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CAPÍTULO III
Depois do jantar daquela noite, Dionne subiu para o quarto para escrever para Clarry. Precisava fazer algo que nada tivesse a ver com os St. Salvador e com tudo que lhe havia acontecido. O dia todo tinha pensado no acidente de Yvonne, até ficar com uma tremenda dor de cabeç a. Nã o conseguia entender o porquê da falta de sentimento de Louise. Que terrí vel ficar paralí tica, talvez por toda a vida! Esqueceu a malí cia de Yvonne no passado. Tudo de que se lembrou foi da habilidade dela sobre os cavalos, sua excelente forma fí sica, tudo destruí do no espaç o de alguns minutos de descuido. E Yvonne nã o era o tipo de pessoa que aceitava as coisas com resignaç ã o. Dionne pegou caneta e papel, mas nã o fez esforç o algum para escrever. Nã o pô de evitar de ficar pensando em Franç ois e na sua situaç ã o desesperadora. Era um homem tã o viril, tã o forte e cheio de vitalidade! Será que Yvonne o culpava? Será que era essa a causa daquele olhar derrotado e cansado que tinha dilacerado o coraç ã o de Dionne? Segurou o queixo entre as mã os, tentando controlar à s lá grimas que ameaç avam rolar pelas faces. Nã o devia ter ido. Nã o devia ter deixado Clarry persuadi-la de que devia fazer isso por Jonathan. O que adiantaria, se nada conseguira até agora, exceto sentir-se pior do que nunca, depois de saber o que tinha acontecido ali? Se as coisas fossem diferentes!, pensou, desesperada. Se ela e Franç ois nunca tivessem se separado. Certamente o que haviam compartilhado significara algo para ele. O relacionamento deles tinha sido tã o forte e violento; e a separaç ã o, tã o rá pida e inesperada. Mesmo agora, sentia a dor angustiante daquele adeus, tornada cada vez mais comovente e desesperadora por causa do que acontecera depois. E aquela mulher indomá vel, Gemma, com suas superstiç õ es e estranhas crenç as religiosas, també m tinha tido um papel importante encorajando-os a pegar o que era deles por um direito tã o antigo como as origens medievais dos cavalos brancos da Camargue. Mas nã o tiveram o segundo gostinho de felicidade. Dionne enterrou o rosto nas mã os. A vida, à s vezes, pode ser tã o injusta! Quando parecia que o cé u estava ao alcance das mã os, ele era arrebatado com uma insensibilidade, que podia destruir o coraç ã o e a alma dos amantes. Com a respiraç ã o entrecortada, a moç a levantou-se e foi até a janela, observando a pequena praç a. As sombras iam se alongando, na medida em que o sol se punha no cé u, mas havia uma brisa suave e um perfume no ar que a fizeram ter vontade de sair para a rua, longe do aperto daquele quartinho de hotel. Num impulso, foi até a porta e desceu a escada, até alcanç ar aquele ar fresco da tarde. Usava um vestido simples de jé rsei cor-de-violeta que acentuava o colorido de seus olhos. Era um vestido longo, que Clarry comprara para que ela fosse a uma festa de Natal. Acabou nã o indo, mas o vestido era um de seus prediletos e perfeito para aquela é poca do ano, na Camargue. Fora do hotel, caminhou a esmo, sem saber aonde ir, já que só tinha descido para respirar. As poucas pessoas que estavam nas ruas formavam grupos de dois ou trê s; apenas ela estava sozinha. Começ ou a andar, resolvida a ir tomar um café num bar ali por perto. Ela se sentiria menos solitá ria entre gente barulhenta, que se divertia. Um carro freou bem perto, quando atravessava a rua e dois jovens franceses se debruç aram na janela, perguntando seu nome e para onde ia. Eles a convidaram a acompanhá -los e insistiram. Dionne fez o possí vel para ignorá -los e para que a deixassem em paz. Mas, quando pensou que iam embora, um dos rapazes saltou e se aproximou, atrevido. — Ah, mademoiselle, chè re mademoiselle, ne voudriez-vous pas venir avec mê s amis et mó i? — Quer sair da minha frente? — Dionne foi obrigada a parar, porque ele bloqueou-lhe a passagem. — Oh, anglaise! Mais si belle anglaise, eh? — Olhou para os amigos e outro dos rapazes abriu a porta do carro, convidativo. Dionne ficou visivelmente perturbada. Aquela parte da rua estava quase deserta, e temia que a forç assem a acompanhá -los. Eles tinham estado bebendo e nã o eram totalmente responsá veis por seus atos, o que nã o facilitava em nada as coisas para ela. — Quer me deixar passar, por favor? Tentou esconder o tremor da voz, mas o jovem à sua frente avanç ou para ela, como se fosse agarrá -la. Agora, Dionne estava assustada de verdade e recuou, chocando-se contra o corpo rí gido de um homem. Imediatamente, entrou em pâ nico. Virou-se à s cegas, golpeando seu peito com os punhos, pensando ser outro daqueles rapazes. Mas o homem que empurrou seu corpo tré mulo para o lado nã o era nem amoroso nem jovial. Era alto, magro e violento. Agarrou o bê bado atrevido pela camisa e jogou-o contra o carro, fazendo com que perdesse o equilí brio e batesse a cabeç a no capo. Todo o tempo, xingava o outro em francê s, e Dionne nã o soube como o rapaz, assustado e tonto como estava, conseguiu encontrar fô lego e forç as para fugir. Os amigos já o esperavam com a porta aberta, e o automó vel partiu, cantando pneus e levantando uma nuvem de poeira. Foi apenas depois disso que o homem virou-se para ela. Seus joelhos tremeram, quando percebeu quem tinha sido seu salvador. Franç ois olhou-a por um instante. Depois disse: — Vamos! Acabou, agora. Só gostaria de saber o que você pensa que está fazendo, andando na rua a esta hora e, ainda por cima, sozinha. Dionne controlou-se com dificuldade. — Saí... para um passeio, é tudo. Certamente uma mulher pode sair para um passeio sem ter, obrigatoriamente, que passar por esse tipo de vexame. — Passou as mã os pelos cabelos, prendendo algumas mechas soltas. Sentia-se ridí cula e sua cabeç a doí a. — Eu... eu agradeç o... o quê você acabou de fazer por mim. Franç ois fez um gesto impaciente. — Nã o foi nada. Mas nem quero pensar no que poderia ter acontecido se eu nã o aparecesse! — Franziu o cenho e olhou para ela. — Dionne, ouç a: aqui nã o é a Inglaterra e com a sua aparê ncia... Parou, procurando nos bolsos uma caixa de cigarrilhas. Tirou uma, acendeu displicentemente, e depois falou: — Venha! Estou aqui para falar com você. — Louise contou que fui até a sua casa, naturalmente. — Por que nã o? E você nã o foi até a casa... Dionne levantou os ombros. — Como poderia? Franç ois estudou o pá lido oval de seu rosto por um instante. Depois, sem fazer nenhum comentá rio, começ ou a andar pela calç ada. Dionne se viu forç ada a segui-lo, imaginando aonde iriam. Nã o teve que imaginar por muito tempo. Estacionada na praç a, diante do hotel, estava uma caminhonete Citroen coberta de poeira. Franç ois abriu a porta ao lado do motorista e disse, rí gido: — Entre. Era uma ordem, e Dionne obedeceu, sentindo que as pernas nã o a sustentavam mais. Franç ois deu a volta e sentou-se a seu lado. A moç a o observou disfarç adamente. Tinha uma aparê ncia perturbadoramente má scula, aquelas calç as pretas, botas até os joelhos, camisa azul-escura aberta no peito, revelando a pele queimada de sol. Havia um medalhã o preso numa corrente no pescoç o e quase escondida entre os pelos do peito, mas Dionne sabia o que significava aquele medalhã o. Era o emblema de Sara, a menina serva da lenda lê s Saintes Maries de la Mer, adorada e santificada pelos ciganos de toda a Europa, cujo dia de festa era o mais importante para aqueles povos nó mades. Seu coraç ã o disparou, enquanto observava aquela pele queimada e recordava sua maciez. Sentia um desejo incontrolá vel de esticar a mã o e tocá -lo, e sua respiraç ã o tornou-se ofegante. Era desesperador tentar se controlar e reprimir seus impulsos. Franç ois deu a partida e a caminhonete pesada saiu do estacionamento. Ela queria perguntar aonde iam, mas reprimiu a curiosidade també m. Já era bastante estar ali com ele, nã o queria estragar tudo, procurando respostas para perguntas que só poderiam irritá -lo e provocar uma briga. Ele dirigiu para fora da cidade, seguindo a estrada nordeste, em direç ã o a Lê s Baux. Passaram pela cidadezinha adormecida de Fontvieille e chegaram ao sopé da cadeia de montanhas da qual Lê s Baux fazia parte, com seus castelos cinzentos em ruí nas e torres desmoronadas. Franç ois encostou o carro no acostamento e abriu a janela. — Bien? — ele disse. — O que está pensando agora? Dionne sacudiu a cabeç a. — Nada. E era verdade. Naquele momento, sua mente estava vazia de qualquer imagem real ou irreal. A proximidade dele era enervante. com um gesto decidido, abriu a porta e desceu, tremendo ligeiramente, quando o ar gelado da noite a envolveu. Era muito mais frio ali do que em Aries. Franç ois també m desceu e, por um momento, ficou fitando as montanhas rochosas e o cé u cinzento, onde algumas estrelas tí midas ameaç avam brilhar. Depois, olhou para ela, e o tremor que Dionne sentia agora nã o era mais de frio e, sim, de apreensã o. — Por que você nã o me deixa em paz? — Ele perguntou, com voz estrangulada. — Por que veio até aqui agora? — Seus olhos brilhavam estranhamente, e Dionne afastou-se, assustada. — Você sabe por quê. — Nã o! Nã o, eu nã o sei! — Franç ois gritou, feroz. — Você diz que precisa de dinheiro e, mesmo assim, se recusa a me contar o motivo. Espera a minha ajuda e se comporta como se eu tivesse obrigaç õ es para com você e nenhum direito! — Nã o torne as coisas tã o difí ceis! Uma vez, você nã o criou tantos problemas para me oferecer dinheiro! A expressã o de Franç ois ficou sombria. — O que quer dizer com isso? — E importa? — Ela deu um chute numa pedra, irritada. — Por que me trouxe até aqui? Por que você voltou? Vai me ajudar? Franç ois olhou para ela, com impaciê ncia. Depois, passou a mã o pelos cabelos grossos e escuros. — Eu vim... porque tenho um convite a lhe fazer. Gemma quer ver você! — O quê? — Dionne arregalou os olhos, espantada. — Mas... como é que Gemma sabe que estou aqui? — Como é que Gemma sabe das coisas? Oh, Deus, imagino que Louise tenha lhe contado. Tem importâ ncia? Você vai aceitar? A moç a respirou fundo. — Eu... acho que nã o. Sua mã e nã o me quer lá. Que bem traria? Alé m disso, sua esposa... Franç ois agarrou seu braç o, num gesto cruel e irritado. — Minha esposa? Que esposa? Nã o tenho nenhuma esposa... ainda! O coraç ã o de Dionne disparou, descompassado. — Louise me contou... Sobre Yvonne e o acidente. Ela... ela disse que Yvonne mora com você. Franç ois fitou-a de cima a baixo. Seu olhar era frio e penetrante. — Yvonne está conosco — corrigiu, — Ela é uma invá lida inú til! Jane morreu. Onde mais poderia viver? Mas nã o é minha esposa. Dionne tremia violentamente, debatendo-se e tentando libertar-se do braç o, que ele segurava com forç a. — Meu pulso... Você está quebrando meu pulso! — perturbado, Franç ois olhou para as marcas avermelhadas na pele dela e murmurou: — Dieu, Dionne, sinto muito. Levantou seu braç o, para examinar o machucado. Sua mã o lutou na dele, como um pá ssaro aprisionado e ela sentiu seu olhar apaixonado. Dionne pressentiu o perigo. com um grito torturado, afastou-se, fugindo para o outro lado do carro e esfregando o pulso dolorido. — Eu... eu acho que deví amos voltar. — Falou, com voz insegura. Franç ois virou as costas para ela e passou as mã os pela cabeç a, num gesto de desalento. Dionne observava, incapaz de afastar os olhos dele. Depois, as mã os morenas caí ram ao longo do corpo e ele voltou-se para encará -la. Mas logo desviou o olhar e sentou-se à direç ã o sem dizer mais nada. Ela entrou no carro, devagar, evitando tocá -lo ou aproximar-se muito, arrumando a saia comprida sobre as pernas esguias. Mas ele nem sequer olhou. Esperava que Franç ois desse partida e saí ssem dali, mas suas mã os permaneceram imó veis sobre a direç ã o. Depois de um longo silê ncio, ele falou: — Se você concordar em vir até em casa para ver Gemma, eu empresto o dinheiro de que precisa para seu propó sito secreto. — Nã o pode estar falando sé rio! — Por que nã o? — A minha ida lá... só traria aborrecimentos. Você sabe que sua mã e odiaria. Ela... ela me detesta! E quanto a Yvonne... — A voz de Dionne sumiu. Ele virou-se para olhá -la no interior sombrio do carro, com muito brilho naquele olhar perturbador. — Talvez eu ache bastante tentadora a ideia de você ter de enfrentar aquelas duas. Dionne levou as mã os ao estô mago. — Você nã o pode ser tã o cruel! — Nã o posso? Você ficaria surpresa se soubesse as coisas que sou capaz de fazer! — Franç ois, por favor! — implorou, com os olhos começ ando a brilhar de lá grimas. — Isso só vai causar dor e sofrimento para todos! Acredito que você nã o queira uma coisa dessas. — Por que nã o? Pode ser divertido. Ele ligou a luz, de repente, e observou o rosto suave e altivo da moç a. Depois, pegou sua mã o esquerda, que estava pousada no colo. Era fina, elegante e sem enfeite nenhum. Dionne nã o tentou retirá -la, mas ele a soltou, com um gesto irritado. — Diga-me uma coisa: esse homem, para quem você precisa entregar o dinheiro, ele pelo menos ama você? — Nã o há homem algum! Os olhos de Franç ois se tornaram cé ticos. — Entã o, precisa de dinheiro para você mesma? Dionne corou. — Preciso. — Por quê? Qual é o motivo? Você diz que nã o está grá vida, que nã o está com problemas desse tipo. Entã o, o que é? O que poderá ser? — Oh, Franç ois, por favor! Pare de me torturar desta maneira! A voz dela estava tré mula e, com as costas da mã o, secou as lá grimas. O rosto de Franç ois ficou sombrio. Sem nem mais uma palavra, ele deu partida no carro. Levou-a em silê ncio, de volta ao hotel. Apenas quando pararam diante da porta, Dionne falou novamente. Tinha que dizer algo, dar uma resposta, e sabia que ele estava ciente de seu dilema, tanto quanto ela, mas nã o a ajudaria. — O que você pretende fazer? — Perguntou, ainda insegura. — Isso depende só de você. Dionne passou a mã o pelos cabelos. — Você pretende levar adiante... o que disse? Vai me obrigar a ir até a casa? Ele recostou-se, indolente, no assento, os dedos longos batendo num ritmo contí nuo contra a direç ã o. — Se quiser a minha ajuda... sim. Dionne encolheu os ombros e disse: — Muito bem. Entã o, quando? — Você virá? — Seus olhos apertaram-se. — Tenho escolha? — Parece que nã o, mesmo. Deve precisar muití ssimo desse dinheiro, Dionne, e nã o posso acreditar que seja a ú nica pessoa envolvida. Há razõ es mais fortes para aceitar tal sacrifí cio. Ela abriu a porta do carro. — Posso ir agora? — Um momento. Virei buscá -la depois de amanhã. Amanhã tenho que ir até Nimes. Sinto demorar, mas nã o tenho dú vida de que pode esperar. Se é que é tã o importante assim para você! Dionne apertou os lá bios. Ele podia ser estupidamente insolente quando queria! E suas palavras duras eram como punhais, rasgando seu coraç ã o. Como é que podia acreditar que ele a achava algo mais do que apenas fisicamente perturbadora? Era ó bvio, por sua atitude, que considerava seu pedido de ajuda apenas um capricho feminino, com fins fú teis e egoí stas. Saltou do carro, antes que Franç ois pudesse dizer alguma coisa mais. Ele curvou-se para trancar a porta atrá s dela e deu a partida, cantando os pneus. Dionne entrou no hotel vagarosamente, sentindo-se exausta. Deixou-se dominar pela desolaç ã o e pela impotê ncia, imaginando, desesperada, como é que ia enfrentar os pró ximos dois dias, até vê -lo novamente... No entanto, o dia seguinte nã o foi tã o opressivo como esperava. Ningué m podia ficar imune ao calor do sol da primavera, aos botõ es em flor, aos canteiros desabrochando seu colorido, e Dionne sentiu-se reanimada por toda aquela beleza. Resolveu escrever a Clarry de manhã e depois foi colocar a carta no correio. Mencionou que havia entrado em contato com Franç ois e que esperava ter boas notí cias dentro de poucos dias. Mas foi só o que escreveu. Dificilmente poderia contar a Clarry que ele nã o sabia nenhum dos fatos do caso. Ou que ela nã o tinha a menor intenç ã o de contar-lhe esses fatos. Se a consciê ncia a incomodasse um pouco que fosse, bastaria lembrar as atitudes de Franç ois para se sentir plenamente justificada. Ele nã o estava em condiç õ es de saber a verdade. Era bastante possí vel que, se tomasse conhecimento da existê ncia de Jonathan, fizesse o possí vel para privá -la do filho... apenas para magoá -la. Quanto a Jonathan ser filho dele també m, nã o era relevante. Mas sua consciê ncia lhe dizia que, apesar de tudo isso, Franç ois tinha todo o direito de saber a verdade. Saber que era o pai de Jonathan! Foi muito bom que uma visita inesperada estivesse a espera dela no hotel, ou seu dia teria sido um inferno. Sendo assim, ficou até aliviada ao ver o insistente Henri Martin. Ele estava sentado na recepç ã o, e seu rosto tornou-se ansioso, quando a viu atravessando o hall em direç ã o da escada. — Mademoiselle King! Sua voz a fez parar. Virou-se para ele, surpresa. — Ora, monsieur Martin! Mas o que está fazendo por aqui? Henri abriu os braç os num gesto de desculpa. — Vim me oferecer como seu guia para o almoç o — confessou. Perdoe, se tomei a liberdade de vir até aqui, mas talvez dê um jeitinho de nã o ficar zangada comigo. Dionne suspirou. Apesar de, a princí pio, querer rejeitá -lo, algo fez com que hesitasse. Quem sabe nã o seria bom para ela sair do hotel? Longe de associaç õ es de ideias e lembranç as que lhe tiravam a paz. Henri Martin, pelo menos, nã o estava ligado aos seus assuntos pessoais. — É muito amá vel de sua parte, sr. Martin. Aceito, com prazer Mas terá que me dar uns minutos para subir e trocar de roupa. O rosto de Henri revelou toda a alegria que sentia. Ele realmente é um homem bonito, ela pensou. Vestia um terno cinzento muito bem cortado, com uma camisa de canbraia de linho imaculadamente branca. Era de uma elegâ ncia ú nica naquela regiã o, onde a maioria dos homens se vestia como fazendeiros, igual a Franç ois St. Salvador. Houve é poca em que ele també m usava roupas elegantes. Apesar de terem sido raras as vezes em que Dionne o vira assim, lembrava-se de que tinha uma aparê ncia perturbadora e inteiramente devastadora, com sua pete cigana — herdada da avó — ainda mais valorizada pelo garbo de um gardien. — Vou ficar encantado de esperar o tempo que quiser — Henri afirmou, galante. Dionne devolveu-lhe o sorriso, antes de subir a escada, apressada. Quando desceu, usando um vestido curto de linho verde, parecia incrivelmente jovem, e ficou contente ao ver o olhar de admiraç ã o de seu novo amigo. Almoç aram num restaurante enorme, no centro de Aries, onde Henri era obviamente muito conhecido, e Dionne começ ou a pensar qual seria o seu ramo. Comeram rins no espeto com tomates e cogumelos e uma salada. Apesar de ter dito que nã o tinha muita fome, ela comeu com apetite. Era jovem e saudá vel, e a companhia de Henri, tã o relaxante, depois daquela tensã o absoluta dos encontros com Franç ois. Depois do almoç o, ele sugeriu um rá pido passeio até a parte superior do vale do Ró dano, para ver os vinhedos, mas Dionne recusou. Nimes també m era naquela regiã o, e ela nã o tinha vontade alguma de se encontrar com Franç ois, estando na companhia de Henri. Alé m disso, ele poderia pensar que ela o estava seguindo, o que seria intolerá vel. Em vez disso, foram até Lê s Saintes Maries de la Mer e passaram duas horas agradá veis andando na praia. Dionne soube de muitas coisas sobre Henri, naquela tarde na praia. Por exemplo, que a famí lia dele era dona de uma loja enorme em Aries, com filiais em Avignon e Marselha, e que Henri tinha estudado contabilidade e economia em Paris para se preparar para assumir, um dia, a direç ã o da companhia. Dionne ficou lisonjeada por ele demonstrar tanto interesse por ela Mas nã o havia dú vida de que, em Aries, Henri devia ser considerado um partidã o e que seus pais, como os pais de Franç ois, nã o aprovariam que se envolvesse com uma professorinha inglesa... e pobre. Deu poucas explicaç õ es por estar naquela parte da Franç a, deixando-o supor que era apenas uma turista. Mas, enquanto conversavam, Dionne pensou: era bem prová vel que Henri conhecesse Franç ois e toda famí lia. A propriedade dos St. Salvador era, afinal, uma das maiores e mais pró speras da regiã o, e os vinhedos, no vale do Ró dano, podiam muito bem produzir o vinho vendido nas lojas do pai de Henri. Mas recusou-se a continuar a pensar naquilo. Pelo menos naquele momento, pouco importava que Franç ois soubesse de sua ligaç ã o com o rapaz. De certa maneira, ela estava se divertindo. Há anos que nã o se sentia tã o à vontade junto de um homem. Henri era tã o encantador e bondoso, que a conversa fluí a com naturalidade. Discutiram sobre livros e pintura, descobriram que tinham o mesmo gosto em cinema, e ficou surpresa quando ele avisou que já eram quase cinco horas. Voltaram para Aries alegres e despreocupados. Mas, ao parar diante do hotel, Henri falou, ansioso: — Quando posso vê -la novamente? Esta noite? Dionne segurava a maç aneta da porta. — Nã o... hoje nã o, Henri. Nem amanhã. Já tenho planos para amanhã. Um compromisso... O rosto do rapaz ficou sombrio. — Entã o, quando? Dionne suspirou. Como poderia marcar alguma coisa, se nem ao menos sabia quanto tempo ficaria por lá? — Talvez seja melhor você me telefonar — sugeriu. — Está bem assim? Henri encolheu os ombros. — Está certo, se é o que quer. Mas você vai atender ao telefone, nã o vai? — É claro. Eu... eu me diverti tremendamente essa tarde. Por favor, nã o pense que estou inventando desculpas. Nã o tenho a menor intenç ã o de fugir de você. — Ó timo. Entã o, está combinado: vou telefonar. Depois de amanhã, oui? Dionne concordou e abriu a porta rapidamente, percebendo que ele se inclinava, como para dar um beijo de despedida. — Até logo — disse, acenando. — Au revoir, Dionne. Ele acenou de volta e o carro esporte partiu suavemente. Já no quarto, Dionne jogou descuidadamente a bolsa sobre a cama. Nã o tinha mentido. Realmente se divertira muito de uma maneira superficial. Henri nã o havia despertado nada de mais sé rio dentro dela, e sentia que podia ser natural com ele. Claro que realmente ela o atraí a, mas estava habituada à admiraç ã o casual dos homens: nã o passava de atraç ã o fí sica. Era tã o comum eles se interessarem apenas por seu corpo, que à s vezes chegava a pensar que nã o tinha mais nada a oferecer. Despiu-se, tomou um banho de chuveiro frio, vestiu um robe de seda e foi deitar-se. Sentia-se exausta, mas nã o era de admirar, naquelas circunstâ ncias. Nã o tinha dormido bem, desde que chegara. Sua mente muito ativa nã o a deixava relaxar completamente. A tarde na praia e a brisa do mar haviam feito bem a seus nervos. Agora, seus olhos estavam pesados e sentia a cabeç a vazia, leve. Dormiu e, quando acordou, já tinha escurecido lá fora. Sentiu-se fria até os ossos. Levantou e procurou o reló gio. Encontrou-o em cima da mesinha, onde tinha deixado antes do banho. Ficou horrorizada ao descobrir que era quase meia-noite. Inacreditá vel! Tinha dormido quase seis horas! Abriu a porta do quarto de mansinho. Nã o havia ruí do algum lá embaixo. Arrepiada, fechou a porta. Devia voltar para a cama. Nã o havia motivo para trocar de roupa e descer agora. Mas, novamente entre os lenç ó is, sentiu-se bem acordada. O luar entrava pela janela, inundando o quarto. De algum lugar distante, vinha o som nostá lgico de um violã o, tocando uma melodia triste, que mexia com sua sensibilidade. Pulou da cama, suspirando, e foi debruç ar-se na janela, olhando para a praç a sombria. As á rvores tinham as folhas num suave balanç o e o luar transformava seus troncos em fantasmas cinzentos. Um carro estava estacionado na praç a. Uma caminhonete cinzenta e poeirenta, meio escondida pelas á rvores. Dionne olhou atentamente e viu um vulto alto e magro de homem, com o cabelo prateado pela luz pá lida. Estava vestido de escuro, roupas de vaqueiro, e paletó desabotoado. Olhou para cima, de repente, procurando as janelas do hotel, e Dionne recuou, tré mula, ao reconhecer a figura altiva de Franç ois. Era ele. Franç ois ali, do lado de fora do hotel, andando para cima e para baixo, com insistê ncia, nervoso. Atreveu-se a olhar novamente. Ele estava inclinado sobre o capo do carro, acendendo uma cigarrilha. Por segundos, uma chama iluminou seu rosto. Depois, ele deixou a cigarrilha na boca e recostou-se na caminhonete empoeirada, os ombros jogados para trá s, numa atitude de desafio. Dionne prendeu a respiraç ã o, com um aperto na garganta. Por que ele estava ali, à quela hora da noite? Por que fizera todo aquele caminho para estacionar do lado de fora do hotel? Que motivos teria para sair da cama e ir até a praç a solitá ria? Cruzou os braç os diante do corpo, sentindo-se nauseada; uma ná usea que nada tinha a ver com fome. Por que tinha caí do no sono mais cedo? Por que nã o foi para a cama na hora normal, evitando assim ver algo que nã o devia? Voltou à janela. O carro tinha ido embora. A praç a estava deserta. Ficara tã o abalada em vê -lo, que nem ouviu o ruí do do motor!
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