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CAPÍTULO VIII



Nem por um momento Carla duvidou que Zain Hassan governasse a Proví ncia de Beni Zain com mã os de ferro

e plenos poderes. Apesar de ser assessorado por uma eficiente equipe de conselheiros, economistas e secretá rios, a

palavra final era sempre dele. Carregava nos ombros a responsabilidade do bem-estar geral de sua tribo, tanto do

lado financeiro, como do polí tico, e até mesmo interferia nas questõ es particulares. Todo e qualquer habitante da

regiã o tinha o direito de expor pessoalmente seus problemas, para que ele tomasse resoluç õ es a respeito.

Fora Belkis, a irmã mais nova de El Zain, quem a esclarecera sobre essas particularidades, pois a caç ula era

mais interessada do que Lallou no que se passava fora das paredes do palá cio.

Apó s ter entregado Firebird nas cocheiras, Carla se encaminhou para os aposentos das duas irmã s, onde, à s

vezes, costumava tomar o café da manhã. Chegou justamente na hora em que estava sendo servido.

— Cheguei a tempo! Posso participar? — perguntou, da soleira da porta, segurando o shesh que levara para

proteger os cabelos, agora molhados e desfeitos pela chuva.

Belkis olhou, surpreendida, para aquela figura que mais parecia um rapazola, naqueles trajes de montaria.

— Quase nã o a reconheci, Carta.

Ambas as jovens tinham aprendido inglê s com o sheik Moulay, por sugestã o do irmã o.

— Você está parecendo mais um cavaleiro do que uma amazona — disse Lallou, com aquela voz arrastada e

indolente com que sempre falava. — Entã o, nosso irmã o a convenceu a ir cavalgar com ele? Eu sabia que ele

conseguiria, apesar de você ter jurado por todos os santos que nã o iria se submeter a tal coisa. Ele é mesmo

onipotente. Sabe até ser misericordioso, mas, se for o caso, é capaz de condenar uma pessoa à morte. Ele nã o lhe

contou que, dentro de uma hora, algué m vai ser transpassado pelo fio do seu punhal justiceiro?

— O que está me dizendo, Lallou?

Carla nã o entendera bem o sentido daquelas palavras e foi se acomodar num divã para se servir de café e de

um biscoito de amê ndoas, recheado com gelé ia de damasco.

— Nã o vamos falar de coisas desagradá veis — interferiu Belkis. — Prefiro que Carla nos conte alguma coisa

sobre Londres.

Mas Carla, que nã o tinha entendido muito bem o que a irmã mais velha dissera, queria tirar suas dú vidas a

limpo.

— Seu irmã o nunca me conta nada do que se passa em Beni Zain. Você falou em condenaç ã o à morte... E

punhal justiceiro... Por acaso, é o que estou pensando?

— É o que você está pensando. — A mã o gordinha de Lallou segurava um pã ozinho com creme de amendoim, e

os enormes olhos castanhos estavam postados em Carla, com uma ligeira expressã o irô nico. — Um dos homens da

tribo, numa briga, acabou matando com punhal um de seus vizinhos. Meu irmã o vai ter que condenar o culpado à

morte, ou a famí lia da ví tima se sublevará contra ele e tentará fazer justiç a com as pró prias mã os. Isso poderá

provocar uma carnificina. — E, vendo o olhar assombrado de Carla, completou: — Nã o fique tã o chocada. Lembre-se

de que estamos no Marrocos e aqui se segue a lei de Taliã o, " olho por olho, dente por dente''.

— E qual será a forma de execuç ã o?

— Ele será morto pela lâ mina de um punhal, da mesma forma como matou o vizinho.

— Será rá pido. — Belkis foi para junto de Carla e lhe segurou a mã o, num gesto de consolo. — Sei que em seu

paí s as coisas sã o diferentes, mas as nossas leis tê m que se adaptar à regiã o em que vivemos, senã o esta proví ncia

vira uma anarquia.

— Numa linguagem mais clara: o nosso povo tem sangue quente — disse Lallou, com um sorrisinho, mostrando

dentes miú dos, mas perfeitos, ainda nã o estragados pelo excesso de aç ú car. — Você é do norte e consegue ser mais

fria. Alé m do que, em seu paí s existem grandes penitenciá rias, para onde sã o enviados os malfeitores e criminosos.

— Por que você teve que mencionar uma coisa dessas, Lallou? — recriminou Belkis. — Agora Carla poderá

pensar que nosso irmã o é um homem cruel.

— Quanto a isso, sempre tive certeza. Você s duas estã o sabendo que ele me prende aqui, contra a minha

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vontade, na suposiç ã o de que, sendo mulher, eu devo até me sentir honrada com isso.

— E você nã o se sente? — caç oou Lallou. — Bem lá no fundo, apesar das nossas diferenç as de raç as e idé ias,

somos todas mulheres, e você deveria sentir orgulho por Zain Hassan ter até se indisposto com alguns dos cá dis só

por sua causa. Eles teriam preferido que o califa escolhesse uma mulher muç ulmana para casar, algué m que soubesse

se manter em seu devido lugar, sem esperar pelos benefí cios excepcionais que serã o incluí dos no contrato de

casamento, em consideraç ã o à sua nacionalidade.

— Eu nã o quero nem casamento, nem benefí cios — respondeu Carla, irritada. — Tudo o que quero é a minha

liberdade. Desejo voltar para a minha terra, nem que seja para viver na pobreza e no esquecimento.

— A boba está com medo dele! — Lallou começ ou a rir, fazendo tilintar os brincos de pingentes que

balanç avam junto a seu rosto gorducho, maquilado com khol. — Veja o nosso exemplo! Por acaso ficamos nos

lamentando porque ele controla as nossas vidas? Ele nã o é homem de usar o chicote com as mulheres, nem mesmo

com os cavalos. Você devia se dar por feliz! Ao menos, teve a sorte de conhecer com antecedê ncia o homem que

será seu marido. Minha irmã e eu vamos ter que casar no escuro, talvez com algum velho de barbas brancas.

— Nã o fale assim — pediu Belkis. — Você sabe que nã o suporto nem pensar nisso! — Levou as mã os aos

ouvidos, chacoalhando as inú meras pulseiras penduradas nos braç os cor de café.

Carla percebeu que ela se revoltava diante da perspectiva de vir a compartilhar o leito nupcial com um

estranho, imposto pela vontade do irmã o. Podia ser que ela admirasse muito El Zain, mas, obviamente, nã o aprovava

aquele tipo de imposiç ã o.

— Se o velho barbado for bastante rico, já será um consolo — disse Lallou, pegando um bolinho de creme. —

Afinal, o que é o casamento senã o uma outra forma de ser protegida e amparada?

— Nossa ú nica contribuiç ã o é ter filhos, É um baixo preç o para garantir nossa seguranç a futura. Veja. Carla,

nó s aqui damos mais valor à seguranç a do que você s, ingleses. Fale com franqueza, Carla, você pretende realmente

passar toda a sua vida sem um homem a seu lado, que se responsabilize pela sua sobrevivê ncia e seu bem-estar?

— Talvez eu nã o queira levar a vida toda sem... Ser amada. — Ao dizer aquilo, Carla sentiu que estava

vermelha, pois a afirmaç ã o parecia pieguice de sua parte.

— Carla! — Lallou soltou uma risadinha maliciosa. — Amor é o que nã o vai lhe faltar. Meu irmã o é um homem

com " H" maiú sculo. Todos sabemos que ele ficou muito abalado com a morte da primeira mulher, mas nem por isso

vai chorar a vida toda sobre o seu cadá ver. Tanto assim que se dispô s a atender aos pedidos dos conselheiros de

Beni Zain, para se casar novamente e ter herdeiros.

Lallou se reclinou sobre as almofadas e ficou estudando as reaç õ es faciais de Carla, que nã o parecia muito

convencida com aquela explicaç ã o. Ao contrá rio, parecia ainda mais deprimida. Estaria a futura cunhada invejando o

relacionamento que existira entre Farah e El Zain?

— O que você entende por ser amada, Carla? Pensa, por acaso, em ocupar o lugar vazio que Farah deixou no

coraç ã o de meu irmã o?

— Nã o! — disse Carla, com veemê ncia. — Eu sou eu. Ela é ela. Nunca poderia ser uma escrava submissa,

seguindo a sombra de seu irmã o, respirando o mesmo ar que ele respira, vivendo a vida dele!

— Quanta contradiç ã o! Na minha opiniã o, o amor é justamente isso!

Diante daquela conversa, Belkis tinha se levantado do divã e agora estava parada, com o olhar vago, como se

refletisse sobre as palavras que haviam sido ditas. A expressã o sonhadora de seu rosto tinha algo de intrigante,

algo que Carla nã o soube definir, mas apenas intuir.

Olhando para o velho reló gio de pulso, Carla teve um sobressalto. Naquela hora, algué m estava sendo

executado com uma lâ mina de aç o, sob as vistas de um homem moreno, de rosto duro e inflexí vel em suas decisõ es.

O choque foi tamanho que ela chegou a derrubar sua xí cara de café no tapete.

— Nã o posso! Nã o vou mais ficar aqui nem um minuto! — Carla se levantou bruscamente. — Algué m precisa

me ajudar. Quem poderia correr esse risco?

— O risco de ter o mesmo fim de um criminoso? — acrescentou Lallou, enquanto Belkis deixava o lugar de

meditaç ã o e corria para Carla, os olhos esbugalhados de medo.

— Ele nunca vai permitir que você vá embora, Carla! — ela alertou, muito aflita. — A entrada no haré m é

proibida a estranhos e quem cometer uma ousadia dessas será punido de uma forma terrí vel!

Carla notou que a reaç ã o de Belkis fora motivada por algo que pouco tinha a ver com sua ameaç a de fuga. A

moç a devia ter algum problema particular que a apavorava.

Entã o, mansamente, Carla passou o braç o pelos ombros dela.

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— Desculpe se a enervei — disse, sem tentar lhe arrancar uma confidê ncia.

Sabia que Belkis nã o se abriria diante da irmã, pois Lallou era obviamente leal ao irmã o e nã o titubearia em

relatar a ele tudo o que ouvisse dentro daquelas quatro paredes. Esse procedimento estava escrito nos grandes

olhos castanhos, que agora a olhavam, desafiadoramente.

— Pode ir contar a ele tudo que acabei de dizer — instigou Carla. — Você vai dar com os burros n'á gua, pois

El Zain está cansado de saber o que eu penso a respeito dele. Nã o costumo medir as minhas palavras quando falo

com seu irmã o. Ele já está ciente de que eu gostaria de fugir, caso tivesse chance.

— Entã o você é uma boba total — retrucou Lallou. — Meu irmã o poderia ter escolhido uma esposa entre mais

de cem mulheres que se sentiriam honradas com isso. É um misté rio que ele tenha preferido você. Talvez o sangue

dele tenha falado mais alto. Nó s nã o temos permissã o de tocar nesse assunto, mas você mesma já deve ter

constatado que ele nã o é um bé rbere de raç a pura, e a inclinaç ã o que tem por essa sua pele branca e esses seus

cabelos loiros é justificá vel. Alé m disso, o fato de você ter um defeito no pé, que para alguns homens poderia ser

um motivo de rejeiç ã o, para ele é uma qualidade. Pense só na sorte que você tem, roumia.

— Você está sendo inconveniente, Lallou — repreendeu-a Belkis, olhando para Carla. — Nã o faç a caso dela,

Carla. Ele está com ciú me porque Zain vai se casar, mas eu estou contente com isso. Quero que você seja minha nova

irmã. Acho você um amor e sinto muito que Lallou lhe tenha falado sobre as coisas que Zain foi obrigado a fazer, por

forç a do dever. Com o tempo, você vai entender melhor a nossa mentalidade.

— Vai levar um sé culo para que eu entenda!

— Ou apenas uma noite... De nú pcias! — acrescentou Lallou, com ar malicioso.

— Lallou! Por que você fala desse jeito? — Belkis lanç ou um olhar fulminante sobre a figura balofa da irmã.

— Você nã o leva em consideraç ã o que Carla pode ser tí mida. E pare de comer! Logo, logo, você vai ficar gorda como

uma leitoa!

— Segure a lí ngua e mude o tom de voz — replicou Lallou. — Os homens gostam de aç ú car na voz, e nã o de

vinagre. Nã o sei o que lhe aconteceu ultimamente. Talvez fosse melhor que eu soprasse aos ouvidos de Zain Hassan

que está na hora de lhe arrumar um marido, antes que você azede de vez.

— Veja se cuida da sua vida! — revidou Belkis, possessa. — Para você é que deveriam providenciar um marido

urgente, antes que fique uma baleia e ningué m mais a queira!

— E daí que eu fique gorda, irmã zinha? Os homens gostam mais da lua cheia do que do quarto minguante. —

Os olhos zombeteiros fitaram a figura esguia de Carla. — E você, seja ajuizada e procure agradar Zain Hassan, para

nã o fazer inimigos em Beni Zain. Se o casamento for um fracasso, vã o pô r a culpa em cima de você, e nã o nele, pois

todos já estã o sabendo que, no contrato, ele está abdicando do direito de ter outras esposas, conforme permite a

lei maometana. Você també m sabe disso, nã o é? Ter trê s esposas é uma maneira de garantir muitos herdeiros. E o

que vamos esperar de você, uma mulher fria, vinda das regiõ es gé lidas da Grã -Bretanha? Está vendo? Só de falar

nisso, você já fica toda arrepiada!

De fato, Carla nã o podia evitar de se arrepiar diante da argumentaç ã o de Lallou, Continuavam a considerá -la

uma reprodutora, e nã o um ser humano. Essa é que era a verdade!

— Nã o fui eu quem exigiu de Zain Hassan que ele abrisse mã o dos seus direitos — disse. — Até andei

sugerindo que seria bem melhor se ele se casasse com uma moç a bé rbere. Ele só me escolheu por que sou o

contrá rio de Farah e nã o lhe trago recordaç õ es dolorosas. Mas o que pode ser justo para ele é injusto para mim.

Afinal nenhuma mulher aceitaria se casar com um homem só para que ele pudesse cumprir com uma obrigaç ã o

perante terceiros. Eu sou gente! Dá para entender isso, Lallou? Nã o há dinheiro no mundo que pague a minha

liberdade. Vou ser desta opiniã o até o fim, até a hora em que o sacerdote desate o nó e que a espada de prata caia

sete vezes sobre a porta do nosso quarto nupcial. Oh, sei bem como é o ritual. O sheik Molay me ensinou. Mas nã o

sei se agü entarei tudo sem gritar por socorro. Estou me sentindo como se estivesse sendo emparedada viva. Tijolo

por tijolo!

— Oh, você nã o deveria dizer uma coisa dessas — Belkis falou, com ressentimento. — Será que se sente tã o

infeliz assim, Carla? Você odeia tanto meu irmã o?

— O que odeio é ser obrigada a ficar aqui, sem enxergar uma porta aberta na minha frente!

— Como se isso fosse possí vel! — intrometeu-se Lallou. — E para onde iria? Quer morrer sob o sol

escaldante do deserto? Devia era ser grata pelas concessõ es que lhe foram feitas por um homem que nã o tinha

nenhuma necessidade nem obrigaç õ es para com você. Mas ele vai permitir que você saia pela cidadela para passear,

fazer compras, e vai deixar que o acompanhe nas visitas que faz à s regiõ es mais remotas da proví ncia. Alé m disso,

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você será a ú nica mulher na vida dele. Belkis e eu bem que gostarí amos de gozar de todas essas regalias quando nos

casarmos.

— Você s duas foram educadas para esse tipo de vida, desde crianç as. Para mim, é bem mais duro ter que

aprender agora, na idade adulta. — E Carla sorriu. Ela nunca aprenderia a se curvar diante de Zain Hassan, nem a se

comportar como se fosse a sua cadelinha de estimaç ã o.

— Entendo como você se sente — disse Belkis, com compreensã o. — O amor é uma chama preciosa, que só

pode se manter acesa quando existem duas bocas unidas para assoprar.

— Que poé tica! — brincou Lallou, mas o olhar que lanç ou à irmã era mordaz. — Você aprendeu essa frase de

algum livro, ou dos lá bios de algum homem?

— E como poderia? — perguntou Carla, em defesa de Belkis. — O haré m está muito bem vigiado!

— Sim, pelos guardas — disse Lallou, vendo o rosto cor de mel da irmã se tingir de vermelho. — Nã o vá fazer

alguma bobagem, irmã zinha. Lembre-se do que aconteceu à mã e de Zain! Os guardas do kasbah nã o sã o eunucos,

como antigamente. Quanto a você, Carla, é bom que saiba que nosso irmã o nã o é o selvagem que pensa que é. É até

muito humano e civilizado. Quando nosso pai morreu, que Alá o tenha, ele aposentou todos aqueles pobres diabos

balofos e contratou alguns dos homens da tribo para montarem guarda em seus domí nios. Alguns deles sã o até muito

má sculos e atraentes. Daylis bin Bedari é um exemplo. Ele tem um tipo fí sico que chama a atenç ã o. Mas, apesar de

sua bela aparê ncia, nã o passa de um homem pobre, de baixo ní vel social, e nã o está sendo pago para erguer os olhos

acima do seu ní vel. Ele poderia se meter em sé rias encrencas. Você sabe disso, nã o sabe, Belkis?

Belkis olhou desconsoladamente para a irmã, e Carla temeu que a jovem estivesse empolgada por aquele

guarda charmoso e desinibido que ela pró pria já tinha notado. Certamente, nã o passava de um namorico, mas Belkis

estava numa idade perigosa, quando as moç as começ am a alimentar sonhos româ nticos. Só que as irmã s do califa nã o

tinham o direito de sonhar, pois estavam destinadas a se unir a homens poderosos, que fossem de interesse

financeiro e polí tico para a proví ncia de Beni Zain.

— Vamos, Belkis. Vamos lá fora. Lá está mais fresco — convidou Carla.

Levou a caç ula para o jardim, onde as duas ficaram andando a esmo, pelos arbustos floridos. Num impulso,

Carla arrancou um galho repleto de florzinhas brancas e o levou junto à face. Foi um gesto tolo e impensado.

Uma enorme abelha africana saiu de dentro das flores, zumbindo, e lhe deu uma ferroada no lá bio inferior.

Carla gritou de dor.

Belkis també m se assustou e correu em direç ã o aos cedros, por trá s dos quais apareceu uma figura alta com

um punhal na cinta.

Ao sentir a ardê ncia se espalhar como fogo por todo o rosto e o medo aumentar, Carla viu que Raschid vinha

em seu socorro.

— Foi picada, sitt? — Ele fez a pergunta em inglê s, com forte sotaque á rabe, e Carla olhou-o, muito

admirada, pois ele nunca falara com ela naquele idioma.

O rosto moreno, de barbas negras, tinha uma expressã o apreensiva, quando conseguiu soltar-se das mã os de

Belkis, que lhe seguravam o braç o, possessivamente. Sem hesitar, ergueu Carla do chã o, anunciando:

— Vou levá -la para o hakim com urgê ncia! Essas abelhas africanas sã o venenosas!

À medida que percorria aquele labirinto de corredores do kasbah, no colo de Raschid, Carla foi sentindo a

boca inchar e as faces latejarem. Belkis os seguia, correndo desajeitadamente naquelas babuchas de pontas viradas.

Carla pensou com seus botõ es: é este. É de Raschid que ela gosta.

Quando ele a depositou no divã de um grande aposento, a dor aumentou ainda mais. Ouviu um murmú rio de

vozes, falando em á rabe. Nã o entendeu palavra alguma, mas pô de compreender que hakim era o mé dico. E que Belkis

estava muito preocupada.

Num gesto de solidariedade, a jovem lhe apertou a mã o e Carla percebeu que ela tremia.

— Foi só uma mordidinha de abelha — disse Carla, tentando acalmar Belkis.

— Zain — ouviu a voz de Belkis chamando.

E viu a moç a correr em direç ã o de algué m que estava entrando no quarto. Olhos celestes a fitaram,

apreensivos, quase em desespero.

— Por Alá! O que você foi fazer? — ele perguntou, com muita calma. Em seguida, mudando o tom de voz, que

se tornou alto e forte, começ ou a dar ordens em á rabe.

Algué m arregaç ou a manga do seu vestido, e ela sentiu a picada de uma agulha no braç o. Logo, tudo

escureceu à sua volta.

O Califa do Deserto Violet Winspear

Lembrava-se vagamente de ter tentado se erguer e de ter balbuciado alguma frase incompreensí vel. Mais

tarde, lhe contaram que tinha desmaiado pelo choque produzido pelo forte antí doto que haviam injetado em sua

veia.

Carla acordou do desmaio, já deitada em sua cama. A gaze do mosquiteiro lhe deu uma sensaç ã o de

isolamento e privacidade, provocando-lhe uma espé cie de cansaç o.

Nã o queria recordar a perigosa experiê ncia por que havia passado, mas sua mente insistia em lhe devolver as

imagens daquele jardim, do ramo perfumado de jasmins, cujo aroma ainda persistia em suas narinas. Teve receio de

tocar suas faces, mas, quando o fez, sentiu que já nã o estavam inchadas e deformadas.

Oh, Deus! Nã o fora à toa que Zain Hassan a havia olhado com aquela expressã o preocupada. Ela devia estar

parecendo um monstro!

Pensando naquilo, soltou um gemido, e, imediatamente, a sua fatima postou-se ao lado da cama. Depois de

observá -la por um instante, a criada perguntou:

— A sitt está com sede?

Carla acenou afirmativamente, e ela a ajudou a se levantar para que pudesse tomar um suco de frutas.

— Por que será que estou me sentindo tã o fraca? — perguntou Carla. — Foi aquela injeç ã o que me deram?

— É um remé dio muito forte. — A fatima afastou uma mecha de cabelos de seu rosto. — O hakim disse que a

senhorita tem o sangue muito bom e forte.

Carla sorriu debilmente por causa do lá bio ferido. Pediu um espelho de cabo e se olhou atentamente. O lá bio

inferior ainda tinha as marcas da ferroada, mas o rosto já havia voltado ao normal. Estava só muito pá lida e com

olheiras.

— Que coisa mais boba que eu fui fazer! Imagine! Beijar um ramo de flores! O que tenho mesmo é sangue

impulsivo. E o califa? Ele ficou muito aborrecido?

— Aborrecido, sitt? — A jovem criada a olhou de uma forma enigmá tica, — O que eu soube é que ele estava

terrivelmente preocupado, pois a picada desses insetos venenosos pode ser fatal. Veja o que aconteceu com o filho

dele, o pequeno prí ncipe.

Carla sentiu o coraç ã o dar um salto e novamente veio à sua memó ria o desespero que havia lido naqueles

olhos azuis. Naturalmente, vendo-a naquele estado, ele havia se lembrado da agonia por que passara ao ver o sangue

de seu sangue morrer em seus braç os, em conseqü ê ncia da picada de um escorpiã o. No caso dela, fora uma abelha

africana, e tivera a sorte de Raschid haver tomado providê ncias imediatas para socorrê -la.

Raschid e Belkis... Oh, nã o havia mais dú vidas de que se gostavam, depois que Carla testemunhara como eles

se entreolhavam, enquanto a atendiam. A doce Belkis, enamorada de um dos guardas do irmã o, sabendo que aquele

era um amor impossí vel. Seria inú til alimentar ilusõ es a respeito daquele homem rú stico do deserto. Carla nã o se

admirava que Belkis tivesse se apaixonado por ele. Apesar da origem humilde, tinha maneiras nobres e altivas, que

podiam facilmente impressionar uma garota que vivia em reclusã o. Aquele porte marcial, a vestimenta, a adaga que

levava à cinta... Era realmente uma figura bonita.

Quantas vezes eles teriam se encontrado à sombra dos cedros? Até quando aqueles encontros secretos

poderiam perdurar?

Lembre-se do que aconteceu com a mã e de Zain, dissera Lallou, e o eco de sua voz ainda ressoava nos

ouvidos de Carla.

— A senhorita precisa dormir e deixar que o remé dio faç a efeito — recomendou a fatima, muito prestativa.

— Está se sentindo bem?

— Fisicamente, sim — disse Carla. — Mas a minha mente nã o tem sossego e eu nã o consigo ter paz de

espí rito. Você poderia cantar para mim, Analita, como se eu fosse uma criancinha? Estou precisando ser mimada.

Acho que é carê ncia afetiva.

— Se a senhorita quiser, poderei cantar, mas nã o conheç o canç õ es inglesas.

— Quero ouvir uma canç ã o do deserto, Analita. Uma dessas canç õ es lentas. Sabe do que estou falando?

— A sitt está tristonha, e, no entanto, deveria estar agradecida por Alá lhe ter salvado a vida.

— Oh, mas eu estou. Só estou triste pelos outros. Se eu tivesse o dom de fazer com que só o amor fosse

importante na vida das pessoas! Oh, Analita, eu devo estar delirando!

A fatima sentou-se a seu lado, de pernas cruzadas, e começ ou a entoar velhas canç õ es que havia aprendido

na infâ ncia e que falavam dos trê s reis magos que seguiram uma estrela no cé u até chegarem a uma manjedoura.

A mú sica era melancó lica, mas relaxante, e em pouco tempo Carla sentiu as pá lpebras pesadas e caiu numa

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espé cie de sono.

Mas, apó s alguns minutos, começ ou a se agitar e a balbuciar palavras desconexas.

— Vovó! Oh, avozinha, nã o me abandone! O que quer que eu faç a? Quer que eu seja uma boa menina, vovó?

Oh, sim, prometo que vou ser.

O delí rio continuou e Carla debatia-se. As palavras que ela murmurava nã o faziam sentido para a fatima e a

jovem se alarmou. Saiu apressadamente do quarto e nã o voltou mais.

Em seu lugar, apareceu a figura inconfundí vel de El Zain. Fechando a porta atrá s de si, ele se aproximou do

leito, pé ante pé, e, apó s observar Carla por alguns instantes, se inclinou sobre ela, segurando-a pelos ombros

suavemente, mas com firmeza, sussurando-lhe junto ao ouvido:

— Você pode voltar para a sua casa, Carla. Vou providenciar os preparativos para que deixe Beni Zain tã o

logo esteja em condiç õ es de enfrentar a viagem. Está me ouvindo, minha crianç a? Nunca mais será forç ada a fazer

nada... Nada que nã o queira fazer. Está me entendendo, bint?

Carla abriu os olhos devagar, pestanejou e fitou aquele rosto que sempre lhe causara tanto medo. Só que,

dessa vez, a fisionomia tã o temida teve o dom de acalmá -la.

— Pronto! Entã o era isso que você queria, hein? — continuou ele, vendo-a mais tranqü ila. — As portas serã o

abertas para você, Carla. Quando melhorar, poderá ir embora para sempre.

— As portas do kasbah? — ela murmurou.

— E... As portas de sua prisã o. Está contente?

Carla olhou-o, sem acreditar, mas o mais estranho é que sua vontade naquele momento era passar as mã os

pelas faces morenas, pelo corte do queixo, pelas negras sobrancelhas. Queria apalpá -lo, saber se ele era real. Mas a

pior realidade é que a liberdade que ele lhe concedia estava lhe provocando uma opressã o, uma dor no peito, pior do

que a que sentira quando a avó morrera, deixando-a numa casa vazia, onde nã o havia mais ningué m ranzinza para

exigir que ela fosse uma boa menina. Um soluç o lhe subiu à garganta.

— Está bem. Irei embora quando você quiser.

— Nã o sou eu quem quer. Estou apenas satisfazendo a sua vontade. Agora que está mais sossegada, procure

dormir e descansar.

— Mas nã o é nada disso que eu quero!

Por que havia dito aquilo? Instintivamente, mordeu o lá bio inferior, e a dor inesperada a fez soltar um grito.

Logo, dois braç os protetores a envolveram, e ela sentiu as fortes batidas daquele coraç ã o que lhe parecera

tã o insensí vel e que, agora, palpitava acelerado.

— Beijando as flores... — disse ele, roç ando os lá bios nos cabelos loiros. — Por que nã o a mim? Pelo menos, o

meu beijo nã o é venenoso. É isso que você pensa de mim? Que sou um veneno?

Carla sentiu-se embalada como uma criancinha, e, num impulso incontrolá vel, se aconchegou junto à quele

peito moreno e musculoso. O que estava fazendo? Afinal, o que queria ela?

— Acho que ainda estou delirando — sussurrou. — Aquela abelha me deixou meio zonza. Nada disso deve

estar acontecendo...

— Você gostaria que acontecesse, Carla? — Afastou-se um pouco dela para ver a expressã o dos seus olhos

verdes. — Minhas irmã s me contaram que a ú nica coisa que você queria que acontecesse é que as portas do kasbah

lhe fossem abertas. Você chegou a suplicar pela sua liberdade, achando que eu era um tirano porque nã o a deixava ir

embora. Nã o sou bem um tirano hilwa, apesar de que, à s vezes, faç o coisas que a contrariam. Mas ao ver essa

carinha tã o pá lida e desfeita pelo sofrimento, ao ler tanto pavor nesses seus olhos lindos, logo que o hakim disse que

você estava fora de perigo, fui para a mesquita e, de joelhos, jurei ao Nosso Pai que iria satisfazer o seu maior

desejo. E ambos sabemos qual é esse desejo, nã o é verdade?

Carla voltou a ver em seus olhos azuis aquela tristeza e melancolia que vira quando ele falara sobre a morte

do filho.

— E qual é esse desejo, meu amo?

— Abandonar-me — ele respondeu, resumindo.

Abandono... Que palavra mais triste! Dava uma sensaç ã o de solidã o... De desesperanç a... Um tremor lhe

sacudiu o corpo.

— Pois eu estou pronta para satisfazer o seu desejo — disse ela, segurando-lhe as mã os morenas junto ao

seio.

— E qual é o meu desejo, srta. Innocence?

O Califa do Deserto Violet Winspear

— Ter um filho. Um menino que tome o lugar daquele que você perdeu. Pelo menos isso eu sei que posso lhe

dar.

— Só isso? E seu coraç ã o, você nã o pode dar? — As mã os morenas sentiram aquele coraç ã o bater

aceleradamente, atravé s da fina seda da camisola. — Seu coraç ã o está batendo tã o forte! É porque você tem medo

de mim?

Carla sacudiu a cabeç a e tornou a se aconchegar junto dele, de forma que ele pudesse lhe beijar o pescoç o,

os cabelos, as orelhas. Um calor que nã o era da febre invadiu todo o seu corpo.

— Nã o sei o que está acontecendo comigo — ela sussurrou. — Estou tã o confusa!

— Mas está gostando? — Os lá bios dele baixaram até o decote da camisola. — Você é uma boa menina, Carla.

Pena que tenha receio de deixar que o seu coraç ã o se aqueç a.

— Meu receio é que ele se aqueç a inutilmente. Sempre que você olha para mim, sei que está pensando em

Farah. Quando o seu olhar vagueia pelo deserto, sei que está procurando o tú mulo de Farah. Tudo o que você sente

por mim é o desejo que um homem sente por uma mulher.

— Você pensa assim? — Segurou-a pelos cabelos, dessa vez sem machucá -la. — Nã o nego que amei Farah e

que me lembro dela com carinho e gratidã o. Mas a vida continua, bint, e eu estou aqui, vivo, para servir e comandar

meu povo. É uma missã o espinhosa e cansativa, e existem dias em que eu gostaria de estar junto de uma mulher

carinhosa, de olhos verdes e cabelos loiros, que viesse para mim de braç os abertos e me fizesse esquecer as

preocupaç õ es e até as crueldades que sou obrigado a cometer para manter a ordem. Quando fui buscá -la em

Casablanca, tinha esperanç a de que desse certo. À s vezes, fico rindo sozinho ao pensar naquela viagem que fizemos

juntos. Você estava apavorada, achando que eu era um seqü estrador, com intenç õ es de carregá -la para a minha

tenda no deserto. Bem que eu teria gostado, bint. Quantas coisas haveria de lhe ensinar sobre o amor.

A boca sequiosa lhe pressionou os lá bios. Carla nã o se importou com a dor que sentia. Aqueles beijos

famintos, devastadores, provavam o quanto ele a queria. E aquele homem devia querê -la loucamente, pela

sofreguidã o com que a acariciava e, por sua vez, a fazia enlouquecer.

Todos os temores de abrir seu coraç ã o se foram. Foi com relutâ ncia que Zain Hassan se desprendeu dela e a

fitou, penalizado.

— Seu lá bio machucado! Oh, me perdoe!

— Pode me machucar! Pode me bater! Eu mereç o! Como tenho sido cega e idiota! Mande fechar os portõ es,

Zain, e me prenda aqui, junto de você, para sempre.

— Depois que a espada de prata baixar sete vezes, que eu desfiar, uma a uma, as cem pé rolas de seu vestido

de noiva, que eu desmanchar seus cabelos e beijar a sola dos seus pé s, só espero que você nã o chore pela liberdade

perdida. Você já aprendeu as palavras do Alcorã o?

—Seja humilde. — Ela lhe beijou um dos olhos, e depois, o outro. — Seja modesta, obediente, e agrade

sempre seu amo e senhor. Sim, eu já aprendi as palavras, El Zain.

Ele sorriu, bené volo, e naquele instante vieram à lembranç a de Carla as figuras de Belkis e de Raschid.

Quando chegasse a ocasiã o oportuna, haveria de interceder por eles.

— Seja simplesmente Carla — ele respondeu. — A minha Carla destemida e temperamental, como os lobos do

deserto.

— Com prazer, meu senhor!

Ao abraç á -lo, ela viu pela janela aberta que a lua já estava se transformando num disco redondo e luminoso.

Pouco faltava para que repetisse, diante do sacerdote e do conselho de anciõ es, os votos da cerimô nia do

casamento. Aquele homem altivo, orgulhoso e autoritá rio seria só dela. A mã o do destino a tinha levado seus braç os.

— Nourmahal — ele sussurrou. — Luz do Haré m!



  

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