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A MARCA DO DEMÔNIO 6 страница



— Largue-me! — repetiu Justine com pâ nico na voz. Os olhos azuis estavam brilhantes de raiva no instante em que atirou a cabeç a para trá s com um gesto brusco. — Eu odeio seu contato... é uma sensaç ã o demoní aca!

— Por causa da minha cicatriz?

Ele apertou-a com tanta forç a que ela deu um gemido de dor. Estava colada contra seu peito e era obrigada a encará -lo de perto. Viu nitidamente todos os traç os do rosto que tinha sido atingido pelo incê ndio na adolescê ncia e que causava uma impressã o penosa ao olhar. As chamas tinham destruí do alguns mú sculos da face e a cicatriz deformava a pá lpebra esquerda, dando uma impressã o desagradá vel de zombaria e crueldade.

— Se você pretende ficar aqui, terá muitas vezes que ver meu rosto. Nã o há maneira de evitarmos esse contato e nã o há maneira de impedir a atraç ã o que sentimos um pelo outro quando estamos sozinhos. Como agora. Por que você nã o foi embora, como eu sugeri?

— Nã o posso ir embora. Eu dei a palavra à marquesa. Alé m disso, nã o tenho medo de você. Nã o é seu rosto que vai me fazer mudar de idé ia.

— Se você nã o tem medo de mim, por que está tremendo tanto? — perguntou Artez com um sorriso, encarando-a nos olhos. — Eu estou sentindo os tremores que percorrem seu corpo colado ao meu. Você precisa aprender a se descontrair. Nã o foi isso que você ensinou a Cosima? A descontraç ã o muscular, o relaxamento das tensõ es?

— Como eu posso relaxar com você perto de mim? Sei o que você quer... Você deseja tornar meu trabalho mais difí cil que já é. Como se você se divertisse de me ver em dificuldade...

— Você acha? Há outros divertimentos mais interessantes na fazenda. Você nã o gostaria de dar um passeio a cavalo? Os cavalos da fazenda precisam de exercí cio, sobretudo um deles, muito arisco, que seria uma montaria perfeita para você. O que você diz?

— Eu adoro andar a cavalo — confessou Justine com um brilho repentino nos olhos. — Trabalhei num hospital que ficava perto de um parque e tomei aulas de equitaç ã o. Mas nã o sei como sã o esses cavalos daqui. Nã o tenho experiê ncia de montar em cavalos ariscos.

— Você tem medo de cair? — perguntou Artez, brincando com o sentido ambí guo da palavra.

— Claro que tenho! Só os homens convencidos nã o tê m medo de errar...

— Você me julga convencido?

— Você sabe melhor do que eu. Você se conhece o suficiente para saber quais sã o os traç os predominantes de sua personalidade ou precisa que algué m o esclareç a sobre isso?

— Se eu sou convencido, você é tremendamente insolente, mocinha! — disse Artez, agora apertando o pulso dela com mais forç a, como se desejasse parti-lo. — Está doendo, enfermeira?

— Está doendo muito. O que você pretende provar com isso?

— Nada, apenas saber se você é uma mulher forte, resistente. Meus cavalos sã o ariscos, mas eu creio que você poderá dominá -los. Eu vou lhe dar uma é gua de estimaç ã o para você passear pelos arredores da fazenda.

— Uma é gua de estimaç ã o? Como ela se chama?

— Madrigal.

— Madrigal? Que nome mais poé tico para uma é gua...

— Eu dei esse nome porque Madrigal quer dizer uma canç ã o de amor.

Ao dizer isso, Artez levantou-a pelos cotovelos e colocou-a no alto do muro que dava para as cocheiras. Ele pulou o muro com a agilidade de um felino e estendeu a mã o para ela descer do outro lado. Em seguida, rumaram em direç ã o à estrebaria, de onde vinha o cheiro forte de estrume e de feno molhado. Caminharam ao longo das cocheiras e passavam por diversas portas fechadas. No meio da passagem estreita, Artez parou em frente de uma porta e abriu a janela do alto, por onde se avistava o interior da cocheira. A lâ mpada que estava acesa perto dali, no alto de uma viga, iluminou vagamente o interior da peç a. Justine avistou a é gua castanha que estava com a cabeç a inclinada sobre o cocho, mastigando indolentemente a aveia que havia ali. Em dado momento, o animal voltou a cabeç a na direç ã o dos visitantes noturnos.

— Essa é a é gua que lhe dei. Você gostou?

— Ela é linda, de doer, mas eu tenho receio que seja muito arisca para mim.

— Ela é muito obediente, apesar de arisca. Você gostaria de tentar?

— Gostaria. E muito obrigada por você me ter dado essa é gua de estimaç ã o.

— Você só aprenderá a montar se andar num bom cavalo.

Ele fechou a janela da cocheira e os dois voltaram pelo caminho de pedras que levava à casa. O cé u continuava feericamente iluminado pela luz das estrelas e as folhas dos arbustos balanç avam docemente sob a brisa fresca que soprava das montanhas.

No momento em que entraram em casa, Artez adiantou-se e parou na frente dela, com os braç os cruzados na altura da cintura.

— O que foi? — perguntou Justine, surpresa com seu gesto.

— Você nã o vai me agradecer por ter lhe dado Madrigal para montar?

— Eu já agradeci. Mas posso agradecer de novo, se você quiser.

— Eu nã o me refiro a esse agradecimento.

— Qual entã o?

— Você nã o costuma beijar seus amigos quando se despede deles?

— Você é a ú ltima pessoa na terra que eu beijaria espontaneamente. E nã o pense que tenho medo de você. Eu simplesmente nã o gosto de homens convencidos, que afirmam sua masculinidade e consideram as mulheres meros objetos de diversã o. Pelo visto, as mulheres e os cavalos significam o mesmo para você. Se eu fosse gorda e feia, você certamente nã o me daria um cavalo para montar, muito menos uma é gua de estimaç ã o.

— Provavelmente nã o — disse Artez com um sorriso. — Se você fosse gorda e tivesse quarenta anos, eu lhe daria uma das é guas que puxam a charrete. É essa a opiniã o que você faz de mim? Você me julga realmente um machista que se aproveita das mulheres?

— Isso mesmo! Os homens sempre querem alguma coisa das mulheres em troca do que dã o. Eu só conheci um ú nico homem que nã o era egoí sta a esse ponto. Os outros se aproveitam de tudo que podem tirar e nã o querem saber se a mulher está ou nã o disposta a se dar ao primeiro homem que encontra na sua frente. Uma enfermeira inglesa, loura ainda por cima, deve ser uma tonta sem vontade pró pria. Quando você me encontrou na estaç ã o, deu a entender claramente o que pensa de mim. Agora chegou à conclusã o de que vale a pena aproveitar a oportunidade que surgiu. Afinal, nã o é todos os dias que você tem uma mulher disponí vel em casa...

— Você pensa realmente isso? — perguntou Artez adiantando-se um passo.

— Você nã o ligaria a mí nima para mim se fosse feia e sem graç a — insistiu Justine.

— Vamos, nã o seja tã o modesta assim! — disse Artez segurando-a pelo pescoç o. — Sua beleza me atrai, enfermeira. Você é uma rosa inglesa, vinda de longe. E tem os espinhos da rosa verdadeira. Seu marido era um homem de coragem, ou ele só queria a rosa, sem os espinhos?  

— Como você tem a audá cia de dizer uma coisa dessas? Devia matá -lo por dizer isso!

— Minha querida, é preciso sangue-frio para matar algué m. Nã o basta apenas a coragem e a intenç ã o. Estou sentindo o calor de sua pele na palma da minha mã o. Se você vai odiar todos os homens que estã o vivos só porque seu marido morreu, sua vida será um inferno permanente. Um dia você vai amar novamente.

— Nunca! — exclamou Justine com ardor. — Matt era meu ideal e eu nunca vou substituí -lo na minha lembranç a.

— Vai, sim — afirmou Artez inexoravelmente. — Será um tipo diferente de amor, talvez uma emoç ã o mais vital e tempestuosa, bem diversa da que as moç as sentem pelos primeiros namorados. Você já passou por isso. Agora está madura para o amor verdadeiro! Você sofreu durante esses anos.

— Ainda bem que reconhece. Imaginava que você me tomava por uma dessas bobocas, de cabeç a vazia, que só pensam em flertar com o primeiro homem que encontram.

— Reconheç o que errei a seu respeito. O que você quer? Sou espanhol cem por cento, quando se trata de julgar as mulheres. Eu desejo a mulher só para mim. Só entendo uma esposa que seja inteiramente dedicada à famí lia, aos filhos, ao marido.

— Claro, é uma atitude cô moda achar que as mulheres foram feitas para se dedicarem de corpo e alma aos maridos e aos filhos. Na Inglaterra, pelo menos, o casamento é um acordo civilizado entre o casal. Se a mulher deseja trabalhar fora de casa, o marido concorda de bom grado com a idé ia e coopera da melhor forma possí vel.

— E os dois passam a comer comidas em lata e pratos congelados?

— Você nã o pode admitir, com seu sangue á rabe, que o casamento seja uma uniã o livre entre duas pessoas. Você provavelmente gostaria de ter um haré m cheio de mulheres. Mas as mulheres nã o sã o escravas, meu caro. Elas sã o criaturas humanas e devem desfrutar de todos os direitos e privilé gios que os homens tomaram egoisticamente para si. Foi esse egoí smo que impediu as mulheres de se realizarem como seres humanos.

— Você é uma mulher realizada? Nã o adianta dizer que você tem uma profissã o e que leva uma vida independente. Nã o entendo qual é o prazer que algué m pode sentir em ser enfermeira e estar constantemente na presenç a da dor e do sofrimento.

— Algué m tem que cuidar dos outros, sobretudo dos velhos e dos doentes.

— Sim, mas nã o precisa fazer isso exclusivamente. Nem a vida inteira. Muito menos você, Justine, e posso provar isso.

— Está bom, mas nã o tenho tempo para ouvir seus argumentos no momento. Preciso passar no quarto de Cosima e ver se está tudo em ordem. Alé m disso, estou cansada de ficar de pé o dia inteiro. Eu lhe peç o por isso, encarecidamente, que me deixe ir embora.

— Nã o seja por isso! — exclamou Artez levantando-a no colo como se ela fosse uma boneca.

Transportou-a nos braç os pelo corredor formado de arcos e atravessou a sala caminhando com a graç a incompará vel dos espanhó is.

— Ponha-me no chã o, por favor! — suplicou Justine, agarrada em seus ombros. — Antes que algué m nos veja! O que vã o pensar de mim? Por favor, seja bonzinho, ponha-me no chã o...

— Está vendo? Apesar de toda sua conversa de mulher independente e emancipada, que tem uma profissã o remunerada, você nã o consegue soltar-se dos meus braç os. Compreendeu agora que a mulher depende do homem?

— Da forç a bruta do homem, você quer dizer.

— E minha delicadeza, nã o entra em consideraç ã o? Você nã o me dá cré dito por minha cortesia?

— Nã o é por gentileza que você age assim. É antes por pura insolê ncia e zombaria. Você fez isso para me dar uma liç ã o, porque eu ousei discutir suas idé ias egoí stas de poder. Você nã o está acostumado com mulheres que dizem tudo o que lhes passa pela cabeç a e quis provar que sou uma criatura fraca que deve obediê ncia a sua forç a bruta. Só isso!

— Exatamente! — disse Artez com uma risada no momento em que a colocou de pé diante dos aposentos de Cosima. — Pronto, você pode ir ver como está passando sua paciente. Vou me despedir dos convidados de minha tia em seu nome. A menos que você queira despedir-se pessoalmente de Lugh Davidson...

— Nã o, nã o quero. Você vai me deixar em paz agora? Ou ainda vai me perseguir como se eu fosse uma mulher fá cil que veio à Espanha para caç ar um milioná rio?

— Se você fosse uma mulher frí vola, eu nã o teria o menor escrú pulo em lhe faltar o respeito. Buenas noches, enfermeira.

— Boa noite, Don Cicatrice.

Justine abriu a porta do quarto de Cosima e entrou sem olhar para trá s.

Ela conseguira sair sem muitos arranhõ es do encontro com Artez, mas nã o podia negar os efeitos inquietantes que a presenç a dele produzia toda vez que se encontravam a só s. Nem podia esquecer a sensaç ã o que experimentou quando os dedos morenos afagaram seu pescoç o. A sua pele arrepiou-se só de pensar nisso e sentiu-se estranhamente culpada quando se aproximou da cama de Cosima. Felizmente ela estava dormindo e Justine nã o teve que explicar a razã o por que seus cabelos estavam desalinhados e seu vestido amassado.

Ela levou a mã o à testa para afastar os fios de cabelo que caí am sobre os olhos e ficou surpresa com o tremor dos seus dedos.

 

CAPÍ TULO V

 

As manhã s eram momentos preferidos de Justine, uma das compensaç õ es de trabalhar numa fazenda do interior, longe de todos os amigos, entre pessoas desconhecidas, cujo destino trá gico havia cruzado com o seu.

O cé u estava constantemente azul, o sol ardente dardejava seus raios sobre as folhas das palmeiras e das á rvores altas que davam sombra no jardim. Perto do pá tio onde Justine tomava o café da manhã, havia uma cerca de ficos e, quando ela olhava na direç ã o aposta, avistava canteiros com uma profusã o de flores, trepadeiras que subiam pelos muros e azalé ias de um vermelho intenso, nas quais as abelhas faziam festa.

Era ali que ela iniciava o dia. Tomava o café na tranqü ilidade do pá tio interno, ouvindo os pá ssaros cantarem nos galhos pró ximos, antes de fazer sua habitual visita a Cosima.

Ouvia embevecida os zumbidos dos insetos, uma verdadeira sinfonia de ruí dos de todos os timbres imaginá veis, encobertos à s vezes pelo canto estridente das cigarras, a voz peculiar da Espanha, onde as manhã s de sol eram um delí rio colorido para os olhos. As cigarras eram ouvidas o dia inteiro e podia-se dizer que nã o havia um ú nico instante de silê ncio no jardim. Mesmo quando os pá ssaros estavam calados, descansando do calor inclemente do meio-dia, as cigarras eram ouvidas emitindo sons agudos, estridentes, canto que produzia um efeito curiosamente repousante sobre os nervos. Justine nã o se assustava mais, como no iní cio, quando era acordada do seu devaneio por algué m que entrava silenciosamente no pá tio, com o andar á gil e gracioso dos espanhó is.

— Buenos dias, señ ora — disse a criada jovem com um sorriso aberto nos lá bios vermelhos.

— Buenos dias, Imelda. Como passou de ontem? A manhã está linda, nã o? Para mim esse é o momento preferido do dia, embora reconheç a que o entardecer e o pô r-do-sol na Espanha sã o alguma coisa do outro mundo.

— Está gostando daqui? — perguntou a criada, arrumando a mesa para o café.

Todos os produtos servidos à mesa da famí lia Obregon vinham da fazenda. Viviam num estado de independê ncia como os antepassados medievais, que cultivavam a terra e retiravam dela o sustento para todos os moradores do castelo. Se houvesse petró leo nas terras da propriedade, Artez seria o primeiro a explorá -lo com equipamentos modernos.

Justine olhou a sua volta e reconheceu que passara a apreciar certos aspectos da fazenda que lhe pareceram irritantes no começ o. Embora a casa antiga continuasse mal-assombrada para ela, tinha també m uma espé cie de magia que transpirava das paredes, das á rvores, dos arabescos complicados que havia nas grades de ferro das sacadas. As pessoas nasciam e morriam com o passar dos anos, mas uma casa como aquela tinha sua vida pró pria. Por isso podia dizer com toda sinceridade à criada que servia o café que passara a gostar dali e dos arredores que conhecia.

— Esta regiã o é muito linda e estou contente por ter vindo trabalhar aqui.

— É pena ser muito longe da cidade — disse Imelda com um suspiro. — À s vezes penso que seria preferí vel trabalhar em Madri. Você acha que eu me daria bem lá? Mamã e diz que as pessoas vivem correndo de um lado para o outro...

— Ah, Madri é muito diferente daqui. A vida é muito agitada e as ruas estã o sempre repletas de gente. Eu acho, Imelda, que você nã o se daria bem lá, pelo menos nos primeiros tempos. Eu també m vou notar a diferenç a quando voltar para Londres.

— Você vai voltar logo, como as outras enfermeiras que estiveram aqui? Elas també m nã o se acostumaram com essa vida isolada na fazenda.

— O sossego nã o me incomoda, mas vai chegar o dia em que sua patroa vai estar melhor e vou voltar para minha casa. Seu café está uma delí cia, Imelda. Acho que vou ficar viciada em cafezinho depois de sair daqui.

— Você gostou? Foi mamã e quem me ensinou a fazer o café bem forte. Você nã o é como as outras enfermeiras, que viviam se queixando de tudo. Alé m disso, elas tinham medo do senhor Artez. Você també m tem medo dele? Eu fico toda arrepiada quando ele olha para mim.

— Nã o, eu nã o tenho medo dele, mas é preferí vel nã o falar nesse assunto. E aconselho você a nã o comentar nada na cozinha, porque ele pode ouvir e nã o gostar.

— Deus me livre! — exclamou a criada fazendo o sinal da cruz.

Justine sorriu quando a moç a saiu correndo em direç ã o à cozinha, como se tivesse visto uma alma do outro mundo na sua frente. Sentiu uma certa pena de Artez. Se nã o fosse a cicatriz na face esquerda, ele seria um homem bonito.

Artez provavelmente tinha idé ia do efeito que produzia nas mulheres. Sabia que as aterrorizava ou fascinava, porque havia certamente algumas mulheres que se sentiam atraí das pela beleza do diabo. Mesmo sem a cicatriz, poré m, ele tinha algo de demoní aco. Afinal, era primo irmã o de Manolito, um verdadeiro demô nio de homem.

Ela tinha acabado de tomar o café, e estava chupando uma laranja, quando teve a impressã o curiosa de que havia algué m por perto. Suportou essa sensaç ã o durante meio minuto. Em seguida, olhou por cima dos ombros para a cerca de ficos que separava o pá tio do jardim.

Embora suspeitasse de quem estava ali, ficou tensa e inquieta quando avistou Artez. De calç a preta, justa no corpo, e malha de seda de mangas compridas, ele parecia uma pantera, perigosamente á gil e imprevisí vel. Num instante, como um cristal fino, a tranq6uilidade dela partiu-se ao meio.

— Você tem o andar silencioso dos felinos — disse, quando ele se aproximou da mesa. — Seu jeito de andar me deixa nervosa.

— Se os seus nervos estã o tã o sensí veis assim, vou assobiar uma mú sica toda vez que me aproximar de você.

Ele caminhou pelo piso de lajotas e assobiou lentamente o tema da corrida de touros da Carmen de Biset.

— Você nã o foge mais quando me aproximo?

— Depende... Se estiver na minha hora, sim.

— Você ainda tem quinze minutos — disse Artez olhando para o reló gio de pulso. — Gostou da laranja? Vamos dar uma volta pelo pomar e ver os pé s carregados de frutas?

Ele estendeu a mã o e levantou-a da cadeira.

— Eu tenho muito orgulho do nosso pomar. É bem diferente dos jardins cultivados que você encontra na Inglaterra. Há mais liberdade, mais espontaneidade na formaç ã o do pomar.

Como era cedo ainda, as teias de aranha estavam cobertas de orvalho e a luz do sol produzia efeitos fantá sticos nos fios finí ssimos. O pró prio ar estava impregnado do perfume das flores e dos frutos que brotavam perto dali. Os dois atravessaram o portã o de ferro, com o brasã o da famí lia no alto, e entraram no pomar.

Justine olhou deslumbrada para as fileiras interminá veis de á rvores que corriam pelo morro acima, algumas cobertas de flores, outras de frutos. Artez tinha razã o. Nã o havia pomares tã o belos quanto aquele na Inglaterra. O pró prio sol tinha penetrado nas frutas, amadurecendo-as, de modo que as laranjas, as tangerinas, os pê ssegos, as nectarinas e muitas outras variedades resplandeciam com uma cor dourada. O perfume das frutas estava suspenso no ar da manhã como o bouquet de um vinho raro e parecia subir à cabeç a. Justine estava tonta com o aroma inebriante. O cheiro dos limoeiros era diferente de tudo o que conhecia.

— Gostoso, nã o? — perguntou Artez com um sorriso. — As á rvores frutí feras se abandonam ao sol com uma naturalidade total...

— O ar tem cheiro de champagne. Há muitas uvas brancas no vale?

— Está repleto de uvas. As flores cheiram tanto como os barris de vinho que guardamos na adega. A gente fica zonzo de aspirar esse perfume. Você nã o está com a cabeç a meio tonta, como se tivesse tomado um copo de vinho em jejum?

— Estou — confessou Justine com um sorriso, encarando-o nos olhos.

Os dois estavam sozinhos no pomar, na companhia dos pá ssaros e das abelhas que zumbiam em volta das flores.

— Você está com boa cara esta manhã — disse Artez fitando-a com atenç ã o. — Você devia usar sempre os cabelos soltos. Esse penteado é mais bonito que o coque preso no alto da cabeç a.

— Eu tenho que prender os cabelos no hospital. Nã o se esqueç a que sou uma enfermeira.

— Mas é mulher antes de tudo. Como dono dessa casa, devia insistir para você andar de cabelos soltos e de saia curta, para mostrar as pernas bem feitas. As inglesas tê m essa vantagem sobre as mulheres dos outros paí ses. Elas tê m as pernas mais bem feitas de todas... sã o esguias, sem serem muito magras nem muito gordas. Por que você está me olhando com essa cara? Acha a conversa muito í ntima?

Ele deu um sorriso e estendeu o braç o para puxar o galho de um pé de limã o que estava pendurado no alto de sua cabeç a. Arrancou- o com um broto na ponta e estendeu-o para ela.

— Um homem como eu nã o devia fazer elogios gratuitos, nem dar a uma jovem viú va uma fruta azeda como limã o. Entretanto, apesar do meu rosto severo, sou um homem normal e você, apesar de ser viú va, é uma mulher como as outras. Se você deseja ocultar seu encanto feminino, nã o deve combinar a cor da blusa com a dos olhos, nem andar com os joelhos de fora. Você devia usar em vez disso a mantilha preta das viú vas espanholas.

— Você acha que eu vesti essa blusa de propó sito, para atrair sua atenç ã o? Eu nem pensava encontrá -lo até o momento em que você apareceu e me convidou para conhecer o pomar. Estava muito bem sozinha no meu canto, sem me preocupar com o que os outros pensam de mim.

— Eu nã o falei nada! Apenas reparei no seu jeito de vestir e de andar, como a gente admira essas á rvores cobertas de frutas. Será que um homem feio como eu nã o pode admirar a beleza?

Justine mordeu o lá bio e afastou a cabeç a na outra direç ã o. Ela nã o o julgava feio, apenas insensí vel, com algo de primitivo por baixo da pele morena.

— Você e eu nã o vamos concordar nunca sobre as coisas essenciais. Você acredita que o ú nico objetivo da mulher é agradar ao homem, enquanto eu penso diferente. Procuro fazer antes o que me agrada.

— Você agia assim quando casou com Matt?

— Claro, por que nã o? Matt era um homem civilizado. Nã o esperava que me dedicasse exclusivamente a ele. Compreendia que a mulher precisa se expressar alé m dos limites da casa e da famí lia. Mas de que adianta falar sobre isso? Você é espanhol e nã o vai entender nunca uma inglesa. Seu mundo está aqui neste vale, neste pomar. Sua dedicaç ã o está voltada para a terra e para o que ela produz. Você nã o se preocupa seriamente com os problemas humanos. Você gostaria apenas que as pessoas fossem perfeitas como essas á rvores frutí feras que crescem em silê ncio e produzem uma safra anual. A mulher poré m nã o é uma á rvore, feita apenas para florir e produzir.

— Você acha que nã o? Eu poderia provar que você se engana, mas infelizmente tenho trabalho a minha espera. Vamos deixar essa conversa para outro dia.

— Eu nã o desejo ouvir nenhuma liç ã o de humildade feminina de você. Guarde-as para as mulheres espanholas que apreciam a arrogâ ncia masculina mais do que eu.

Justine voltou-se rapidamente ao dizer isso e dirigiu-se para o portã o de ferro por onde tinham entrado. O portã o poré m era muito pesado e alto para ser movido por uma mulher de seu porte e foi obrigada a esperar ali até que Artez o abrisse.

Atravessou o portã o de cabeç a baixa e rumou diretamente para seu quarto, onde trocou a blusa e prendeu os cabelos no alto da cabeç a.

Cosima estava sentada numa cadeira de braç os, com uma revista na mã o, quando ela entrou.

— Bom dia. Como passou a noite? Dormiu bem?

— Dormi como uma pedra — disse Cosima levantando a cabeç a e notando a animaç ã o que havia nos olhos de Justine. — O que você estava fazendo? Está corada como se tivesse tomado sol no jardim. Por que nã o passou para me pegar?

Justine ficou sem jeito de mencionar a conversa e o passeio pelo pomar com Artez. Cosima era muito ciumenta e Justine nã o queria, de modo algum, dar a entender que havia alguma coisa entre os dois.

— Eu rasguei a meia num espinho e fui trocar por outra no quarto.

— Você passou rouge no rosto ou esse corado é sua cor natural? Está com cara de quem subiu correndo a escada. Ah, como eu invejo suas pernas finas e á geis. Você me faz sentir uma velha que se arrasta pela casa.

— Nã o diga bobagem. Você leu alguma coisa interessante na revista? — perguntou, mudando de conversa.

— Nã o. As mesmas futilidades de sempre.

Depois de executar algumas tarefas de rotina, Justine levou Cosima para o pá tio e colocou as revistas da semana em cima da mesinha ao seu lado, junto com frutas e biscoitos. Depois que Cosima diminuí ra a dose de comprimidos para dormir, tinha mais apetite e os contornos do rosto estavam se tornando mais arredondados.

Com um suspiro, a cabeç a apoiada em cima da almofada, Cosima olhou para o azul profundo do cé u que se avistava entre os galhos da paineira.

— O que você acha daqui? Está se habituando com nossa solidã o? Eu me lembro que você nã o gostou muito daqui quando chegou.

Justine olhou para as flores da paineira que balanç avam nos ramos da á rvore como velas cor-de-rosa, iluminadas pelo sol forte da manhã. Voltou a cabeç a e avistou os nenú fares que flutuavam em cima da á gua do repuxo, que enchia o silê ncio com sua caí da nas pedras. Dos canteiros vinham aromas diversos e a gatinha siamesa corria atrá s das lagartixas por entre as folhas secas.

— Eu tenho a impressã o, à s vezes, de estar sonhando quando olho em minha volta e nã o avisto o ambiente austero de um hospital inglê s. Descubro em vez disso que estou numa fazenda maravilhosa na Espanha. Você morou aqui a vida inteira e nã o estranha mais. Tudo isso lhe parece natural. Para mim, no entanto, é um encanto constante. Tenho à s vezes que tocar numa flor para ter certeza de que nã o estou sonhando.



  

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