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A MARCA DO DEMÔNIO 1 страница



A MARCA DO DEMÔ NIO

" Dearest Demon"

Violet Winspear

 

 

 

Artez era um espanhol muito cruel, e estava comprometido com outra mulher. De que adiantava Justine amá -lo daquela maneira?

 

Resumo: Desde a morte de seu marido, há dois anos, atropelado no dia do casamento, Justine tinha se fechado em si mesma, fazendo de seu trabalho como enfermeira a ú nica razã o de viver. Agora, ali naquela fazenda ensolarada no sul da Espanha, ela se sentia viva outra vez. Viera para cuidar de Cosima, uma jovem paralí tica, e ficou imediatamente fascinada por Artez, primo de Cosima, um espanhol atraente e cruel, em cujas veias parecia circular o sangue do pró prio demô nio. Mas Artez estava comprometido com Cosima e Justine devia voltar para a Inglaterra e esquecê -lo. O destino ia ser, novamente, tã o impiedoso com ela?

 

 

Digitalizaç ã o/ Revisã o: m_nolasco73

 

 

 

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.

Sua distribuiç ã o é livre e sua comercializaç ã o estritamente proibida.

 

CAPÍ TULO I

 

As sombras pareciam mais compridas no momento em que o sol se pô s com uma beleza incandescente e o cé u assumiu uma tonalidade azul-violeta. A paisagem tinha um encanto irreal e Justine ficou na dú vida, no primeiro instante, se estava sonhando ou viajando realmente de trem pelos campos e vales dourados, onde avistava de tempos em tempos fazendas de criaç ã o e ruí nas de antigos castelos.

Ela preferia viajar de dia mas nã o encontrou, infelizmente, nenhuma passagem nos ô nibus e no trem diurno. Todos os bilhetes tinham sido vendidos com antecedê ncia, como a condessa lhe advertira, e Justine nã o discutiu com a mulher que morava no paí s há mais de vinte anos e que, antes de casar com um espanhol, fora amiga í ntima de sua mã e.

Justine era enfermeira diplomada e, até o momento, trabalhara exclusivamente em hospitais. Agora, pela primeira vez, ia atender um caso particular. Tratava-se de Cosima, uma jovem de vinte e poucos anos que perdera o uso das pernas em conseqü ê ncia da poliomielite, surgida em plena lua de mel. Pouco depois dessa crise, a jovem paralí tica foi abandonada pelo marido, o espanhol Miguel. Os conhecidos comentavam que ele estava vivendo com outra mulher na mesma localidade. Profundamente abalada e deprimida com o fato, Cosima caiu num estado de melancolia e depressã o que alarmou a famí lia.

Decidiram entã o, por sugestã o da condessa, contratar os serviç os de uma enfermeira inglesa para cuidar temporariamente da enferma.

" Você é a pessoa indicada para o caso", escreveu a condessa na carta que dirigiu a Justine. " Você atravessou recentemente uma crise semelhante ao perder o marido num acidente. Você s duas tê m uma coisa em comum — perderam algo inestimá vel durante a lua de mel. "

Justine perdera o marido, um mé dico brilhante que prometia vir a ser um cirurgiã o excepcional, na saí da do restaurante onde pararam para almoç ar no primeiro dia de casados. Justine esqueceu a bolsa no restaurante e deu uma corrida para apanhá -la. Ao voltar para o carro, encontrou o homem com quem estava casada há apenas seis horas atropelado por um motorista irresponsá vel. O grito de horror que ela deu ao presenciar a tragé dia ainda atormentava suas noites solitá rias.

Justine encostou a cabeç a na poltrona e fechou os olhos, embalada pelo ritmo monó tono do trem. Teria adormecido em poucos minutos se nã o estivesse tã o apreensiva com a viagem para uma cidade estranha no sul da Espanha, onde nã o conhecia ningué m. Felizmente ela falava bem o espanhol. Passara muitas fé rias na fazenda da condessa, na companhia de sua mã e, quando era menina. Aprendera a falar espanhol perfeitamente e muitos nã o notavam nenhuma diferenç a na sua pronú ncia.

Justine sorriu consigo mesma. Quem podia imaginar que o conhecimento da lí ngua, adquirido na infâ ncia, iria servir mais tarde, quando era uma mulher de vinte e quatro anos?

Fazia dois anos que Matt morrera no acidente de automó vel... dois anos de solidã o e de sofrimento, durante os quais Justine perdeu muito de sua alegria anterior e passou a ser uma jovem eficiente, compenetrada e independente.

Ela nã o ia casar de novo — disso estava certa. Matt fora o mundo para ela e nunca mais se sentiria tã o integrada com outro homem. Sua grande tristeza era o casamento nã o ter-se consumado fisicamente. Matt era muito disciplinado por natureza e nunca sugerira um contato í ntimo durante o noivado. Ele teria sido por isso um excelente cirurgiã o, bem como um marido carinhoso e está vel. A vida dos dois prometia ser harmoniosa e tranquila, sem grandes altos e baixos.

Amor, aventura, casamento — eram palavras que tinham perdido o sentido para ela. Aos vinte e quatro anos, dava-se por satisfeita em ser uma profissional competente. Cultivava, alé m disso, algumas amizades escolhidas que ocupavam seu tempo livre. Agora nã o pedia mais nada da vida. Isso lhe bastava no momento. Matt desaparecera para sempre, da mesma forma que a mã e, alguns anos antes.

Ela deu um suspiro. O que adiantava fazer planos para o futuro? Havia sempre algum imprevisto que levava todos os planos por á gua abaixo. Quando poderia prever, um mê s atrá s, que viajaria um dia para Santa Leone, a fim de trabalhar numa casa de famí lia? Ao receber a carta da condessa, que era sua madrinha, a sua primeira reaç ã o foi responder que nã o podia abandonar no momento o trabalho no hospital. Uma noite, entretanto, no meio da semana, sentou-se na mesinha do quarto e escreveu uma carta à madrinha onde dizia, entre outras coisas, que aceitava o convite para trabalhar algum tempo no estrangeiro e que estava pronta para embarcar numa data combinada.

Tempos depois, apó s longa viagem, estava no trem noturno com destino à Espanha, mais precisamente a cidade de Xanas, no sul da Espanha, que conservava ainda, apó s tantos anos, alguns vestí gios da ocupaç ã o á rabe.

 

Era quase meia-noite quando um solavanco mais forte acordou-a do cochilo. Olhou para o reló gio de pulso, dentro em pouco chegaria ao seu destino. A estaç ã o chamava-se Xanas, palavra espanhola que significa fabuloso, encantado.

" Xanas", repetiu consigo mesma, com a pronú ncia impecá vel. Em seguida, abriu a bolsa de couro que comprara em Madri, onde a madrinha e o marido tinham um apartamento, e retirou de dentro o pente e o espelhinho. Os cabelos claros caí am suavemente e necessitavam apenas de algumas passadas do pente para ganharem um pouco de vida. Justine tinha també m a pele clara das inglesas.

 

Embora o responsá vel pelo acidente de seu marido tivesse sido condenado a pagar uma indenizaç ã o à viú va pela maneira irresponsá vel e imprudente como dirigia o carro, Justine passou a odiar todos os homens indistintamente depois daquela ocasiã o. Nã o podia suportar nem mesmo que a tocassem de leve e recebia sem o menor sentimento de agrado os elogios que lhe dirigiam. Quando um homem lhe fazia uma proposta, ou simplesmente convidava-a para um programa, ela limitava-se a encará -lo friamente com os olhos azuis, muito grandes e luminosos, demonstrando profunda repulsa ao convite. A verdade é que o acidente marcou-a para sempre. Transformou-a da noite para o dia numa mulher reservada, distante, cujas emoç õ es eram frias como gelo.

 

Depois de ajeitar os cabelos e retocar rapidamente a pintura, ela apanhou suas coisas que estavam no compartimento superior da cabine e procurou normalizar o tremor que lhe percorria o corpo. Em geral, era muito calma, mas aquela era a primeira vez que viajava sozinha, sobretudo em circunstâ ncias como essa, no meio da noite, num paí s parcialmente estranho, onde nã o conhecia praticamente ningué m. Estava apreensiva, alé m do mais, com a perspectiva de morar numa fazenda distante, perdida no meio do agreste.

Cosima, a filha paralí tica da marquesa de Obregon, nã o se conformava com a existê ncia de invá lida, nem conseguia esquecer o homem que a abandonara num momento de dificuldade. Ela passava os dias mergulhada numa melancolia profunda e as enfermeiras espanholas que foram chamadas para tratá -la nã o tiveram nenhum sucesso e todas admitiram que era um caso sem soluç ã o. Foi entã o que a condessa lembrou de oferecer à marquesa os serviç os profissionais de sua afilhada.

Justine foi a ú nica passageira a descer na estaç ã o de Xanas. O trem em marcha lenta seguiu o seu caminho. Ela foi tomada, no primeiro instante, por uma impressã o de pâ nico. Teve vontade de subir no trem de novo, em vez de andar sozinha pela plataforma escura e deserta. Mas isso era uma reaç ã o infantil!, pensou consigo. Nã o podia faltar com a palavra dada.

Apanhou a mala pesada que estava pousada no chã o e, com um suspiro de resignaç ã o, rumou em direç ã o à sala de espera, onde um funcioná rio sonolento murmurou entre os dentes que ningué m viera esperar por ela até o momento.

— Sente-se um pouco. Eles nã o devem demorar.

— Eu vou dar uma volta a pé para esticar as pernas. A viagem foi muito cansativa e estou com o corpo todo dolorido.

— Você vai passar a noite no hotel? — perguntou o homem, com a curiosidade natural dos espanhó is.

— Nã o, penso que nã o. Pretendo ir para a Casera de las Rejas. Eu sou a nova enfermeira da senhora Arandas.

— Nã o diga! A dona da casa está doente? Nã o ouvi falar nada.

— A filha — explicou Justine. — Ela nã o pode andar. Está paralí tica.

— Ah, sim, a filha. Eu pensei que fosse a marquesa que estivesse doente. Graç as a Deus ela está bem de saú de.

— A marquesa? Que marquesa? — perguntou Justine, com certo espanto.

— A dona da casa. A mã e da senhora Cosima. As duas moram na fazenda.

Justine franziu a testa, pensativa. Por que a madrinha nã o mencionara esse fato?

— Estou ouvindo um ruí do na rua — disse o homem caminhando em direç ã o à porta da estaç ã o.

Cascos de cavalos martelavam as pedras irregulares da rua e Justine avistou na escuridã o da noite uma charrete aproximar-se, puxada por dois magní ficos animais. O veí culo parecia tã o antigo que Justine teve a impressã o de estar num outro mundo, numa outra é poca, onde as pessoas usavam vestidos compridos e golas rendadas em forma de sanfona.

Um homem moreno saltou da charrete e caminhou a passos rá pidos para a estaç ã o. As luzes da rua eram muito fracas e amareladas para que ela pudesse distinguir perfeitamente as feiç õ es do desconhecido. Pensou que fosse algum criado da casa que fora esperá -la na estaç ã o.

— Desculpe o atraso — disse o homem, apanhando a mala que estava colocada no chã o.

— Nã o foi nada. Eu desembarquei neste minuto — respondeu Justine.

O homem era excepcionalmente alto e ela foi obrigada a levantar a cabeç a para fitá -lo no rosto. Os cabelos dele eram tã o negros que pareciam invisí veis na escuridã o e o brilho dos olhos eram intensos como os de um animal feroz. Ela sentiu-se mais nervosa ainda com a altura e o olhar do homem.

— É só isto, a sua bagagem? — indagou o homem.

— Só. A mala maior foi despachada num outro trem.

— Entã o podemos partir, pois a viagem até a fazenda é rá pida, mas um pouco cansativa para quem nã o está acostumado.

Ele fez um gesto com a mã o em direç ã o à charrete que estava parada na rua. Justine procurou comportar-se com naturalidade quando o homem estendeu a mã o e ajudou-a a subir no banco alto do veí culo.

— Gracias! — respondeu Justine, um tanto preocupada pois nã o sabia qual seria o seu destino a partir daquele momento.

O homem pulou com agilidade no alto da charrete e balanç ou as ré deas com vigor. No mesmo instante os dois magní ficos cavalos se puseram em marcha, afastando-se da estaç ã o num trote largo e compassado. Minutos depois, tomaram a estrada escura que serpenteava diante deles.

Justine sabia que Xanas era um lugar perdido no interior da Espanha, mas nunca pensou que as pessoas ainda andassem de charrete. O povoado devia ficar numa outra direç ã o, porque nã o avistou nenhuma casa ou habitaç ã o durante um certo tempo.

As lanternas que havia na frente da charrete iluminavam apenas alguns metros da estrada e Justine enxergava vagamente o homem que ia ao seu lado. Estavam passando agora por uma regiã o agrí cola e os arbustos altos balanç avam ao vento com um ruí do caracterí stico. Se eram campos de trigo, eram certamente os pé s mais altos que ela tinha visto na vida.

— Que plantaç ã o é essa? — perguntou, rompendo o silê ncio que pesava entre os dois. — Sã o pé s de trigo?

— Nã o. Isso é uma plantaç ã o de cana-de-aç ú car — explicou o homem. — Essa regiã o é bastante ensolarada e abrigada pelas montanhas. Muitas plantaç õ es por isso sã o do tipo tropical. Eu espero que você nã o estranhe nosso clima. Seria muito desagradá vel fazer uma viagem tã o longa e nã o se acostumar com o clima daqui. Pessoalmente, eu acho que uma enfermeira espanhola se daria melhor nesta regiã o.

— Pode ser — concordou Justine sem muita convicç ã o. — Mas, pelo que ouvi dizer, as enfermeiras espanholas nã o foram muito bem sucedidas. Elas acentuavam a melancolia da paciente com suas histó rias tristes, em vez de atenuá -la com atividades e pensamentos positivos. As lá grimas nesse caso nã o adiantam nada. Nã o curam a paciente nem abrandam sua depressã o.

— Pelo jeito você é favorá vel à severidade no tratamento. — Disse o homem, sem olhar para ela.

— De modo algum. Se nã o tivesse uma boa dose de tolerâ ncia e compreensã o, nã o poderia ser enfermeira.

— De qualquer maneira, eu gostaria de preveni-la que a marquesa nã o admite que ningué m seja severo com a filha. Ela era muito sociá vel e animada antes de contrair essa doenç a. De repente, de um dia para o outro, viu-se privada do uso das pernas...

— Mas a vida continua — interveio Justine. — Ela devia dar graç as a Deus por estar viva. Alé m disso, eu nunca fui severa ou impaciente com nenhum dos meus pacientes. Eu vim aqui unicamente para ajudar Cosima a se adaptar a um novo tipo de vida e recuperar a alegria de viver. Algumas ví timas da poliomielite perdem completamente o uso do corpo. Cosima pelo menos pode movimentar os braç os e respirar sem auxí lio de um pulmã o artificial. Ela tem mais sorte que os pacientes que ficam inteiramente imobilizados numa cama.

— Faç o votos que você seja bem sucedida — disse o homem com um leve toque de incredulidade.

Provavelmente o homem nã o acreditava na medicina nem nas novas té cnicas terapê uticas. Era um desses saudosistas que viviam mergulhados no passado. No fundo, Justine adotava uma atitude semelhante em relaç ã o ao amor. Nã o se conformava até hoje com a perda de Matt. De qualquer maneira, faria o possí vel para curar a si mesma, bem como a sua paciente, dessa idé ia fixa. Lutaria ao lado de Cosima para afastar os fantasmas do passado de sua existê ncia e deixar que o destino guiasse seus passos no caminho da felicidade.

— Ainda falta muito para chegarmos? — perguntou Justine em dado momento, com uma certa impaciê ncia na voz.

— Mais uns dois quilô metros — disse o homem sem tirar os olhos da estrada. — A casa da fazenda é de estilo espanhol tí pico e fica numa regiã o um tanto afastada. Nã o oferece por isso nenhuma distraç ã o para quem veio da Inglaterra e está acostumado a assistir programas de televisã o e freqü entar as discotecas. A casa segue a arquitetura das construç õ es mouriscas. Como você deve estar lembrada, essa regiã o foi ocupada pelos á rabes muito tempo atrá s. Foram eles que introduziram as palmeiras, as espirradeiras, os azulejos e os repuxos no jardim. Nas veias de muitos moradores de Xanas correm ainda hoje o sangue quente do deserto e o gosto muito particular pelos muros altos, que protegem as casas dos ventos e dos intrusos.

— Você me considera uma intrusa, por acaso? — Perguntou Justine, tentando entender o cará ter mí stico do homem.

— Para mim você é apenas a nova enfermeira de Cosima, mais nada. Era isso que a marquesa desejava dar à filha e espero que você tenha o remé dio certo para curá -la de sua depressã o.

— Meu remé dio nã o é doce nem amargo demais. Pretendo fazer todo o possí vel para ajudá -la a superar sua melancolia.

— Faç o votos que seu tratamento tenha efeito. Tenho receio, no entanto, que você se sinta muito sozinha na casa e tenha saudade de seus amigos de Londres... os mé dicos moç os do hospital.

— Isso nã o é da sua conta! — retrucou Justine com impaciê ncia, perdendo momentaneamente o controle que vinha mantendo desde que descera do trem na estaç ã o deserta. No í ntimo, estava furiosa com esse homem: era um mordomo ou um simples criado da casa? Afinal, viajara muitos e muitos quilô metros para atender o pedido que a marquesa fizera. Esse homem, pelo visto, nã o compreendia isso. Por que lhe dizia coisas desagradá veis em vez de recebê -la com demonstraç õ es de gratidã o? Supunha, por acaso, que ela era uma jovem frí vola que namorava com os mé dicos do hospital? Alé m disso, sua indireta fora terrivelmente cruel. O ú nico mé dico por quem Justine realmente se apaixonara perdera a vida estupidamente num acidente de carro. Os outros nã o passavam de homens de branco que eram admirados apenas por sua competê ncia. Se tinham algum encanto pessoal, ela nã o estava em condiç õ es de enxergar no momento.

— Desculpe, eu estava brincando — disse o homem sem jeito. — Nã o me leve a mal. A verdade é que nó s todos gostamos muito da marquesa e nã o queremos que ela sofra à toa.

— Eu també m nã o quero que isso aconteç a — murmurou Justine. — Pelo visto, você faz uma idé ia muito errada de mim.

— Pode ser. Você també m nã o tem uma opiniã o muito favorá vel de mim. Acho que isso é devido à hora noturna em que nos conhecemos. Algumas pessoas sã o sensí veis à s batidas da meia-noite e se sentem especialmente apreensivas depois dessa hora.

— É verdade — disse Justine, lanç ando um olhar surpreso para o homem ao seu lado. Ele estava de perfil, o rosto nitidamente recortado sobre a luz amarela da lanterna. — A meia-noite é a hora dos morcegos, dos sinos que fazem estremecer o coraç ã o da gente, das almas do outro mundo... Provavelmente, você nã o gostou nada de sair a essa hora por uma estrada escura para buscar uma enfermeira que viajou no trem noturno. Sobretudo porque você considera a vinda dela algo perfeitamente inú til. Seu pessimismo é desanimador, sabia?

— Você me entendeu mal. Eu apenas nã o queria dar a impressã o falsa de que a estou levando para o paraí so. O trabalho na casa é duro. Nã o sã o dias de fé rias, pode crer.

— Eu sei que nã o sã o. Eu nã o vim aqui com a intenç ã o de passar fé rias na Espanha — retrucou Justine com irritaç ã o. — Você tem uma opiniã o muito errada das inglesas! Nã o sã o todas que só pensam em divertir-se e que nã o poupam dinheiro nem energia para achar distraç ã o. Eu posso lhe adiantar que nã o pertenç o a essa categoria. Muito pelo contrá rio, eu trabalho desde que me conheç o por gente.

 

— O tempo dirá quem tem razã o. Uma coisa poré m é certa. Você nã o passará muito tempo na fazenda, se estiver interessada num homem rico que vai ficar com á gua na boca quando avistar seus cabelos oxigenados.

— Você está delirando!

— Bem, eu nã o posso jurar que seus cabelos sã o tingidos porque só pude vê -los na estaç ã o. Mas devem ser. Ningué m tem cabelos dessa cor naturalmente. Essa moda de cabelos platinados começ ou em Hollywood, nã o é verdade? E dizer que Hollywood foi parte do impé rio espanhol da Califó rnia!

— Você é insuportá vel com seus comentá rios maldosos — exclamou Justine, dirigindo-lhe um olhar glacial com seus olhos azuis. — Quem lhe deu o direito de falar comigo nesses termos? Eu vou me queixar junto à marquesa de sua insolê ncia. Ela vai ficar horrorizada quando souber como você fala com os... os...

— Continue, O que você ia dizer? Com os convidados da casa? Você cometeu um lapso, mocinha. Você veio aqui como enfermeira e nã o como hó spede. Eu nã o tinha razã o quando sugeri que uma moç a de cabelos platinados nã o viria à Espanha unicamente para cuidar de uma jovem paralí tica?

— O que você diz nã o me interessa! A verdade é que eu nã o tenho absolutamente nenhuma intenç ã o de caç ar um marido rico, está ouvindo? Eu sou viú va!

— Ah, sim? As viú vas inglesas nã o usam as mantilhas pretas em cima dos ombros, como as espanholas?

— Nã o, nã o usam.

— Pois olhe, uma mantilha preta combinaria muito bem com seus cabelos louros.

— Você é um insolente de marca! Eu vou contar tudo isso à marquesa. Nã o vejo a hora de chegar em casa!

— Eu també m nã o.

Nesse momento a charrete fez a volta na estradinha de terra e entrou num caminho arborizado onde o cheiro de jasmim era intenso no ar fresco da noite. As flores brancas pareciam estrelinhas que formavam um tú nel por onde a charrete passou. Atravessaram em seguida um arco enorme, construí do de tijolos descobertos, rodeado de palmeiras e de alguns arbustos de menor porte, que estavam profusamente floridos. O ar estava impregnado com uma mistura de aromas, acentuados pela brisa que soprava depois de um dia quente. As flores pareciam desabrochar para a vida com um abandono maravilhoso. Mais adiante, no centro de um pá tio cercado, Justine avistou o brilho luminoso de uma fonte de má rmore, que estava fechada no momento para economizar a á gua, tã o preciosa no sul da Espanha. As está tuas que seguravam as bacias nas mã os pareciam fantasmas à meia-luz dos lampiõ es.

A fazenda dava a impressã o de ser uma casa muito antiga, imponente e circunspecta, rodeada por uma quantidade enorme de janelas. No andar de cima havia balcõ es protegidos com grades de ferro, ricamente trabalhados.

Era por isso que se chamava a Fazenda das Grades de Ferro. Os canteiros do jardim estavam cobertos de plantas e de flores tropicais. A fazenda era distante e reservada como as moradias dos á rabes e abrigava uma famí lia tradicional que se protegia com unhas e dentes das influê ncias exteriores... do mundo moderno de onde Justine tinha vindo.

O homem que conduzia a charrete apeou com agilidade e segurou os cavalos pelas ré deas. Em seguida, estendeu a mã o para ajudá -la a descer do banco alto.

— Muito obrigada — disse Justine, recusando a mã o estendida. — Eu posso muito bem descer sozinha, agradeç o a sua gentileza.

O homem limitou-se a balanç ar os ombros e apanhou a mala que estava na charrete. Justine olhou em volta de si e notou mais uma vez que todos os quartos davam para um pá tio central, como se fosse o claustro de um convento.

O homem dirigiu-se para a entrada principal em forma de arco e voltou a cabeç a para trá s, a fim de verificar se ela o seguia. Justine prendeu a respiraç ã o no instante em que a luz da lanterna bateu em cheio na face esquerda do desconhecido. Ela enxergou claramente as feiç õ es morenas, as sobrancelhas pretas que encobriam os incrí veis olhos negros, o perfil aquilino, terrivelmente ené rgico e insolente. Nã o foi isso poré m que a surpreendeu mais, nem foi tampouco a curva da boca que sugeria crueldade e cinismo. Nem foi ainda a horrí vel cicatriz que desfigurava a face esquerda, acrescentando uma nota de terror ao rosto severo. Nã o foi nada disso que a levou a dar uma exclamaç ã o de susto, com os lá bios repentinamente pá lidos.

— Você! — murmurou com a voz engasga da na garganta.

O sussurro lembrou-a dos gritos que dava nos pesadelos noturnos, que ecoavam por cima dos telhados das casas, que se perdiam nas ruas escuras da cidade enorme.

O homem fitou-a em silê ncio, surpreso, sem saber do que se tratava.

— Você! — repetiu Justine. — Ou estou tendo uma alucinaç ã o?

— Eu nã o sei do que você está falando — disse o homem, dando um passo à frente. O rosto moreno voltou a ser encoberto pela sombra. Justine poré m reconheceu-o naquele instante, identificou-o sem sombra de dú vida, porque aquele rosto tinha perseguido suas noites de insô nia durante meses a fio.

— Você é o homem que atropelou meu marido! Nã o adianta negar! Eu o reconheci agora!

— Como? Você é a mulher cujo marido foi morto acidentalmente há dois anos? Nã o fui eu que atropelei seu marido. Foi meu primo.

— Você tem coragem de negar? — O ó dio que sentia por ele era maior ainda por sua covardia. — Eu o vi naquele dia e nunca mais vou esquecer do seu rosto. Mas você nã o tinha essa cicatriz naquela ocasiã o. Provavelmente foi depois que você a adquiriu, em outro acidente em que você deve ter assassinado outra pessoa...

— Eu tenho esta cicatriz desde garoto. Foi meu primo Manolito quem atropelou seu marido. Ele morreu no ano passado. Você nã o sabia? Você veio até aqui sem saber que Manolito era irmã o de Cosima?

Manolito, marquê s Vicente de Obregon — sim, era esse o nome do espanhol imprudente e irresponsá vel que atropelara Matt naquele dia fatí dico. Como podia esquecer esse nome odioso? Era incrí vel, poré m, a semelhanç a que esse outro tinha com o primo. Os mesmos cabelos negros, os mesmos olhos brilhantes, as maç ã s do rosto salientes, a mesma boca fina, que parecia esculpida na madeira.

Os primos irmã os sã o muito parecidos à s vezes — comentou o homem como se lesse seu pensamento. — Manolito e eu passá vamos por gê meos. A ú nica diferenç a era essa cicatriz no rosto. Foi por isso que me apelidaram Don Cicatrice. Meu nome verdadeiro é Artez Dominguin y Amador Robles. Minha mã e era irmã da marquesa. Ela morreu quando eu nasci e fui criado por minha tia, junto com Manolito. Muitos conhecidos nã o sabiam distinguir um do outro, a nã o ser pela cicatriz, e somente você, pelo visto, nã o soube que Manolito morreu há um ano numa corrida de touros. As touradas eram um dos seus passatempos preferidos. E foram també m uma de suas desgraç as. As pessoas costumam dizer que pesa uma maldiç ã o sobre nossa famí lia e os fatos parecem confirmar essa superstiç ã o. Você nã o está de acordo?



  

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