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CAPÍTULO IICAPÍTULO II Assim que chegaram ao aeroporto, Malraux providenciou carregadores que levassem as bagagens até o possante carro marrom que estava guardado ali à espera dos dois. Feito isso, puseram-se a caminho pela estrada asfaltada que se elevava gradualmente até o rio Loire parecer uma faixa muito estreita ao pé da montanha. Era em um dos castelos nobres e deslumbrantes que pontilham o vale daquele rio que ela iria morar. Instalada no luxuoso banco de veludo castanho, Glenda apreciou a viagem de automóvel, pois teve algum tempo para acumular as forças de que precisava para enfrentar os parentes que também moravam no castelo. Era fim de tarde e o céu estava escarlate no poente, quando divisaram o lugar onde Malraux havia nascido. O Château Noir apareceu, contrastando com o horizonte. As muralhas altas e escuras se recortavam contra o céu e brilhavam com os últimos raios de sol. A construção se localizava numa elevação, dominando o vale, com um amontoado de telhados, paredes de pedras e pátios escondidos atrás das heras. Cada uma das torres gêmeas, de formato pontudo como chapéus de feiticeiras, tinha janelas ovais incrustadas e possuía sua própria muralha. Entre elas ficava a parte mais importante do castelo, graciosamente conservada, com quatro andares. Viam-se luzes através de diversas vidraças, o que devia ser interpretado como sinal de que havia gente esperando. Glenda ainda viu na tarde que caía vários balcões com sacadas de ferro fundido. A fortuna daquela família tinha se apoiado no ferro, desde o começo. Eles eram membros tradicionais da aristocracia francesa, e de suas metalúrgicas tinham saído os gradis mais rebuscados e sofisticados que se viam em Paris, Londres e em outras grandes cidades. Na época da guerra, em Londres, uma grande parte das grades originais fora destruída e a Fundição Malraux tinha sido chamada para fazer a reconstituição. A tradição da família era agora continuada através da sociedade de Malraux d'Ath, que supervisionava as fábricas da Inglaterra, com seu primo Matthieu, responsável pelo ramo francês da empresa. — Impressionada? — perguntou ele, virando-se para Glenda, quando o motor do carro parou, e os dois ficaram os últimos minutos a sós. — É de perder o fôlego. — Percebi quando você segurou a respiração e por isso concluí que tinha se esquecido de como era o castelo. Ela mordeu os lábios e balançou a cabeça. — Sim, dez anos é muito tempo… — E volta como Uma estranha para o lugar que será o seu lar. Lar… era uma palavra que possuía calor, mas em Glenda despertava calafrios que gelavam seu coração. — Fique tranqüila. Não a obrigarei ao sofrimento de enfrentar a família esta noite. Depois de tomarmos banho, jantaremos a sós e vamos saborear o melhor vinho de nossa adega, o Puligny-Montrachet que meu avô destinou especialmente a mim. Ele não apreciava muito o champanhe e me ensinou a degustar os vinhos mais finos. Vinhos e mulheres, parece… De puro nervosismo, Glenda cerrou os punhos e sentiu a pressão dos anéis, que para ela eram como cadeias douradas, símbolos secretos de escravidão. — Sou a escolha de seu avô, muito mais do que sua… Sente-se ressentido por isso? — Num momento desses, chérie, não se deve interrogar os nossos sentimentos, e sim deixar que a vida se desenrole. Venha, vamos entrar. Ele saiu do automóvel e deu a volta para abrir a porta para Glenda. Com as pernas trêmulas, ela mal conseguiu ficar de pé, minutos depois, diante do duplo lance de degraus que levavam até a porta de entrada. — Le oiseau crie trop tard quand il est pris — exclamou Malraux, enquanto retinha, entre as dele, as mãos delicadas da esposa. Então ele sabia exatamente como ela estava se sentindo! Como um passarinho se lamentando tarde demais por estar preso numa armadilha. Ele sorriu levemente, o lábio repuxado. — Qui ne dit mot consant, chérie. — Sim, o silêncio dela equivalia a uma confirmação do que ele dissera. — Mas pelo menos, uma armadilha maravilhosa. O Château Noir é considerado uma verdadeira festa para os olhos, embora o seu nome, castelo negro, seja um pouco sombrio. — As pedras têm um reflexo prateado — comentou ela, olhando para uma das torres. — O nome do castelo tem a ver com sua história. Como deve saber, a família Malraux conseguiu comprar este castelo com o dinheiro ganho na indústria, e não através da nobreza. Diz a lenda que um nobre sinistro vivia aqui com sua amante favorita, a qual tinha fama de ser feiticeira. Quando ele se cansou dela, mandou queimá-la viva. — Que horror! Isto é verdade? — Esta história está contada num dos livros da biblioteca antiga do castelo. A superstição era muito grande naqueles dias… Existe até mesmo um quadro retratando a jovem. Esqueceu disso também? — Se eu esqueci? Glenda o encarou e percebeu imediatamente um brilho diferente naqueles olhos cinzentos como as muralhas da construção, denotando muita surpresa com a reação dela. — Você parece ter varrido da mente uma porção de coisas que achou intrigante da última vez em que esteve aqui. Esse quadro de que falei estava na parede do quarto do meu avô, e ele ainda comentou que a moça se parecia muito com você. — Comigo?! — Claro! Ela também possuía cabelos avermelhados como chamas, olhos amendoados e pele muito branca. Glenda sentia a garganta se apertar e ficou paralisada quando Malraux segurou seu queixo e a obrigou a levantar o rosto para poder fitá-la nos olhos. — Estive pensando durante todo o dia… E como você bem disse, ma chérie, dez anos é tempo suficiente não só para nos mudar, como também para transformar nossas recordações. Você era uma garota de escola, com a cabeça cheia de romantismo, e agora é uma jovem mulher, e tem medo de mim, não é? Ela não negou. Sentia-o muito perto, a ponto de não poder esconder-lhe o tremor que passava por seu corpo. — Nossa união foi contra sua vontade, não foi Glenda? Isto lhe causou muito sofrimento hoje? — Imagino que aconteceu comigo o mesmo que com você. Afinal, não deve ser nada fácil casar-se com uma mulher por quem não se está apaixonado. Ele deu um sorriso irônico e retrucou: — Amor? Tudo que sei é moldar o ferro quente segundo meus desejos. Farei a mesma coisa com você, chérie. Bon gré, malgré! — Quer eu goste quer não? Meu Deus, não posso acreditar que você seja assim tão rude! — Todos os homens são assim… — ele respondeu irônico. Glenda o olhou, atônita. Oh, Deus, só agora percebia que havia se casado com um homem que lhe devotava um profundo ressentimento, antes mesmo de entrarem na casa que iam partilhar. A força e a textura do ferro haviam governado a vida dele e aquela promessa que um dia fez ao avô marcou-o a fogo, tanto que ele não ousou quebrá-la. O caso dela era bem diferente. Crescera num meio social normal, e era uma pessoa doce e sensível, mais fácil de ser destruída… Um grito abafado escapou-lhe da garganta quando Malraux levantou-a nos braços e a carregou para dentro do castelo, passando pelo criado que lhes abrira-a porta. — Aqui estamos, André. Trouxe a minha esposa para casa. — Bem-vindos, monsieur et madame. — Jantaremos em meu apartamento, André. Avise tia Héloise. Ela passou bem na minha ausência? — Como sempre, monsieur. Ainda sente dores, mas não tem se queixado muito, a não ser para os jardineiros. Malraux sorriu. — Claro. Ela bem que gostaria de estar cuidando de suas flores. Espero que o jantar de hoje seja especial. E quero que me leve também uma garrafa de Puligny-Montrachet. — Cuidaremos disso, senhor. — Mande uma das moças para ajudar madame d'Ath em sua toalete. Glenda ficou tensa nos braços dele e quis protestar, dizendo que se arranjaria muito bem sozinha. Ele deve ter percebido isso mas só voltou a falar depois de atravessarem o imenso hall e começarem a subir por uma escada. — Em sua mente britânica talvez possa parecer um exagero ter uma criada particular, mas é parte de nosso modo de viver no Château Noir. Minha tia ficaria escandalizada se você se recusasse a desfrutar dessas regalias. Ela gostaria de ter ido ao nosso casamento, para conhecê-la, mas não está podendo viajar desde que quebrou á bacia, no ano passado. Uma tortura para Héloise, que sempre foi uma pessoa muito ativa! Antes de meu avô morrer, ela não morava aqui e dirigia sozinha um grande salão de modas em Paris. Ela é a mãe do meu sócio, Matthieu. — Entendo — murmurou Glenda, sentindo cada movimento daquele corpo forte que a carregava pela escada em caracol com tanta facilidade como se ela fosse a adolescente que explorara emocionada o castelo, esperando um dia morar ali. — O meu apartamento fica na Tour Etoile, onde viveremos isolados. O que todos os recém-casados desejam, não acha? Glenda não conseguia falar. Ele, ao contrário, nem parecia perturbado com o peso do corpo dela nos braços. Depois do primeiro lance, porém, depositou-a no chão, mas continuou com o braço em sua cintura. Ela estava muito agitada e, cada vez que olhava para aquele homem forte e muito moreno a seu lado, tinha reforçada a impressão de que ele não se abalaria com seus receios, nem lhe daria tempo para acostumar-se à nova vida de esposa. — Acho que já é tempo de nos beijarmos — disse ele, com seu leve sotaque galês, que o tornava ainda mais perturbador. — Aquele frio roçar de lábios no altar dificilmente pode ser chamado de beijo. Glenda enxergou a expressão decidida de Malraux e pressentiu que precisaria ser dura e cruel para defender-se dele. Deliberadamente pousou o olhar nas cicatrizes e depois estremeceu da maneira mais convincente, oferecendo os lábios com uma expressão de mártir. Malraux estreitou os braços em torno dela, enquanto perscrutava suas feições, procurando adivinhar o que lhe ia pela cabeça. Então largou-a de repente e soltou uma praga em francês. — Desconfiei que você era covarde! Percebi o quanto tinha mudado, Mas logo voltará ao que era, ma chérie. Se não suporta me olhar na claridade, então vai ter que me agüentar no escuro! — Não é nada disso, Malraux… Preciso de tempo para conhecê-lo. — Nem pense numa coisa dessas — disse ele, passando os dedos pelos cabelos negros. — Já paguei caro por tudo nesta vida e agora está na hora de receber os juros… mesmo que precise forçar a barra para me divertir um pouco. — Posso ser uma covarde, mas você é uma pessoa completamente sem sentimentos! — É muito provável que sim. Tudo que passei me obrigou a ser deste modo. Fui levado criança para a fábrica e já trabalhava na fundição aos quatorze anos. Minha vivência é apenas essa e ela me leva a acreditar que as mulheres também precisam ser amolecidas e depois moldadas, segundo os desejos de um homem. Especialmente você, minha cara, que se casou comigo, e jurou me amar e honrar. — Você fez a mesma promessa, Malraux. Sua voz estava trêmula, embora tentasse se controlar. Não queria ter medo dele, pois isso seria uma traição a Edith, que tinha feito o máximo para desenvolver nela a autoconfiança e restaurar um pouco o orgulho que aqueles anos no orfanato haviam destruído. Poucas pessoas imaginavam o que significava ser uma criança que não pertencia a ninguém, e cujo lar, em seus anos de formação, era um antigo casarão cinzento, cheio de velhos preconceitos vitorianos. Ali os órfãos eram obrigados a seguir uma infinidade de regras, a serem gratos pela caridade que recebiam e a nunca responder a seus superiores. Até agora, Glenda ainda carregava os reflexos daquela tirania e todas as normas continuavam gravadas em sua mente. Mesmo quando desafiava o homem com quem havia se casado, era assaltada por um sentimento de culpa. Lá no íntimo não se achava no direito de enfrentá-lo. Ainda que fosse para preservar a dignidade. — Tranqüilize-se porque quando as luzes estiverem apagadas não poderá ver meu rosto — disse ele, as marcas desfigurantes parecendo mais lívidas. — Pode começar a se conformar com a idéia, pois não terá escolha. — Nunca imaginei que você fosse tão cínico! — exclamou Glenda, o rubor colorindo seu rosto. — Ninguém me alertou sobre o tipo de homem que você era… ou se tornou. — Pelo menos não estou lhe dizendo um monte de mentiras. Não faço de conta que a adoro somente para quebrar suas resistências e dominá-la mais fácil. Ou estava esperando fingimento? — Como se eu pudesse pretender que você amasse uma… uma estranha… Calou-se de repente. Não foi necessário muita percepção para Glenda perceber o desejo que o dominava. Apesar de não ignorar que teria que enfrentar isso, não se sentia forte o bastante para evitar que… Ali sozinha, sem os convidados nem os passageiros do avião que tornavam a farsa suportável, não via perspectivas de escapar às garras daquele homem. Decidiu que o melhor seria adiar ao máximo o desfecho daquela situação. — Por que você foi até Barton-le-Cross se casar comigo? — perguntou Glenda, empertigando-se como se estivesse diante de um front inimigo. — Qual foi a verdadeira razão? — E qual o motivo de sua curiosidade, ma chérie? — Porque tenho certeza de que você não foi movido por razões sentimentais. — Mas acha que pode suportar a verdade? — Pelo menos saberei a quantas ando. — Neste momento você está pisando um solo sagrado para mim. O Château Noir só seria minha herança se eu mantivesse a palavra dada a Duval Malraux. Caso contrário ele passaria para Matt, que também é neto. A minha prioridade em relação à herança deve-se a uma antiga rixa entre meu avô e a mãe de Matthieu, Héloise. Ela desobedeceu ao pai ao se casar com um pintor de talento discutível. O velho Duval nunca a perdoou por isso, pois nunca acreditou no amor e sempre foi partidário da idéia de que as uniões arranjadas tinham mais chances de sucesso. O tempo provou que ele estava com a razão. O casamento de titia fracassou, enquanto que o de meus pais, que foi combinado, deu certo. Fez uma pausa, examinando-a com olhos frios e depois prosseguiu: — Como pode ver, não foram os sentimentos mais nobres que me levaram a procurá-la. Tudo isso pode lhe soar estranho, mas faz parte da formação que tive, ma chérie. Meu avô deu-me a pouca afeição de que dispunha e empenhou-se em me forjar tão duro quanto o aço. Usou toda sua experiência acumulada em sessenta e sete anos para introduzir-me no mundo dos negócios e, além de treinar-me para cuidar das metalúrgicas, ensinou-me a ser ambicioso. Assim, para obter a posse do castelo, até aceitei me casar com uma “feiticeira ruiva e de pele branca” como o velho a chamava. Eu sentia que este castelo me pertencia e faria qualquer coisa para conquistá-lo. — Compreendo — disse Glenda, num esforço sobre-humano para dominar a vontade de gritar. Que outra reação deveria ter diante de um homem que nem ao menos fingia que seu único interesse nela era assegurar a posse daquele amontoado de torres e telhados, cuja história se perdia na antigüidade? Malraux pareceu adivinhar o que lhe passava pela cabeça naquele momento e foi mais longe em sua rudeza: — Francamente, Glenda, é impossível que não tenha suspeitado de que eu ganharia mais do que a sua pessoa com a nossa união. Ou sua ingenuidade é tanta a ponto de ter acreditado que eu estivesse apaixonado, depois de todos estes anos? Para falar a verdade, achei-a uma bela menina, e sua gulodice mal disfarçada até que era engraçada. Ainda come chocolates com a mesma satisfação? Meu avô até comentou que você ficaria cheia de marcas na pele e que seria obrigada a casar-se com um véu no rosto. Seus olhos percorreram as faces de Glenda, observando cada detalhe da pele alva e perfeita, detendo-se nas maçãs do rosto e na testa, onde os cabelos ruivos caíam ligeiramente. — Não vejo nenhum sinal de espinhas, Glenda. Por que então usou o véu? — Para que as pessoas não me vissem! Todos esperam que as noivas estejam radiantes, não é mesmo? E eu me sentia… trágica! — Trágica não é a palavra adequada quando se está recebendo as chaves de um castelo. Pelo menos não foi isso o que você afirmou diante do leito de meu avô. Ao contrário, declarou que seu sonho era viver como uma princesa num castelo no alto da montanha. — Meninas de escola falam qualquer bobagem! Ela se sentiu repentinamente tão fraca que teve que se sentar. Naquele instante percebia que, com exceção da semelhança física, não tinha nada em comum com a filha de Edith Hartwell, que devia ter sido muito precoce e nada tímida, enquanto ela era naturalmente reservada. Teria sido pelo menos suportável, se pudesse ter acreditado que ele aceitara o casamento em respeito à vontade do avô. Mas agora ficava claro que agira como um interesseiro, um simples mercenário. Por isso, quando Glenda o encarou, a aversão que a atitude daquele homem lhe inspirava estava estampada no rosto. Era inevitável que ele tirasse conclusões erradas daquela expressão e pensasse que a repulsa dela se devia às cicatrizes da queimadura. E embora Glenda soubesse que ele precisara ficar internado durante longo tempo num hospital, o sentimento de solidariedade e o respeito a seu sofrimento não implicavam nenhuma aceitação dele como homem. Ele parecia ser tão implacável para conseguir o que queria quanto o nobre que um dia foi o senhor daquele lugar… — Espero que você não tenha se tornado uma mulher manhosa, doentia ou angustiada. Quando menina você era muito cheia de vida, mas sua aparência atual é de alguém completamente esgotada. Glenda ficou em silêncio por alguns instantes, tentando se lembrar do que Edith lhe contara sobre sua verdadeira filha. Apesar do aspecto saudável, a menina tinha problemas de coração e sua morte súbita se deveu a um ataque cardíaco num cruzeiro pelo Mediterrâneo. Malraux tinha reparado na gulodice da garota em sua breve passagem pelo castelo. Também não lhe escapara seu espírito brincalhão e sua energia física e emocional. Glenda disse a si mesma que, se estava vivendo uma mentira, não faria diferença se acrescentasse outra. Então falou: — Não está sabendo sobre meu estado de saúde? Será que minha mãe escondeu de seu avô que eu tenho uma deficiência cardíaca? Foi a vez dele ficar calado, meditando sobre o significado daquelas palavras. Glenda seria capaz de imaginar o que lhe passava pela cabeça: primeiro, a maneira pouco comum com que ela tremera no altar; depois o fato de ter desmaiado na sacristia. Naquela ocasião, branca como um fantasma, fora socorrida por ele que a levantara nos braços, enquanto sir Arthur a fez tomar uma dose de conhaque da garrafinha que sempre carregava consigo. Considerando-se que essa bebida era conhecida como um estimulante cardíaco, havia razões de sobra para que aquela história soasse verossímil. — Dieu! — exclamou, a testa vincada por uma profunda ruga de apreensão. — Sua mãe não disse uma palavra sobre o assunto. Nunca deu a menor indicação de que havia alguma coisa errada com você! — Mas que importância tem isso? — perguntou Glenda, enquanto inconscientemente pousava a mão sobre o coração. — O que interessa é que você conseguiu o que queria: o castelo. — Não queira bancar a colegial! Tenho uma empresa sólida, que pretendo passar para um filho, e desejo também deixar este castelo paraele, sem as malditas maquinações como as de que fui vítima! Entende o que estou dizendo ou é tão estúpida quanto doente? O rosto dele tinha se tornado terrível, tamanha a raiva que sentia. As cicatrizes estavam mais marcadas e os olhos brilhavam febris, como se algum fogo o consumisse internamente… da mesma maneira que o ferro brilha na fornalha, quando está sendo fundido. — Então ambos fomos enganados, Malraux. — Acredita seriamente nisso? — perguntou ele, rudemente. — Um filho representa muito para mim… muito mais do que você. Essa afirmação cruel penetrou a mente dela como se fosse ferro despejado num cadinho, onde seria moldado tão duramente que se amoleceria outra vez se retornasse à fornalha. — Eu… eu nunca esperei significar alguma coisa para você. Foi suficiente olhá-lo para perceber como você era realmente. — E como sou, madame? — Um homem sem sentimentos, moldado à imagem e semelhança de Duval Malraux. Provavelmente ele o criou para ser impiedoso como é agora… E não acredito que nada o tornaria mais compreensivo. — Não mesmo. Com uma das mãos ele tocou as cicatrizes que lhe desfiguravam o rosto. Segundo sir Arthur Brake, havia outras marcas pelo corpo, principalmente nos ombros. Ela estremeceu ao imaginar o corpo dele sob o terno claro que estava usando, e que lhe realçava o tom trigueiro da pele. Além da evidente dureza, sentia nele uma profunda sensualidade latina, queimando com violência cada músculo daquele homem atlético e viril. Não devia ter sido somente por causa do trabalho com a fundição que ele se mantivera afastado de Barton-le-Cross. Seguramente tinha havido muitas mulheres em sua vida, o que tornara pálida e sem graça a recordação da menina que tinham lhe impingido como esposa. — Não pretendo ser enganado — disse ele, os olhos fixos no rosto suave e branco, e depois nos cabelos, que mais pareciam uma auréola de fogo. — Quero que o nome d'Ath continue, tanto ligado às fundições como ao castelo, que finalmente é meu. Agora, minha cara, vá se arrumar, e depois jantaremos e beberemos ao futuro. Estendeu a mão e ajudou-a a se levantar. Embora Glenda fosse mais alta que a maioria das moças, não chegava sequer ao queixo dele. Malraux puxou-a para si, e ela sentiu o calor de seu corpo, fazendo esforço para suportar aquele abraço. Imaginou que mesmo tendo acreditado em sua mentira sobre a doença do coração, ele não pretendia mudar de planos. Isto era visível pela maneira insinuante com que se colava a ela. Sem procurar disfarçar o quanto aquele contato lhe parecia falso e desagradável, ela se manteve esquiva e não fez um único movimento para corresponder ao seu abraço. Sentindo sua reação, ele a obrigou a levantar o queixo e ficou contemplando os olhos dourados, sombreados por pestanas espessas e longas, mais escuras do que os cabelos cor de fogo. Glenda não era bonita no sentido clássico do termo, mas possuía aquela beleza etérea, encontrada nas moças que vivem nos vales selvagens e misteriosos do País de Gales. Não quero que meu filho seja um covarde. Por isso, Glenda, não precisa ter medo de mim. — Quem lhe disse que tenho medo de você? Nunca lhe daria essa satisfação. — De você prefiro outro tipo de satisfação. Dizendo isso, inclinou a cabeça e seus lábios cobriram os dela, arrancando-lhe um grito, que foi abafado pela selvagem insistência de um beijo. Foi como se sobre ela se abatesse uma força sombria e poderosa, impossível de ser enfrentada. Então viu-se envolvida pelo turbilhão daquele beijo, agarrada pelos braços musculosos, mal podendo respirar até que, afinal, ele levantou a cabeça. Depois olhou-a cheio de desejo… mas soltou-a. Em seguida Malraux fez um gesto indicando a escada em espiral. — Vá se preparar para o jantar. E ponha algum blush no rosto. Não quero vê-la parecendo um fantasma.
A primeira coisa que Glenda notou ao entrar no quarto foi uma finíssima camisola cor de damasco estendida na cama, ao lado do pijama de seda marrom de Malraux. Ficou imóvel, observando aquela combinação insólita. Em sua mente dançavam imagens perturbadoras, e ainda sentia a profunda emoção em que se vira mergulhada quando há poucos instantes Malraux a tomara nos braços, dando-lhe uma amostra de como um homem podia ser levado pela paixão, sem ter nenhuma necessidade de sentir amor pela mulher que beijava e possuía. “Você não representa para mim nem a metade do que um filho representa…” — Malraux tinha acabado de lhe dizer isso. Ela devia ter imaginado… devia ter pensado que um homem que não se preocupa em visitar a moça com quem vai casar-se, era um homem que tinha feito uma encomenda, e que esperava que esta encomenda lhe fosse entregue perfeita e no prazo certo. Ela era esta encomenda! Era isto o que ela significava para Malraux d'Ath. Seus sentimentos não lhe importavam nem um pouco. E provavelmente nem passara pela cabeça dele que ela poderia amar outro homem.
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