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A MARCA DO DEMÔNIO 3 страница— Como posso esquecer que estive aqui? — exclamou Justine com os olhos brilhantes. — Você pelo jeito nunca gostou de ningué m, se pensa que é fá cil esquecer um sorriso, uma maneira de andar, a companhia que se ama. Quem você é, no fundo? Um homem insensí vel à s emoç õ es humanas? — Fique entã o! — exclamou Artez, soltando-a com um gesto tã o brusco que ela perdeu o equilí brio e bateu com o ombro na parede do banheiro. — Há um ditado que diz: " Quem vive no meio do demô nio tem que aprender a se queimar". Até mais tarde. Ao se ver sozinha, Justine fez massagem no ombro dolorido. Todo o ó dio acumulado nos ú ltimos dois anos contra Manolito tinha se voltado agora contra Artez. Os olhos dela ardiam de raiva. Tinha vontade de agredi-lo. Provavelmente Artez era em tudo igual ao primo e podia passar por cima dos outros sem voltar a cabeç a para trá s. Seguro de sua forç a fí sica, convencido de que seu coraç ã o era insensí vel à s dores normais que atingem os outros, derrubava todos que encontrava no caminho. Ou atropelava-os com seu carro possante... Justine mirou-se no espelho do banheiro e encontrou os mesmos olhos azuis claros, sem uma mancha de cinza, que Matt gostava tanto de contemplar em silê ncio. Avistou os cabelos prateados que emolduravam o rosto oval de traç os regulares. Ela podia punir o primo arrogante com seu corpo bem feito e seu rosto atraente. Artez julgava-se imune aos sentimentos do amor. Achava que as emoç õ es eram fraquezas das pessoas sensí veis. Ah, como gostaria de mostrar a ele que a arrogâ ncia podia ser posta de joelhos a seus pé s. Esquecer! Esquecer que Matt fora morto no dia do casamento, que todas as esperanç as e desejos foram mortos no mesmo instante, no momento em que um sino tocava ao longe e que um punhado de confetes caí a em cima de seus ombros, no momento em que correu na direç ã o de Matt, segurando a bolsa que a separara dele por alguns segundos. Os olhos refletidos no espelho do banheiro eram duros e frios como um diamante. Ela gostaria de mostrar a Artez o que era amar algué m e depois perder essa pessoa amada. Gostaria de ter o coraç ã o dele nas mã os e depois magoá -lo profundamente. Quando voltou para o quarto depois do banho, encontrou uma bandeja posta em cima da mesinha de cabeceira com um lauto café da manhã. Havia ovos fritos com bacon, um bule de chá, torradas com manteiga, gelé ias, biscoitos. A porta alta do quarto estava aberta de par em par e o sol traç ava desenhos suntuosos em cima dos tapetes orientais que cobriam o assoalho de tá buas largas. A cama fora feita durante sua ausê ncia e a mala estava colocada em cima de uma cadeira, ao alcance de sua mã o. Ela olhou mais uma vez para a cama e nã o conseguiu entender como tinha passado da cadeira de braç os, onde adormecera, para a cama enorme de casal, onde acordara na manhã seguinte. Quem a levara até lá? Por acaso Artez a carregara nos braç os enquanto estava vencida pelo sono? Nã o era por bondade certamente que tinha feito isso, pensou Justine de má vontade. Era simplesmente porque julgara seu dever levá -la para a cama. Afinal, ela era uma hó spede da casa e nã o podia dormir numa cadeira, por mais confortá vel que fosse! Ele devia ter passos silenciosos de pantera para levá -la até a cama sem acordá -la... Ou agira assim na esperanç a de que ela acordasse nos seus braç os, na escuridã o do quarto, e morresse de susto ao enxergar o rosto desfigurado pela cicatriz? Justine sentou-se na cama, abriu a mala e começ ou a arrumar as roupas no armá rio. Que vestido ia pô r? Um uniforme branco? A madrinha nã o dissera que a famí lia espanhola era muito livre e que nã o fazia questã o de protocolos? Justine deu um suspiro e apanhou o vestido azul e branco de um tecido leve, que nã o amarrotava na viagem. Em seguida, passou o pente nos cabelos e uma pintura rá pida no rosto. Tomou o café na sacada do quarto e tinha acabado de chupar uma laranja, quando uma empregada jovem entrou para levar a bandeja. A moç a fora informada evidentemente que a enfermeira inglesa falava espanhol com perfeiç ã o e explicou rapidamente que a marquesa estava a sua espera no salã o, onde gostaria de apresentá -la à filha. Justine acompanhou a empregada pelo corredor, inquieta e nervosa diante da perspectiva de encontrar-se com a jovem. Ela nã o podia saber que seu irmã o tinha causado uma infelicidade tã o grande na vida de Justine quanto a paralisia na dela. As duas desceram a escada em curva e foram dar num vestí bulo amplo, onde se encontraram com Artez, que saiu de uma das salas que se comunicava com o hall. — Pode voltar para a cozinha, Pepita — disse ele. — Vou conversar um instante com a enfermeira antes de levá -la à presenç a de minha tia. A moç a lanç ou um olhar assustado na direç ã o dele e, com uma pequena inclinaç ã o da cabeç a, apressou-se em obedecer sua ordem. — Todas as empregadas novas se assustam com minha cara — comentou Artez com um sorriso. — O que você quer falar comigo? — perguntou Justine sem prestar atenç ã o à ironia do comentá rio. Artez estava inclinado sobre um dos pilares que sustentavam os arcos da sala e havia algo terrivelmente inquietante na sua presenç a, por mais descontraí da que fosse. Estava com uma camisa branca de cambraia que acentuava a cor morena da pele e o olhar indolente era mais perturbador de dia que de noite. Ele usava a noite como se fosse uma má scara que encobria as feiç õ es verdadeiras, mas agora ela o enxergou como o homem que era de fato, sem nenhum vestí gio de simpatia ou de ternura no rosto satâ nico. — Eu queria preveni-la para nã o dizer nenhuma palavra inconveniente a minha tia. Se você pretende ficar aqui, é bom tomar cuidado para nã o mencionar nada com respeito a Manolito. Seria muito cruel avivar a dor de algué m que já sofreu muito com a morte do filho. — E eu, nã o sofri porventura todo esse tempo? — Você é moç a. Sua vida pode ser começ ada de novo. Minha tia poré m vive unicamente de recordaç õ es. Eu nã o quero que ela sofra mais do que já sofreu. Estamos entendidos? — Você me julgou e agora é minha vez de julgá -lo. Você pensou que eu fosse uma viú va que estava atrá s de um homem rico... Seria você porventura o ricaç o? — Eu? Você está sonhando. Eu nã o me deixaria seduzir por seus olhos azuis, nem por seus cabelos prateados. - — E quem lhe disse que eu gostaria de seduzi-lo? Seria o mesmo que riscar um fó sforo num vidro. — Seus olhos azuis nã o me enganam. O olhar que você me dirige só tem duas interpretaç õ es: ó dio ou compaixã o. — Você nã o inspira compaixã o — disse Justine fitando-o com atenç ã o. — Por que lhe ocorreu essa idé ia? — E amor? Alguma mulher pode sentir amor por mim? — perguntou Artez dando um passo à frente. Antes que ela pudesse recuar, estava encurralada num canto da sala tendo diante de si a figura alta, forte, arrogante de Artez. Indiferente aos sentimentos que ela podia ter por ele, fosse ó dio ou amor, fitava-a com uma intensidade inquietante. — Eu nã o me assusto com sua cicatriz — disse Justine, mirando-o com desconfianç a. — As cicatrizes sã o superficiais. O importante é o que está no coraç ã o do homem. Você exagera a reaç ã o que seu rosto provoca nas pessoas. Você usa isso como um pretexto para manter os outros à distâ ncia. Você odeia a intimidade... — Você acha que sabe muita coisa a meu respeito apó s dois breves encontros? — Você també m supô s o mesmo. — No fundo, você está magoada porque eu disse que seus cabelos eram oxigenados. Eu lhe peç o perdã o por meu engano. Depois de ter visto tantas louras falsas nas praias da Espanha, eu pensei que uma loura verdadeira fosse algo tã o raro quanto a ave-do-paraí so. — Nã o sã o apenas as inglesas que freqü entam as praias da Espanha. — Eu sei que nã o. Mas isso nã o vem ao caso. O que me interessa no momento é você prometer nã o falar nada sobre o acidente ocorrido com seu marido. — Você fala como se tivesse autoridade para me silenciar. A fazenda nã o é da marquesa, por acaso? — É, mas eu sou o ú nico homem na casa. — Ah, entendi! Você é o patrã o que manda e desmanda — comentou Justine com irritaç ã o. — Exatamente. Pelo visto, nó s nos entendemos perfeitamente. Minha tia tem mais coisas para se preocupar do que com os empregados da casa. Como lhe disse ontem à noite, eu fui contra a vinda de uma enfermeira de fora para tratar de minha prima. É verdade que Cosima nã o melhorou nada nas mã os das enfermeiras espanholas que estiveram aqui antes. O problema dela é de fundo nervoso, como você deve saber. A rejeiç ã o do marido influenciou sua condiç ã o fí sica. Se você puder fazer alguma coisa para ajudá -Ia, muito bem. Nó s todos lhe ficaremos gratos. Antes, poré m, você vai prometer nã o comentar nada com minha tia a respeito de Manolito e do acidente com seu marido. — Você acha mesmo que eu vou me atirar aos pé s da marquesa e contar que o filho dela matou meu marido? Que idé ia você faz de mim? — Uma mulher que deseja se vingar de uma injustiç a é tã o perigosa quanto uma mulher desprezada. Ontem à noite você estava decidida a partir imediatamente daqui. Hoje você resolveu ficar. Por que mudou de idé ia? O que lhe passou pela cabeç a? Alguma forma de vinganç a contra algué m da famí lia? — Ridí culo! Eu nã o faria nunca uma coisa dessas! — Tem certeza? — perguntou Artez fitando-a no fundo dos olhos. — Você é mulher e somente um louco imagina conhecer tudo que se passa na cabeç a de uma mulher. A mente feminina é enroscada como a cobra que anda no jardim, entre as pedras. E foi assim desde o iní cio, quando Adã o se deixou seduzir por Eva. Tome cuidado, enfermeira. Eu estou de olho em você e nã o vou permitir que faç a alguma coisa que magoe a marquesa. Ela já teve sua cota de sofrimento nesta vida e significa mais para mim do que uma garota de cabelos platinados. No fundo, você nã o passa de uma crianç a, sabia? Você nã o provou ainda a paixã o verdadeira. Tudo é permitido no paí s de onde você vem, tudo menos a paixã o ardente que exige um abandono total de si mesmo. As inglesas estã o acostumadas a receber desde o momento em que nascem, mas nã o aprenderam ainda a dar. Ela fitou-o em silê ncio, sem saber o que dizer. Havia muita verdade no seu comentá rio. Era por vinganç a realmente que decidira ficar na casa? Para dirigir todo o ó dio reprimido no coraç ã o contra um membro da famí lia de Manolito? — O que foi? Você perdeu a lí ngua? — Você é sempre seguro de si mesmo? Você nunca duvida dos motivos que o levam a agir? — Nã o, nem sempre. — Ele fitou-a com atenç ã o durante um momento. — Você perdeu o marido no dia do casamento? — Sim, perdi. Algumas horas depois de me casar. — Isso foi suficiente para despertar em você o desejo de vinganç a? — Você tem medo que eu fique aqui? — Eu, medo de você? — Ele deu uma risada de zombaria. — Por que você pergunta isso? Você pretende por acaso assumir o papel de Dalila contra Sansã o? Eu acho que você nã o tem condiç õ es para isso. Você é muito ingê nua e inexperiente... — Eu nã o pretende seduzi-lo — negou Justine com vivacidade. Nos olhos dele, poré m, havia uma incredulidade que a deixou sem jeito. Ela abaixou a cabeç a e tentou soltar-se da mã o que a segurava pelo pulso. No mesmo instante, com um reflexo de animal selvagem, Artez envolveu-a com o outro braç o pela cintura e aproximou-a de seu peito. Os olhos azuis fitavam olhos negros. A forç a dele era superior e Justine nã o sabia, até aquele momento, que podia sentir-se tã o indefesa nos braç os de um homem. Nunca tinha acontecido isso antes e sua reaç ã o foi um arrepio de pâ nico. — Solte-me! — berrou assustada. Quando o sorriso sardô nico atravessou os lá bios dele, ela lhe deu um tapa com toda forç a na face esquerda, bem em cima da cicatriz que desfigurava o rosto. — Você nã o gosta do meu rosto? Sente repugnâ ncia por mim? Por que nã o deixa eu encostar o rosto no seu? Ela sentiu o há lito quente na face e, logo depois, os lá bios finos desceram sobre sua boca. Fazia dois anos que nã o era beijada por ningué m e a violê ncia desse beijo nã o se parecia nada com os beijos carinhosos de Matt. Era como uma chama que ardesse num terreno descampado. A ú nica coisa que tinha consciê ncia no momento era do corpo musculoso que a cingia com forç a e da boca possessiva que machucava a sua. No momento em que ele a soltou, ela perdeu o equilí brio e apoiou-se na curva da arcada. — Você é um demô nio! — murmurou com os olhos brilhantes. — Igual a seu primo. — Quem? Manolito? Ele observou-a com atenç ã o, as mã os enfiadas nos bolsos. — É, Manolito. Seu primo assassino. — Ela atirou a cabeç a para trá s com insolê ncia e havia ó dio nos olhos azuis. — Você tem a marca do diabo no rosto. — Você quer partir agora? Eu posso providenciar o carro para levá -la à estaç ã o. — Nã o! — gritou Justine com fú ria. — Eu nã o vou fugir de você, se é isso que você quer! Eu vou ficar aqui, você queira ou nã o queira. — Eu nã o aprovo sua decisã o. Mas se você vai ficar, é bom dormir na cama que lhe deram, e nã o na cadeira. Aqui faz muito calor à noite e os mosquitos nã o dã o sossego. Você deve dormir embaixo do cortinado que tem, no quarto, para nã o acordar mordida e vermelha de picadas no dia seguinte. — Ah, foi você entã o! — exclamou ela, mordendo o lá bio, de despeito. — Eu nã o pensei nos mosquitos quando dormi ontem à noite. Aquela cama enorme de casal me assustou. — Mas é preferí vel dormir nela do que apanhar uma febre. — Vou seguir seu conselho. — Você nã o vai me agradecer por tê -la levado para a cama no meio da noite? — Muito obrigada — murmurou Justine rapidamente, desejando de todo coraç ã o esquecer aqueles instantes em que estivera nos braç os dele. — Era só isso que você queria me dizer? — Sim, era. — Você vai me levar agora para conhecer sua prima? — Pois nã o. Com muito prazer. Artez acompanhou-a pelo vestí bulo com seu passo silencioso e introduziu-a na sala de estar, onde fez meia-volta com um sorriso irô nico nos lá bios. — Boa sorte. Justine controlou-se para nã o voltar a cabeç a, mas foi em vã o. Ele era um homem surpreendente em diversos aspectos, alé m da altura acima da mé dia para um espanhol. Um homem estranho, misterioso, que tratava as mulheres com indiferenç a, como se fossem mosquitos que o incomodassem.
CAPÍ TULO III
Justine procurou assumir uma atitude tranqü ila quando dirigiu o olhar ao redor de si e percebeu, no mesmo instante, que nã o havia na sala nenhum objeto moderno. Tudo parecia estar no tempo em que a fazenda fora construí da. A sala de estar tinha o aspecto gracioso de um ambiente em que os mó veis sã o escolhidos um a um e tratados com muito cuidado. Os tapetes estampados, com motivos de influê ncia á rabe, estavam protegidos dos raios de sol por cortinas pesadas de veludo. A famí lia nã o enriquecera rapidamente nos ú ltimos anos. Tinha, pelo contrá rio, uma longa tradiç ã o no sul da Espanha, onde há muito tempo atrá s os á rabes dominaram e impuseram seus costumes. Havia algumas pinturas de Goya nas paredes; uma delas era o retrato de uma mulher com um vestido cor-de-rosa e um cravo vermelho nos cabelos; a outra era de um toureiro na sua veste tí pica, ricamente bordada com fios de ouro. Os tons da carne eram soberbos, os olhos vivos e muito negros, as cores prodigiosas por seu realismo. — Gostou das pinturas? — perguntou a marquesa aproximando-se dela. — Goya foi um grande mestre espanhol. — É a primeira vez que vejo Goyas autê nticos numa casa particular — disse Justine deslumbrada. A marquesa estava com um vestido de linho branco e uma blusa preta abotoada até o pescoç o. Os cabelos eram muito brancos e perfeitamente assentados na cabeç a; havia uma certa curiosidade no olhar que dirigiu à enfermeira Inglesa que ia cuidar de sua filha. — Você é uma moç a muito singular, Justine — comentou a marquesa. — Eu me pergunto como você teve coragem de sair de Londres para passar uns tempos aqui. Há algo em você diferente das enfermeiras que estiveram aqui antes. Você é muito feminina para ter ambiç õ es profissionais. Na carta que a condessa me escreveu, ela deu a entender que você nã o tinha um cí rculo grande de amizades e que dedicava a maior parte do tempo livre ao trabalho. Eu esperava encontrar por isso uma moç a severa, compenetrada, menos bonita e atraente que você. — Sinto muito que as palavras da condessa tenham criado essa impressã o falsa — respondeu Justine educadamente. Na realidade, poré m, era ela que podia se queixar de ter sido iludida pelas palavras da madrinha. — Depois que perdi meu marido, eu me desinteressei completamente da vida social e me dedico de corpo e alma ao trabalho. Nã o tenho realmente a intenç ã o de casar de novo. — Se uma mulher da minha idade dissesse uma coisa dessas, seria compreensí vel, mas uma moç a como você... Por favor, sente-se ali — disse a marquesa apontando para o sofá cor de mostarda. — Isso nã o é uma entrevista. É apenas uma conversa amigá vel entre duas pessoas que estã o interessadas em se entenderem desde o iní cio. Eu nã o quero que você me considere uma patroa ranzinza e espero que você nã o seja apenas a enfermeira eficiente que trata da minha filha. Meu propó sito ao convidá -la para vir aqui era que você se tornasse uma confidente de minha filha. Você é uma viú va jovem e bonita. Você sabe o que é perder uma pessoa que se ama. Você s duas tê m isso em comum e espero que sejam amigas, porque Cosima necessita muito de algué m em quem posso confiar. O que você me diz, Justine? Seu nome é muito raro e significativo. Será que foi o destino que dirigiu seus passos até nossa casa? Justine estava sentada na beira do sofá, diante da marquesa. A mulher de idade sorriu e inclinou-se para a frente, colocando a palma da mã o no seu joelho. — Por que você está nervosa? Você nã o acha que será feliz nesta casa? Está arrependida de ter saí do de Londres? Por que você veio se nã o tinha certeza de sua escolha? — Eu achei que precisava de uma mudanç a — disse Justine, sentindo-se mais à vontade na presenç a da marquesa. Nã o era certamente por vinganç a que aceitara passar uma semana na casa, como Artez dera a entender na conversa anterior. — Uma mudanç a faz sempre bem e nã o há dú vida que você tem razã o para lastimar a perda do marido. Você nã o teve tempo para conhecer a felicidade... — disse a marquesa com um suspiro, olhando para o anel de rubi que tinha na mã o. — Num certo sentido, poré m, eu preferia que Cosima fosse viú va a ser separada do marido. Pelo menos nã o teria mais a esperanç a de voltar para ele. Como ela pode amá -lo depois do que aconteceu? Isso é um misté rio que eu nã o entendo. Mas o que se há de fazer? O amor é um misté rio. Ele vem como uma flechada, provocando dor e prazer ao mesmo tempo. Quem pode proteger-se do amor? Cosima foi sempre muito vulnerá vel e é por isso que ela sofreu tanto quando Miguel a deixou no momento em que precisava desesperadamente dele. A marquesa recostou-se no sofá e os olhos bonitos demoraram-se sobre a pintura do toureiro que estava na parede a sua frente. — Anos atrá s eu perdi meu filho, Justine. Cosima por isso é duplamente cara para mim. Eu lhe disse antes que desejava de todo coraç ã o que ela casasse com o primo, mas as moç as sã o atraí das por um rosto bonito. Quando Miguel apareceu um dia em nossa casa, eu tive minhas dú vidas a respeito dele, mas pensei que Cosima seria feliz pelo grande amor que lhe dedicava. Eu devia ter sido cruel. Eu devia ter impedido esse casamento. Cosima era muito crianç a para escolher sozinha um marido e me obedecia cegamente. Talvez você nã o saiba que meu marido foi morto em Estremadura, onde tí nhamos uma fazenda de criaç ã o de cavalos. Os dois meninos estavam lá nessa ocasiã o, meu filho Manolito e Artez, seu primo. Ambos tinham a mesma idade. Foi uma grande tragé dia! Houve um incê ndio nas cocheiras e meu marido morreu queimado. Eu pensei que fosse ficar louca com o acidente. O que me salvou foi o cuidado que Artez necessitou de mim, porque ele ficou gravemente ferido durante o incê ndio e foi lá que adquiriu a cicatriz que tem até hoje. Foi a atenç ã o diá ria e constante que lhe dediquei que me salvou do desespero. Eu sei o que é perder um marido que se ama... Justine ouviu atô nita a confissã o da marquesa. Era horrí vel pensar que aquela mulher bem-educada e bondosa tivesse sofrido tanto com a tragé dia que desabara sobre a famí lia. Ela parecia tã o calma, tã o impecavelmente controlada e sem reaç õ es violentas. Tinha berrado no seu desespero como ela? Revoltara-se contra o destino? Acusara algué m pelo crime? — Foi um acidente? — perguntou em voz baixa. — Nunca ficamos sabendo, mas é prová vel que sim. Um cigarro aceso atirado ao chã o, quem sabe? A palha que estava guardada ali pegou fogo imediatamente. Foi entã o que Artez recebeu a cicatriz na face, como lhe disse. E com isso eu perdi as esperanç as que casasse um dia com Cosima. — As meninas dessa idade sã o muito sensí veis à beleza fí sica — comentou Justine em voz baixa, enquanto pensava consigo se Artez seria de fato um bom marido para Cosima. Procurou imaginá -lo apaixonado por algué m e só pô de visualizar um homem que se sentia violentamente atraí do pela mulher, sem deixar-se envolver pela ternura e pelo amor. — Pois é — concordou a marquesa. — Eu tenho a impressã o de que você nã o simpatizou muito com meu sobrinho. Artez é um homem de poucas palavras e nã o está acostumado à s conversas de salã o. Nisso ele nã o é um espanhol tí pico. Os espanhó is sã o conhecidos pelo espí rito adulador e falante. A avó paterna de Artez era austrí aca e talvez isso explique em parte seu temperamento severo. Ela era uma mulher notá vel que dirigia sozinha um hotel no interior da Austria. Era alta, desembaraç ada e prá tica, dotada de uma personalidade muito forte, que passou ao neto. — Entendo — comentou Justine, intrigada com a histó ria. — Isso explica també m sua altura. Ele é mais alto que a maior parte dos espanhó is que conheci. Entretanto, apesar do sangue austrí aco, ele nã o aprecia muito as mulheres claras, de cabelos louros, como deu a entender numa conversa que tivemos. Imagine só, ele me acusou de tingir os cabelos... A marquesa deu um sorriso de compreensã o. — Ah, nã o se ofenda com isso, minha querida. Os homens nã o entendem nada dessas coisas. Há muito tempo, antes que as mulheres da Europa invadissem nossas praias, o espanhol tinha uma idé ia româ ntica dos povos do norte. Eu penso que esse ideal foi por á gua abaixo quando surgiu o biquí ni em nossas praias. Foi entã o que os espanhó is passaram a achar que todas as mulheres de pele clara eram levianas e frí volas. — Isso passa — comentou Justine. — Em Madri as moç as espanholas se vestem à maneira europé ia e minha madrinha me disse que atualmente os rapazes saem com as namoradas sem pedirem a permissã o aos pais, como era o costume antigamente, no tempo dela. — Ah, sim, em Madri isso se faz — concordou a marquesa com frieza. — Mas nó s aqui estamos no sul da Espanha, onde os costumes antigos prevalecem. Uma moç a daqui tem que tomar muito cuidado com sua reputaç ã o, caso contrá rio nã o encontrará um rapaz decente que a queira como mulher. O sistema antigo continua presente em Xanas e os pais ainda decidem sobre a escolha dos maridos, especialmente se a menina é bonita e possui uma bela heranç a. As pessoas de fora acham que somos antiquados em nossos há bitos e talvez tenham razã o. O que você pensa? Justine balanç ou a cabeç a negativamente. — Eu admiro muito a cortesia dos espanhó is, como é o caso do conde Calva, um homem extremamente educado e polido, impecavelmente vestido e bem tratado. Muitos espanhó is conservam ainda hoje a elegâ ncia impecá vel que fascina tanto os ingleses e as inglesas. Eu creio que, mesmo as feministas, preferem os homens educados aos homens grosseiros e vulgares. É por isso provavelmente que elas invadem as praias da Espanha todos os anos. Por sinal, até os garç ons espanhó is sã o extremamente polidos. — É um traç o da nossa raç a — comentou a marquesa pensativa. — Da mesma forma que a crueldade é hereditá ria. Nó s somos muito crué is em certas ocasiõ es. O marido de Cosima, por exemplo, foi extremamente cruel com ela e Manolito; meu filho foi muito cruel comigo... Bem, nã o vamos falar nesse assunto. Eu penso que nó s duas nos conhecemos um pouco melhor agora. Eu desejo de todo coraç ã o que você seja amiga de minha filha. — Vou me esforç ar ao má ximo, senhora marquesa. — Eu aviso desde já que nã o vai ser fá cil. A doenç a e a infelicidade de ter perdido o homem que amava deixaram marcas profundas na personalidade de minha filha. Quando ela era menina, todos gostavam muito dela. Agora, poré m, ela se tornou amarga e irritá vel. Você tem que ser firme com ela, caso contrá rio ela recai na melancolia profunda que tanto me preocupa. Meu sobrinho trata-a com muita firmeza e os dois se dã o muito bem, apesar disso. — Eu faç o idé ia — disse Justine impulsivamente. — Nã o interprete mal minhas palavras. Eu nã o disse que Artez é grosseiro com ela. Pelo contrá rio, ele gosta muito dela e lhe faz todas as vontades. Mas ele tem ao mesmo tempo um pulso forte que a torna sensí vel e obediente a suas palavras. — Ele me disse que foi contrá rio a minha vinda aqui — observou Justine sem jeito, mordendo o lá bio. — Espero poré m que ele nã o interfira no meu trabalho. Eu nã o gostaria de depender das ordens dele, senhora marquesa. Nó s temos opiniõ es muito diferentes a respeito do que seja o melhor tratamento para Cosima.
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