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A MARCA DO DEMÔNIO 4 страница



— Meu sobrinho nã o vai interferir no seu trabalho, pode ficar sossegada. Ele anda muito ocupado o dia inteiro e nã o tem tempo para essas coisas. Se você for bem-sucedida com minha filha, ele será o primeiro a reconhecer isso. Desde o dia da separaç ã o os dois sã o muito chegados e se Cosima esquecer o marido e aceitar o divó rcio... Para falar sinceramente, eu ficaria muito contente se os dois casassem.

— O divó rcio nã o é malvisto na Espanha? Nã o há uma proibiç ã o por parte da Igreja?

— Sim, há, mas o marido de Cosima é natural da Califó rnia. O divó rcio nesse caso pode ser obtido sem muita dificuldade. Ele está morando aqui atualmente e soube que está vivendo com outra mulher. Só isso já seria um bom pretexto para o divó rcio, mas Cosima se recusa a aceitar essa soluç ã o. Ela continua muito apegada à lembranç a de Miguel. Talvez, daqui a algum tempo, quando voltar ao seu estado normal, ela se deixe persuadir a separar-se dele. Eu nã o sou mais uma mulher jovem, Justine. Nã o tenho muitos anos de vida, mas Artez é um homem forte e na flor da idade. Confesso que daria tudo para ver os dois unidos e felizes para o resto da vida.

— Mas Cosima nã o está paralí tica das pernas? — perguntou Justine impulsivamente, sem conseguir associar a vitalidade de Artez à fragilidade de uma mulher condenada a andar numa cadeira de rodas. Artez era um homem que amansava cavalos bravos e que devia fazer amor com a impetuosidade de um á rabe. Uma mulher como Cosima necessitava antes de ternura e carinho.

— Está, pobrezinha, mas nó s temos a esperanç a de que ela volte a andar um dia — disse a marquesa sem muita convicç ã o. — Você acha que os homens casam mais por motivos fí sicos do que por razõ es do coraç ã o? Muitos espanhó is preferem ter uma amante para os prazeres fí sicos e talvez meu sobrinho seja desse tipo. Quem sabe? De qualquer maneira, isso nã o tem muita importâ ncia, contanto que cuide bem da minha filha e seja bom com ela. Ele nã o é como Miguel. Artez conhece o sofrimento e os dois estã o ligados pelo sangue da famí lia. Como você deve saber, a mã e dele era minha irmã preferida.

A marquesa deu um suspiro elevou a mã o ao rosto. O anel de rubi parecia pesar no seu dedo.

— Muitos dizem que tudo isso aconteceu por uma sina que paira sobre a famí lia. Alguns dizem que a maldiç ã o que pesa sobre a famí lia só será exterminada no dia em que o ú ltimo homem morrer sem ter descendentes. Nesse caso, seria bom que Artez casasse com Cosima, porque eles nã o terã o filhos. A maldiç ã o terminaria com eles. Artez é o ú ltimo varã o da famí lia, o ú ltimo homem que leva nosso sangue nas veias. Nó s vivemos numa regiã o supersticiosa e há pessoas na vila que fazem o sinal da cruz toda vez que avistam o rosto desfigurado do meu sobrinho. Dizem que ele tem a marca do diabo. De que adianta contar a essa gente que ele adquiriu essa cicatriz no incê ndio em que meu marido morreu? Eles dizem que Artez se queimou no fogo do inferno.

— Há pessoas que pensam realmente isso?

— Mais do que você imagina, filha. Você vem de um paí s onde ningué m mais acredita nessas crendices e onde todas as coisas sã o explicadas em termos de psicologia e de ciê ncia. Aqui, no entanto, as crenç as antigas continuam presentes e nó s temos bruxas e curandeiros que curam os velhos e os moç os de doenç as e outros males. Há poç õ es de amor para as jovens encontrarem maridos e elixir para curar os velhos dos seus achaques. A coisa mais engraç ada é que muitas vezes essas drogas milagrosas surtem efeito. Eu, inclusive, permiti que uma mulher benzesse Cosima. Eu tinha realmente esperanç a que pudesse fazer alguma coisa por minha filha. Artez, naturalmente, nã o acredita nessas coisas. A velha, infelizmente, nã o foi bem-sucedida nas suas rezas e agora minha esperanç a está em você, Justine. Você vai cuidar da minha filha com dedicaç ã o?

— Vou fazer o possí vel para curá -la da melancolia — respondeu Justine, comovida com o desespero que levara a marquesa a recorrer a uma feiticeira para tratar da filha ú nica. Se era realmente de poliomielite que ela tinha sido ví tima, Cosima nunca mais voltaria a andar. Nã o seriam as rezas, bê nç ã os e outras crendices populares que a fariam mover-se novamente.

— Tenha paciê ncia com meu sobrinho. Eu sei que ele nã o é muito gentil com as mulheres, mas ele tem um coraç ã o de ouro. Alé m de ser uma pessoa absolutamente honesta em que você pode confiar num momento de dificuldade.

— Vou fazer o possí vel para tolerar seu mau humor — disse Justine em voz baixa. — Mas eu nã o gostaria que ele interferisse no meu trabalho. Eu sou uma enfermeira diplomada, afinal, e nã o uma feiticeira...

— Pode ficar sossegada. Se você for bem-sucedida, Artez será o primeiro a reconhecer isso — disse a marquesa repetindo-se e levantando do sofá. — Você tem uma bonita voz, Justine. Eu gosto do seu timbre rouco e melodioso. Você tem també m uma fisionomia atraente e simpá tica. Você se parece mais com uma amiga de Cosima do que com uma enfermeira profissional. A ú ltima que tivemos aqui andava o tempo todo de uniforme branco e ostentava ares de importâ ncia. Parecia que tinha acabado de sair de uma sala de operaç ã o e isso nã o era exatamente o que necessitá vamos. Cosima se sentia nervosa na sua presenç a. Mas você é diferente. Eu só espero que um de nossos belos espanhó is nã o a leve embora nesse meio tempo.

— Nã o, isso nã o vai acontecer, senhora marquesa. Meu trabalho é minha vida e eu nã o vou me apaixonar de novo por nenhum homem, nem que ele seja belo como um Adonis. O amor morreu para mim no dia em que meu marido perdeu estupidamente a vida.

— Você diz isso agora, minha filha, mas o destino muitas vezes nos reserva surpresas. Ningué m pode ter certeza do que vai acontecer no dia seguinte. Todos nó s dependemos de uma sé rie de circunstâ ncias imprevistas. Nossas esperanç as e nossos planos sã o brinquedos nas mã os do destino.

Essas palavras, saí das do coraç ã o de uma mulher educada segundo a tradiç ã o do fatalismo espanhol, causaram surpresa nos ouvidos de uma inglesa. Justine sentiu-se de repente insegura, como se estivesse suspensa no ar, sem sentir a terra firme embaixo dos pé s. Preferia acreditar que tinha um controle absoluto do futuro, mas a marquesa abalara essa convicç ã o antiga. Ela olhou em volta, assustada, e seus olhos encontraram os do toureiro na pintura realista de Goya.

Olhos negros, tensos, atentos, com um brilho demoní aco nas suas profundezas. Algo apertou seu coraç ã o... aqueles olhos lembravam os de Artez, os de Manolito, seu primo.

— Nã o! — exclamou Justine com vivacidade. — Eu nã o vou, me casar de novo. Faz dois anos que nã o saio com rapazes. E nã o vou fazer uma exceç ã o agora. Os rapazes que conhecer nã o se sentirã o encorajados diante de minha frieza. Os espanhó is gostam de mulheres ardentes, de coraç õ es sensí veis. Meu amor está enterrado com meu marido.

— Como se chamava seu marido, filha? — perguntou a marquesa, fitando-a atentamente.

— Matthew.

— Esse nome é comum no seu paí s?

— Sim, bastante comum. Como é um nome bí blico, muitos pais o dã o aos filhos. É um nome muito bonito, por sinal.

— Seu marido chamava-se Matthew Chard?

— Chamava-se.

Justine nã o pô de evitar a mentira. Chard era o nome dela de solteira e nã o do marido. Nã o podia contar à velha senhora que Matt fora morto por Manolito, seu pró prio filho.

— Posso ser apresentada agora a sua filha? Ela está me esperando? — perguntou Justine, ansiosa para mudar de conversa.

— Vamos lá — disse a marquesa. — Ela já deve ter tomado banho e o café da manhã a essa hora. Venha comigo, Justine. Vou levá -la ao seu quarto, é pegado à capela que nó s raramente usamos, porque prefiro assistir missa na igreja. Aproveito assim para fazer um pouco de exercí cio. Cosima e Artez raramente vã o à missa. Minha filha perdeu a fé depois da doenç a e Artez nunca foi muito de ir à igreja. Ele só acredita nas coisas concretas.

As duas atravessaram o vestí bulo espaç oso onde havia cabeç as de leopardos e de gazelas esculpidas nas colunas.

— A casa tem uma influê ncia á rabe muito acentuada — exp1icou a marquesa. — Os mouros sã o grandes artistas da decoraç ã o e constroem casas com paredes grossas para se abrigarem do calor. Mas eles disfarç am a espessura das paredes com obras delicadas de entalhe e de baixo-relevo.

A marquesa abriu uma porta que dava para a capela e Justine ficou literalmente deslumbrada com a beleza do recinto. O teto era revestido de cedro, ricamente pintado e entalhado com motivos religiosos. Os vitrais recebiam a luz do sol em cheio e cobriam o piso de mil formas coloridas. Havia uma atmosfera de paz e de tranqü ilidade na capela antiga, mobiliada apenas com algumas poucas cadeiras e genuflexó rios forrados de veludo vermelho, alé m de algumas pinturas sagradas de Murillo.

— Que capela mais linda! — balbuciou Justine, fascinada com o que via. — Que diferenç a da que temos no hospital!

— Nó s procuramos criar um clima de repouso e de sossego nesta sala — disse a marquesa com um sorriso de satisfaç ã o. — Cosima raramente sai dos seus aposentos e, como você está vendo, há um corredor que leva diretamente ao pá tio interno. Ela deve estar lá agora, tomando sol. Venha conhecer minha filha. Ela ouviu nossas vozes e deve estar curiosa para conhecer a enfermeira inglesa.

As duas atravessaram o corredor e entraram num jardim interno onde havia muitos vasos com flores e plantas ornamentais. As folhagens das samambaias caí am como cascatas dos vasos pendurados no alto da parede. As folhas de oliveiras farfalhavam como castanholas à brisa da manhã que soprava no jardim.

Cosima estava sentada à sombra de uma á rvore numa cadeira confortá vel de vime, as pernas cobertas por uma manta bordada. Olhou fixamente para Justine com seus olhos muito grandes, incrivelmente negros, que acentuavam ainda mais a brancura leitosa da pele, bem como as feiç õ es frá geis e delicadas do rosto. Ela estava com um vestidinho leve de verã o e tinha os cabelos presos atrá s da cabeç a com uma fita preta. Devia ter sido muito bela no passado, antes de passar por todo o sofrimento que a marcara tanto. No momento, poré m, os olhos estavam apagados, sem brilho, e a pele ligeiramente desbotada.

— Ah, você é a nova enfermeira? — perguntou ela num inglê s impecá vel. — Mamã e provavelmente já lhe contou que eu passo os dias chorando minhas má goas. Você vai ser muito exigente comigo, como a ú ltima babá? Eu posso chamá -la de babá ou de ama, ou você fica zangada? A outra enfermeira nã o gostava nada quando a chamava assim e estava sempre me corrigindo e criticando. Você també m é muito severa?

— Nã o, nã o sou — disse Justine com um sorriso. — Pelo contrá rio, eu sou indulgente demais...

Cosima era o oposto de Artez. Era difí cil entender como os dois tinham sido namorados tempos atrá s. Ela era frá gil e dependente como uma crianç a e parecia mais com uma boneca delicada de porcelana do que com uma criatura de carne e osso. Artez, por sua vez, era um homem vital, exuberante, repleto de energia, que encontrava sempre motivo de interesse em todos os aspectos da vida. Para Cosima, no entanto, pouca diferenç a fazia se estava viva ou morta.

Era uma situaç ã o bastante triste e que comoveu profundamente Justine, embora soubesse que Cosima era irmã de Manolito.

— Eu nã o me importo com o nome que você me dê, contanto que nó s duas sejamos amigas e tenhamos um bom relacionamento — disse Justine. — Eu desejo muito ajudá -la a superar essa crise.

— Por que você quer que eu fique boa? — perguntou Cosima com o rosto impassí vel. — Você é uma estranha e nã o pode entender o que eu sinto. Você será bem paga enquanto estiver aqui e o que mais pode lhe interessar alé m disso? Aliá s, eu nã o acredito que você vá ficar muito tempo aqui. Nenhuma das outras enfermeiras ficou, todas acabaram dando o fora. Sentiam-se muito isoladas nesta casa velha, sem divertimentos e programas animados com rapazes. Uma delas, por sinal, morria de medo de meu primo!

— Ah, é? Pois eu nã o tenho nenhum medo do seu primo — disse Justine com uma risada. No í ntimo, poré m, ela reconhecia que Artez lhe inspirava um verdadeiro terror. Nã o era medo fí sico, uma vez que nã o tinha nada a ver com a face desfigurada pela cicatriz. Mas era medo, mesmo assim. Ela levantou a cabeç a e encarou Cosima nos olhos. — Como disse antes a sua mã e, eu vou fazer o possí vel para curá -la de sua depressã o e gostaria que você cooperasse comigo.

— Mamã e, eu estou vendo que vamos ter uma outra chata dentro de casa! — exclamou Cosima voltando-se para a marquesa, as pá lpebras marcadas por olheiras de quem dormia mal. — Ah, que chateaç ã o! E logo agora que estava pedindo a Deus para descansar uns tempos dessa amolaç ã o. Artez me garantiu que as enfermeiras inglesas eram mais tolerantes que as espanholas. Você nã o veio aqui, enfermeira, para flertar com os rapazes bonitos da cidade?

— Infelizmente, nã o — disse Justine com firmeza. — Eu nã o tenho mais idade para isso. Nem inclinaç ã o para esse tipo de comportamento. Por falar nisso, como vou ser sua enfermeira, queria que você prestasse mais atenç ã o nas minhas recomendaç õ es do que nas de seu primo. Eu sei que ele quer ajudá -la, mas ele nã o é mé dico, nem conhece suficientemente meu trabalho para se pronunciar a respeito. Eu acho que nã o é justo me julgar antes do tempo.

Cosima ouviu a explicaç ã o com indiferenç a e bocejou discretamente.

— Eu estou me sentindo como se tivesse um peso na cabeç a.

— Você acordou indisposta essa manhã, querida? — perguntou a marquesa aflita, inclinando-se sobre a filha e acariciando delicadamente o rosto pá lido e sem vida. — Essas olheiras que você tem nã o me agradam nada, filha. Seus olhos antes eram tã o animados...

— Quantos comprimidos você toma para dormir, Cosima? — indagou Justine tomando o pulso dela. A pulsaç ã o era irregular, sinal de que Cosima estava tomando uma dose excessiva de comprimidos para dormir.

Cosima encarou-a atentamente, mas nã o respondeu à pergunta.

— Você está tomando um ou dois comprimidos? — insistiu Justine.

— Eu tomo tantos comprimidos quantos forem necessá rios para dormir — respondeu Cosima por fim. — Um sono profundo, em que esqueç a de tudo, em que nã o pense em mais nada, como se fosse afundar no mar. Nã o quero sonhos que me atormentem a cabeç a. Nem pesadelos que me faç am acordar no meio da noite. Eu quero um sono profundo, sem ontem nem amanhã.

Ao ouvir as palavras da filha, a marquesa voltou-se para Justine com a expressã o angustiada. Nenhuma das duas podia se iludir a respeito do que tinham ouvido. Cosima desejava simplesmente mergulhar no esquecimento total e nã o acordar nunca mais para a realidade. Desejava esquecer que nã o poderia nunca mais andar a cavalo, danç ar, correr, atirar-se nos braç os do homem que amava.

Justine ficou comovida com a confissã o mas procurou manter a fisionomia imperturbá vel, como aprendera no hospital. A ú ltima coisa que devia demonstrar era simpatia pelo desespero da paciente. Nã o era com piedade nem fraqueza que podia curar os sentimentos negativos de Cosima.

Em vez disso, olhou para a bandeja de café que estava posta em cima da mesa e que nã o fora praticamente tocada.

— Você nã o chupou nem mesmo a laranja que Vitó ria descascou para você? Olhe só como essa laranja foi descascada com carinho, como se fosse um melã o! Ela se parece exatamente com uma flor. Por que você nã o prova um gomo pelo menos? Está com uma aparê ncia deliciosa...

— Coma você, se está com vontade — disse Cosima de mau humor. — Eu nã o estou com fome. É falta de exercí cio, como diz o mé dico que vem me ver. Eu tomo vitaminas em lugar de comida. Eu já disse a mamã e que nã o adianta preparar toda essa bandeja para mim. Mas ela nã o liga a mí nima para o que eu digo. Vitó ria continua trazendo todos os dias esse banquete para mim, como se eu fosse uma baleia voraz. Para que, Deus do cé u? Só para fingir que estou viva e passando bem?

— Cosima, nã o fale assim! — exclamou a marquesa com angú stia na voz. — Nó s fazemos o que podemos por você, filha. Você está muito viva e nó s todos gostamos muito de você, como antes.

— Eu estou viva para Miguel? Ele ainda gosta de mim como antes? Eu preferia que você s me deixassem murchar como uma flor arrancada da terra. Você s estã o me obrigando a fazer o que eu nã o quero. Uma noite dessas, mamã e, eu vou engolir todos os comprimidos para dormir de uma vez.

— E sofrer as torturas de uma lavagem estomacal? — perguntou Justine. — Eu já presenciei essa operaç ã o e posso lhe garantir que nã o é nada agradá vel. Pelo contrá rio, é horrí vel. Fere a sensibilidade da gente. Você gostaria de se submeter a isso?

Cosima voltou-se para Justine e procurou ler nos olhos dela o que estava por trá s de suas palavras de advertê ncia.

— Eu ouvi dizer que seu marido morreu bem jovem. É verdade?

— Meu marido morreu no dia do nosso casamento. Ele tinha vinte e seis anos.

— Você quis morrer junto com ele? Ou você se consolou com o fato de estar viva e de encontrar outro homem?

— Eu atravessei uma crise horrí vel — disse Justine em voz baixa. — Eu compreendi també m que nada podia me consolar pela morte do meu marido. Ele prometia ser um mé dico brilhante e era imensamente bom e generoso. Acho que nunca mais vou encontrar outro igual.

— Mas você tem saú de, o trabalho, a vida inteira pela frente. E eu, o que eu tenho? Eu nunca aprendi a fazer outra coisa a nã o ser agradar aos outros com meu charme, andar a cavalo, danç ar e conversar educadamente com os rapazes e moç as da minha idade. Agora eu perdi todo meu encanto... eu sou uma paralí tica que se arrasta numa cadeira de rodas. Passo os dias neste jardim, vendo os passarinhos voarem de um lado para o outro, ouvindo as cigarras cantarem, contando as horas que me separam do sono profundo da noite. Eu posso chamar isso de vida?

— Eu vi pessoas paralí ticas que nã o saí am da cama e que respiravam com pulmã o artificial. Algumas só podiam mexer um ú nico dedo da mã o. Pois bem, um desses pacientes escreveu um livro, batendo à má quina com esse ú nico dedo.

— Mas ele tinha imaginaç ã o, pelo menos! Eu nã o tenho nem isso. A ú nica coisa que eu tinha para dar era eu mesma e o homem a quem me dei queria uma mulher inteira e nã o uma mulher paralí tica da cintura para baixo. Miguel fez bem em me deixar. Eu entendo por que ele agiu assim. Ele tinha vitalidade demais para agü entar uma mulher entrevada. Por que haveria de ser um santo? Se tivesse ficado comigo, teria uma amante nas minhas costas, sem eu saber. Foi melhor ter me deixado. No fundo, ele mostrou muita coragem ao agir assim.

— Ele mostrou egoí smo, isso sim! — exclamou Justine, sem se conter. — As pessoas responsá veis nã o fogem das suas obrigaç õ es. Elas as enfrentam com coragem, sem serem necessariamente santas. Simplesmente por fidelidade à pessoa a quem deram sua palavra.

— Você fala como uma româ ntica — disse Cosima com um risinho de superioridade. — Eu pensava que as inglesas fossem realistas. Pelo menos é essa a imagem que dã o as revistas e os jornais ingleses.

— O romantismo nã o morreu e nunca vai morrer. Ele atende a uma necessidade vital da humanidade.

— Você, como enfermeira, deve ter visto muitas coisas desse gê nero — interveio Cosima sem se dar por vencida. — Ou você se nega a enxergar a realidade?

— Nã o, de jeito nenhum. Nem poderia agir assim, na minha profissã o.

— Você acha que vai suportar minha companhia? Olhe que nó s somos uma famí lia muito estranha. Nó s vivemos no passado e você vem de Londres, uma das cidades mais alegres do mundo. Na minha opiniã o, você vai embora daqui em questã o de dias. Quer apostar?

Justine nã o apostou nem negou. Ela nã o tinha certeza se ia ou nã o permanecer na casa. Afinal, ela tinha razõ es de sobra para odiar a famí lia de Manolito. Por outro lado, sentia-se desafiada pela atitude de Artez e de Cosima. Os dois pareciam pô r em dú vida sua competê ncia e integridade profissional.

— Eu nã o tenho medo da solidã o — disse por fim. — Nem dos fantasmas do passado.

— Isso é bom sinal — comentou uma voz masculina atrá s dela.

Justine voltou a cabeç a e avistou Artez apoiado no pé de uma palmeira. Estava fumando tranqü ilamente uma cigarrilha e a fumaç a azulada formava rolos em volta de sua cabeç a morena. Os olhos negros fitavam-na com indolê ncia.

— Por favor, Artez, nã o assuste mais outra enfermeira com seus comentá rios irô nicos — interveio a marquesa com vivacidade. — Estou começ ando a acreditar que você tem antipatia gratuita por todas as enfermeiras que vê m aqui. — Voltou-se para Justine. — Nã o ouç a o que ele diz, minha querida. Artez tem essa aparê ncia de poucos amigos, mas tem o coraç ã o de ouro. Como todo espanhol que se preza, ele acha que os assuntos í ntimos nã o devem ser comentados diante dos outros.

— Quem sabe ele tem receio que eu tenha mais sucesso que as outras enfermeiras?

— Isso mesmo. — A marquesa voltou-se para o sobrinho. — Fique sabendo, seu antipá tico, que Justine foi apresentada por uma grande amiga minha. Ela tem as melhores recomendaç õ es.

— Faç o votos que ela corresponda à expectativa — disse Artez saindo com a tia do jardim. — Vamos deixar as duas conversarem à vontade...

Justine observou-o afastar-se com um sentimento de alí vio.

— Você nã o simpatizou com meu primo? — perguntou Cosima.

— É ele que nã o simpatiza comigo. Ele foi contra minha vinda a essa casa.

— Eu sei disso. E você se sentiu ferida na sua vaidade?

— Eu nã o sou vaidosa a esse ponto.

— Pois devia ser. Os homens devem gostar de seus cabelos louros, de sua pele clara e macia como pê ssego. Você nã o ficou decepcionada com a reaç ã o do meu primo?

— Nã o, nem um pouco. A antipatia que existe entre nó s é recí proca. Nesse momento um gato branco trepou no colo de Cosima e começ ou a ronronar baixinho, com os olhos fechados.

— Que gato mais lindo, Cosima! É seu?

— Foi meu primo que me deu. Ele me faz companhia durante o dia. Chama-se Dominó e é muito bonzinho. Eu gostaria que você cuidasse dele em meu lugar e prestasse atenç ã o para que as criadas nã o se esqueç am de lhe dar todos os dias seu prato de leite e de carne. Essas meninas só pensam em se divertir e em danç ar nas festas da vila. No fundo eu tenho inveja da alegria e da juventude delas! A vida é bem estranha, à s vezes.

— Muito estranha, realmente.

— Você nã o acha estranho que Artez goste de mim?

— Nã o, por quê? Todos nó s temos necessidade de amar algué m.

— Você nã o disse que o amor acabou para você?

— Sim, disse, mas isso porque meu marido era um homem excepcional.

— Você só gosta de homens excepcionais?

Justine ouviu a pergunta em silê ncio, sem saber o que responder.

— Eu me sinto uma velha perto de você e, no entanto, nó s duas somos quase da mesma idade — prosseguiu Cosima. — Sabe o que penso? Para a gente amadurecer, tem primeiro que gostar de algué m muito ruim. Só assim a gente aprende o verdadeiro valor das coisas boas...

 

CAPÍ TULO IV

 

Durante a primeira semana que residiu na casa, Justine passou a maior parte do tempo com sua paciente. Cosima apanhou uma gripe e exigia cuidados especiais; como ela nã o fazia nenhum exercí cio, era sujeita a complicaç õ es mais sé rias.

Cosima mostrou-se especialmente irritá vel e de mau humor durante a doenç a, pronta a brigar com todo mundo, sobretudo com sua enfermeira. Justine poré m estava habituada a esse tipo de comportamento e, finalmente, Cosima entregou os pontos. Sorriu sem graç a e disse que Justine era uma santa para suportar seu mau humor com a cara alegre.

— Eu tinha certeza de que você nã o ia me agü entar uma semana — comentou Cosima, assoando o nariz num lencinho de cambraia. — Por que você mudou de idé ia? Está se dando melhor com meu primo?

— Nã o, nã o é isso. Como lhe disse antes, os homens nã o me interessam a mí nima. — Justine recolheu as revistas que estavam espalhadas pelo quarto e empilhou-as em cima da mesa. — Você acha que eu viria trabalhar tã o longe do meu paí s se nã o pudesse viver sem a companhia de um homem?

— Pois olhe, se eu pudesse andar como você, daria o fora daqui voando. Nã o queria nem saber! Ia procurar um lugar onde encontrasse alegria de viver. É um inferno estar presa a uma cadeira de rodas e sentir-se permanentemente uma invá lida. Quem pode gostar de mim? Quando olho para você, morro de inveja de sua independê ncia e nã o sei como suporta uma pessoa tã o desagradá vel quanto eu. Você gostava tanto assim do seu marido que nã o quer saber de mais ningué m? Mas isso nã o é normal numa moç a jovem e bonita como você... Afinal, você nã o fez nenhum voto de castidade, bolas! Meu primo deve julgá -la uma criatura muito original e é por isso que ele a observa com tanta curiosidade.

— Nã o sei. Eu tenho a impressã o de que seu primo nã o é do tipo que corre atrá s das mulheres, só porque sã o novidades. No momento em que escolheu uma, é aquela e mais ningué m.

— Você acha? Ele falou alguma coisa a esse respeito com você?

— Nã o, nunca. Nó s mal conversamos um com o outro. Ele antipatiza solenemente comigo e acha que sou tã o frí vola e leviana quanto as inglesas que vã o passar as fé rias na Costa Brava.

— Mesmo depois de você morar numa fazenda no meio do mato? — perguntou Cosima com uma risada. — Dizem que as mulheres sã o um misté rio. Na Espanha, poré m, os homens é que sã o misteriosos. Especialmente aqui no sul, onde sã o meio á rabes e onde os costumes do deserto continuam presentes no comportamento deles. Meu primo, por exemplo, nã o se parece nada com os mé dicos jovens que você conheceu no hospital, nã o é mesmo? Ele é um enigma até para mim, que o conheç o desde pequena. Há momentos em que ele me assusta...



  

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