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A MARCA DO DEMÔNIO 7 страница



— Você já andou pelos arredores da fazenda?

— Nã o, ainda nã o.

— Nó s temos uma capela antiga que tem uma longa histó ria. Há muito tempo, uma moç a casou nessa capela contra sua vontade. No fim da cerimô nia, ela levantou a cauda do vestido e subiu correndo a escada do campaná rio. Nã o contente com isso, ameaç ou atirar-se lá de cima se tentassem trazê -la de volta à forç a.

— E o que aconteceu depois? — perguntou Justine curiosa em ouvir o fim da histó ria. — Ela se atirou da torre?

— Nã o, felizmente nã o. O noivo deixou-a lá no alto e voltou para casa com os outros convidados. Ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, a fome ia apertar e a moç a que tinha saí do do convento para casar voltaria espontaneamente para casa. Os homens da minha famí lia sã o realistas. Esse meu antepassado nã o era bobo. Ele sabia que se a moç a fosse realmente contrá ria ao casamento, ela teria tomado alguma providê ncia antes da cerimô nia, e nã o depois. Dito e feito. Lá pelas tantas, a moç a desceu finalmente da torre e aceitou a fatia de bolo e o copo de vinho que o marido lhe estendeu. A paciê ncia dele foi bem recompensada porque o casal teve trê s filhos, duas meninas e um menino, que herdou o nome do pai.

— Tudo terminou bem, felizmente — comentou Justine com um sorriso.

— Nã o, nã o terminou tã o bem assim. Esse meu antepassado foi morto pouco antes do filho homem nascer. Um dos colonos da fazenda enlouqueceu e avanç ou para ele com a foice na mã o. Como você está vendo, há uma nuvem negra que paira sobre o destino da famí lia. Talvez sejamos punidos hoje por crueldades praticadas por nossos antepassados. Ningué m nega que há algumas gotas de perversidade em nosso sangue. Eu sou cruel, por exemplo, quando digo a mamã e que nã o quero ficar boa. Meu irmã o Manolito, por sua vez, tinha uma crueldade inata, que procuro esquecer e perdoar. Ele era muito violento, se bem que fosse tremendamente corajoso.

Justine estava ouvindo a conversa com tanta atenç ã o que Cosima ficou surpresa e fez uma pausa, como se nã o entendesse como a histó ria da famí lia pudesse interessar desse modo a uma estranha.

— O que foi, Justine? Por que você fez essa cara quando eu falei em Manolito? Você ouviu contar alguma coisa a respeito dele?

— Nã o, nada especialmente. Eu confesso que você s sã o uma famí lia muito original.

— Todos sabem que Manolito era cruel. Quando ele e Artez eram adolescentes, cada um ganhou um potro esplê ndido, iguais na beleza do pê lo acetinado e na velocidade. Certo dia Artez ganhou de Manolito uma corrida que apostaram. Naquela mesma noite, Manolito foi à coche ira e espancou o potro com um chicote de junco. Artez o surpreendeu por acaso nesse momento. Ele tirou o chicote de sua mã o, deu-lhe uma boa surra e partiu o chicote nos joelhos. Manolito nunca mais o perdoou por essa humilhaç ã o, que foi presenciada por um moleque que tomava conta das cocheiras. Meu irmã o era o dono da fazenda e Artez apenas um primo criado por meus pais. Ele nã o tinha um tostã o nessa é poca. Foi somente mais tarde que herdou a fortuna de uma tia que morreu na Austrá lia. — Cosima interrompeu-se com uma risada. — Você nã o está cansada de ouvir essas fofocas de famí lia?

— Nã o, pelo contrá rio. Gostei muito de ouvir você contar essas histó rias. Isso prova que você está mais animada e retomando interesse pela vida.

— Estou de pleno acordo — disse uma voz masculina perto dali. — Você está se curando de sua apatia, cara.

— Você me assustou, primo. Nó s está vamos falando de Manolito e, no primeiro instante, confundi você com ele.

— Deus me livre de parecer com Manolito — disse Artez beijando a prima nos lá bios e dirigindo um olhar de relance para Justine. — Sobre o que mais você s estavam conversando, fora isso?

— Agora você encabulou minha enfermeira — disse Cosima com uma risada alegre. — Os ingleses nã o apreciam essas demonstraç õ es em pú blico e preferem trocar beijos na intimidade. Você percebeu como ela afastou a cabeç a? Foi timidez ou ciú me, na sua opiniã o?

— Acho que nã o foi uma coisa nem outra.

— Olhe, eu vou deixar você s à vontade — interveio Justine com nervosismo. — Vou aproveitar e arrumar o quarto.

— Você nã o é empregada! — exclamou Cosima. — Você é minha enfermeira. Quero que você fique conosco e tome parte na conversa. Nã o é sempre que Artez pode admirar uma mulher de pernas bem feitas, que anda de um lado para o outro, e que nã o vive presa numa cadeira de rodas como eu. Sei que meu primo é um amor, mas ele vai acabar se cansando de minha companhia.

— Claro que nã o — negou Artez com sinceridade. — Há mais na mulher do que as pernas que se movem.

— Verdade? — perguntou Cosima com um sorriso de crianç a. — Você vai me convencer que prefere minha companhia a de algué m que pode passear, andar a cavalo, sentir o abraç o que você lhe dá de corpo inteiro, da ponta dos pé s ao alto da cabeç a? Se for assim, primo, é melhor você entrar para um mosteiro.

Artez sorriu e passou a mã o de leve, com ternura, no rosto pensativo de sua prima.

— Vamos falar de assuntos mais alegres. Há apenas um instante, você estava conversando animadamente e agora está deprimida de novo. Olhe para o cé u, querida, olhe para as flores, ouç a o canto dos pá ssaros. A vida é bela para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. Há sempre compensaç õ es.

— Mas o cé u é mais azul e as flores sã o mais belas quando agente está na companhia de algué m que ama. Você fala de compensaç õ es. Quais sã o minhas compensaç õ es, primo? Eu nunca mais vou ser mulher a menos que você queira casar comigo.

Artez ouviu o comentá rio inesperado e nã o demonstrou a menor surpresa.

— Se você se sentir feliz na minha companhia, terei muito prazer em casar com você, prima.

As palavras dele soaram claramente no pequeno pá tio fechado e Justine tinha certeza que expressavam exatamente sua maneira de pensar.

— Você está falando sé rio? Você casa comigo quando eu me divorciar de Miguel? Ele nã o se parece nada com você, querido. Ele nã o é forte nem auto-suficiente, ele nã o tem a virtude dos antigos conquistadores no sangue para suportar esse tormento. Mamã e vai ficar felicí ssima se casarmos. Mas será que você vai me agü entar como mulher, apesar das compensaç õ es de que você fala? Você faria esse sacrifí cio por mim?

— Nã o seria sacrifí cio nenhum — disse Artez segurando as mã os dela. — Nó s pertencemos um ao outro, desde crianç a.

Justine voltou-se e fez menç ã o de sair do pá tio.

— Nã o vá embora, Justine, sem cumprimentar primeiro o casal de noivos — disse Cosima com animaç ã o. — Você ouviu o que ele disse? Ele me pediu em casamento! Nã o é lindo? E você é a primeira a saber da notí cia.

— Tudo de bom para você s — disse Justine, esforç ando-se para sorrir. — Desejo que sejam muito felizes!

— Você aprova nosso casamento? — insistiu Cosima. — Você acha que vou me tornar uma nova mulher depois de casada?

— É a melhor coisa que lhe podia acontecer — disse Justine, evasivamente. — Assim pelo menos você terá sempre algué m ao seu lado, para lhe dar todo o carinho que você necessita.

— Você é um amor por dizer isso. — Voltou-se para Artez. — Você será um marido carinhoso e atencioso comigo, primo? Sem exigir nada de volta?

— Eu só quero sua felicidade, Cosima.

— Como você é bom e generoso. Se Miguel fosse assim, ele nã o teria me deixado...

— Mudando de conversa — disse Artez dirigindo-se a Justine, que ouvia a conversa de cabeç a baixa, sem jeito. — Nó s vamos amanhã à fazenda de Fernando. Você vem conosco?

— Se você s quiserem.

— Nã o faç a do passeio uma obrigaç ã o — disse Artez com uma leve impaciê ncia na voz. — Você vai conhecer a fazenda. Tem muita coisa interessante para ver, sem falar que você terá a oportunidade de conversar novamente com Lugh.

— Está combinado, entã o. Eu irei com você s.

Ao dizer isso, Justine atravessou rapidamente a porta de vidro que dava para a sala. Somente entã o voltou a respirar aliviada. Ao passar diante do espelho do corredor, mirou-se nele e ficou surpresa com sua fisionomia desfeita. Por que estava tã o abalada com a conversa que ouvira? Nã o era segredo para ningué m que Artez gostava de Cosima desde pequeno. Era muito natural portanto que os dois acabassem casando.  

 

Naquela tarde, enquanto Cosima descansava no quarto, Justine aproveitou para dar o primeiro passeio a cavalo. Vestida com o culote e as botas de montaria que Cosima lhe emprestara, dirigiu-se à cocheira e sorriu de longe quando avistou Madrigal com a cabeç a fora da cocheira.

Embora o animal se mostrasse um tanto arisco e agitado no momento em que Justine começ ou a pô r os arreios, ficou mais calmo quando ela lhe deu um torrã o de aç ú car e deixou-se conduzir para fora da cocheira até o pá tio, onde Justine pô s o pé no estribo e passou a perna direita por cima da garupa, ajeitando-se confortavelmente na sela inglesa. Os cavalos em que ela aprendera equitaç ã o nã o eram tã o altos nem tã o ariscos quanto os puros-sangues criados na fazenda de Artez.

Com o coraç ã o batendo, Justine dirigiu a é gua para o caminho de terra que terminava no campo aberto. Contornou o vale e o pomar que visitara na companhia de Artez naquela mesma manhã. O ar continuava impregnado dos perfumes das plantas e o sol tinha um brilho dourado, ofuscante. Felizmente ela estava com o chapé u de abas largas que cobria inteiramente o rosto, sem impedir no entanto que apreciasse a paisagem em volta, que tinha um encanto indescrití vel, em perfeita harmonia com suas emoç õ es do momento.

Dentro em pouco, ela e Madrigal tinham se adaptado perfeitamente uma a outra. Justine ganhou confianç a no animal e lhe deu um pouco mais de liberdade, afrouxando ligeiramente a ré dea.

À medida em que subiam o morro, o vale assumira cores deslumbrantes ao sol da tarde. Justine estava simplesmente ofuscada com tudo que via. Nunca visitara antes um lugar tã o bonito e aprazí vel quanto aquele. Tinha a impressã o exata que sentia a vida pulsando na sua mã o, isolada do resto do mundo por uma cordilheira de montanhas que se estendia a perder de vista. Aquela regiã o, sem sombra de dú vida, estava fortemente defendida das invasõ es do mundo moderno.

Por outro lado, o esplendor do passado estava bem preservado ali, como era o caso das vilas, de casinhas pequeninas, que avistava ao longe, como pontinhos brancos perdidos na imensidã o da paisagem.

Estava tã o deslumbrada com tudo que via que suas mã os afrouxaram completamente as ré deas. A é gua interpretou esse gesto como se tivesse liberdade de partir no galope, Justine segurou com firmeza a crina do animal enquanto apertava os joelhos na sela. Madrigal nã o podia ser estancada de repente, uma vez que tinha partido na disparada, e Justine sentiu um certo receio, mesclado de agitaç ã o, quando a é gua galgou o morro com a crina esvoaç ando ao vento. Foi somente quando avistou o chapadã o no alto do morro que ela começ ou a puxar a ré dea com mais forç a, para controlar o animal. Madrigal poré m nã o se deixou dominar pelo pulso fraco da moç a que estava acostumada a montar em cavalos mansos de parque de equitaç ã o.

Quando Justine percebeu que nã o podia deter o animal na disparada, seu coraç ã o começ ou a bater rapidamente e ela teve o pressentimento de que ia ser atirada para longe da sela quando chegasse ao fim do chapadã o, do qual se aproximava rapidamente.

Foi entã o que um assobio alto e estridente feriu o ar, uma ordem de comando que ecoou no ouvido do animal e que o fez estancar repentinamente no galope, quase atirando Justine ao chã o! O tranco foi tã o forte que ela foi parar no pescoç o da é gua; os pé s escorregaram dos estribos e agarrou-se desesperadamente na crina do animal.

Estava nessa posiç ã o, caí da sobre o pescoç o da é gua, quando ouviu o ruí do de cascos galopando atrá s de si. Voltou a cabeç a e reconheceu imediatamente quem era o outro cavaleiro que vinha na sua direç ã o.

— Por que você deu esse assobio? Eu quase fui jogada no chã o!

— O que você queria? Rolar no barranco?

Justine voltou a ajeitar-se na sela, aproveitando que Madrigal acompanhava o trote regular do outro cavalo.

— Você se afastou muito de casa — comentou Artez. — Se tivesse despencado pelo barranco abaixo, eu levaria horas para encontrá -la. Você deve andar somente perto de casa, pelo menos enquanto nã o se habituar com nossos cavalos. Lembre-se que Madrigal é uma é gua á rabe e os á rabes nã o gostam de serem amansados.

— Estou vendo — disse Justine, segurando com firmeza as ré deas. — Eu avistei as casas de uma vila ao longe e fiquei curiosa de ir até lá. Madrigal aproveitou para sair na disparada. Eu nã o tive culpa. Como ela obedeceu ao assobio?

— Eu ensinei meus cavalos a ouvirem esse chamado, onde estejam. — Ele apontou para o despenhadeiro que havia no fim do chapadã o. — É preferí vel estar vivo, com alguns arranhõ es, a ser atirado no fundo daquele barranco.

Justine ficou toda arrepiada ao avistar a encosta í ngreme do morro. Aproveitou o momento para esclarecer uma dú vida que a vinha incomodando há algum tempo.

— Essa paisagem me lembra as pinturas de El Greco. Você gosta de seus quadros? Das paisagens de Toledo?

— Você quer saber se prefiro uma visã o real a uma visã o româ ntica?

— É, mais ou menos.

— Você já esqueceu que tenho sangue á rabe nas veias? O sul da Espanha foi dominado durante muitos anos pelos mouros, que estabeleceram aqui seus califados. É natural que eu tenha herdado de meus antepassados o gosto pela beleza feminina. Apesar dessa cicatriz que tenho no rosto, sei apreciar as coisas belas da vida.

— Nã o fale assim!

— Por que nã o? Minha cicatriz pelo menos é real. A mulher que casar comigo terá que se acostumar com ela. Cosima pelo menos tem essa vantagem. Ela era menina quando eu recebi essas queimaduras no rosto e ela as aceita com naturalidade.

— Foi por isso que você a pediu em casamento?

— Quem sabe? Mas eu nã o creio que deva confessar a você a razã o que me levou a pedi-la em casamento. Você é a enfermeira da casa, mais nada, sem nenhum laç o duradouro em nossas vidas. Você está aqui apenas de passagem, enquanto Cosima e eu vamos encontrar juntos a serenidade que ambos desejamos. Cosima, no fundo, aceitou meu pedido mais como uma forma de consolaç ã o do que de amor. É preferí vel que ela se prenda a mim do que fique virada de frente para a parede, rememorando os dias em que era feliz na companhia de Miguel. Como diz o ditado, o sonho partido nã o é o fim do sonho.

— Nã o, nã o é.

O sol da tarde estava começ ando a declinar no horizonte quando avistaram os primeiros contornos do vale, no alto do qual o cé u parecia a abó boda de uma igreja, pintada de cores celestiais. O ar da tarde estava pesado de todos os perfumes confusos que vinham das plantaç õ es e do pomar. Mesmo de longe, podiam sentir os cheiros fortes de cana-de-aç ú car, de fumo, café e de frutas maduras.

Artez diminuiu o trote do cavalo para um passo lento. Justine cavalgava a seu lado, os olhos protegidos pelas abas largas do chapé u, de modo que podia observá -lo à vontade, sem ser vista. Artez estava com a cabeç a voltada para o vale. Aspirava com delí cia o aroma da tarde, do capim verde e gorduroso que nascia à beira da estrada, como se fosse mais agradá vel, mais penetrante, que qualquer perfume francê s usado pelas mulheres.

— A terra é para os espanhó is o que o charme é para as mulheres — disse em dado momento. — A terra boa e produtiva tem a mesma suavidade, o mesmo fascí nio que o rosto de uma mulher. O que você me diz dessa comparaç ã o pouco româ ntica?

— Vinda de um espanhol, com sangue de á rabe, ela me parece bastante apropriada.

— Esse vale que você está vendo, cultivado de uma ponta a outra, levou anos para ser formado. E toda essa abundâ ncia se perderá se for descuidado durante algumas semanas. A lavoura é uma atividade de todos os instantes. Este é meu mundo e raramente me afasto alé m dessas montanhas. Tenho aqui tudo o que quero. Pode ser pouco para uma pessoa acostumada à vida nas cidades grandes, mas é muito para mim.

— Eu acredito — disse Justine, concordando pela primeira vez com uma opiniã o dele. — Se a pessoa encontrou o trabalho certo, no lugar certo, nã o há necessidade de se agitar à toa com outras ocupaç õ es. Aliá s, eu nã o creio que a vida nas cidades grandes seja satisfató ria para muitas pessoas e nunca disse que era.

— E o casamento moderno? Você o considera satisfató rio?

— Pelo menos, é preferí vel aos casamentos arranjados pela famí lia. Mas, como você mesmo disse, os espanhó is colocam as terras e os cavalos na frente das mulheres.

— Eu disse isso? Eu pensei que os espanhó is gozassem de uma fama merecida de româ nticos... Como você ousa dizer que eles nã o sã o româ nticos, que o amor louco nã o ocupa o primeiro lugar entre nó s?

— No seu caso pelo menos nã o ocupa — disse Justine, apontando para o vale verdejante que se estendia até o horizonte. — Você trocaria tudo isso pelo amor de uma mulher?

— Bem, ela teria que ser uma criatura muito especial — comentou Artez com um sorriso. — Eu dediquei a maior parte da minha vida a este vale. Suei, penei e me esforcei para transformá -lo no que é hoje e teria que estar realmente muito apaixonado para abandonar minhas plantaç õ es e meu pomar. Nesse ponto eu concordo com você. Nenhuma mulher vale todo este trabalho!

Ao dizer isso, Artez esporeou o cavalo e rumou em direç ã o à fazenda. A noite tinha descido rapidamente quando desmontaram no pá tio em frente das cocheiras. Justine sentiu um arrepio de frio e esfregou os braç os descobertos.

— Vá para dentro — disse Artez. — Nã o tome sereno. Eu vou tirar o arreio dos cavalos. Nã o se esqueç a do que eu disse. Da pró xima vez que andar a cavalo, nã o se afaste muito de casa. Lembre-se que Madrigal tem sangue á rabe nas vejas.

— Como seu dono!

Ela estava entrando em casa no momento em que a marquesa saiu dos aposentos de Cosima.

— Acabei de ter uma conversa com minha filha e ela me deu uma notí cia muito agradá vel. Ela me disse que você já está sabendo...

— Sim, eu estava presente quando os dois decidiram casar — confirmou Justine, sem muito entusiasmo na voz.

— Eu estou tã o feliz! — exclamou a marquesa. — Você nã o acha que o casamento será excelente para minha filha? Ela terá uma consolaç ã o por tudo que sofreu, nã o é mesmo?

— Acho que sim — murmurou Justine, revendo na imaginaç ã o a figura ené rgica e bela de Artez recortada sobre o sol da tarde.

Ningué m pensava nele, aparentemente. Afinal, o que podia querer um homem que tinha a face desfigurada por uma cicatriz horrí vel? Era suficiente que a mulher o fitasse com naturalidade, sem afastar o rosto, horrorizada.

— Os dois combinam maravilhosamente — continuou a marquesa. — Como dois irmã os.

Justine pensou negar a afirmaç ã o mas preferiu guardar silê ncio. Que motivo tinha, afinal, para defender um homem que dissera há alguns minutos que ela era apenas uma enfermeira na casa... algué m que estava de passagem e que nã o mantinha nenhum laç o duradouro com nenhum membro da famí lia?

Mais dia menos dia, ela partiria para sempre daquela casa, decidida a nunca mais voltar.

 

CAPÍ TULO VI

 

O sol cintilava como diamante na á gua que caí a da fonte mourisca. Justine estava ao lado do portã o, observando Artez carregar a prima nos braç os para colocá -la no banco do carro conversí vel, no qual iam à fazenda de Fernando Castro, onde Lugh Davidson estava hospedado.

Cosima vestira-se com muito cuidado e sua pintura estava impecá vel; mesmo assim, parecia uma criatura frá gil e indefesa nos braç os fortes do primo.

— Pronto, boneca — disse Artez ajeitando-a confortavelmente no banco traseiro do carro. — Você está bem?

— Estou, muito obrigada, primo. Você é um amor.

Justine colocou uma almofada atrá s de suas costas. Cosima sorriu para os dois, apreciando a atenç ã o de que era alvo, consciente de que estava muito feminina e graciosa no vestido leve de verã o, os cabelos pretos embaixo do chapé u de palhinha de abas largas, o vestido cor-de-rosa combinando com a pele clara e a maquilagem de tons pasté is.

Justine, por sua vez, estava com um vestido azul e branco, com enfeites na gola e nos punhos. O feitio era muito simples e ela o escolheu porque condizia bem com sua posiç ã o na casa. Afinal, era uma simples enfermeira e nã o a amiga de Cosima, como a marquesa gostaria que fosse.

— Esse vestido fica muito bem em você — disse Cosima apalpando o tecido leve. — Você está igualzinha à s moç as inglesas que agente vê nas revistas. Impecá vel e ligeiramente reservada...

— Você acha? — perguntou Justine com um sorriso, consciente do olhar que Artez lhe dirigia.

No momento em que o carro passou por baixo dos arcos que levavam à estrada de terra, Cosima acenou para a mã e com um lencinho branco. Era a primeira vez que ela saí a de casa desde que convalescera de sua enfermidade. Tomaram a estrada que fazia parte da fazenda e andaram alguns quilô metros antes de entrarem na rodovia asfaltada. Cosima estava muito animada e comentava com Artez a paisagem que avistava pelas janelas abaixadas do carro conversí vel. Justine ouvia a conversa em silê ncio, com a fisionomia reservada, lembrando-se da noite em que chegara por aquela mesma estrada, nã o num automó vel confortá vel e espaç oso, mas numa charrete que sacudia de um lado para o outro, puxada por dois cavalos que martelavam a terra dura com os cascos, rompendo o silê ncio da noite.

Sim, mesmo que morasse muitos anos ali, continuaria sendo uma inglesa e continuaria a julgar o temperamento espanhol muito complicado para seu gosto, tã o complexo quanto os arabescos que ornamentavam a casa. Por mais que olhasse fixamente para um desses desenhos, nã o descobria nunca onde era o começ o ou o fim.

— Você está muito calada — comentou Artez em dado momento. — Está apreciando a paisagem? Você já viu coisa mais linda que aqueles picos azulados ao longe, aquelas formas esculpidas pelos ventos e pelas chuvas? Olhe, à sua esquerda estã o as ruí nas de um castelo á rabe. Essas pedras roladas devem fascinar sua imaginaç ã o româ ntica, nã o? Elas correspondem bem ao que você me falou com respeito a sua atitude em relaç ã o aos homens...

— O que foi que você falou, Justine? — perguntou Cosima com curiosidade. — Posso saber ou é segredo entre você s?

Justine afastou os olhos das ruí nas que foram noutros tempos a residê ncia de um califa á rabe, onde abrigava os soldados e as concubinas.

— Nã o foi nada muito importante — respondeu Justine com naturalidade. — Eu sou de opiniã o que as lembranç as do passado nos afetam de certa maneira e que aqui, no sul da Espanha, muitas tradiç õ es permaneceram inalteradas no decorrer dos anos.

— Ah, já entendi. Você quis dizer que Artez é favorá vel ao sistema á rabe que mantinha as mulheres na submissã o total aos homens. Foi isso?

— Mais ou menos.

— Você tem toda razã o. Artez é um perfeito machista...

Artez limitou-se a dar uma risada e nã o discutiu o assunto.

— Dar liberdade a uma mulher é o mesmo que revelar um segredo — comentou com indolê ncia ao volante do carro. — Onde nã o há misté rio nã o há mí stica.

— Você gostaria que sua mulher vestisse as vestes de uma sultana?

— Se você s duas andassem com trajes de sultana, as pessoas saberiam que eu era o feliz possuidor de duas mulheres fié is. Você gostaria de pertencer a essa categoria, Justine?

— Eu nã o gostaria de ser a escrava de nenhum homem. Muito menos objeto de sua distraç ã o.

— Como você pode saber, se nunca foi?

— Eu julgo pela experiê ncia de situaç õ es semelhantes.

— Ah, parem de se agredir, pelo amor de Deus! — interveio Cosima com a voz entediada. — Eu nunca conheci duas pessoas mais opostas em tudo que você s. Nã o vã o se entender nunca, mas podiam fazer uma forcinha, para serem amigos pelo menos hoje, nem que seja de mentirinha. Afinal, é a primeira vez que saio de casa depois de muitos meses e estou ansiosa para passar um dia gostoso, sem brigas nem discussõ es.

Artez concordou imediatamente com o pedido de Cosima e assumiu um ar mais descontraí do na direç ã o do carro.

— Prometo que você vai passar um dia delicioso em nossa companhia, querida. A tarde está linda e você está encantadora com esse vestido que mandou vir de Paris. Você será certamente a mulher mais bela e elegante na fazenda.

— Muito obrigada — disse Cosima com um sorriso. — A ú nica vantagem de ser paralí tica é ter o rosto magro e interessante. Espero nunca engordar como a mulher de Fernando. Ela tem o rosto bonito, mas é gorda da cintura para baixo e as pernas perderam a leveza de antes. Quem diria, olhando para Susana, que ela foi uma excelente danç arina de flamenco? Eu prefiro passar fome a engordar desse jeito!

— Que importâ ncia tem isso se Fernando gosta dela assim mesmo? — perguntou Artez. — Aos olhos do marido, a mulher é sempre linda, a menos que adquira um temperamento irritá vel e agressivo.

— Eu nunca ouvi você falar assim antes, primo! Desde quando passou a gostar do temperamento pacato nas mulheres? Eu o vi ser polido com as mulheres plá cidas de nossos amigos, mas nã o sabia que gostava do jeito delas serem.

— A gente muda com os anos — disse Artez com a voz serena.

Meia hora depois, avistaram os pastos verdes e bem tratados da fazenda, onde Fernando criava touros e cavalos de raç a que eram estimados e procurados em toda a Espanha.

Um bando de novilhos saiu correndo ao lado do carro atirando torrõ es de terra vermelha para o alto, compondo uma paisagem primitiva e campestre ao sol da tarde.



  

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