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CAPÍTULO II



Tudo foi muito formal e solene.

O Califa do Deserto Violet Winspear

Encontraram-se no luxuoso saguã o do Hotel Fitzroy e aquele á rabe distinto, vestido com um impecá vel terno

cinza-chumbo, foi logo encomendando ao garç om um café para dois e salgadinhos sortidos.

Ao sentar-se defronte a Carla, num recanto mais discreto, ele a fitou por alguns segundos, com olhos

sagazes.

— Sim... Você é muito igual à fotografia — disse, por fim. — Deve ser uma moç a de muito boa famí lia. Possui

belos e nobres traç os faciais e, pelas mã os, nota-se que nunca precisou trabalhar.

— Mas eu... — começ ou a dizer Carla, mas as palavras de esclarecimento morreram na garganta.

E, por que nã o? Se ele a tomava por uma dessas grã -finas, que mal poderia haver se ela fingisse que era?

Afinal, aquilo nã o passava de uma brincadeira, pois nã o tinha a mí nima intenç ã o de levar seus propó sitos adiante e,

na primeira oportunidade, faria uma retirada estraté gica. Viera apenas para satisfazer uma curiosidade e nada

mais. O garç om voltou para servir o café e os salgadinhos, muito atencioso e polido.

— Aceita um salgadinho? — perguntou o anfitriã o, depois que o garç om encheu as xí caras de porcelana

branca, filetadas a ouro, com um aromá tico café. — Ou você é como a maioria das europé ias, que vive fazendo

regime para manter a linha?

— Nunca precisei fazer regime — respondeu Carla, com sinceridade. — Queimo muitas energias e consigo

me conservar magra naturalmente. Sou uma privilegiada mane... — interrompeu a frase e, para disfarç ar, espetou

com o garfo um apetitoso doce de pê ssego.

Era terrí vel e embaraç oso, mas nã o conseguia capacitar-se de que nã o era mais uma manequim famosa.

Agora, nã o passava de um bichinho inú til, de pata quebrada. E logo que os olhos de Sidi Rezam Zabayr notassem o

defeito, ela seria dispensada e sairia do Fitzroy mancando, diretamente para o ponto de ô nibus, pois nã o podia

desperdiç ar dinheiro em tá xis.

— As mulheres de meu paí s sã o loucas por doces. — Ele tomou um gole de café, olhando-a por cima da borda

da xí cara. — Aliá s, era costume no haré m engordarem as recé m-chegadas. Já esteve no Marrocos?

— Marrocos? Oh, nunca! Deve ser um lugar fascinante.

— É um paí s extenso, mas em algumas regiõ es ainda manté m há bitos feudais, como nos velhos tempos dos

piratas bá rbaros — explicou ele, de um jeito que Carla considerou acintoso, como se, de alguma forma, estivesse

querendo testá -la. — Você é uma moç a moderna e atualizada, se é que se pode julgar algué m apenas pela maneira de

se vestir e pentear. A cor dos seus cabelos é natural ou usa alguma tintura?

— Oh, nã o! — Carla nã o gostou da pergunta. — Meus cabelos sã o mais do que naturais!

— Ó timo! Só espero que nada seu seja artificial. Hoje em dia, com os recursos da esté tica moderna, é difí cil

avaliar a anatomia feminina. Você parece ter um corpo bem proporcionado. Talvez um pouco esguia demais.

— Detestaria ser gorda — ela revidou.

— Pelo brilho desses seus olhos verdes, nota-se que realmente você odiaria pesar um só grama a mais.

Parece que, entre os europeus, a magreza é sinal de formosura.

— Pelo menos os homens preferem as mulheres magras à s obesas.

— O fato é que o homem que eu estou representando na contrataç ã o de uma dama de companhia nã o é

europeu. Já deve ter chegado a essa conclusã o por conta pró pria, nã o é mesmo?

— Eu... Eu nã o tinha muita certeza, Ele é um marroquino?

— É um bé rbere, tal como eu.

De repente, aquele homem de voz profunda, que dominava perfeitamente a lí ngua inglesa e se vestia à moda

europé ia, lhe pareceu um ser de outro planeta.

— Nó s, que temos sangue bé rbere, nos consideramos uma tribo à parte das raç as diferentes que povoam

cidades como Rabat, Casablanca, Fez, Meknes e outros centros urbanos. Possuí mos nossa pró pria cultura e nossa

histó ria, e o fato de vivermos apartados no deserto fez com que nã o sejamos influenciados por outras culturas e

costumes. Compreende?

— Bé rbere — ela repetiu meditativa. — Nã o seria um sinô nimo de bá rbaro?

Os olhos escuros e penetrantes como os de uma á guia brilharam perigosamente, e Carla teve a ní tida

impressã o de que nã o estava mais no hall de um hotel central de Londres, mas a quilô metros de distâ ncia, sob o

calor tó rrido de um cé u sem nuvens.

— Exato — ele sussurrou, entre dentes. — Quer dizer que andou lendo sobre o deserto, apesar de nunca o

ter visitado?

— Imagino que muitas mulheres andaram lendo sobre o deserto, ou atravé s de romances de ficç ã o, ou em

O Califa do Deserto Violet Winspear

reportagens de jornalistas que fizeram a cobertura daquelas regiõ es. De minha parte, me parece que tive

conhecimento do assunto atravé s de um livro de Burton, o explorador inglê s. Ele viveu por uns tempos no deserto, à

maneira á rabe, nã o foi?

— E nã o só ele. Certamente já ouviu falar de outro inglê s famoso, Lawrence da Ará bia. Era um valente

soldado, de olhos muito azuis e angelicais, mas que degolava os inimigos de guerra sem piedade.

Carla chegou a sentir um calafrio na espinha, Comparecera à quele encontro a tí tulo de brincadeira, mas

agora nã o estava achando graç a alguma naquilo tudo. Sua vontade era pegar a bolsa e dar o fora dali preferindo

enfrentar a multidã o de pessoas que transitavam pelo centro, mas que, pelo menos, estavam atarefadas com

ocupaç õ es mais corriqueiras do que massacres e degolas.

Falar de Burton e Lawrence e de seus feitos novelescos a transportava para um outro mundo, um mundo

distante, cruel e misterioso, que a apavorava.

Apertou a alç a da bolsa e fez menç ã o de levantar-se.

— Está querendo fugir? — caç oou Sidi. — Uma mulher de cabelos dourados como os seus nã o deveria

deixar-se atemorizar por esses fantasmas ingleses legendá rios, que nã o temiam o deserto, nem os perigos que os

esperavam lá.

— E o que me espera no deserto?

— Nã o sou um bruxo vidente. Só posso lhe antecipar que a espera um cargo de dama de companhia na casa

do califa de Beni Zain. Mesmo assim, nã o posso garantir nada, pois a escolha final será de meu amo e senhor.

— Se... Se esse homem é tã o poderoso, por que precisou colocar um anú ncio para conseguir algué m para um

cargo desses?

— E por que foi que você, uma moç a tã o bonita e bem dotada, respondeu a um anú ncio desses?

— Eu... Bem, foi mais por gozaç ã o — confessou Carla.

— Gozaç ã o?

— Por brincadeira. Por que nã o é uma coisa para ser levada a sé rio, concorda?

— Pois eu acho que, no fundo, sentiu-se atraí da pela perspectiva de trabalhar a serviç o de um homem

poderoso e rico. Vamos lá, srta. Innocence, diga a verdade. Você quis valer-se de toda essa beleza que tem para dar

e vender.

— E acha que eu iria vendê -la num bá rbaro leilã o de escravas? Porque essa tal seleç ã o nã o passa disso.

— Chame-a assim, se preferir. O caso é que, nos nossos lados da Á frica, existem poucas mulheres atraentes,

espirituosas e chiques. As turistas que visitam as cidades imperiais nã o sã o propriamente expoentes do seu sexo, e,

alé m do mais, vê m sempre acompanhadas dos maridos. Seja como for, nã o tê m os predicados exigidos pelo meu amo

Zain Hassan, todo-poderoso senhor de Beni Zain, e supremo legislador e comandante de uma tribo bé rbere do

deserto. Foi idé ia dele publicar o anú ncio numa sofisticada revista inglesa, e foi com muito senso de humor que ele

comentou, na ocasiã o: " Pode ser que nos apareç a alguma solteirona velha, com cara de cavalo, ou uma loira

aventureira".

— E você s conseguiram, mesmo, uma aventureira loira — ironizou Carla. — Admito que estou mal de finanç as.

Para ser franca, estou nos meus ú ltimos centavos e tenho planos de sair da Inglaterra. Mas nã o dessa maneira,

muito obrigada. Nã o para ir morar na casa de um velho califa de uma tribo selvagem do deserto. Seria apelaç ã o

demais!

— Velho? — Kezam Zabayr arqueou as negras sobrancelhas. — O califa Zain Hassan é um homem em pleno

vigor, um homem de uma atividade e forç a fí sica extraordiná rias, tã o ocupado com sua alta missã o, que escolheu

esse mé todo de seleç ã o pouco ortodoxo por absoluta falta de tempo. Alé m do fato de ter grande admiraç ã o pelo

sistema de educaç ã o britâ nico. Ele considera as mulheres de seu paí s com uma inteligê ncia acima da mé dia. Passoume

a incumbê ncia de selecionar uma moç a inglesa para lhe apresentar. E agora que a encontrei, é a você que vou

apresentar. Simples, mademoiselle.

— Simples? — Carla olhou-o, pasmada. — Quando me candidatei ao cargo, nem sonhava que fosse tã o

complicado.

— Complicado por quê? Nã o consigo entender seu ponto de vista. A mulher que ocupar esse posto deverá

considerar-se honrada. Toda a tribo irá respeitá -la, como respeita a todas as decisõ es tomadas pelo califa sob sua

tenda.

— Ele vive numa tenda? — Ao fazer a pergunta, ela visualizou um daqueles acampamentos de nô mades do

deserto, enfumaç ados e cheios de crianç as maltrapilhas brincando em torno das barracas.

O Califa do Deserto Violet Winspear

— Só quando ele vai para o deserto. Mas a residê ncia oficial em Uni Zain é um kasbah — ele informou,

solene. — Na Inglaterra, você s o chamariam de castelo. Nã o é assim que chamam as fortalezas dos lordes?

Carla levou a xí cara de café aos lá bios, achando que estava vivendo um dos episó dios das Mil e Uma Noites.

Entã o aquele senhor de posses nã o passava de um bá rbaro, e ela nã o pô de deixar de desconfiar que ele estava era

com intenç ã o de incluir uma jovem de pele branca em seu haré m particular. Estar em pleno vigor fí sico podia

significar que a idade dele variava entre quinze e setenta anos, pois significar era sabido que os homens orientais

manté m o interesse pelo sexo oposto até a velhice avanç ada. Minha Nossa Senhora! Onde ia se meter?

— Parece que a fiz perder o fô lego, srta. Innocence — disse Kezam Zabayr, sorrindo.

— É uma maneira otimista de descrever o que estou sentindo, monsieur.

Carla nã o sabia que tratamento lhe deveria dar. Afinal, ele era o emissá rio de um potentado.

O pé esquerdo começ ou a doer, lembrando que aquele homem, afinal, estava lhe oferecendo bem-estar e

seguranç a, e apesar de tudo aquilo lhe parecer fantá stico e fora de é poca, nã o deveria ser tã o ruim quanto ir morar

numa pensã o de terceira categoria.

Oh, Senhor! Será que Eva sentira o mesmo que ela sentia, ao ouvir a voz tentadora da serpente?

— A idé ia de ir trabalhar no Marrocos é assim tã o fora de cogitaç ã o, srta. Innocence? O que chama de

complicaç ã o é o fato de ter um emprego na regiã o do deserto, e de seu futuro patrã o ser um bé rbere? Por acaso

essa tal gozaç ã o, como chamou há pouco, tomou um aspecto sinistro?

— O senhor nã o se constrange em fazer uma moç a corar, nã o é mesmo?

Carla abriu a bolsa para tomar um dos comprimidos contra a dor. Sidi interpretou aquele gesto como se ela

estivesse em busca de cigarros, e logo ofereceu-lhe um, abrindo sua cigarreira de ouro.

— Nã o, obrigada, eu nã o fumo.

Tornou a fechar a bolsa, lembrando-se a tempo de que nã o deveria tomar o comprimido na presenç a do

emissá rio. Ele poderia pensar que ela era viciada em drogas, ou que era uma moç a doentia. Nã o podia tomar o

analgé sico se realmente tinha uma vaga esperanç a de ser aceita para aquele emprego.

— A senhorita está nervosa — observou Sidi Kezam, sacudindo os ombros, tolerante, e tirando um dos

cigarros de ponta dourada para si.

Ao acender o cigarro com um isqueiro cravejado de pedras preciosas, procurou soprar a fumaç a para o lado,

de forma a nã o incomodar. Só por esse detalhe dava para notar que era um homem de boa educaç ã o.

— É compreensí vel que esteja perturbada — continuou ele. — Apesar de que já devia saber de antemã o que

iria tratar com gente de outra raç a. A carta de convocaç ã o para esta entrevista tinha meu nome assinado, um nome

genuinamente á rabe. Vamos, mademoiselle, nã o foi por mera brincadeira que veio até aqui. O caso é que se habituou

à s boas coisas da vida e quer continuar tendo-as.

— É claro que estou em busca de um trabalho bem remunerado — admitiu Carla — Eu... Eu seria dama de

companhia da esposa do califa, ou melhor, das esposas?

Sidi fez uma careta divertida, diante daquela correç ã o.

— O califa é viú vo, mas tem irmã s, e gostaria que elas tivessem contato com algué m... Como eu diria? Com

algué m atualizado, que tenha vivido fora dos muros de um kasbah.

— Irmã s? E elas vivem trancafiadas num haré m, apartadas do mundo? — perguntou ela, abismada.

— Elas ocupam uma ala do kasbah, o haré m, onde ficam as mulheres, mas tê m liberdade para circular pela

casa toda. E olhe que espaç o é o que nã o falta naquele palá cio. Levaria uma semana para ser visitado inteiramente.

Apesar de todos os receios, a curiosidade de Carla estava atiç ada.

— E elas andam de vé u, que tapa seus rostos, e sã o obrigadas a ser subservientes? — inquiriu Carla. — Se

for este o caso, temo que a minha influê ncia nã o seja bené fica, nã o acha?

— Pode ser que nã o. — Kezam Zabayr olhou-a como se estivesse reconsiderando sua decisã o de apresentar

Carla ao califa. — Vou pensar melhor no seu caso.

— Por quê? O califa é um tirano que nã o suporta qualquer manifestaç ã o de personalidade do sexo oposto?

Dessa vez os olhos negros se estreitaram e perderam a expressã o jocosa.

— Esse é o maior problema das europé ias. Elas tê m lí nguas afiadas demais e mentes deturpadas. Realmente,

sou de opiniã o que você nã o vai servir para o cargo e o melhor seria encerrarmos esta discussã o por aqui mesmo.

— Engraç ado! Um homem como Zain Hassan, que é um lí der entre outros homens, tem receio de nã o poder

dominar uma frá gil mulher? — ela instigou. — E pensar que foi idé ia dele contratar uma europé ia para fazer

companhia à s irmã s! Se ele pretende que as irmã s continuem ignorantes e submissas, nã o deveria nem cogitar de

O Califa do Deserto Violet Winspear

levar uma mulher emancipada para o seu kasbah. Seria o mesmo que permitir a um gato introduzir-se na toca dos

ratos.

— De fato, você tem olhos de gata — zombou Sidi Kezam. — Será que se submeteria a ser dominada por ele?

Os mandamentos do Alcorã o dizem que uma mulher tem que ser submissa, modesta, obediente e meiga.

— E o que diz dos homens? A eles dá a liberdade de serem arrogantes, prepotentes, violentos e até crué is?

— Se um homem nã o se assemelhar a um tigre, quem o respeitará?

— Se um homem é um tigre, quem se atreverá a se aproximar dele?

— Uma mulher inteligente é capaz de fazer um tigre ronronar em vez de rugir.

— Em resumo, o senhor quer dizer que Zain Hassan nã o é um homem fá cil de lidar? É isso?

— Certo.

Carla ficou imaginando como seria a figura daquele bé rbere dominador e arrogante. Devia ter narinas muito

abertas no nariz adunco e olhos crué is de ave de rapina. Devia vestir uma tú nica drapejada, que esvoaç ava à sua

passagem pelos compartimentos do castelo, onde ditava ordens e leis e era obedecido cegamente, mesmo quando

essa ordem consistia em arranjar uma dama de companhia para as irmã s.

— Ele é muito rico? — perguntou Carla, num tom casual.

— Bastante, mademoiselle. Você gosta de coisas boas, mas discretas. Seu vestido é simples, mas elegante.

Suas mã os sã o bem tratadas. Seu perfume tem uma fragrâ ncia suave. E os brincos que está usando sã o de jade

legí timo e, por sinal, combinam bem com a cor de seus olhos. É uma pena que seja tã o audaciosa na maneira de falar.

— Esta é uma maneira de dispensar-me polidamente?

Ele enrugou a testa, pensativo. Positivamente, aquele devia ser um homem que preferia que as mulheres

fossem apenas vistas, nunca ouvidas.

— A verdade é que você compareceu apenas por curiosidade e nunca teve intenç ã o de ser dama de

companhia de ningué m —respondeu ele.

— A verdade é que nunca pensei em servir a um potentado á rabe. Presumi que essa pessoa, morando no

exterior, fosse algum fazendeiro vivendo num paí s tropical, entre plantaç õ es de bananeiras e rebanhos de gado

zebu. Acho que andei lendo romances demais ultimamente.

— Desculpe que eu lhe diga, srta. Innocence, mas você nã o me parece uma dessas intelectuais que passam a

vida com o nariz afundado nos livros. Ainda nã o sei por que respondeu ao anú ncio.

— É que eu ando entediada, desiludida e també m falida.

Só nã o confessou que andava nervosa e angustiada com as negras perspectivas de seu futuro. Aquele

emprego, pelo menos, iria sacudi-la do marasmo. Era um desafio que lhe proporcionaria uma mudanç a radical de vida.

E dinheiro suficiente para sobreviver decentemente.

— Você é virgem?

A pergunta incisiva e indiscreta a pegou de surpresa.

— Oh... Sim, eu... — Olhou para ele, chocada. — Que mal lhe pergunte, mas o que o senhor tem a ver com

isso?

— É que a companheira das irmã s do califa tem que ser uma moç a de bons costumes. Você poderia jurar que

está dizendo a verdade?

— Posso! — Os olhos verdes fuzilaram, mas ela engoliu as palavras malcriadas que pretendia dizer a seguir,

e apenas acrescentou: — Sim, naturalmente.

— Nã o é tã o natural assim, quando se trata de uma moç a europé ia emancipada — disse ele, com certo

desdé m. — A virgindade constitui um tesouro inestimá vel para uma jovem com sua bela aparê ncia e estou propenso a

acreditar na sua palavra. Sua finalidade maior é manter-se pura, até que apareç a um homem rico em sua vida?

Era verdade. Por isso se entusiasmara e aceitara a proposta de casamento de Peter Jameson.

— E por que nã o? É crime que uma moç a que tenha dotes fí sicos almeje ter uma vida melhor do que a de uma

prostituta?

— Prostituta? — Kezam Zabayr arqueou mais uma vez suas negras sobrancelhas, dessa vez mais

pronunciadamente. — E o que você sabe sobre a vida de uma prostituta?

— O que sei é que, quando uma moç a de boa aparê ncia deseja ter uma vida fá cil e confortá vel e nã o se dá o

devido valor, pode querer vender seus encantos para qualquer Tom, Dick ou Harry endinheirado que lhe apareç a pela

frente. O que nã o é o meu caso.

— Mas você nã o faz objeç ã o em trabalhar para um ricaç o. Claro que nã o! Senã o nã o estarí amos aqui

O Califa do Deserto Violet Winspear

discutindo se vale a pena apresentá -la ao califa. Esse detalhe de você ter conservado sua pureza é um forte

argumento a seu favor, srta. Innocence.

— Obrigada — respondeu Carla, com frieza. — Mas nã o foi de caso pensado. Nã o sou uma calculista, nem um

robô sem sentimentos.

— Realmente? Para um á rabe, a mulher é um objeto de prazer, destituí do de alma.

— Que coisa mais interessante! — ironizou Carla. — Quer dizer e a mulher é considerada uma boneca para

ser guardada no baú quando nã o precisam mais dela?

— A mulher é algo para ser mimado, protegido e muito considerado se gerar um filho homem. Se uma mulher

se torna mã e, nunca será desprezada pelo marido, mesmo que ele se encante com outra mulher. Entendeu?

— Sem sombra de dú vida! — Fez a afirmaç ã o num tom gé lido e desdenhoso, e, se tivesse coragem e dinheiro,

teria corrido dali como o diabo da cruz. Mas alguma coisa a prendia à quela cadeira. Carla continuou a ouvir Sidi

Kezam.

— O que precisa compreender, antes de mais nada, é que o meu senhor vai exigir que respeite sua

autoridade. Vai conseguir se submeter a isso?

Nã o, desejou responder. Iria esbravejar como uma possessa!

— Acho... Acho que sim — respondeu ela, com falsa doç ura na voz. — Só espero que o confinamento nã o seja

muito rí gido. Poderei sair para fazer compras nas lojas? Poderei passear um pouco por conta pró pria?

— Por certo. Nã o será considerada uma prisioneira. E por ser europé ia, serã o feitas concessõ es, a fim de

tornar você mais... Mais mansa.

O olhar malicioso que acompanhou a frase demonstrava que ele percebera o esforç o que elas fizera para se

mostrar meiga e dó cil.

— Entã o, tenho alguma chance? — ela perguntou, já ansiosa.

— Talvez. Você é jovem e certamente sabe ser encantadora quando lhe convé m. Alé m disso, pode ser que as

irmã s do califa venham a gostar muito de você.

— Onde e quando será feita essa apresentaç ã o?

— O encontro será em Beni Zain e a apresentaç ã o será feita em conjunto com as outras candidatas.

— Outras? Quantas sã o?

— Uma meia dú zia.

— O tal leilã o de escravas! Pensei que tivesse sido a ú nica moç a a candidatar-me.

— Presunç ã o sua.

Entã o, ela iria ser exposta, lado a lado com outras mulheres, para a avaliaç ã o do califa, como se ele tivesse

que escolher uma é gua para as suas cavalariç as?

— Nã o! Esse tipo de coisa nã o faz meu gê nero!

—Tive o pressentimento de que iria ter uma explosã o temperamental. Aliá s, vim observando o seu

nervosismo desde que nos sentamos aqui. Posso adiantar que você tem muitas chances de chamar a atenç ã o do

califa. Com esses olhos, essas feiç õ es, esses cabelos, nã o tem confianç a em seu poder de atraç ã o?

— O senhor fala como se eu fosse entrar no concurso para miss Universo. Será que uma dama de companhia

precisa ter uma beleza estonteante? De qualquer forma, tudo isso me soa como uma barbaridade. Seis mulheres

enfileiradas para serem examinadas por um homem! Quem ele pensa que é?

— O chefe tribal de uma regiã o maior do que muitos paí ses europeus. Seria uma aventura e tanto. Nã o acha?

Sidi Kezam Zabayr reclinou-se em sua poltrona e ficou calado, observando apenas.

Uma aventura, repetiu Carla mentalmente.

Como poderia uma garota capenga competir com todas aquelas candidatas, escolhidas a dedo, de todas as

partes do mundo? Mulheres que deviam ter um preparo bem melhor do que o dela, que abandonara a escola aos

dezesseis anos. Valeria a pena enfrentar uma jornada tã o longa, se aquele califa exigia algué m tranqü ilo e dó cil,

qualidades que ela sabia nã o possuir?

Seria difí cil esconder seu temperamento voluntarioso, assim como seria impossí vel esconder o fato de que

ela mancava ao andar.

— Pagaremos sua passagem até Casablanca e será levada de carro do aeroporto até a estaç ã o ferroviá ria,

onde tomará o Expresso Marroquino para a Proví ncia de Beni Zain. Se nã o for aprovada. Pagaremos també m sua

passagem de volta. Até que uma viagem dessas, com tudo pago, nã o seria má idé ia, mesmo que nã o fosse a encolhida,

hein?

O Califa do Deserto Violet Winspear

O sangue nas veias de Carla entrou em efervescê ncia quando ele disse aquilo. Conhecer aquele deserto

longí nquo e misterioso, onde nã o era nada de anormal um chefe bé rbere enviar representantes para escolher uma

mulher pelo mundo, era realmente uma idé ia tentadora.

— E se o califa gostar de mais de uma candidata, o que acontecerá?

Sidi Kezam Zabayr olhou para a ponteira dourada do cigarro e aquele brilho sagaz voltou a iluminar seus

olhos.

— Somente uma dama de companhia está sendo requisitada. E ela precisará ser a melhor de todas.

— Entendo... Eu gostaria de perguntar uma coisa: toda essa seleç ã o, ultra criteriosa, nã o seria para

aumentar o haré m do seu chefe?

— Meu amo Zain Hassan nã o possui haré m, srta, Innocence — respondeu ele, ofendido. — Primeiramente,

porque ele é um dirigente que coloca o bem-estar de seu povo acima dos seus prazeres pessoais, um segundo, porque

é um guerreiro nato e prefere as asperezas da luta contra os inimigos do que as amenidades de uma alcova. É um

homem que trabalha muito. Existem somente alguns assuntos que ele coloca em minhas mã os, porque está sempre

muito ocupado com os interesses do seu povo.

— O senhor deve ser muito competente.

— As pessoas da confianç a de Zain Hassan precisam ser competentes. Ele nã o tem paciê ncia com os

medí ocres.

— Deve ser um homem duro e intolerante. O senhor disse que ele é viú vo. Que eu saiba, as leis muç ulmanas

permitem a um homem ter trê s esposas.

— É verdade. Mas nosso chefe nã o teve tempo disponí vel para casar-se com mais do que uma, e esta ú nica,

infelizmente, morreu. É por isso que ele quer algué m para fazer companhia à s irmã s. Se, por acaso, Zain Hassan

olhar novamente para uma mulher, será com a finalidade de procriar, para a prosperidade de Beni Zain. Ser mã e dos

filhos dele seria um privilé gio para qualquer mulher!

— Quer dizer que essa mulher perderia seu tempo se quisesse ser amada por ele?

Era uma pergunta muito audaciosa para ser feita naquelas circunstâ ncias, mas Carla nã o resistiu à tentaç ã o

de conhecer mais particularidades sobre os costumes daquele povo estranho.

Sidi Kezam Zabayr nem se deu ao trabalho de responder. Seu olhar dizia tudo.

Carla limpou os lá bios com o guardanapo. Ouvir tudo aquilo era realmente inacreditá vel, Quando chegasse em

casa, iria dar umas boas risadas daquela histó ria, e acabaria se esquecendo de uma vez por todas do emprego no

exterior!

O emissá rio do califa abriu uma carteira de pelica e tirou dela um envelope.

— Aqui está uma passagem aé rea da Air Marroc para Casablanca. O aviã o sai de Londres amanhã à tarde.

Quer ficar com ela, srta. Innocence?

Quando Carla olhou para o envelope, seu coraç ã o disparou. Aquela passagem era a maç ã oferecida pela

serpente. Se a mordesse, talvez voasse para o É den...

— O senhor está me tentando. Deve conhecer bem as minhas fraquezas.

— Em geral, consigo descobrir facilmente as fraquezas alheias. O que você mais deseja neste momento é

sair do seu paí s, e esta passagem de aviã o é o meio para realizar o seu desejo. Só estou cismado sobre o seu

passado. O que a faz querer sair da Inglaterra? Algum homem lhe partiu o coraç ã o?

— Nã o só o coraç ã o como també m a autoconfianç a — Carla respondeu, com sinceridade. — Só espero que o

chefe Zain Hassan nã o invente de me escolher. Gostaria muito de conhecer seu paí s, mas na verdade, nã o acredito

que eu possa corresponder à s suas expectativas. Confesso que o meu temperamento nã o é muito submisso para

ocupar um cargo desses.

— Gosta de jogo, mademoiselle?

— Joguei cartas algumas vezes.

— E nos jogos de azar, tem tido sorte?

— Cheguei a ganhar algum dinheiro no bacará. Mas nã o é sobre dinheiro que estamos falando.

— E só um modo de falar. Já me perguntou se o califa era rico. Isso significa que está em busca da

seguranç a que o dinheiro pode proporcionar. Esta passagem aé rea pode ser seu passe para a independê ncia

econô mica.

— O senhor vai me considerar uma sentimental se eu lhe disser que uma mulher só se sente segura quando é

amada por um homem. Mas eu digo que já perdi as esperanç as de encontrar essa coisa ilusó ria que chamam de amor.

O Califa do Deserto Violet Winspear

Entã o, o senhor vai acabar me considerando uma cí nica, caso eu aceite essa passagem.

O emissá rio lhe estendeu o envelope.

— Nem uma coisa, nem outra. É um desafio — disse.

— Vou aceitar. Mas nã o posso garantir nada sobre qual será minha reaç ã o, caso o califa me escolha.

— Deixe tudo nas mã os do destino. Maktoub é o que dizemos nó s, mulç umanos. Somos um povo fatalista.

Deixe que esse bilhete seja o seu tapete voador, que a levará aos Jardins de Alá.

— Por acaso, sã o jardins suspensos?

— Sã o penhascos elevados, onde as manhã s gloriosas iniciam seu alvorecer.

— O senhor fala como um poeta.

— Muitos dos habitantes do deserto sã o poetas. Nunca tinha ouvido falar nisso?

— Poetas guerreiros, que gostam mais da luta do que das estrofes, essa é a verdade.

— E você, també m nã o gosta de lutar? Nã o tenha tanta certeza de que Zain Hassan deseja uma mulher dó cil.

— Mas foi o senhor mesmo quem disse que tudo o que ele quer é uma mulher submissa, que obedeç a à s suas

ordens, sem discussã o.

— O que eu disse é que nossas tradiç õ es mandam que uma mulher seja obediente e meiga. Na verdade, meu

amo é um enigma até para as pessoas que convivem com ele. Digamos que herdou esse prazer pela guerra do seu

velho pai que foi um homem realmente destemido e feroz. Logo que meu amo nasceu, seu pai estrangulou a esposa.

— O quê? O pai de seu chefe assassinou a mulher? — Carla arregalou os olhos, apavorada.

— Ela cometeu adulté rio e a puniç ã o, nesses casos, é muito severa.

— Severa! Muito mais do que isso: bá rbara.

— É a justiç a do deserto. Entã o, vai aceitar a passagem para Casablanca?

O bom senso de Carla dizia-lhe para deixar o envelope onde estava e sair dali depressa. Mas o corpo nã o

obedeceu ao comando da razã o.

Sidi Kezam levantou-se da poltrona e fez uma ligeira reverê ncia.

— Vai me desculpar, mas tenho outros assuntos a tratar. Fique à vontade. Pedirei ao garç om para trazer um

bule de café fresco. Nó s nos veremos novamente, srta. Innocence? É claro que sim!

Carla ficou sozinha com seus pensamentos e dú vidas. E també m com a passagem aé rea jogada sobre a mesa.

Quando se encaminhou para o ponto do ô nibus, com a passagem dentro da bolsa, ficou imaginando o que diria

a sua velha avó se soubesse que a neta iria partir para um lugar tã o distante e perturbador, de costumes tã o

estranhos, para fazer parte de um leilã o de escravas.

Isso mesmo: leilã o de escravas! Afinal, que outro nome poderia ser dado à quela estapafú rdia seleç ã o?



  

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