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CAPÍTULO IVSem poder suportar a crueldade e a malí cia que lera naqueles olhos azuis, Carla desviou a cabeç a para a janela do trem, olhando para o cé u, de um azul cintilante, da cor daquelas pupilas que teimavam em observá -la. Com raiva, pensou: Maldito Lú cifer! Aquele homem era satâ nico, e tinha o mesmo poder de seduç ã o infernal que se atribui ao demô nio. — Marfim branco — ela o ouviu murmurar. — É assim que chamam as mulheres de pele alva. — Você nã o me amedronta! — revidou Carla, com um olhar desafiador. — Aquele homem que trouxe o lanche e os outros que estã o com ele na comitiva sabem que eu estou aqui com você! — Claro que sabem! — disse ele, sem se alterar. — Nã o quer mais um pouco deste delicioso café á rabe? A garganta de Carla estava seca e apertada pelo medo, e ela nã o recusou o oferecimento. Contudo, ao levar a xí cara aos lá bios, sua mã o tremia tanto que quase derramou o café. Aquilo provava o quanto sentia insegura e perturbada diante daquele homem. As intenç õ es dele nã o deviam ser as melhores. E Carla sabia que, apesar do defeito fí sico, era uma mulher atraente. Mas també m desprotegida. O bé rbere se mexeu na cadeira, e ela ficou de prontidã o. Tudo o que ele fez, poré m, foi tirar do bolso do culote um charuto fino e comprido, cuja ponta cortou com os dentes alvos. — Tire sua jaqueta e fique à vontade — ele aconselhou. — Ainda temos algumas horas de viagem pela frente, e eu vou me distrair um pouco fumando. O fumo nã o a incomoda, nã o é? — Mesmo que incomodasse, que diferenç a faria? Foi um alí vio tirar aquela jaqueta, pois, apesar do ar-condicionado, ela estava fervendo. Pelo menos por dentro. Ele deu uma tragada no charuto e soltou a fumaç a pelas narinas. O cheiro de fumo se misturou ao aroma do café, resultando num odor má sculo e excitante, o que a alarmou ainda mais. Na verdade, ela se sentia como uma borboleta cativa, que estivesse sendo cloroformizada antes de ser transpassada pelo alfinete mortal. — Coma uma fruta — sugeriu ele. — Estas uvas parecem saborosas e vã o refrescar sua garganta. Carla estava mais do que satisfeita, mas arrancou alguns bagos de um cacho de uvas que repousava sobre uma espé cie de pã o chato e redondo. — Esse tipo de pã o é chamado kesrah. Faz à s vezes de prato e poupa o tempo para lavar a louç a. — Tudo o que ele dizia, mesmo as coisas mais corriqueiras, parecia demonstrar suas misteriosas intenç õ es em relaç ã o a ela. — As mulheres sã o como as uvas — continuou o bé rbere. — Se comermos um bago que ainda nã o está maduro, é dor de barriga na certa. — Que filosofia mais elevada! Posso até jurar que essa frase tã o româ ntica é de sua autoria. — Constato que está aprendendo a me conhecer. Essas uvas sã o quase da cor dos seus olhos sob a luz do sol. Que tonalidade terã o esses olhos, sob a luz do luar? — Você tem uma imaginaç ã o fé rtil, caro poeta. Mas, por favor, nã o precisa me elogiar. Eu passo melhor sem seus elogios. — Talvez esteja querendo dizer que se sente mais segura sem eles. Tente usar també m a imaginaç ã o e sinta-se sob o luar do deserto, num dos jardins reclusos a que chamamos zarlba, gozando o encantamento das O Califa do Deserto Violet Winspear sombras noturnas, repletas de pá ssaros. Nã o existe nada mais evocativo do que os jardins mouriscos que foram feitos para a meditaç ã o, e para sussurrar palavras que perderiam o significado se pronunciadas à luz do dia. — Pensei que preferisse a liberdade e a amplidã o do deserto do que a reclusã o de um jardim mourisco — disse ela, imprimindo à voz a maior frieza possí vel. Nã o queria, de jeito algum, dar demonstraç õ es de que aquelas, frases poé ticas mexiam com seus nervos. Nã o gostava dele nem um pouco, mas tinha que reconhecer que aquele homem exercia um estranho fascí nio, tinha um carisma do qual era difí cil se esquivar. Ele possuí a duas faces contrastantes. Uma, arrogante, atrevida, inescrupulosa; outra, culta, sensí vel e educada. Mostrava esse seu segundo rosto quando enunciava frases poé ticas, dominava idiomas estrangeiros, e fazia galanteios cativantes. Se de um lado era um bá rbaro, de outro era um homem civilizado. — Digamos que quando cavalgo pelo deserto nã o gostaria de estar em qualquer outro lugar. Mas se estou descansando sob o frescor da sombra de uma palmeira, cercado de fontes de á guas cantantes e cristalinas, prefiro apagar da memó ria à lembranç a da aridez do deserto. A natureza de todos os homens tem duas facetas. Uma delas luminosa. A outra, obscura. — E as mulheres? Todas elas sã o transparentes para você? — Como já disse, bint, elas sã o como as uvas. Aparentemente sã o transparentes. Mas é só experimentando que se vai saber se sã o doces ou azedas. — Pensei que um povo supersticioso como o seu acreditasse em toda sorte de mitos e magias, quando se tratasse de alguma coisa difí cil de compreender, como é o caso do í ntimo de uma mulher. — A cultura e a educaç ã o sã o inimigas da superstiç ã o. Talvez eu tivesse sido um homem bem melhor, se nã o me tivessem feito estudar. Chego a invejar alguns dos homens da tribo de Beni Zain, pela maneira simpló ria como encaram a vida. Eles apenas se casam, se reproduzem, vivem com despreocupaç ã o, sem fazer muitas perguntas o que é bom ou mau, certo ou errado. Eu já sou mais complicado, mais difí cil de satisfazer. Talvez isso esteja no meu sangue. Maktoub! Será que ele tinha alguma mistura de sangue? Para um bé rbere, era estranho que tivesse uns olhos tã o incrivelmente azuis, parecendo duas safiras, em contraste com o tom moreno de sua pele. — Pelo menos, você nã o é um homem comum. Sim, era verdade. Kezam Zabayr, em seu bem talhado terno ocidental, parecia muito mais um á rabe convencional. Mas esse outro era diferente. Ele jamais poderia usar roupas ocidentais sem causar espanto e constrangimento. Era um indomá vel. — Ah... Agora a senhorita resolveu retribuir os elogios! — disse ele, algo brincalhã o. — Nã o quis fazer um elogio. Você sabe muito bem que é diferente de Kezam Zabayr e de Mehmed. — Só por causa dos meus olhos, bint? — Suas palavras tinham agora um tom cortante. — Olhos azuis nã o sã o assim tã o raros entre os berberes das montanhas Atlas. — Nã o sã o seus olhos. Sã o as suas maneiras. Você nã o teme ningué m, nã o é mesmo? — Você quer dizer que eu nã o me rebaixo perante ningué m? — É isso mesmo. O orgulho de Lú cifer, como se costuma dizer. — Lú cifer... O braç o direito do Todo-poderoso, que caiu em desgraç a por seu orgulho e sua ambiç ã o. Você está querendo insinuar que estou na mesma situaç ã o, me arriscando a perder as boas graç as do califa devido à s minhas maneiras? — Já deve ter acontecido, pois você nã o me parece um homem que goste da funç ã o de mero mensageiro, a mando de outra pessoa. — Procurador, seria a palavra mais adequada à minha funç ã o. — Você é um procurador? Desculpe. À s vezes falo sem pensar. — E també m age sem pensar. Nã o fosse assim, jamais estaria aqui, neste trem, rumo ao desconhecido. — Gostaria realmente de ser menos impulsiva. Eu vim para cá na esperanç a de me tornar independente. No entanto, neste momento cortaria um braç o para poder trocar de lugar com uma dona-de-casa suburbana. Pelo menos, elas sabem onde estã o, e o noticiá rio da televisã o lhes assegura que o perigo está a quilô metros de distâ ncia de seus lares medí ocres. — Você odiaria estar numa situaç ã o dessas. — Desde o aeroporto você notou que sou manca. Por que nã o me despachou logo de volta, em vez de me fazer passar por tudo isso? Sente prazer em me humilhar? O Califa do Deserto Violet Winspear — Por que você associa humilhaç ã o com o seu tornozelo? — Ora, nã o queira me dizer que os homens gostam de moç as que mancam. Já tive uma boa amostra da reaç ã o de um homem diante de um pé aleijado! — O tal cavalheiro inglê s, nã o é? — Nã o quero falar sobre ele. Já o risquei de minha vida. Foi a desilusã o causada por ele, depois do acidente, a razã o principal que me trouxe até aqui. Ajude-me. Se você tivesse um mí nimo de sentimento, providenciaria para que eu pudesse voltar para Casablanca. — E o que faria por lá? Já admitiu que está com pouco dinheiro e, mesmo que recorresse ao Consulado Britâ nico, levaria dias até que o cô nsul pudesse auxiliá -la. — Ora, esqueç a. Sou uma perfeita idiota! Você é tã o insensí vel que nã o teria piedade do seu pró prio pé, caso ficasse preso numa armadilha. — Autopiedade é pura perda de tempo. Minha filosofia diz que, quando se começ a uma jornada, se vai até o fim. Mesmo num jogo de azar, é preciso saber aproveitar as chances. Diga a verdade: você nã o ficaria com a curiosidade insatisfeita se voltasse agora, no meio do caminho? — Já sei, por antecipaç ã o, qual é o final desse caminho. — Suponhamos que saiba. Mas, no caso de as suas previsõ es serem corretas e você nã o ser aprovada pelo califa, receberá o dinheiro para voltar para a Inglaterra. Pense nesse dinheiro, bint. Foi por causa de dinheiro que você veio para cá, nã o foi? Carla titubeou, pois, do jeito que ele expunha a situaç ã o, ela parecia uma mercená ria. — Bem... Creio que nã o há ningué m como um oportunista para entender o outro. Você deve odiar, tanto quanto eu, esse negó cio todo, mas está metido nele. E suponho que será bem recompensado pelo califa! — Com prostitutas ou concubinas? — ele caç oou. — Nunca lhe ocorreu que o califa possa querer me recompensar, pelos bons serviç os que presto, com uma jovem de olhos verdes e cabelos cor de ouro? Carla ficou horrorizada. A palidez que tomou conta de seu rosto fez ressaltar ainda mais o verde de seus olhos. O que tinha mesmo vontade de fazer era sair gritando pelos corredores, para que o trem parasse. Mas estava numa terra estranha, onde os homens tinham suas pró prias leis e eram solidá rios uns com os outros. Será que aquele homem estava com má s intenç õ es desde que a conhecera, no aeroporto? Mesmo com a cabeç a conturbada pela dú vida, ela conseguiu raciocinar friamente. Entã o, levantou-se de repente, com a intenç ã o puxar a alavanca de alarme que faria o trem parar. Caso, é claro, conseguisse alcanç á -la. De nada adiantou. Ele foi mais rá pido que seu pensamento e logo ficou de pé, segurando-a com seus braç os poderosos. A proximidade era tanta que Carla sentiu o odor daquela pele morena — uma mistura de café, tabaco, couro e cavalo. Nada podia ser mais má sculo do que aquele cheiro, e ela começ ou a se debater, tentando escapar do seu domí nio. — Quietinha! Nã o faç a tolices! Este trem só vai parar em Beni Zain. Ele a ergueu nos braç os, como se ela fosse uma pluma, e a atirou a um canto do assento. E ficou ali, de pé, plantado diante dela. Carla se encolheu como uma gazela acuada, o coraç ã o disparado diante do reconhecimento de sua fraqueza e impotê ncia. — Vá para o inferno! — Vou — respondeu ele, sem se perturbar. — Mas preferiria ir com você para o paraí so. — Paraí so! — repetiu ela. — Para ir para o paraí so, é preciso morrer antes... Até que você me deu uma boa idé ia! — Olhou para a portinhola do compartimento que abria diretamente para fora, com a clara intenç ã o de empurrá -la e se atirar. — Eu nã o faria isso — disse ele, como se estivesse lendo seu pensamento. — Na velocidade em que estamos, você iria parar debaixo dos trilhos. Fique boazinha e continue a viagem comigo. O maldito tinha razã o! Carla fechou os olhos e se recostou no banco, ouvindo o ritmo das rodas do trem. " Venha comigo... Venha comigo... ", elas pareciam repetir. " Venha comigo... Venha... " Ficou ouvindo, até que conseguiu fugir, atravé s do sono, encolhendo-se num canto do assento como um gatinho desprotegido, ao relento. Carla acordou repentinamente, ainda tonta, sendo envolvida por um manto de lã á rabe. Antes que algum grito de protesto lhe saí sse dos lá bios, o capuz foi abaixado e Carla foi carregada para fora da cabine do trem. O Califa do Deserto Violet Winspear Sentiu braç os fortes em torno do seu corpo. Pelo trajeto, percebeu que caminhava pelos corredores do trem. Alguns passos na escada. Devia ter chegado à estaç ã o. O capuz lhe foi tirado do rosto. Só entã o viu uma porç ã o de camelos à sombra de um muro branco, sendo atiç ados para que se levantassem. A cena lhe pareceu um episó dio de alguma fá bula á rabe. Estaria sonhando ou aquilo era real? — Viajaremos o restante do percurso em camelos. — Os olhos azuis se fixaram nela. Mais uma vez perturbadores. — Já vi que está pronta para reclamar, mas é melhor economizar sua saliva. — Eu nunca andei de camelo na minha vida! — Mesmo divertida, ela protestou. — Você viajará num haudaj — explicou ele, e indicou um camelo cor de café com leite, que levava no lombo uma espé cie de casinha acortinada. — Oh, nã o! — Carla começ ou a se debater, tentando se desvencilhar do manto. O bé rbere continuava seguindo com ela no colo. — Nã o sou nenhuma favorita de um haré m para ser escoltada até a sua linda no deserto! Nã o vou! — Teria preferido o lombo de um cavalo? — Vim com você porque pensei que fosse me levar para o castelo do califa, mas as suas intenç õ es sã o bem outras, nã o sã o? — E, livrando a mã o dos panos do manto, ela se ergueu, pronta para lhe desferir uma bofetada. Ele foi mais rá pido, segurando o pulso de Carla em pleno ar. — Que intenç õ es, sua tonta! Nã o estou assim tã o desesperado por mulheres a ponto de precisar seqü estrar uma. Mesmo que seus olhos de esmeralda, sua pele de marfim e seus cabelos cor de ouro sejam uma tentaç ã o. Quem você pensa que sou? Algum rapazinho imberbe, louco para saborear seu primeiro fruto proibido? Olhe bem para mim, srta. Innocence. Pareç o um adolescente? Ele parecia tudo, menos um adolescente. Aquele rosto marcante, como que esculpido em rocha, era o rosto de um homem. E de um homem duro e vivido. Com relutâ ncia, Carla sacudiu a cabeç a numa negativa, com a impressã o ní tida de ter passado por uma tola. Ele lhe deu um breve sorriso e acrescentou: — Você tem lido novelas demais sobre sheiks sedentos de amor e suas rebeldes heroí nas. Eu e meus homens vamos conduzi-la para Kasbah, nas colinas de Beni Zain. Este lugar é um dos limites da regiã o, mas o poder do califa se estende pelos quatro cantos da proví ncia. E sua severidade é bem conhecida por todos esses homens, para que algué m se atreva a causar qualquer dano à mulher que poderá ser escolhida para um cargo de confianç a do palá cio. Agora, para ser um pouco mais dó cil e compreensiva e se acomodar no haudaj? Posso garantir que é bastante confortá vel. — Creio que nã o tenho escolha — ela respondeu, desanimada. — Vai me dar a sua palavra de que me levará para o kasbah? — Minha palavra de honra! Tenho a impressã o de que você enfiou nessa sua cabecinha de vento que o califa é uma pessoa bem mais cordial e amá vel do que... Como é que você me chama mesmo? Ah, ajudante-de-ordens! Só espero que nã o sofra uma chocante decepç ã o! — É o que eu també m espero. Pelo menos, acredito que ele seja um cavalheiro que nã o me carregaria para fora do trem como se eu fosse uma trouxa de roupas sujas. — Eu nã o queria que os outros passageiros a vissem. Poderiam ficar muito curiosos. O que os olhos nã o vê em o coraç ã o nã o sente. Compreendeu? — Isso é só uma maneira de dizer. Duvido muito que todas as outras candidatas tenham sido carregadas dessa forma inusitada à presenç a do califa. Dá para desconfiar das suas intenç õ es, nã o acha? — As outras mulheres nã o sã o como você. E chega de conversa. Vá tomando o seu lugar. O camelo que a transportaria ainda estava ajoelhado, à espera da passageira, e o bé rbere impulsionou Carla para dentro do cubí culo. Em seguida, fez com que o animal se levantasse. — Nã o olhe para baixo, enquanto estiver em movimento, senã o poderá ficar enjoada do estô mago. Lembre-se de que você é marinheira de primeira viagem! — ele recomendou. Em seguida, cada um foi montar em seu camelo. E começ ou a jornada. A paisagem do deserto era incrivelmente fascinante e aquelas areias ondulantes davam a Carla a impressã o de estar flutuando sobre as ondas do oceano. A descriç ã o mais acurada dos escritores nã o trazia a beleza e a imponê ncia daquela imensidã o. Apesar de se sentir como um passarinho na gaiola, ela nã o pô de deixar de ficar fascinada com aquele cená rio. Seu acompanhante vestira um burnous por sobre a tú nica, que drapejava ao vento, à medida que avanç avam. O Califa do Deserto Violet Winspear Seu rosto ficara tapado, só deixando à mostra aqueles perturbadores olhos azuis. Ao vê -lo naqueles trajes excê ntricos, o coraç ã o de Carla bateu desordenadamente, numa estranha excitaç ã o. Quando o cirurgiã o lhe recomendara fé rias, referira-se a alguma praia de veraneio. Por certo, o mé dico cairia de costas se a visse balanç ando no dorso de um camelo, em pleno deserto marroquino. Carla nã o tinha noç ã o de quantos quilô metros já haviam percorrido, quando o sol começ ou a se esconder rapidamente e as estrelas deram o ar de sua graç a. A comitiva se aproximou de uma muralha rochosa natural, parecendo uma fortaleza, e uma voz de comando ordenou que todos parassem. O camelo que transportava Carla seguiu o exemplo dos outros e foi se ajoelhando com cuidado, como se soubesse que levava uma carga diferente, preciosa. Carla se preparou para saltar, mas a posiç ã o forç ada, mantida por tanto tempo, lhe provocou uma câ imbra. Sentiu um repuxã o e uma dor aguda na perna esquerda, que se encolheu quando seu guardiã o a segurou nos braç os para retirá -la do camelo. Ao perceber a situaç ã o, ele a colocou sobre a areia e começ ou a massagear vigorosamente a perna dolorida e encolhida pela câ imbra. — Nã o faç a isso! — protestou ela, envergonhada por exibir tã o de perto seu defeito fí sico. — Ora, deixe de fricotes! No deserto nã o se pode ter esses orgulhos bobos. Todos estã o sempre expostos a perigos e sujeitos a saí rem machucados. Por isso, nos ajudamos mutuamente. Este é um lugar inó spito e desapiedado. É o jardim de Alá e, ao mesmo tempo, o seu inferno. Venha, os meus homens vã o acender o fogo para fazer café e preparar a comida, pois é aqui que descansaremos por algumas horas. Carla ficou de pé e o seguiu. Desejava lhe dar um safanã o. Mas a altura descomunal daquele homem, combinada com seu andar imponente e gestos autoritá rios, lhe tirava qualquer iniciativa. Até aqueles homens rudes e má sculos da comitiva o olhavam com admiraç ã o e respeito. Nada mais lhe restava fazer senã o obedecer. Foi com timidez que ela pediu: — Eu... Bem... Se fosse possí vel, gostaria de tomar um banho. Sei que a á gua é escassa no deserto, mas vi que um dos camelos veio carregando um tonel. — Escassa ou nã o, eu seria um bruto se recusasse aquilo que, neste momento, é o seu maior desejo. Carla nem podia acreditar que ele fosse tã o altivo, a ponto de desperdiç ar o precioso lí quido com um simples banho. — Oh, serei muito grata! — Nã o seja tã o grata. Um " bá rbaro" como eu pode interpretar sua gratidã o de outra forma. Andando com a graç a e elasticidade de um leopardo, ele se dirigiu a um dos seus homens e falou com ele, no pró prio idioma, por alguns minutos. Carla ficou só observando. Logo houve uma movimentaç ã o, e os homens começ aram a descarregar os camelos, empilhando vá rios fardos no chã o. — Daylis providenciará para que você possa tomar seu banho com privacidade. Eles vã o armar uma tenda e arrumar uma pipa que sirva de banheira. Será tudo muito improvisado e primitivo, mas espero que aprecie assim mesmo, tendo em vista as circunstâ ncias. Carla sabia que ele estava sendo sarcá stico, mas, de qualquer maneira, ela poderia se refrescar e trocar de roupa. Sentia-se pegajosa, com areia pelo corpo todo. — Vou precisar da minha mala. Obrigada. Foi muita bondade sua conseguir tudo isso para mim. — Bondoso é coisa que eu nã o sou. Mas compreendo que, sendo uma mulher, enfrentando sua primeira jornada sob o calor do deserto, deseje sentir-se limpa e asseada. Meus homens é que estranharam. Nó s usamos estas tú nicas largas e arejadas, justamente para proporcionar ventilaç ã o ao corpo. Mas as nossas peles já estã o curtidas pelo sol e habituadas ao atrito da areia. A sua pele é bem mais sensí vel e delicada, Os olhos azuis percorreram avidamente as partes expostas de seu corpo, agora salpicadas por grã os de areia. Carla estranhou que aquele bá rbaro pudesse demonstrar tanta compreensã o pela sua vontade de se lavar. Até aquele momento, apesar de seus temores, ele nã o havia demonstrado ser afoito com as mulheres, mas logo ela se lembrou de que a religiã o maometana lhe permitia ter trê s esposas e quantas concubinas pudesse sustentar. Com tantas mulheres à disposiç ã o, nã o se justificava que se impressionasse com uma só. Ainda mais sendo manca... Em pouco tempo foi montada uma barraca, que os homens tiveram o cuidado de forrar com tapetes de pele de carneiro. Uma enorme tina de á gua fresca foi colocada no meio da tenda. Armada de toalha, sabonete e roupa limpa, Carla se jogou naquela á gua por mais de meia hora. Vestiu uma prá tica calç a comprida, uma blusa leve, e prendeu os cabelos num coque improvisado. Ao sair da tenda, sentiu um aroma de carneiro grelhado e de café. O O Califa do Deserto Violet Winspear apetite, que já estava sentindo, virou fome. Olhou em torno, à procura de seu acompanhante e, para sua surpresa, o viu sair de uma barraca semelhante à sua, trajando um kaftan e calç ando chinelos marroquinos de ponta virada para cima. Naqueles trajes descontraí dos, ele parecia bem mais acessí vel. Quer dizer, entã o, que ele també m havia tomado um banho, mesmo depois de dizer que os homens do deserto nã o necessitavam de tanto asseio. Carla sorriu sem querer. Aquele bé rbere civilizado deveria exigir que seus homens levassem uma vida austera e primitiva, mas ele, por sua vez, se cuidava, e agora que havia uma mulher no acampamento, nã o queria cear ao lado dela cheirando a suor e a camelo. — Adorei o meu banho. E você gostou do seu? — ela perguntou de propó sito, dando a entender que tinha percebido a sua manobra. — Um cavalheiro precisa comportar-se de acordo com as circunstâ ncias. Principalmente quando está com uma bint que julga um homem pela quantidade de banhos que toma, e nã o pelas oraç õ es que reza. — Nã o é verdade. A coisa que mais detesto é uma mente suja, pois nã o há á gua e sabã o que a possam lavar. — Acha que eu tenho uma mente suja em relaç ã o a você, bint? Ele se encaminhou para junto da fogueira. Mas ela nã o deixou a conversa esfriar. — Acho que tem uma mente cí nica. Para você, as mulheres nã o passam de um esporte, nã o é? — Cada coisa tem seu tempo. Posso apreciar a caç a, tanto quanto aprecio uma mulher que esteja nos meus braç os. Neste momento, por exemplo, prefiro comer uma boa costeleta de carneiro com a ajuda dos dedos. Mostrou uma pele de cabra estendida no chã o, para que ela se sentasse, e se acomodou a seu lado. A comida estava com um ó timo aspecto. Com a fome que sentia, Carla nã o iria nã o fez cerimô nia. — Mulher de Deus! — exclamou ele, quando a viu limpar o prato. — Você é um bom garfo, hein? Quem diria! Do jeito que você come, deve ser uma " falsa magra", mas com carnes rijas. — Nesse momento, viram no cé u uma estrela cadente, e ele comentou: — Uma alma que vai para o Purgató rio! Talvez mais um demô nio sendo expulso do Paraí so. Que caiu em desgraç a por ser muito ambicioso — completou — Os heró is e os deuses nã o escapam à s fraquezas humanas. Nem as mulheres. Veja o quanto você se arriscou só porque aquele anú ncio dizia que um homem rico precisava de uma dama de companhia, — Você continua achando que sou uma mercená ria! Pode ser que lhe interesse saber que quando saí daquela clí nica, depois das operaç õ es, fiquei a zero e sem esperanç as de ganhar qualquer dinheiro, pois a minha carreira como manequim estava encerrada. — E o seu rico admirador perdeu o interesse por você, hein? — Isso foi o menos importante. O pior é que perdi meu emprego. Concordo que vim para cá porque havia um bom dinheiro envolvido. Nã o sou nenhum anjo, assim como você nã o é nenhum santo, portanto, pare de me julgar. — Acha que a estou julgando? — Acho. Você me olha como se eu tivesse duas caras, e você estivesse tentando descobrir o outro lado da medalha. Está com receio que o califa goste de mim e que eu nã o seja suficientemente digna para as irmã s dele? Ele acendeu um de seus charutos finos e, depois de tirar uma baforada, a encarou com os olhos quase fechados. — Os homens podem ser enganados por um rostinho bonito, bint. A voz doce de uma mulher é capaz de destilar veneno. Mã os longas e macias sã o capazes de empunhar um punhal. Um chefe do deserto nã o pode confiar incondicionalmente nas pessoas, pois se arrisca a levar uma cascavel para o seio de sua tribo. — E o califa confia em você? — É difí cil ter certeza disso. Zain Hassan nunca tem muita certeza se nã o estã o armando um complô à s suas costas, se nã o será ví tima de um atentado contra á sua vida. O sangue que corre nas veias dos homens do deserto é quente, e tanto pode ferver por ó dio... Como por amor. Beni Zain é uma grande proví ncia, que precisa ser mantida sob controle com energia e pulso firme. Mas o califa nã o é um tirano, se é isso que está pensando. Só é cuidadoso. E se um dia ele decidir ter uma segunda esposa, precisará ter certeza de que ela nã o faz parte de algum plano subversivo, e també m que tenha um ó timo desempenho no leito conjugal. — Será possí vel uma coisa dessas em nossos dias? — Carla estava assustada com o que ouvira e aquela explicaç ã o a faria entender, cada vez mais, a brutalidade da vida no deserto. — E o amor nã o entra nessa histó ria? — Amor! — Ele sacudiu a cinza do charuto com um gesto impaciente. — O amor pode acontecer por sorte. Mas geralmente a motivaç ã o das mulheres nesse tipo de casamento é mais polí tica ou mercená ria. — Como podem ser tã o frias? — Por quê? Você se julga româ ntica? Mesmo com a desilusã o que sofreu com o seu ex-noivo inglê s? O Califa do Deserto Violet Winspear — Fiquei magoada porque pensei que ele fosse sincero. E pare de falar desse homem de uma vez por todas! Qual é a sua intenç ã o? Martirizar-me? — Talvez. E você veio em busca do amor nesta terra á rida, onde até os coraç õ es sã o secos? — Nã o! E, se quer saber de uma coisa, nã o estou disposta a ouvir você. Carla ficou sobre os joelhos, pronta para se levantar, mas ele a puxou de volta, e ela tornou a cair sentada na pele de cabra. — Aonde você pensa que vai? Nã o tente escapar de mim. Mesmo que quisesse cometer a loucura de fugir sozinha por essa imensidã o, eu estaria alerta. Os homens do deserto dormem com um olho fechado e outro aberto. — Deve estar sonhando se pensa que vou dormir com você! Ele jogou a cabeç a para trá s e riu alto. — E quem disse isso? Depois você diz que sou eu que tenho a mente suja! — Você é odioso! Parece que sente prazer em me espezinhar. — Nada disso. Só quero protegê -la. O califa pode mandar cortar minha cabeç a se eu permitir que você se perca no deserto. Fui claro? — Como um cristal! Alé m de escravo, motorista, ajudante-de-ordens e procurador, você é també m um protetor das mulheres de seu patrã o? Carla esperava que ele lhe desse um tapa por tanto atrevimento, mas, como resposta, ouviu apenas uma risadinha cí nica. Meia hora depois, Mehmed trouxe um grande tapete e uma colcha, feita com peles de lobo, para perto da fogueira. — Agora durma! — ordenou seu acompanhante e, sem a menor cerimô nia, estendeu-se ao lado dela. Sentindo que ela se encolhia, ele advertiu: — Nã o costumo me aproveitar de uma mulher, e nã o vai ser agora que vou começ ar, bint. Relaxe, feche os olhos ou, se preferir, conte as estrelas, até pegar no sono. Mas pare de esticar os mú sculos. Poderá ter outra cã imbra. Amanhã quero que se apresente ao califa com o rosto descansado, e nã o como um trapo! Apesar de seus temores, da proximidade perturbadora daquele homem detestá vel, Carla nã o resistiu ao cansaç o da longa viagem e, poucos minutos depois, adormecia sob o manto das estrelas e das peles de lobo.
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