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CAPÍTULO VIO sheik Moulay parecia uma figura lendá ria, extraí da de um conto á rabe. Foi o encarregado de ajudar Carla a decorar as palavras que seriam ditas, em á rabe, durante a cerimô nia do casamento. Pouco a pouco, o anciã o foi ensinando partes do difí cil idioma, até ela conseguir pronunciar palavras soltas e até frases inteiras. — O que querem dizer essas palavras na minha lí ngua? — perguntou Carla, pois o velho sheik falava inglê s. Ele coç ou as longas barbas brancas e a fitou com aqueles olhos tranqü ilos, cheios de sabedoria. — Querem dizer que você, minha filha, deverá ser humilde e obediente à s vontades de seu marido; que lhe será fiel em todos os sentidos; que será seu conforto e seu consolo nas horas amargas; que nã o olhará para nenhum outro homem, mantendo os olhos postados no chã o quando algum deles cruzar seu caminho; que será uma boa mã e e educará seus filhos dentro das leis do Alcorã o. — Mas eu nã o sou muç ulmana, sheik Moulay! — Isso nã o tem importâ ncia, sitt. — Pousou suas mã os sobre um raro exemplar do livro sagrado, impresso em pele de gazela e encadernado com o mais fino couro marroquino. — O que importa é que você foi escolhida pelo califa. — O grande senhor todo-poderoso! — ela exclamou, num tom de desprezo, sabendo, por intuiç ã o, que o sheik Moulay era velho e prudente demais para se escandalizar diante de suas rebeldias. Carla era jovem, virgem, e o califa a queria. Era tudo o que interessava ao povo de Beni Zain. Ao menos, ele se decidira casar novamente, e aquele evento era bem-vindo por todos. Nã o adiantava espernear, mas, assim mesmo, Carla se atreveu a suplicar: — Por favor, nã o deixe que ele faç a isso comigo! — Um casamento desses seria um motivo de orgulho para qualquer mulher. Já se deu conta disso? Saiba que as filhas de alguns dos mais importantes cá dis do paí s foram criadas na esperanç a de um dia se tornarem a esposa de Zain Hassan e a mã e de seus herdeiros. Só falavam em esposa, em obediê ncia, em herdeiros, sem a ternura que pudesse aquecer o frio que ia na sua alma, toda a vez que pensava naquilo que a aguardava. — Ele disse que nã o se casaria com outra bé rbere para nã o se lembrar da primeira mulher. O senhor a conheceu, sheik Moulay? Ela era mesmo muito amá vel e muito amada? — Ah... era linda como um pô r do sol no deserto, doce como um favo de mel... tinha o coraç ã o sereno como as á guas calmas de um lago. Temos uma crenç a que diz que o diabo nã o tolera a perfeiç ã o. Ah... Farah era adorada pelo jovem califa, mas, agora que ele está mais maduro, aprendeu que a felicidade total nã o é deste mundo e que devemos aceitar que a amargura se misture com a doç ura. — Tenho certeza de que o senhor já percebeu que ele está me forç ando a esse casamento. A descriç ã o dos dotes de Farah tinha atingido o amor pró prio de Carla. Ningué m da tribo, nem o pró prio califa, parecia esperar doç ura e alegrias na segunda esposa. Tudo o que o califa queria daquela roumia mercená ria — como ele a chamava — era um corpo intocado, que pudesse conceber um filho, um varã o de olhos claros, para liderar Beni Zain no futuro. Ela era apenas um instrumento, e nã o a mulher amada, que receberia e daria felicidade a seu companheiro para ao seu povo. O Califa do Deserto Violet Winspear — Nã o acredito que o conselho de anciõ es de Beni Zain aprove que ele se case com uma estrangeira — argumentou Carla. — Nã o cabe a nó s julgar as decisõ es do califa — disse o velho, com severidade. — Ele sabe o que faz e, afinal, trata-se apenas da escolha de uma mulher. — Uma criatura sem alma — respondeu ela, irritada. — Uma prisioneira que tem sempre um guarda nos seus calcanhares, — É uma providê ncia prudente, para evitar que você se perca no deserto. Lá fora, poderia apanhar uma insolaç ã o ou ser atacada pelos nô mades, e eles nã o seriam muito bonzinhos para com você. Entende o que quero dizer, sitt? — Entendo. — Carla teve um calafrio. — O deserto nã o é propriamente um paraí so para mulher nenhuma, nem mesmo para as mulheres dos tuaregues, que tê m que arrumar á gua, trabalhando de um poç o para outro, e dar à luz os filhos sobre a areia. No caso da esposa do califa, ela tem que ser mantida em reclusã o e deverá obedecer cegamente à s suas ordens arrogantes. O senhor sabe que eu nã o amo esse homem! Nã o suporto a maneira como ele me trata! Ele zomba de mim o tempo todo. O que faria seu povo se eu enlouquecesse e o apunhalasse? Para você s, o califa pode parecer uma divindade, mas, para mim, ele é feito de carne e osso, e nã o creio que vá permitir a presenç a de um guarda no quarto matrimonial. Os olhos suaves do sheik Moulay ficaram subitamente duros como duas pedras de granito. — Arranque um só fio de seu cabelo, sitt, e você será estrangulada! — Pensei que essa fosse a puniç ã o para as adú lteras. No caso de enfiar um punhal em seu precioso coraç ã o, o castigo deveria ser, no mí nimo, o esquartejamento, com os membros amarrados à s patas de cavalos selvagens. — Nã o é impossí vel — disse o anciã o, muito sé rio. — Zain Hassan provou ser um lí der de pulso forte, mas també m muito dedicado ao povo de Beni Zain. Se uma mulher o ferir, será condenada ao inferno, mesmo antes de morrer. Sob certos aspectos, o tempo parou no deserto. Os costumes do passado ainda persistem. E quem ouviria seus gritos nessa imensidã o de areias silenciosas? Com certeza, ningué m. Nem ali, naquele mundo selvagem, nem mesmo na civilizada Grã -Bretanha. Se ela desaparecesse de circulaç ã o, iriam pensar que fora morar com os parentes, na Escó cia, ou que se casara com algum rapaz da classe mé dia e montara seu lar no subú rbio. Ningué m, nem em sonho, iria imaginar que ela estava no Marrocos, sob a custó dia de um poderoso califa, tendo que decorar, em á rabe, o texto de seu casamento, presa num castelo, à espera de ser desvirginada por um homem chamado El Zain. — O senhor conheceu a mã e dele? — perguntou Carla de repente. — Sim, mas ela nunca é mencionada, nem por ele, nem por ningué m. E agora, vamos. Repita comigo os votos, e tente pronunciar corretamente as palavras que lhe ensinei. — Por que ela nã o pode ser mencionada? — persistiu Carla. — Que pecado tã o imperdoá vel ela cometeu, se afinal o filho dela foi criado para ser o governante de Beni Zain? Por que o pouparam? — Por que... Bem, eu nã o deveria lhe contar isso... Por que o pai da crianç a era um homem muito considerado pelo califa daquela é poca. Ele era um heró ico e valente soldado. Mas nã o vou dizer mais nada. Zain Hassan ficaria furioso comigo se soubesse que andei falando sobre esse assunto. Vamos voltar à nossa aula. — Por quê? Ele se envergonha do que sua mã e fez? — Ele cresceu como se fosse filho do pró prio califa, mas sempre soube da sua verdadeira origem. — Esse soldado era um europeu? — Carla precisava perguntar, queria saber a qualquer custo. — Conte-me a verdade e eu prometo que nunca deixarei escapar uma só palavra sobre o que me disser. — Você já viu os olhos dele, sitt, e pode chegar à sua pró pria conclusã o. Mas o nome desse homem nunca é mencionado, pois era um heró i muito reverenciado por sua coragem e nã o querem que um fato escandaloso manche a sua memó ria. Uma mulher tola e fú til foi a culpada desse escâ ndalo, e ela pagou o erro, conforme merecia. Nã o que ele fosse um mulherengo, mas daquela vez foi tentado. Quando o menino nasceu, ningué m cogitou em tirar-lhe a vida, pois ele trazia o sangue de um heró i, de um lí der, conforme ficou comprovado quando El Zain se tornou um homem. Agora, ele é a nossa espada protetora. — Mas a pobre mulher foi morta. — Carla nã o pô de evitar um tremor na voz. — Foi uma crueldade, pois, afinal, era a mã e dele. — Ela foi infiel, e naquele tempo a infidelidade era considerada um crime punido com pena de morte. — Por quê? Hoje em dia nã o é mais? E se eu... O Califa do Deserto Violet Winspear — Aconselho a nã o falar dessa maneira! — interrompeu o mestre, muito chocado. — É vergonhoso só pensar numa coisa dessas, sitt, e eu vou fazer de conta que nã o ouvi nada. Agora, vamos à liç ã o! — Só me diga mais uma coisinha, e juro que nã o farei mais perguntas. Por favor! — pediu Carla, com um olhar suplicante. — Esse tal soldado, o verdadeiro pai de Zain Hassan... O que aconteceu com ele? Ficou testemunhando tranquilamente a morte da mulher com quem fizera amor? — Na é poca em que a crianç a nasceu, o pai já tinha falecido. Nã o sei bem, mas talvez tenha sido uma forma de justiç a. Ele morreu na Inglaterra, ví tima de um acidente de carro. Agora, nã o me pergunte mais nada. Tudo isso aconteceu há muito tempo, e o melhor é deixar que os mortos descansem em paz. Carla soltou um suspiro. Tudo aquilo era muito triste e confuso. Mas a conclusã o era que aquele homem que pretendia se casar com ela à forç a tinha metade de sangue inglê s, pois nã o havia mais dú vidas de que pai dele fora um oficial britâ nico. — Nunca abra a boca sobre isso com o califa — recomendou o anciã o. — Ele venera a memó ria daquele que o gerou e... — Mesmo sabendo que esse homem foi o causador da morte da pró pria mã e? — Mesmo assim. Os bé rberes sã o um povo muito antigo e ainda seguem fielmente os velhos costumes. As adú lteras, conforme diz a pró pria Bí blia de você s, eram apedrejadas. Só que eles preferiam o estrangulamento, por ser uma morte mais rá pida e humana. — Humana! — Carla sentiu um frio percorrer sua espinha. — E eu vou ter que me casar com um chefe bé rbere que acha humano estrangular uma mulher! — É desejo de Alá que seu nome seja glorificado! — É o desejo de Zain Hassan, e o senhor sabe bem disso. Só que a sua lealdade para com ele o impede de dizer que está tudo errado. — Seus olhos se tornaram sombrios e acusadores. — Se eu fosse uma moç a bé rbere, sheik Moulay, seria diferente. Mas sou inglesa e estou acostumada à minha liberdade, a ser dona dos meus atos. O senhor está sendo cú mplice de um crime contra os direitos humanos. Garanto que está! — Silê ncio, minha filha! Você está vendo fantasmas onde nã o existem. Meu amo Zain Hassan nã o é um monstro. Ele será bom para você, à maneira dele. O certo é que ele precisa se casar para perpetuar sua lideranç a. — Mas ele é um lí der tã o extraordiná rio assim? Pode ser que leve o sobrenome do antigo califa, mas para mim ele nã o passa de um... — Nã o diga essa palavra! Um homem é um lí der quando dá provas de sua forç a e autoridade. E Zain Hassan se fez respeitar pelo seu povo. — E també m se fez amar? Isso já é mais problemá tico, pois medo e amor nunca andam juntos. — Você está revoltada, mas é mulher — disse o velho, pacientemente. — E a compaixã o é um dos predicados do coraç ã o das mulheres. Será que nã o sente um pouco de piedade por um homem que perdeu seu filho ú nico quando ainda era uma crianç a? O tempo pode cicatrizar as feridas, mas as marcas permanecem, — Foi realmente trá gico. Mas o que lhe aconteceu no passado nã o o terá transformado num homem sem sentimentos? Acontece com certas pessoas. A dor tem o poder de fechar seus coraç õ es. — Gostaria que Zain Hassan abrisse o coraç ã o para você? — Nã o... Sim... Bem, o suficiente para permitir que eu pudesse viver a minha vida. — Aquilo que está escrito no livro do destino nã o se altera, Nourmahal. — Nourmahal? — ela repetiu. — O que quer dizer isso? — Luz do haré m. É o que você será quando chegar o dia das bodas. — Nã o quero ser luz alguma! Quero só que me esqueç am, que me devolvam a liberdade, — e implorou: — O senhor nã o pode me ajudar? Eu me sinto tã o infeliz! — Você só está um pouco receosa, como toda noiva à s vé speras do casamento. — Nã o compreende, sheik Moulay, que tudo seria diferente se eu o amasse? Mas só sinto repulsa por ser tratada como um objeto, sujeita a seus gostos e vontades. O senhor nã o poderia me ajudar a fugir? Arrume um camelo e um haudaj para mim... E um guia! O velho sacudiu a cabeç a, — Seria uma temeridade, minha filha. Zain Hassan tem olhos de lince, e eu me arriscaria a perder a cabeç a se ele descobrisse que colaborei com a sua fuga. Conforme-se com o destino. Você é uma moç a bonita e já estava escrito que um dia pertenceria a um homem. Zain Hassan é um homem excepcional, e, se você almeja ser amada, saiba que o amor é uma emoç ã o que muda, que tira a paz das pessoas. Dê filhos a El Zain, e você nã o se arrependerá. O Califa do Deserto Violet Winspear Prometo. — Oh, nã o duvido que ele me encherá de sedas, jó ias e perfumes, tã o logo eu fique grá vida, Mas, e se nascer uma menina? — Ele a aceitará, na esperanç a de que da pró xima vez você tenha um menino. — O sheik sorriu diante do ar desconsolado de Carla. — As mulheres nasceram para ser mã es, e isso tem suas compensaç õ es. Porque se atormenta tanto? Pare de perturbar sua mente com tantas reflexõ es e viva a vida como ela é. Pelo menos aqui nã o se sentirá tã o solitá ria como no seu pró prio paí s. Porque foi a solidã o que a trouxe até nó s, nã o foi? — Sim. Eu me sentia sozinha, mas, quando vim para cá, pensei que fosse ser a companheira das... — Pois será uma companheira, sitt, mas dele, e nã o das irmã s. Acho até mais atrativo. — O senhor está caç oando de mim, sheik Está achando que sou uma idiota por fazer tanto barulho em torno desse casamento. É que eu sou uma pessoa, e nã o apenas um corpo. Tenho meus direitos e quero que sejam respeitados, coisa que ele nã o faz. Por isso eu o odeio tanto! — Temos um ditado que diz que o amor e o ó dio sã o duas estrelas gê meas que foram criadas numa noite de tempestade, e estã o condenadas a andarem eternamente juntas, lanç ando centelhas de luz uma contra a outra. Tome cuidado, pois, onde estiver vendo ó dio, pode ser que seja uma centelha de amor. — O senhor tem um bom repertó rio de prové rbios que sã o muito pitorescos, mas pouco realistas. Nã o sei como era o califa quando estava casado com Farah, mas sei perfeitamente que ele me apavora. Eu nã o suporto aquela pose toda! Oh, sim! Ele era um prepotente sem cura. Uma de suas ú ltimas exigê ncias fora proibir que ela usasse calç as compridas. — Já mandei fazer roupas apropriadas para você, e sua fatima a ajudará a se vestir — dissera ele. — E nã o adianta me mandar para o inferno, nem com palavras, nem com esses olhares. Se você se recusar a se deixar vestir pela sua fatima, e nã o abandonar essas calç as masculinas, eu mesmo me encarregarei do seu guarda-roupa. Para sua informaç ã o, bint, nã o gosto de rapazinhos. Aquele velho bondoso e tolerante nunca poderia entender o que lhe ia na alma, e muito menos a ajudaria a fugir. Tudo o que ele podia fazer era prosseguir pacientemente com suas liç õ es. Lá pelo meio-dia, o calor estava no auge. Carla se levantou, enxugando o suor do rosto com um lenç o de cambraia, e o sheik tomou sua posiç ã o, inclinando-se para frente na direç ã o de Meca, para fazer suas oraç õ es. — Voltaremos a nos ver amanhã, minha filha. Pense bem no que conversamos e acalme seu coraç ã o. — Vou tentar, sheik Moulay. — E, com um ligeiro cumprimento, à moda oriental, Carla se encaminhou para o jardim, onde uma fonte jorrava sem parar. Aquele cumprimento saí ra espontâ neo e combinava melhor com as roupas que estava usando, um leve kaftan de seda pura e babuchas vermelhas bordadas a ouro, com as pontas viradas para cima. Era um traje estranho, mas muito confortá vel. O jardim, com suas palmeiras, pimenteiras e canteiros de magnó lias e lilases persas, era um verdadeiro paraí so. Poré m, um paraí so reservado só aos homens, pois as mulheres do kasbah, à quela hora, estavam ocupadas com seus afazeres domé sticos. Carla aspirava com satisfaç ã o o perfume dos cedros, quando viu reluzir o metal de um punhal. Devia ser um dos guardas incumbidos de vigiá -la, para evitar que fugisse. Mas ela nã o seria boba de se aventurar pelo deserto sem estar acompanhada por um guia, e sem levar á gua e provisõ es suficientes para a longa jornada. Da varanda de seu quarto, tinha uma vista do deserto em sua alarmante imensidã o e quietude. À s vezes, um ou outro homem cortava aquele horizonte, no dorso de um camelo, e ela ficava imaginando se realmente teria desejado ir embora dali, no caso de ser apenas dama de companhia das duas formosas meias-irmã s do homem que a escolhera para sua futura esposa. Quando pensava em casamento, Carla só conseguia visualizar o quadro que fizera sobre sua vida matrimonial ao lado de Peter Jameson. Uma bela casa de campo situada num belo recanto da Inglaterra... Uma lareira acesa... O chá das cinco... Cã es perdigueiros latindo pelas alamedas repletas de á rvores... Passeios pelos bosques... E amigos fazendo visitas nos fins de semana. Era o sonho dourado de uma moç a pobre, que havia trabalhado para garantir seu lugar ao sol, e que conseguira atrair a atenç ã o de um cavalheiro de boa posiç ã o, tanto social, quanto financeira. Mas ser a " luz do haré m" de um califa, nos confins daquele deserto, morando num kasbah, nunca havia passado pela sua cabeç a, Podia até ser que ele tivesse sangue europeu nas veias, mas era um bé rbere. E haveria de O Califa do Deserto Violet Winspear possuí -la como um bé rbere — de uma forma brutal e selvagem, com uma paixã o animal, cuja finalidade era uma só: procriar. Conceber um filho varã o, que tomasse o lugar daquela crianç a que ele tanto havia amado, por ser filho de Farah, a mulher amada. Passou por uma velha roda d'á gua que espalhava respingos por entre os gerâ nios, as hortê nsias e as ramagens pendentes das varandas. Borboletas coloridas esvoaç avam ao redor. Respirou fundo, erguendo o olhar para a folhagem de uma alta palmeira, no momento em que um falcã o cruzava os ares com as asas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro. Nã o podia negar que aqueles jardins eram lindos e que o pró prio kasbah exercia uma estranha fascinaç ã o sobre ela, com seus corredores, suas arcadas, onde camaleõ es procuravam abrigo entre as frestas. Eram impressionantes aquelas muralhas de pedra, aquelas portas de madeira colossais, com o dobro da altura de um homem. Era impossí vel nã o desfrutar, à s vezes, de um certo prazer naquele lugar fantá stico, principalmente quando Carla resolvia levar seu almoç o numa cesta e fazer um piquenique numa das escondidas zaribas. Eventualmente, convidava o guarda que a acompanhava para partilhar com ela as fatias de rocambole de carne, temperadas com cebolas, o hô mus espargido sobre as rodelas de pã o chato, os pê ssegos aveludados e os figos frescos. Nã o seria de se esperar que ela fizesse uma coisa dessas, razã o pela qual sentia maior prazer em transgredir as regras. Raschid era sempre muito polido e formal e nunca tirava proveito de seus convites, mas Daylis nã o fazia tantas cerimô nias e aceitava aquelas iguarias de bom grado. Nenhum deles entendia uma só palavra do que ela dizia, mas Carla sentia-se feliz em poder contrariar as ordens do califa, ainda mais na companhia de Daylis, um jovem que deixava qualquer artista de cinema no chinelo. Era um homem de rara beleza e devia se sentir entediado com aquela enfadonha missã o de lhe seguir os passos por onde ela fosse. E Carla costumava andar bastante por aquelas vielas calç adas de pedras que levavam aos lugares mais surpreendentes, como aquelas lojinhas de artesanato que mais pareciam covas escondidas abaixo do ní vel da rua. Freqü entemente, cruzava com moç as á rabes, trajadas com longas vestes que lhes chegavam até os pé s, e tendo o rosto tapado por panos que só deixavam à mostra olhos sensuais e amendoados, caprichosamente delineados com khol. Notou que elas andavam mexendo os quadris de maneira muito provocante. Será que Farah era parecida com aquelas moç as de andar sensual e olhos de gazela? Certa noite, Carla aplicou khol nos olhos, depois de ter encontrado um vidrinho dourado do cosmé tico em cima da penteadeira. Completou o efeito tapando o nariz e a boca com uma longa echarpe de chiffon que comprara no souk, com a ajuda de Daylis. Quando Zain Hassan a viu assim, seus olhos azuis tiveram uma expressã o de espanto, e ela chegou a ficar vermelha. Depois ele soltou uma alta risada, que balanç ou de vez com suas estruturas. — Sabe o que parece? Que você vai a um baile de má scaras! — Mas foi você mesmo quem fez questã o de que eu usasse roupas orientais — ela rebateu, raivosa, arrancando a echarpe do rosto. — Só quis lhe demonstrar que, por mais que eu faç a, nunca terei a aparê ncia dessas moç as bé rberes, de pele cor de mel. Elas tê m um andar sensacional, nã o acha? Os olhos verdes, maquiados de khol, adquiriram uma expressã o melancó lica e ressentida. No passado, ela també m havia andado com tal graç a que as pessoas chegavam a se virar na rua para admirá -la. Agora, prejudicada pelo pé defeituoso, seu modo de andar a tornava ainda mais ridí cula aos olhos do homem que a tinha obrigado a usar aquelas roupas extravagantes. Sentia-se uma verdadeira palhaç a. — Você está tentando imitar uma gazela? — caç oou ele, pegando um dos seus charutos prediletos de uma caixa de cobre. — Pareç o mais um coelho saltador, nã o é? Eu ando aos solavancos! E vendo que ele a olhava por entre as espirais de fumaç a, sentiu-se realmente como um coelho indefeso, alvo de um tigre sanguiná rio. Certamente ele crescera com a obsessã o da infidelidade da mã e, e se tornara duro e inflexí vel para mostrar a todos que merecia o posto que lhe haviam confiado, apesar da evidê ncia de seu sangue impuro estar marcada na cor de seus olhos. Carla tinha certeza de que mesmo o amor que ele sentira por Farah nã o suavizara seu coraç ã o. A morte da mulher apenas o endurecera ainda mais. O Califa do Deserto Violet Winspear Meu Deus! Aqueles olhos tã o belos e angelicais podiam ser tã o crué is quanto os de um demô nio! Naquela noite, cearam no solá rio particular, sob a claridade prateada da lua crescente. Aquela fase da lua a fez lembrar-se de que logo o disco de prata estaria em sua plenitude, e ela nã o mais seria escoltada de volta para seu pró prio quarto de dormir, apó s o jantar. Permaneceria o restante da noite ali, com ele, entre aqueles tapetes tecidos à mã o, com desenhos de animais selvagens, orquí deas, luas e estrelas. O pró prio solá rio era mobiliado com almofadas douradas, mesas para café de é bano, incrustadas de madrepé rolas, e um divã redondo, quase tã o grande quanto seu pró prio quarto de dormir. Ao longe, sob a luminosidade das estrelas, se podia ouvir uma mú sica dolente... A canç ã o do deserto, certamente, uma canç ã o de amor. — No que está pensando, minha gazela? Ele deslizara pelos tapetes como um felino, e Carla chegou a estremecer de susto, quando aqueles dedos á geis lhe tocaram os ombros por cima da seda, produzindo uma espé cie de choque elé trico. — Estava pensando que, se o deserto nã o fosse tã o vasto e perigoso, eu fugiria para bem longe de você! — respondeu, sentindo os olhos dele postos em seus cabelos, que estavam presos. — Sei disso, bint. A cada dia, a lua aumenta de tamanho e o coraç ã o da gazela bate mais forte, sentindo que o caç ador está se aproximando. Você parece mesmo uma dessas corç as que fogem do perseguidor em desabalada carreira, até que seu coraç ã o estoure. Nã o faç a isso, Carla, pois assim você me corta o prazer de sua companhia. — O prazer de me atazanar — ela revidou, ressentida. — Você está sempre me mostrando como fui tola e como foi fá cil me apanhar na sua armadilha. — Acredite, Carla, você nã o haveria de gostar de ser a dama de companhia de duas garotas adorá veis, mas bobinhas e fú teis. Você nasceu para ser a companheira de um homem, se seu coraç ã o sabe disso. Essa sua beleza toda seria desperdiç ada com minhas irmã s. Tenho grande afeiç ã o por ambas, mas será bem melhor elas serem tuteladas por essa senhora que deverá chegar do Egito em breve. — E você nã o leva em consideraç ã o que eu preferiria ficar com Lallou e Belkis? Gosto de ambas e, infelizmente, nã o posso dizer o mesmo de você. Sem dú vida, elas tiveram uma mã e melhor do que a sua. Carla nã o pretendia ir tã o longe, mas ele tinha o poder de tirá -la do sé rio. Esperou que ele tivesse uma explosã o de ira, mas El Zain apenas lhe enviou um olhar gé lido. — Como lutadora, você nã o respeita as regras do jogo. Gosta de dar golpes baixos. Mas nã o abuse comigo, bint, pois eu conheç o todos os truques sujos e sei dar coices como um camelo, quando é preciso. — E teria coragem de dar um coice em algué m menor e mais fraco do que você, e, ainda por cima, deficiente fí sico? Carla levantou o nariz, com petulâ ncia. El Zain segurou-a entã o pelos cabelos, fazendo-a curvar o pescoç o para trá s, até que as pernas começ aram a doer. — Se eu nã o fizer algo drá stico, esse bendito defeito vai atormentá -la até a hora da morte! Amanhã vamos passear a cavalo pelo deserto! — Nã o! — Os olhos verdes se abriram pela dor e pelo pâ nico. — Isso nã o, pelo amor de Deus! Nunca mais quero chegar perto de um cavalo, e os seus sã o garanhõ es selvagens. Sempre os ouç o relinchando, furiosos, e outro dia.... — Já sei. Outro dia eles se pegaram a dentadas. É que aqui é uma proví ncia do deserto, e nã o uma vila campestre da Inglaterra. Nã o costumamos castrar nossos garanhõ es, tirando-lhes a beleza e a impetuosidade tã o famosas nos cavalos á rabes. Você vai voltar a montar, sim, senhorita. Nã o há maior prazer do que um belo galope ao amanhecer, quando a atmosfera ainda está fresca e agradá vel. Faç o questã o de que você experimente essa sensaç ã o. Alé m do mais, nã o gosto de mulheres medrosas, e o tipo de medo que você sente é facilmente curá vel. — Nã o posso! Nã o posso! — gritou ela, já antecipando o terror de ser arremessada para fora da sela pela segunda vez. — Nã o vou fazer uma coisa que me causa pavor e lhe dá o prazer de ser cruel! — Deixe de ser crianç a! Posso entender seus temores, mas você precisa superá -los, e a ú nica maneira de conseguir isso é voltando a montar. Freqü entemente viajo para outras á reas de Beni Zain, a fim de visitar as pastagens dos criadores de gado, camelos e cabras, e gostaria que você me acompanhasse nessas peregrinaç õ es, montada em seu pró prio cavalo. A nã o ser que prefira ficar guardada, em cativeiro, durante todo o tempo em que eu estiver ausente. Você gostaria? Ficar na pasmaceira de um haré m de escravas, vigiada dia e noite pelos guardas, para nã o seguir o exemplo da mã e dele e procurar consolo nos braç os de um amante! O Califa do Deserto Violet Winspear Carla enviou-lhe um olhar provocante, que o khol tornava ainda mais audacioso. — Você sabe muito bem o quanto detesto ser uma prisioneira nesta sua fortaleza de pedra, El Zain, e assim mesmo nã o tem um pingo de consideraç ã o pelos meus sentimentos. Para você, nã o passo de um mero objeto que se descarta quando nã o tem mais utilidade. Será que essa sua cabeç a nã o consegue imaginar o que eu poderia fazer durante suas longas ausê ncias? Os guardas que você escolheu para me vigiar nã o sã o de jogar fora, você sabia? Os olhos azuis faiscaram perigosamente. — Eu torceria esse seu pescoç o branco de cisne como se fosse o de uma galinha, e você sabe que sou bem capaz disso — murmurou ele, em voz baixa e rouca. — Talvez eu preferisse esse destino do que ser a escrava de um homem que enterrou seu coraç ã o ao lado dos restos mortais de Farah; de um homem que quer me obrigar a cavalgar novamente, contra a minha vontade. O que pretende fazer? Jogar-me em cima de uma sela como se eu fosse um saco de batatas? — Se for necessá rio, é isso mesmo que vou fazer. Mas, seja como for, você vai cavalgar comigo. Reconheç o que você é diferente de Farah. A mesma diferenç a que existe entre um favo de mel e uma pimenta ardida. Ficar presa seria um purgató rio para você, nã o é verdade? Só de pensar nisso, Carla sentiu um calafrio na espinha. E tornou a se arrepiar quando se imaginou na sela de um daqueles cavalos á rabes, que certamente empinaria, aos relinchos, atirando-a ao solo. Mas nã o tinha escolha: ou a reclusã o, ou aquilo que seria uma cura impiedosa para o seu complexo. — Você é quem decide, Carla: ou a liberdade do deserto, ou a prisã o do castelo! — Quer dizer que agora você é El Hakim, o grande mé dico capaz de curar meus complexos? — disse Carla, irritada. — Que sujeito mais versá til! Nã o é à toa que o povo de Beni Zain se curva diante de você! — Como você é agressiva, bint! Subitamente, ela se viu suspensa por aqueles braç os fortes e transportada para o enorme divã. Ele a pressionou com seu pró prio corpo contra as almofadas, e Carla sentiu seus lá bios ardentes como fogo lhe percorrerem a curva sinuosa do pescoç o. — Nã o faç a isso! — protestou, fracamente. Mas nem as palavras, nem a tentativa infrutí fera de se debater a livrou de uma verdadeira avalanche de beijos. Quando conseguiu libertar a boca daquela invasã o brutal, ela gritou: — Você é desumano! Deleita-se com a bestialidade! — Como pode dizer uma coisa dessas, estando nos meus braç os, com a pele queimando pelos meus beijos? Será que esses lá bios, que sabem dizer tantas coisas ofensivas, nã o sã o capazes de dizer palavras carinhosas num momento desses? — Se espera de mim palavras carinhosas, vai esperar pelo resto da vida. Se quiser ouvir doces mentiras, vá procurar uma das suas bailarinas da danç a do ventre! — Você acha que uma mulher precisa mentir quando está na minha companhia? — Ergueu uma sobrancelha ameaç adoramente. — Se eu quisesse, bint, até você cairia aos meus pé s, louca de amor. Quer que faç a uma demonstraç ã o? — Como assim? — perguntou ela por perguntar, preocupada com a expressã o de desejo que tornava aqueles olhos lí mpidos de um azul mais escuro e opaco, — Preciso ser mais claro? — E lhe acariciou as faces coradas pelo embaraç o com suavidade e mestria. — Uma verdadeira mulher conhece a linguagem dos sentidos, sem ser necessá rio usar palavras. Mas eu começ o a desconfiar que você vai precisar ser muito treinada e amaciada. Até que será divertido despertar a sua sensualidade! E aquelas mã os fortes e experientes começ aram a lhe percorrer as partes mais sensí veis do corpo com incrí vel habilidade. Carla quis se negar, mas uma grande fraqueza se apoderou dela. Sentiu as pernas bambas, uma contraç ã o no estô mago e o coraç ã o começ ou a bater loucamente. Soltou um gemido de prazer, e aquela boca á vida a emudeceu com um beijo tã o longo que parecia nã o ter mais fim. Saiu daquele ê xtase, estonteada, como se tivesse acabado de cair de uma nuvem. — Viu? Até você pode gozar a sensaç ã o de ser beijada e acarinhada. — Se pensa que gostei, está muito enganado! Você me forç ou a isso! — Foi como um remé dio que tem que ser tomado de olhos fechados? — Levantou-se e deixou Carla inerte sobre as almofadas. — Chame a isso de divina selvageria do desejo, bint. Dó i menos do que arrancar um dente. Carla sentiu a pele do corpo inteiro se inflamar sob aquele olhar. O olhar de um homem que conhecia todos O Califa do Deserto Violet Winspear os segredos da arte de fazer amor e que devia ter percebido o quanto ela era ainda inocente. — Agora, sente-se, Carla, pode se recompor. Meus criados vã o entrar a qualquer momento para servir o jantar, e você está com o aspecto de quem acabou de aprender a diferenç a que existe entre um homem e uma mulher. Bateram na porta e Mehmed entrou com uma enorme bandeja de prata. — Coloque aqui, Mehmed — ordenou ele, indicando uma das mesinhas pró ximas ao divã. O servo depositou a bandeja no lugar indicado, sem levantar os olhos. Ela era a mulher do califa, e, na presenç a do amo, ningué m deveria se atrever a olhá -la. Carla sentiu-se grata por aquela regra de respeito, pois naquele momento estava com uma aparê ncia realmente constrangedora — os cabelos desarrumados, os olhos manchados de kohl, a roupa amassada, as faces coradas, e uma das chinelas havia caí do a um canto do divã. Parecia que ela acabara de ser violentada. Com uma reverê ncia, Mehmed desapareceu. — Aceita um pouco de cuscuz? — perguntou Zain Hassan, erguendo a tampa de uma das travessas de prata.
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