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CAPÍTULO II
Dionne olhou para ele, incré dula, incapaz de aceitar que nã o se tratava de uma alucinaç ã o provocada pela saudade e o desejo de rever Franç ois St. Salvador. Uma saudade que, até aquele momento, existira apenas em seu subconsciente. Mas aquele nã o era o Franç ois de quem se lembrava. Aquele olhar gelado tinha pouco a ver com o homem caloroso e ardente que tinha conhecido e amado. As feiç õ es eram as mesmas, mas, ainda assim, diferentes. Observou os olhos cinzentos penetrantes, o queixo quadrado e arrogante, a pele morena e a barba escura, os lá bios cheios e sensuais. Sim, parecia o seu Franç ois, mas estava mais magro e o olhar tinha um brilho estranho, intenso e amargo. Linhas profundas marcavam a testa e os cantos da boca. Tinha um ar cansado e aborrecido. Apesar dos quilos que perdera, o corpo continuava musculoso e atlé tico, e a lã macia do sué ter revelava o peito forte que ela acariciara tantas vezes. Dionne sacudiu a cabeç a, sentindo-se muito fraca, de repente. O momento tã o temido tinha chegado e nã o podia fazer nada para evitá -lo. Que compaixã o podia esperar daquele homem de expressã o cruel, que a olhava com ó dio? Naquele momento de confronto, deu-se conta de que tinha sido uma tola, imaginando conseguir alguma coisa dele. Que loucura pensar que os anos tivessem trazido tanta experiê ncia e compreensã o para ele quanto para ela. — Bem, mademoiselle? Era a voz fria e impessoal de um estranho, e Dionne virou-se, incapaz de aguentar a acusaç ã o em seus olhos. Mas de que a estava acusando? Por que a encarava com tamanha desconfianç a? Tamanha aversã o? Será que a memó ria do passado era tã o desagradá vel assim para ele? — Eu... eu... Como é que me encontrou? — perguntou, numa voz fraca. — É tã o importante saber? Por que está aqui? O que quer de mim, agora? Aproximou-se e agarrou-a pelos ombros, fazendo com que o encarasse. Dionne nã o conseguia falar. — E entã o? Nã o desvie os olhos. Ou será que me ver novamente é tã o repugnante assim? A moç a estremeceu por causa do contato daquelas mã os e do olhar atrevido que percorreu seu corpo de alto a baixo. Sentia-se apavorada. — Bem — ele repetiu —, vou perguntar novamente, por que está aqui? — Vim... ver você. Eu... eu nã o sabia a quem mais recorrer. — Você está em apuros? — Olhou em volta. — Nã o podemos conversar aqui. Está hospedada neste hotel? — Quando ela fez que sim, ele sugeriu: — Entã o, vamos até o seu quarto. — Nã o! — o grito escapou, antes que pudesse sequer pensar no que dizia. — Nã o... quer dizer, nã o podemos ir para lá. É muito pequeno... um quarto, nada mais do que isso... — E daí? O que pensa que quero fazer no seu quarto? Lembrar os bons tempos? Dionne nã o podia explicar seus verdadeiros motivos. Nã o queria que nenhuma lembranç a dele ficasse naquele quartinho, para persegui-la durante a madrugada insone. — Há... há um salã o bem confortá vel aqui. Se nã o estiver ocupado... Abriu a porta e acendeu as luzes. Franç ois olhou para a sala vazia, carrancudo. — Muito bem. Serve. Seguiu-a e fechou a porta, encostando-se nela. De seu corpo emanava aquela forç a perturbadora que Dionne conhecia tã o bem, mas da qual nã o queria lembrar. Ele a encarou. — Agora, qual é o problema? O que está errado com você e por que precisa de minha ajuda? Dionne virou-se, desanimada, incapaz de enfrentar aquele exame ou de encontrar as palavras que havia ensaiado para lhe dizer. Ele começ ou a ficar irritado. — Pour amour de Dieu, Dionne, nã o sou um homem muito paciente. Diga o que precisa, e acabemos logo com isto. — Seus olhos se apertaram. — O que é? Dinheiro? A moç a corou. O cinismo na voz dele era como uma bofetada. Fazia com que parecesse uma prostituta, cobrando por seus serviç os. — Por que acha que posso estar precisando de dinheiro? — Nã o é isso o que todo mundo quer? Se foi o que veio me pedir, nã o há motivo para continuar com evasivas. Tanta encenaç ã o me aborrece profundamente. O que me intriga é por que você acha que eu lhe daria dinheiro. Dionne encarou-o. — Isso significa que está se recusando a me ajudar? — perguntou, desafiadora, reunindo todas as forç as para poder enfrentá -lo. Franç ois devolveu-lhe o olhar insolente, forç ando-a a desviar a vista. Era incrí vel que, depois de todo aquele tempo, ainda nã o conseguisse medir forç as com ele. Alé m do mais, tinha medo de que seus olhos revelassem o que sentia. Nã o podia negar que, apesar de tudo, sentia uma ponta de prazer em seu coraç ã o por vê -lo. Prazer misturado com o sofrimento que as lembranç as despertavam. Conhecia intimamente cada traç o daquele rosto forte e magro. Já tinha beijado o contorno firme do queixo e sentido a curva sensual daquela boca no corpo, que a deixava louca de paixã o e completamente descontrolada. Apesar de terem se passado trê s anos, era impossí vel nã o ficar afetada com tais recordaç õ es. Ele enfiou os polegares no cinto de couro grosso, e sem se importar em responder à pergunta da moç a, disse: — Você ainda nã o me contou por que precisa de dinheiro. É um assunto pessoal. Alé m disso, como já deixou claro que nã o vai me ajudar, nã o vejo por que eu deva lhe contar. Nã o declarei, categoricamente, que nã o ia ajudar. Você se ofende com muita facilidade, Dionne. Nã o pode voltar aqui, depois de trê s anos, e esperar as coisas e as pessoas iguais ao que eram. — Nã o espero nada disso. Compreendo perfeitamente que tudo muda. Por isso mesmo hesitei em vir procurá -lo. Nã o queria criar problemas desnecessá rios para você, nem me intrometer na sua vida. Franç ois dirigiu-se até ela, ameaç ador: — Acha mesmo que pode vir até aqui, sem se intrometer na minha vida? — perguntou, furioso. — Meu Deus, mulher! Somos seres humanos. Nã o autó matos. Sua simples presenç a já é uma interferê ncia. Faç a o que fizer, terá consequê ncias. Dionne tremeu, diante de tanta fú ria. — Você nã o entende, tive de vir. Nã o havia mais ningué m a quem pudesse recorrer. — E precisa de dinheiro? Ele estava se controlando com muita dificuldade. Quanto antes acabassem com aquela conversa, melhor. Disse, simplesmente: — Preciso. — Quanto? Dionne engoliu em seco. — Mais ou menos quinhentos mil... — Quinhentos? — Por aí. — Quinhentos mil, hein? — Insolentes, seus olhos percorreram o corpo elegante da moç a e pararam nos lá bios entreabertos. — Por que precisa de tanto dinheiro, Dionne? Está grá vida, por acaso? — Nã o! — Dionne respondeu, horrorizada. — Nã o! Como é que pode pensar uma coisa dessas? — Por quê? — ele interrompeu, com um olhar impiedoso. — Por que eu nã o poderia pensar uma coisa dessas? É um fato muito raro no seu paí s? Lá, os homens sã o diferentes dos de outros lugares do mundo? Nã o acredito. Você é uma mulher bonita, Dionne, sempre foi. Nã o imagina quantas noites fiquei acordado, lembrando como era bonita, deitada em meus braç os... — Deu de ombros, como arrependido da confissã o, e acrescentou, com frieza. — Certamente, outro homem deve ter conhecido o que nó s conhecemos... Antes que pudesse evitar, a mã o de Dionne golpeou-o no rosto com toda forç a. Depois, com um gemido abafado, ela passou por ele, abrindo a porta e correndo para o quarto. Deu duas voltas de chave e encostou-se na porta, toda tré mula. Mas nã o ouviu barulho de passos na escada e nenhuma batida raivosa. Apenas o ruí do de sua pró pria respiraç ã o entrecortada, que custou a voltar ao normal. Quando ficou claro que ele nã o a seguiria, jogou-se na cama, com os olhos secos e arrasada. Foi com muita relutâ ncia que Dionne levantou-se, na manhã seguinte. Tinha dormido mal e acordou com olheiras. Teve que descer para o café de ó culos escuros, para evitar o inevitá vel comentá rio do gerente amistoso. Tomou apenas duas xí caras de café preto, tentando analisar objetivamente sua situaç ã o. Se ao menos Clarry estivesse com ela... Se bem que tivesse certeza de que a outra nã o aprovaria o rumo que as coisas tinham tomado. Clarry gostava da verdade acima de tudo, mas, naquelas circunstâ ncias, Dionne nã o podia concordar com ela. Como teria coragem de revelar a Franç ois St. Salvador o que havia, realmente, por trá s de sua necessidade de dinheiro? Que reaç ã o ele teria, se confessasse? Que espé cie de migalha de compaixã o poderia esperar dele, depois da cena da noite anterior? Mas o bom senso sufocou seu orgulho. O que faria, se ele nã o voltasse? Sacrificaria sua ú nica chance, sacrificaria a saú de de Jonathan em nome do orgulho? Dionne levantou-se, decidida. Tinha de seguir com seus planos. Tinha de se humilhar diante de Franç ois St. Salvador e, se preciso, até permitiria que ele a degradasse. Por Jonathan. Mas... e depois? Sua cabeç a rodava. O que seria de sua vida se, depois de contar a verdade a Franç ois, ele quisesse a crianç a? O que lhe restaria? Nã o teria a menor possibilidade de vencê -lo nos tribunais. Ela, uma simples professora, com um salá rio minguado; ele, dono de um enorme patrimô nio na Camargue, com vinhedos no vale do Ró dano e uma fortuna imensa. Nã o. Sabia muito bem quem ganharia tal batalha. Nem por um minuto duvidava de qual dos dois ficaria com a guarda do menino. Começ ava a se arrepender amargamente por ter voltado para lá para pedir dinheiro a Franç ois. Talvez estivesse se arriscando demais. No entanto, de qualquer forma, nã o seria arriscado? Era possí vel que ele resolvesse fazer o empré stimo, sem mais perguntas. Uma sensaç ã o de pâ nico tomou conta dela. A quem mais poderia pedir ajuda? Fora Clarry, nã o tinha mais ningué m no mundo. Os amigos eram bons, naturalmente, mas nenhum deles poderia lhe arranjar tanto dinheiro. E de que outra forma Jonathan iria se curar daquela maldita tosse, que o mantinha acordado noite apó s noite? Cansara de se ajoelhar ao lado da caminha dele, rezando por um milagre que o tirasse daquele clima ú mido que estava destruindo seus pulmõ es. Milagres nã o aconteciam. Seus olhos se encheram de lá grimas. Aquele dinheiro representava tã o pouco para os St. Salvador. Era uma simples gota d’á gua no oceano. A famí lia nã o tivera a menor dificuldade para lhe dar dinheiro, trê s anos atrá s. Por que nã o fariam o mesmo de novo? Sacudiu a cabeç a, impaciente. Nunca deveria ter rasgado aquele cheque. Mas como iria adivinhar que um dia precisaria tanto daquela famí lia? Era outra linda manhã, o sol brilhava na torre da igreja a distâ ncia. Um grupo de cavaleiros passava, galopando no asfalto. Havia crianç as entre eles, montando com a mesma destreza dos adultos, e os cavalos eram cinzentos com caudas peludas, da bela raç a comum na Camargue. Dionne observou-os, até desaparecerem, invejando aquela gente simples, sem problemas. Depois, bateu com o pé no chã o, descarregando sua raiva. O que faria? Esperaria o dia inteiro, sem ter certeza de que Franç ois ia voltar? Ou iria procurá -lo? Se esperasse e ele nã o aparecesse, seria mais um dia perdido. Onde procurar por ele? Conhecia o caminho para a Fazenda St. Salvador, naturalmente. Tinha estado lá muitas vezes. Mas era uma propriedade particular e seria uma intrusa, agora. Nã o tinha a menor dú vida de que a mã e de Franç ois sentiria um grande prazer em expulsá -la dela. Por outro lado, nã o podia ficar no hotel, esperando. Seus nervos já estavam aos pedaç os. A ú nica coisa que evitaria um colapso nervoso seria tomar uma decisã o e agir. Sem hesitar, voltou para o quarto e trocou de roupa. Vestiu calç as compridas e camisa. Os cabelos estavam presos naquele coque comportado e severo que vinha usando ultimamente e que esperava que lhe desse uma aparê ncia mais adulta e sé ria. Nã o precisava se arrumar toda. Nã o queria impressionar ningué m na Fazenda St. Salvador. Depois de encher o tanque do Citroen, dirigiu para fora da cidade, seguindo a trilha poeirenta entre o rio e o pâ ntano. Um bando de patos selvagens cruzou o cé u, barulhentos, e, a distâ ncia, a plumagem cor-de-rosa de um grupo de flamingos tremia como uma miragem. As manchas coloridas entre os altos juncos revelavam-se flores aquá ticas e alfazemas que, de tã o frá geis, parecia difí cil de acreditar que sobrevivessem em tal lugar. Mais adiante, viu o que, um dia, a tinha enchido de alegria e excitaç ã o: os touros negros da Camargue. Havia uns doze, num pasto afastado do solo pantanoso. Ergueram a cabeç a, quando passou por eles, mas sem demonstrar grande interesse. Seus chifres eram ameaç adoramente curvos. Dionne agarrou com mais forç a o volante. Os animais tinham a marca do duplo S. A marca St. Salvador. Era gado deles. Nã o estou longe agora, pensou, agitada. Certamente, já entrara na propriedade da famí lia. Mais adiante, um grupo de cavalos cruzou a estrada, na direç ã o de um bosque de á rvores baixas e, quase escondido entre as folhagens, ela viu o colorido inconfundí vel de uma caravana de ciganos. Dionne pisou no freio e o carro parou com um solavanco. Observou a caravana. Apesar do desleixo, havia alguma coisa de familiar ali. Entã o, compreendeu o quê. Era a caravana de Gemma. Ela e Franç ois... Puxou o freio de mã o e desceu do carro. O que fazia a caravana de Gemma naquele lugar? Por que teria aquela aparê ncia de abandono? A idé ia que lhe veio à cabeç a deixou-a apavorada. Dionne afundou as mã os nos bolsos das calç as e aproximou-se lentamente dos arbustos. Nã o era possí vel. Gemma estava velha, claro, mas era uma mulher tã o ativa, tã o cheia de vitalidade. Nã o podia estar... morta! Ou podia? Parou na beira da estrada. A terra em volta da caravana era ú mida e nã o estava usando sapatos adequados para andar na lama. Alé m disso, era ó bvio que nã o havia ningué m na carroç a. As janelas estavam trancadas e sujas e em parte alguma se via sinal de vida. Dionne voltou para o carro, pensativa. Gemma tinha tanto orgulho de sua caravana! Era seu lar sobre rodas, como dizia, que mantinha sempre limpo e asseado. Olhou novamente para o toldo colorido, com um nó na garganta. Será que a velha tinha morrido? Seria essa a razã o da amargura de Franç ois? Ficou com o olhar perdido no vazio. Gemma era o tipo de pessoa que parecia que viveria para sempre, e a ú nica do clã St. Salvador que tinha mostrado apenas bondade para com ela. Um temperamento vivo e liberal, que fazia com que desafiasse os anos: a idade nã o fazia diferenç a, pois tinha uma alma eternamente jovem. A ideia de que talvez nã o estivesse mais lá para ampará -la fez com que Dionne desejasse nunca ter voltado à Franç a. O que faria agora? Voltar para o hotel ou enfrentar a esposa de Franç ois, a mulher que nunca escondera sua antipatia por ela e que a mã e dele preferira como nora, por ser filha de um grande proprietá rio de terras da regiã o? Deu partida no carro e esforç ou-se para pensar em Jonathan. Era por ele que estava ali. Se tivesse de sofrer humilhaç õ es, entã o, passaria por elas. Agora, o automó vel passava por um trecho de estrada menos pantanoso e, a distâ ncia, à sombra de um grupo de á rvores frondosas, avistou algumas casas. Pequenas construç õ es de bambu que brilhavam ao sol e pareciam desertas. Parou novamente, sentando-se no capo, admirou a paisagem. Alguma coisa se destacava no horizonte. Protegeu os olhos com as mã os, tentando distinguir as formas. Eram cavaleiros, os famosos gardiens da Camargue, que patrulhavam os rebanhos de gado e cavalos como tinham feito por muitos e muitos anos. Quando se aproximaram, Dionne viu que tocavam uma manada de touros negros e fortes, que a fizeram correr para procurar abrigo dentro do carro. A fazenda St. Salvador criava touros espanhó is para touradas, e nã o os musculosos, poré m menores, animais tí picos da Camargue. Um dos gardiens mais velhos foi até o carro a trote e tirou o enorme chapé u. — Bonjour, mademoiselle. Qu’est-ce que vous voulez? Dionne sorriu, mais confiante do que realmente se sentia. — Ou est monsieur Franç ois? — Lepatron, mademoiselle? Il n’est pá s ici. O homem devia estar fazendo confusã o. O patrã o era o pai de Franç ois. Por isso, corrigiu: — Non, non pas lepatron, mais monsieur Franç ois. — Monsieur Franç ois est lê patron. Dionne nã o entendia. Entã o, onde estava o pai de Franç ois? Mas nã o podia perguntar, pois nã o queria que o empregado percebesse que conhecia a famí lia. — Pardon. Je ne connais pá s bien lafamille. — Vous ê tes anglaise, mademoiselle, oui? — Oui. Parlez vous anglais? — Un peu, mademoiselle, un peu. — Ó timo, monsieur. Sabe onde está o sr. Franç ois? O homem olhou em volta e depois fitou Dionne. Seus olhos eram de um azul profundo, como nunca tinha visto. Suas mã os nodosas e o rosto pareciam talhados em mogno. — Ele pode estar em qualquer lugar, mademoiselle. Há muito para ser feito nesta é poca do ano. Quer que avise que está esperando por ele? Dionne sacudiu a cabeç a. Estava claro agora que ele a considerava uma intrusa. — Oh, nã o. Tenho de voltar para Aries. O senhor pode dizer a seu patrã o para me procurar lá? Basta falar que o recado é da moç a inglesa. — Bien sur, mademoiselle. O velho inclinou a cabeç a polidamente e, percebendo que esperava que ela se retirasse, Dionne deu partida no carro e manobrou para voltar pelo mesmo caminho pelo qual viera. Mas tirou o pé da embreagem muito tarde e o carro derrapou para trá s, as rodas escorregando no chã o barrento e desigual, caindo numa vala. — Droga! Recusando-se a ficar nervosa, saltou e foi dar uma olhada nos estragos. Nã o acontecera nada sé rio, mas uma das rodas traseiras estava na lona. Sem ajuda, nunca conseguiria sair dali. Olhou para o gardien, que se aproximava lentamente. — Tem uma corda, mademoiselle? Dionne controlou a raiva com dificuldade. Teve vontade de responder que nã o achava necessá rio andar com esse tipo de coisa, quando saí a para um simples passeio, mas limitou-se a fixar a roda danificada, como se a forç a de seu olhar fosse suficiente para tirá -la da vala. O homem fez a volta ao carro, coç ando o queixo. Sua calma chegava a ser enervante. — Eu tenho corda, mademoiselle — disse, tranquilamente, pegando uma na sela. — Aonde se amarra isso no carro? Sem responder, o velho abaixou-se e prendeu a corda firmemente no pá ra-choque. Feito isso, endireitou o corpo e dirigiu-se a ela: — Agora, a direç ã o. Vá virá -la... mais ou menos assim — e mostrou o que queria que fizesse. Dionne abriu a porta do carro, girou o volante, corrigindo a posiç ã o das rodas, e esperou que ele prendesse a corda na sela e montasse a cavalo. Entã o, enquanto o animal puxava, ela empurrava. Estava coberta de suor quando conseguiu tirar a roda da vala. Aí, ouviu um galope que se aproximava. Olhou em volta, nervosa. Era um cavaleiro sozinho. A princí pio, pensou que fosse um garoto. Depois, percebeu os cabelos castanho escuros caí dos nos ombros. Uma menina! Endireitou-se, apreensiva, enquanto a garota se aproximava, mas nã o estava preparada para a reaç ã o da recé m-chegada. — Dionne! Dionne, é você! Meu Deus, o que está fazendo aqui? Olhou para a menina, espantada, seu retraimento destruí do pelo prazer que havia na voz da outra. — Louise! Quase nã o a reconheci. Você era uma criancinha, quando... fui embora. — Eu já tinha catorze anos naquela é poca, Dionne. Agora estou com dezessete. Mas o que faz aqui? Veio para ver grand-mè re? Dionne sentiu-se tonta. Aquele era um imprevisto com o qual nã o contara. O entusiasmo de Louise parecia tã o verdadeiro, que nã o sabia o que responder. Virou-se para o gardien, que guardava a corda, e agradeceu calorosamente, procurando ganhar tempo para pensar no que dizer à garota. Assim que o homem se afastou, perguntou: — Você falou grand’mè re? Quer dizer... quis dizer... Gemma? — É claro. Naturalmente você nã o ia embora sem vê -la. — Eu... eu vi a carroç a e pensei... Oh, nã o importa. Olhe, Louise, esta nã o é uma visita social. — Fez um gesto desolado. — Acho que você ainda é muito jovem para perceber que eu nã o seria muito bem recebida. Os olhos da garota brilharam de lá grimas. — Grand’mè re recebe tã o poucas visitas... Mas, entã o, por que você está aqui? Pensei que Franç ois tivesse ido vê -la ontem à noite. — Você sabe sobre isso? — Mas é claro. Reconheci sua voz ao telefone. Fui eu quem disse a Franç ois que você devia estar lá no hotel. — E todo mundo... sabe? Louise fez uma careta. — Nã o. Todo mundo, nã o. Só Franç ois e eu. — Diga-me uma coisa, Louise, seu pai nã o está mais aqui? — Papai está morto — respondeu, sentida. — Morreu há dois anos. Franç ois está encarregado de tudo. Esta é a fazenda dele, e os touros sã o dele. Dionne estava surpresa e chocada. — Eu nã o fazia a menor ideia. Sua mã e ainda mora na fazenda? — Claro. E Yvonne. A notí cia foi como um soco em seu estô mago, apesar de nã o ser realmente nenhuma surpresa. — Oh, sim, Yvonne. Louise olhou para ela por muito tempo. — Você parece mais magra, Dionne. Como tem passado? Ainda leciona? — Ainda. E você? Terminou a escola? — Franç ois está falando em me mandar estudar na Suí ç a, mas nã o quero ir. Adoro isto aqui. Nã o posso entender por que quer me mandar para lá. — Parou e olhou para a moç a interrogativamente. — Você sabe sobre o acidente de Yvonne, nã o é? — Nã o. Que acidente? — Ela foi ferida por um touro. Está paralisada da cintura para baixo. Dionne ficou chocada. Louise tinha contado aquilo tã o despreocupadamente. Como se achasse que Yvonne era a culpada. — Mas que coisa terrí vel! Quando... quando isso aconteceu? A garota deu de ombros. — Pouco depois que você partiu, acho. É tã o importante? — Você nã o acha? — Dionne estava horrorizada. Louise brincava com as ré deas. — Yvonne só teve o que pediu. Estava zangada com Franç ois e achou que podia aborrecê -lo, provocando os touros. Ningué m deve brincar com touros. Dionne prendeu uma mecha solta do coque. Nã o era de admirar que Franç ois parecesse tã o mais velho e amargurado. Que tempos difí ceis deviam ter sido para ele! A garota tocou em seu braç o de leve. — É bom ver você novamente, Dionne. Sinto muito realmente que tenha ido embora. Mas, por que queria ver Franç ois? Pensei... pensamos... — Parou, de repente. — Vai ficar muito tempo na Camargue? — Nã o sei ainda, Louise. Depende... — Veio até aqui hoje à procura de Franç ois? — Vim. Onde está ele? — Nos vinhedos. — Encarou a moç a, muito sé ria. — O que aconteceu ontem à noite? Dionne fingiu nã o entender. — O que quer dizer? — Entre você e o meu irmã o. Dionne, sabe o que quero dizer. Ele voltou de pé ssimo humor. Nem Yvonne ousou perguntar nada. Apenas suspeitei que você s tinham brigado. Dionne nã o estava gostando do rumo da conversa. — Louise, tenho que ir. Se Franç ois nã o está aqui, nada feito. Quero dizer, nã o tenho nenhum motivo para ir até à casa. — E a grand’mè re? Digo que vi você? — Nã o posso impedi-la, é claro, mas talvez nã o seja muito gentil, nestas circunstâ ncias. — Oh, Dionne! — A garota agarrou suas mã os. — Por que está tã o cheia de segredos? Por que voltou depois de tanto tempo? com certeza, sabe o que significa para Franç ois vê -la novamente... agora. Dionne deu partida no carro. — Sinto muito, Louise. Sinto muito se pensa que estou escondendo segredos. Gostaria de ter visto Gemma. Adeus... — Adeus. — Mas continuou apoiada na porta do carro. — Posso ir vê -la no hotel, antes de você ir embora? — Nã o acho que seja uma boa idé ia. Au revoir. Louise acenou e Dionne manobrou o Citroen e dirigiu de volta à cidade, com um nó na garganta.
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