um homem podia ser criticado por querer que um lugar tão lindo lhe pertencesse? Ela achava que não, e sentia que poderia ter amado aquele castelo, caso não lhe tivessem pedido para que vivesse ali, ao lado de um homem a quem não queria como marido.

A sombra de uma enorme figueira caía sobre o lago, onde as carpas douradas nadavam entre a vegetação aquática e sob os lírios. Robert deslizou pelas margens cheias de musgo, inclinando-se sobre a água para observar os peixes. Riu alegre para Glenda, e, por um momento, aquele ar grave e solene desapareceu, surgindo uma criança normal e cheia de vida.

— Não são lindos esses peixes? — disse ele, e se aproximou ainda mais da água. — Vou pegar aquele com listras, parecido com um tigre. Veja só, Glenda!

Ela ficou observando, e se conteve, não querendo insistir para que tomasse cuidado. Era uma coisa que a mãe fazia com freqüência e que só servia para reprimir o entusiasmo infantil. Mas naquele mesmo instante escutou um grito e não teve tempo para segurar o garoto que resvalou para dentro da água.

— Espere, Robert!

Debruçou-se com cuidado na margem e conseguiu retirá-lo do lago. Ele estava encharcado, e a bela e alva camisa branca que usava ficara esverdeada pelo musgo.

— Que coisa mais inteligente para fazer! Se sua mãe, lhe vir assim, molhado feito um peixe, vai ter um chilique! Venha, vamos voltar e nos secar.

Todos estavam fazendo, a sesta, e ninguém percebeu a entrada deles pelos fundos do castelo. Restava o problema de como secar e trocar as roupas do garoto sem que a mãe descobrisse. Jeanne criaria um caso e seria capaz de ter um ataque de histeria. Seu filho não tinha o direito de fazer reinações como todas as crianças, e era obrigado a se comportar como um robô. Se ela continuasse a tratá-lo daquela maneira, Robert se tornaria um adulto neurótico. E seria uma pena!

Assim que cruzaram a porta de entrada, ele se apressou em pedir desculpas, um sorriso nervoso nos lábios:

— Eu… eu não queria que acontecesse… desculpe.

— É natural que crianças se metam em encrencas — disse ela, tentando acalmá-lo. — Espero que sua mamãe ainda esteja dormindo.

Ele fez que sim com a cabeça, a água ainda escorrendo pelo rosto e corpo.

— Acha que pode entrar em seu quarto e pegar uma roupa, sem que sua mãe acorde?

Ele pensou um instante, antes de responder.

— Creio que sim… não adiantaria nada deixá-la nervosa, não é? Mamãe chora por qualquer coisa desde que perdeu papai quando eu tinha três anos. Agora ela só tem a mim.

Falou de maneira muito comovente e séria, fazendo Glenda sentir uma onda de carinho súbita, de certo modo associada à lembrança de Malraux, com quem ele tinha uma vaga e perturbadora semelhança.

— Vamos depressa. Não quero que pegue um resfriado.

Como um par de conspiradores os dois correram escada acima, e depois pelo corredor que dava nos aposentos de Jeanne. Em seu quarto escrupulosamente arrumado, Robert pegou roupas limpas e foi com Glenda até o banheiro, onde tomou uma ducha quente, secou os cabelos e mais uma vez ficou impecavelmente vestido.

Glenda jogou as peças molhadas no cesto de roupa suja e sugeriu que fossem até a biblioteca para verem a pintura da feiticeira de cabelos vermelhos.

— Que tal se pedirmos chá com torradas? — disse ela, enquanto desciam.

— Sempre tomo chá com mamãe, no quarto dela…

Mas em seus olhos Glenda sentiu uma súplica para que insistisse no convite.

— Hoje é uma espécie de feriado. Tenho certeza de que Jeanne não vai se incomodar se passar a tarde toda comigo. E será uma novidade para você, não acha?

Ele concordou sem esforço e conduziu-a à biblioteca, uma sala ampla e acolhedora, com as paredes forradas de couro.

— É linda, não? Veja aquele tapete de pele de urso, com cabeça e tudo!

— Maravilhoso, Robert!

As estantes eram todas de mogno e estavam cheias de livros cuidadosamente encadernados. Havia poltronas com mesinhas espalhadas sobre tapetes orientais, e uma imponente lareira, onde no inverno seria possível queimar enormes toras, que soltariam fagulhas coloridas chaminé acima. Sua cornija era tão alta que somente um homem de estatura muito acima do normal poderia se apoiar nela. Num lado da lareira havia uma salamandra de pedra. Dentro de um móvel incrustado de madrepérola via-se uma bela coleção de moedas antigas e estatuetas de jade.

As janelas iam do teto ao chão, com cortinas de brocado verde, e uma delas estava ligeiramente aberta, revelando lá fora um céu carregado de nuvens cinzentas, o que prenunciava uma tempestade próxima.

A sala tinha um ar de romântica melancolia, e numa das paredes estava pendurado o quadro de um cavalo carregando um par de botas penduradas de cabeça para baixo, um símbolo assustador da morte do cavaleiro.

— Nos tempos antigos, costumavam sacrificar o cavalo junto ao túmulo do dono.

— Gosta de ler, Robert? — peguntou ela, o olhar vagando pelas estantes, à procura do quadro…

— Gosto muito, e mamãe também gosta que eu leia — disse ele com aquele seu jeito sério.

“Pobre garoto. Até quando vai viver sob as saias dessa mulher cuja trágica viuvez é algo tão mórbido?”

Pensando na triste sina daquele menino, deixou-se arrastar pela sala até um nicho iluminado por uma luz especial. Era ali que ficava o quadro famoso, preso a uma moldura muito antiga. O rosto da moça retratada era branco e puro, como o de uma dama medieval, e os olhos grandes e verdes. Seus cabelos longos caíam em cascata de fogo pelos ombros. Os lábios eram cheios e no queixo havia uma covinha. Estava com um vestido de veludo verde, de decote quadrado, revelando um pescoço delgado e perfeito, de onde pendia uma corrente com uma jóia. Olhando melhor, Glenda viu que era uma pequena figura, entalhada numa pedra cor de âmbar.

— Então é esta a feiticeira com quem acham que me pareço! Não estou vendo a verruga na ponta do nariz dela, você está?

— Como aquela de O Mágico de Oz?

— Aquela mesma — disse Glenda, afastando-se do quadro.

Era um tanto inquietante saber que estavam falando de uma pessoa que morrera no meio das chamas. Essas cenas horríveis tinham sido freqüentes no passado distante. Jovens mulheres eram amarradas numa fogueira, acusadas de bruxaria, apenas porque se comportavam de maneira diferente de seus vizinhos.

— Vai chover — disse Robert correndo até uma das janelas e se ajoelhando na poltrona ao lado. — Olhe como o céu está negro!

Glenda teve um arrepio. As nuvens escuras iam apressar a chegada da noite, e ela ainda precisava conversar com Malraux sobre o plano de abandonar o castelo naquele mesmo dia.

Puxou a pesada tira de seda para chamar a criada.

— Vamos pedir o chá. Seria bom se acendêssemos a lareira, o que acha? Se eu conseguir tocar fogo nos gravetos logo teremos um calorzinho gostoso. Vou ver se encontro fósforos.

Havia uma caixa de madeira entalhada numa mesinha ao lado das poltronas de couro. Abriu-a e viu que estava cheia de charutos, iguais ao que tinha visto Malraux fumar. Isto significava que devia haver fósforos por perto, pois reparara que ele não usava isqueiro.

Remexeu numa gaveta, procurando entre os vários objetos jogados ao acaso e acabou encontrando uma caixinha de palitos debaixo de um livro fino, encadernado em couro.

Curiosa por saber das preferências literárias do marido abriu o livro. Era um volume das obras do grande poeta Robert Browning.

Não! Malraux não podia ser do tipo que apreciava boa poesia! Mas ao folhear o livro sentiu exalar dele o cheiro inconfundível de seus charutos. Então devia ser um dos seus favoritos!

Cada vez mais curiosa, reparou no volume com vagar e encontrou a marca de uma dobra na ponta de uma página. Seus olhos percorreram as linhas, parando sobre alguns versos grifados:

Onde a maçã amadurece

Jamais espreite…

Para que não sejamos expulsos do Éden,

Eva e eu.

Glenda fechou o livro e o colocou de volta na gaveta, assaltada por um enorme sentimento de culpa. Tinha certeza de que Malraux, um homem conhecido por sua austeridade, gostaria de manter em segredo que apreciava os versos de Browning. Imaginou-o sentado ali naquela biblioteca, fumando um charuto, o pensamento vagando pelas ruas de Londres, até uma certa casa na Rua Wimpole, de onde Elizabeth Barrett tinha sido arrancada de sua cama de inválida por um poeta apaixonado e enérgico. Browning a levara escadas abaixo, atravessara a porta, carregando-a para a ensolarada e querida Itália.

Era uma história romântica, e Glenda nunca poderia desconfiar que Malraux sequer tivesse ouvido falar a respeito.

Ajoelhou-se para acender o fogo, usando três ou quatro fósforos antes que a madeira começasse a queimar. Como poderia acreditar que Malraux era um romântico se a razão para ter se casado tinha sido tão mercenária? Ele não se preocupara em ir a Barton-le-Cross conhecê-la melhor, ou apenas vê-la que fosse. Com arrogância e fria determinação estava convencido de que ela não iria se recusar. E agora sua presença no Château Noir, era a prova de que Malraux d'Ath sempre conseguia as coisas à sua maneira.

Ficou olhando as chamas se alastrarem pelas toras.

“Queime, feiticeira, queime!”, cantava o povo, nos tempos antigos. Ninguém impedia o dono do castelo e das terras em volta de fazer exatamente o que queria, e ninguém iria impedir Mall de fazer com ela o que bem entendesse. Precisava fugir dele… e de sua família. Não tinha nada em comum com aquelas pessoas nem com aquele lugar. E sua saída devia ser urgente, antes que começassem a suspeitar que tinham sido enganados por seus cabelos avermelhados, que os fizera acreditar que ela era a verdadeira filha de Edith Hartwell.

A porta da biblioteca se abriu, e uma empregada entrou.

— Chamou, madame?

— Sim. Nós queremos chá com torradas, por favor.

A moça fez um ar de espanto e dirigiu-se a Robert, que continuava sentado ao lado da janela.

— Não vai tomar o lanche com sua mãe? Ela sabe que você está aqui embaixo?

Antes que ele pudesse responder, Glenda se adiantou:

— Está tudo certo — disse à criada. — A sra. Talbot sabe que ele está comigo. Na verdade foi meu marido quem sugeriu que Robert passasse a tarde em minha companhia.

— Desculpe-me madame. Não quis questionar suas ordens. É que estamos muito acostumados a que o nosso jovem patrão passe a maior parte do tempo em companhia de sua maman.

— Entendo. Robert estava me mostrando o castelo. Tem algum problema se tomarmos o lanche aqui na biblioteca?

— Creio que não, senhora — respondeu a moça, olhando para a lareira acesa, como se achasse que a patroa já estava se sentindo em casa.

Quando ela saiu, Glenda sentou-se no tapete, os braços em volta dos joelhos. Sentindo o calor reconfortante do fogo às suas costas, só desejava que fosse Simon quem partilhasse com ela daquela casa fascinante. Que outro homem poderia desejar além daquele loiro, elegante e sedutor oficial, com quem tinha passado tantos momentos inesquecíveis?

Malraux era moreno, sombrio e parecia ameaçá-la com sua simples presença… Esta sensação ela teve desde a primeira vez em que o viu. Ele transpirava poder e autoridade, que não desapareciam mesmo que estivesse ausente. Era suficiente olhar a sua volta para imaginá-lo ali dentro. Aquelas prateleiras atulhadas de livros não eram mero enfeite, tinha certeza de que ele os lera. Os quadros também deviam ter sido escolhidos por ele, menos o da feiticeira de cabelos ruivos. E era evidente que o marido tinha um ótimo gosto. As peças de jade e marfim no armário de madeira eram raridades de coleção.

O homem com quem se casara era refinado, apesar de ser duro como se tivesse sido forjado em aço. Contudo, em sua juventude e inexperiência, ela ansiava pelo jovem alto e loiro que, disciplinado como um soldado, a vira se tornar propriedade de outro.

Inclinou a cabeça, os cabelos refletindo as chamas da lareira. Como sentia saudades de Simon! Como gostaria que ele viesse libertá-la! No fundo sabia que a única pessoa que poderia salvá-la daquele casamento sem amor era ela mesma.



  

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