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CAPÍTULO VII



— Esse é um convite que eu nã o recuso — disse Carla.

Apesar de tudo pelo que passara há pouco, o aroma delicioso vindo daquelas baixelas de prata conseguiu

despertar seu apetite.

Com a ajuda de um daqueles pã es á rabes, ela começ ou a se servir. Comer com as mã os era um dos há bitos

bé rberes que já aprendera. Só nã o conseguia enrolar aquelas bolinhas de semolina com a destreza de seu

companheiro.

Apesar da comida soberba, Carla nã o podia deixar de se sentir contrariada com a intimidade que aquele

jantar a dois propiciava. O tempo todo estava consciente da proximidade daquele corpo, de cujos mú sculos ela já

sentira a forç a.

— Bom, hein? — perguntou ele, olhando-a de lado.

— Muito bom — concordou ela, enquanto mordiscava uma cenoura crua, pensando no que diriam seus amigos

se a vissem naquele momento, vestida como uma odalisca, comendo como um moleque, na companhia de um potentado

á rabe.

Seria tudo muito extraordiná rio e até divertido, nã o fosse o roç ar constante do braç o de El Zain, toda vez

que ele levava os alimentos à boca.

— No que está pensando? — ele quis saber, vendo-a compenetrada.

Carla quase confessou que estava imaginando a cara assombrada dos amigos se a vissem naquelas

circunstâ ncias. Em vez disso, ironizou:

— Nã o sabe, El Zain? Pois eu pensei que você, alé m de poderoso, fosse adivinho.

— Entã o reconhece que tenho poder? Nã o estou dizendo isso por arrogâ ncia, mas como constataç ã o de um

fato inegá vel.

— Que fato? O fato de poder arrastar uma mulher para a sua caverna, como faziam os homens primitivos da

pré -histó ria?

— É assim que você me considera? Um homem das cavernas? No mundo em que vivo, nã o há lugar para

fraquezas, nem mesmo nas mulheres. Nã o que elas precisem usar os mú sculos. Elas usam outros recursos.

Encantamento, beleza e seduç ã o.

— Você está querendo me elogiar indiretamente? Pensei que eu fosse uma simples mercená ria. Nunca

imaginei que eu tivesse essas qualidades.

— As suas qualidades nã o sã o comuns, e veja que nã o estou só me referindo à sua beleza fí sica. Ora! Nã o

me olhe como se eu estivesse falando em á rabe! Sabe muito bem que é bonita. Aquele homem de quem você era

noiva devia ser um imbecil, se desmanchou o noivado só por causa de um defeitinho à toa do seu pé. E você amava um

homem dessa espé cie?

— Nã o é da sua conta!

Carla procurou disfarç ar o tremor das mã os, e as escondeu debaixo da almofada. Aquele tipo de conversa,

em que ele investigava minuciosamente sua alma, a perturbava mais do que quando ele a atormentava com

comentá rios maldosos, ou lhe dava ordens com autoridade, ou mesmo fazia tentativas para lhe desnudar o corpo.

— Nã o, você nã o sentia um amor verdadeiro por um homem tã o sem personalidade. — Ele mesmo respondeu à

O Califa do Deserto Violet Winspear

pergunta, sem titubear. — Apenas ficou deslumbrada por ter sido pedida em casamento por algué m pertencente a

uma famí lia de sangue azul. Nã o foi assim?

— Parece que se tornou um há bito para mim perder a cabeç a por causa de tí tulos de nobreza. Veja só o seu

caso! Sempre pensei que os potentados á rabes vivessem folgadamente, levando a vida sem fazer nada, cercados de

odaliscas sensuais. Você estragou a imagem que eu fazia deles.

— Pois eu acho que a melhorei. — Reclinou-se sobre o divã e começ ou a descascar uma laranja. — Se eu me

deixasse enfraquecer pelo luxo e prazer, nã o poderia ser ú til ao meu povo. Meu pai adotivo, o califa Hassan Hamid,

me passou esse comportamento responsá vel e austero, e até você deve reconhecer que possuo algumas virtudes.

— Nã o duvido que a sua maior virtude seja colocar sempre seu povo em primeiro lugar. Até no meu caso.

Minha liberdade me foi cortada porque os interesses de sua tribo predominam sobre os meus desejos, e até sobre

os seus. Você teria se casado uma segunda vez, se nã o fosse por dever?

Ele estudou a fisionomia dela em silê ncio, enquanto espremia um gomo de laranja entre os dentes.

— Você pensa demais, bint. Já é hora de dedicar mais tempo à s sensaç õ es do que a razã o. Aqui, no nosso

paí s, costumamos dizer que uma mulher nã o deve ser sá bia como um velho profeta. A sabedoria causa rugas muito

cedo.

Carla nã o pô de responder à altura, pois estava com a boca cheia. Mesmo que pudesse falar, nã o iria adiantar

nada, já que nã o conseguiria mudar a maneira de pensar daquele homem teimoso como uma mula.

— As mulheres bé rberes sã o ensinadas, desde meninas, a agradar ao homem. — E ele prosseguiu, dando um

sorriso. — Nã o é uma coisa tã o má que elas cultivem a harmonia, em vez da discó rdia.

Enquanto fazia suas divagaç õ es, o olhar dele vagava pelos cabelos de Carla, pelas linhas delicadas de seu

rosto, pela sua vestimenta.

Nã o me olhe assim! Ela desejou gritar. Era incrí vel! Tantos homens já a tinham olhado, admirado, analisado,

mas aquele era diferente. Seu olhar, seu toque, o mí nimo movimento que ele fazia tinham o poder de lhe transtornar

os sentidos e a mente.

— Coitadas das mulheres orientais! Quando nã o estã o se curvando diante de seus amos e senhores, estã o

suportando o fardo de todas as culpas e pecados assinalados no Livro Sagrado. Sem contar com uma sina pior; a de

serem mã es dos pró prios homens que mais tarde as vã o escravizar. Nunca lhe ocorreu que você nã o estaria aqui,

nessa pose toda, a se vangloriar da sua masculinidade, se nã o fosse pela participaç ã o de uma mulher?

— Claro! Aliá s, essa é uma idé ia fixa na cabeç a do todo homem viril.

Nã o adiantava ela querer falar sé rio. Ele sempre tinha uma resposta, com duplo sentido, na ponta da lí ngua.

— Vamos, garota! Deixe de fazer beicinho e coma sua sobremesa. Mandei fazer esse doce de amê ndoas,

especialmente para você! Nã o se sente tentada?

— Minha tentaç ã o era lhe atirar essa tigela de doce na cara!

— Se isso ajuda a relaxar suas tensõ es de franco atiradora, pode jogar! — E se levantou, muito á gil do divã,

postando-se diante dela, o queixo empinado. — Atire agora para nã o sujar o divã, senã o o pobre do Mehmed vai ter o

trabalho de limpar.

Ao ver aquele homem portentoso desafiando-a, em toda a sua altura, Carla se acovardou. E o odiou por ser

tã o dono de si mesmo... E dela!

— Se quer um conselho, nã o desperdice esse doce. Coma! — ordenou ele. — Ou vou ter que enfiar na sua

boquinha, à s colheradas, como se faz com os bebê s?

— Nã o se atreva a fazer isso!

— Entã o, coma sozinha!

Carla nã o teve alternativa, senã o obedecer. Já conhecia de sobra a forç a daquela vontade e daqueles

mú sculos.

O doce de amê ndoas estava realmente uma delí cia e ela chegou a raspar a tigela, sem notar que El Zain

acompanhava todos os seus gestos com um olhar brincalhã o,

— O nenê merece um prê mio por ler comido tudo! — disse ele, num tom de gozaç ã o, tã o logo ela terminou de

comer.

Foi até uma das mesinhas e apanhou um estojo de pelica. Abrindo a tampa, atirou o conteú do do estojo no

regaç o de Carla.

Era um enorme topá zio preso a uma corrente de ouro, e Carla olhou para a pedra preciosa como se ela fosse

o olho mau de uma serpente.

O Califa do Deserto Violet Winspear

— Coloque no pescoç o — disse El Zain, mas Carla nã o se mexeu. — Vamos, coloque! Você sabe que nã o gosto

de repetir minhas ordens!

Aquela palavra " ordem" mexia com seus nervos.

— É autê ntico? — perguntou ela, erguendo a jó ia com desprezo e deixando-a cair no chã o. — Nã o gosto de

nada falso, muito obrigada.

— Pegue isso imediatamente! Detesto crianç as birrentas. Pegue!

— E se eu nã o pegar? — Esticou-se preguiç osamente no sofá, e o olhou com rebeldia. — O que fará Vossa

Alteza? Vai me aplicar as sete chibatadas tradicionais?

— Até que me sinto tentado, mas acho que sete beijos seriam mais eficientes como castigo. Agora, apanhe o

colar e o coloque no pescoç o. Quero ver se o topá zio combina com a cor de sua pele.

— Pois eu nã o vou querer — declarou Carla, admirada de sua pró pria coragem. — Quem me garante que nã o

foi roubado de alguma das mulheres que você s andaram seqü estrando?

— Que imaginaç ã o fé rtil, Carla! — Ele deu dois passos à frente, e ela ficou tensa. — Para dizer a verdade,

comprei esse topá zio num souk ao sul do paí s, para dar de presente a uma de minhas irmã s. Mas achei que nã o iria

realç ar numa pele morena. Uma jó ia como essa vai melhor no pescoç o de uma mulher clara. Quero que o use como um

talismã contra os perigos do deserto.

Ele mesmo tomou a iniciativa de pegar o colar do chã o e, passando a corrente pelo pescoç o dela, aproveitou

para dar um abraç o por trá s.

Carla ficou rí gida como uma está tua de gelo, o que nã o impediu que ele a obrigasse a se virar e lhe queimasse

os lá bios com um beijo quente.

— O que vou fazer com uma mulher dessas! — disse, maldosamente, quando a soltou.

— Sobre isso, nã o restam dú vidas. Vai querer me escravizar e pisotear pelo resto da vida. Será que nunca

poderei ter vontade pró pria?

— Sua tolinha! Nã o tenho intenç õ es de contrariar sua vontade e seu espí rito, mas, normalmente, quando um

homem presenteia uma mulher com uma jó ia tã o valiosa, espera que, ao menos, ela seja grata e nã o revide uma

gentileza com insultos. — E passou os dedos morenos pelo colo de marfim. — Queria só enfeitar este seu pescoç o de

cisne com uma jó ia preciosa, à altura de sua pele alva e macia como uma pé tala de ló tus. Gosto de sua coragem, do

seu cará ter impulsivo, mas nã o exagere, para que eu nã o seja forç ado a usar de brutalidade para dominá -la. — Os

olhos azuis pareceram se suavizar. — As mulheres sã o a porta do paraí so na terra. Por que as combater? Devemos é

amá -las.

— Você está se referindo à posse fí sica — afirmou ela, sem poder evitar o rubor. — Pensa que gosto de ser

apenas um objeto de prazer ante seus olhos, tal como este topá zio que me obrigou a usar?

— Preferiria ser apagada, passar despercebida, viver na sombra? Nã o você, Carla. Se assim fosse, nã o teria

desfilado pelas passarelas, e nã o teria ficado tã o revoltada porque um dos seus atributos fí sicos ficou prejudicado

por causa de um acidente. Por acaso a desprezei por causa de um defeito no pé? Nem por isso deixei de querer você

nos meus braç os, e que fosse minha esposa!

— Qualquer mulher serviria para seus propó sitos, El Zain. Você precisa ter um filho, eu estou à sua mercê,

e, afinal, nã o sou tã o repugnante assim!

— Um filho...

Logo a fisionomia de El Zain tornou-se melancó lica e sombria. Ele se afastou dela e foi até a sacada, acender

um charuto. Seu olhar se perdeu pelo espaç o, enquanto soltava espirais de fumaç a pelas narinas. Devia estar a

lé guas de distâ ncia, junto a seus fantasmas queridos.

Os dedos de Carla apertaram nervosamente o topá zio. Nã o podia suportar aquele olhar ausente. Estaria com

inveja de Farah, por ela ter sido tã o amada?

Carla nunca fora amada por ningué m, pelo que era, por si mesma. Desde que a avó morrera, sempre se

sentira desejada, nunca amada. Peter Jameson nem sequer conhecia o sentido da palavra amor, e, para El Zain, ela

era apenas um espé cime reprodutor. Pelo menos, aquele bé rbere linha uma vantagem: nã o a iludira, nã o mentira, nã o

declarara ter sentimentos que nã o possuí a.

Depois de alguns minutos de completa imobilidade, que o fazia parecer uma está tua de bronze, ele tirou mais

uma baforada do charuto e se virou para Carla.

— Pode voltar para o seu apartamento. Nã o quero retê -la. Mas nã o se esqueç a de que vamos cavalgar

amanhã, bem cedo. Mehmed ficou incumbido de chamá -la de madrugada e de providenciar as roupas de montaria.

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Agora a voz dele era fria e distraí da, e Carla se apressou em levantar do divã.

— Boa noite — cumprimentou ela, secamente, dirigindo-se para a porta.

— Você está sempre pronta para me deixar, hein, emshi besselma?

Ao subir as escadas, Carla teve novamente a sensaç ã o de ser uma prisioneira de um homem sem coraç ã o. E

se ele ainda tinha coraç ã o, fora partido em dois: uma metade estava na sepultura da mulher amada, e a outra

pertencia a seu povo. Para ela, nada havia sobrado.

Antes de entrar em seus aposentos, cumprimentou Rashid, que estava de plantã o, junto à porta. O guarda

era sempre muito educado e distante, e Carla sabia por intuiç ã o que ele seria leal ao seu amo até a morte. Nunca

poderia contar com ele para uma tentativa de fuga, poré m, à s vezes, ela acreditava que Daylis poderia ajudá -la.

Mas nã o era hora para pensar nisso. Estava exausta, e tudo o que queria era se deitar e poder dormir. Mas

nã o conseguia ter sossego. Sua mente estava agitada, relembrando os momentos em que aquele bé rbere selvagem a

mantivera subjugada pela forç a de seu desejo e sua paixã o. Ainda sentia os lá bios ardentes e as faces quentes.

Peter Jameson nunca conseguira lhe causar tanta perturbaç ã o. Quis lembrar-se dos beijos do ex-noivo, mas tudo

era tã o distante... Tã o apagado... Como tinha sido frá gil aquele relacionamento! Se ela o tivesse amado de verdade,

nã o iria se esquecer tã o facilmente. Um amor profundo persistiria durante anos. Tivera a comprovaç ã o, ao

testemunhar, há poucos momentos, a tristeza e a saudade de El Zain. Santo Deus! Alé m de ser forç ada a se casar

com um homem que nã o a amava, ainda teria que conviver com um fantasma!

Tirou a corrente com o topá zio do pescoç o e olhou a jó ia, na palma da mã o. Era deslumbrante. Mas tinha sido

dada sem carinho. Serviria apenas para enfeitar um corpo de mulher destinado a ser objeto de prazer. Nem sequer

fora comprado para ela. El Zain o havia adquirido para uma de suas irmã s.

Valeria muito dinheiro? Examinou a pedra artisticamente cortada, e novamente lhe veio à memó ria a figura

de Daylis. Poderia subornar o servo com aquela jó ia? Pensando melhor, acho que o guarda nã o se arriscaria a ajudar

uma insignificante mulher, conhecendo bem o temperamento do amo.

Era quase impossí vel fugir do seu destino.

Caria atirou a jó ia contra a penteadeira e começ ou a tirar a roupa. No dia seguinte, teria mais uma aula que

lhe ensinaria a ser obediente e submissa diante daquele demô nio arrogante. Num gesto de rebeldia, atirou contra a

parede uma das chinelas que calç ava e começ ou a escovar os cabelos com fú ria.

Aquelas eram tarefas que nã o lhe competiam. Bastaria tocar uma sineta de prata, e logo a sua fatima

correria para ajudá -la a se preparar para dormir.

— Nã o quero ter ningué m sempre grudado em mim — havia dito ao califa, quando ele lhe designara uma

camareira particular. — Já me senti suficientemente inú til naquele maldito hospital!

— Faç a como bem entender — ele respondera. — A criada estará sempre à sua disposiç ã o quando você

precisar de ajuda.

Que fossem ele e a criada para o inferno! Nã o queria se transformar numa criatura preguiç osa como a irmã

mais velha do califa, que nã o mexia um dedo, nem para apanhar uma revista de cima da mesa.

Lallou era a preguiç a personificada e, com apenas dezoito anos, já começ ava a ficar gorda. Devia ter se

casado no ano anterior, mas o noivo que lhe era destinado morrera numa batalha no deserto e ela agora passava a

maior parte do tempo se empanturrando de doces e bombons, com o nariz enfiado em revistas francesas e

americanas. Carla preferia Belkis, cujo nome queria dizer " garota de mel", combinando com seu aspecto: olhos

castanhos caramelados e a pele cor de aç ú car queimado. Estava com dezessete anos e dava a impressã o de que a

alegria de sua mocidade era quebrada por alguma tristeza í ntima. Carla imaginava que a mocinha devia revoltar-se

diante do fato de o irmã o ser responsá vel pela escolha do seu futuro marido, algum estranho que ela só iria

conhecer no dia do casamento, conforme os costumes locais.

Era uma verdadeira barbaridade que uma moç a iniciasse sua vida sexual nos braç os de um homem que nunca

tinha visto antes. Nã o era à toa que Belkis andava sempre cabisbaixa, com olheiras fundas, como se aquela

perspectiva lhe tirasse a alegria de viver.

Carla se estendeu sobre o sofá, sentindo-se deprimida e solitá ria. Pela janela aberta, viu a lua crescente

anunciando que brevemente ela perderia sua virgindade e sua independê ncia. Afundou a cabeç a no travesseiro,

sentindo mais intensamente aquele perfume de sâ ndalo que predominava no ambiente. Parecia que já nã o era mais

Carla Innocence, mas a kadine de um chefe bé rbere, que esperava que ela fosse a mã e de seus filhos. Nunca em sua

vida estivera tã o perdida e amedrontada.

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A brisa noturna soprava lá fora, levantando redemoinhos de areia. Teve a impressã o de que aquela areia lhe

entrava pelos olhos, fazendo-a ter sono. As pá lpebras se fecharam e ela, finalmente, adormeceu.

Carla acordou assustada, vendo aquela mã o morena mexendo no mosquiteiro. Sua fatima sorriu e lhe serviu

uma xí cara de café fumegante. Enquanto saboreava a bebida, ainda com sono, viu a criada colocar sobre a mesa a

roupa de montaria que iria usar. Seu coraç ã o se acelerou. El Zain iria cavalgar com ela logo mais, e aquela

perspectiva a fazia entrar em pâ nico.

— Fique — pediu ela à fatima, que sabia umas poucas palavras de inglê s. — Vou precisar de sua ajuda para

me vestir.

A criada lhe deu auxí lio. Meia hora depois, Carla já estava trajando um culote, uma leve malha e botas de

cano alto. Na cabeç a, levava um pequeno turbante de linho branco para proteger os cabelos. A criada lhe entregou

um chicote com cabo de marfim, e ela foi se olhar no espelho.

— Entã o, Analita, estou parecendo uma moç a bé rbere?

A mulher balanç ou a cabeç a num sinal positivo.

— A sitt parece mais um menino, um menino muito bonito.

— Nã o sei se o todo-poderoso vai gostar — disse Carla, batendo com o chicote no cano das botas.

Precisava disfarç ar o nervosismo diante da criada. Afinal, o que pretendia Zain Hassan? Queria-a na sela de

um cavalo, ou simplesmente tencionava expô -la à humilhaç ã o?

Como num flash, apareceu diante de seus olhos a cena em que Grey Lady desembestara, atirando-a de

encontro a uma á rvore.

Nã o vou conseguir, pensou, desesperada, mas logo Mehmed apareceu, sem lhe dar chance para uma recusa.

Aquele maldito tirano iria ver só! Se pensava que ela iria rastejar, pedindo clemê ncia, estava muito

enganado. Ela montaria aquele cavalo, mesmo arriscando a vida, só para nã o dar ao califa a satisfaç ã o de

testemunhar seu fracasso.

Ao chegarem ao pá tio externo, Carla viu as montarias. Uma delas resfolegava, presa pelas ré deas, por um

dos cavalariç os, e a outra estava segura pelo pró prio Zain Hassan.

— Você fica muito bem nesses trajes — disse ele, logo que a viu. — Bom dia, Carla. Como é? Está disposta a

dar um galope?

— Bom dia, El Zain — respondeu ela secamente. — Meu cavalo é esse que está segurando?

Ele inclinou a cabeç a, dando um sorriso irô nico.

— Seu cavalo se chama Firebird. É um animal lé pido e gracioso, e bem melhor amestrado do que aquela é gua

que a derrubou. Venha. Acaricie o seu focinho e deixe que ele a fareje e a conheç a. Venha!

Era uma ordem educada e bem-intencionada, mas nã o deixava de ser uma ordem.

Carla sentiu as pernas bambas e mancou de forma mais acentuada ao caminhar em direç ã o ao cavalo. O

coraç ã o batia tanto que parecia querer saltar pela boca.

Quando chegou perto, o cavalo resfolegou como se estivesse ansioso para ganhar a liberdade do deserto.

— Pelo menos, desta vez terei a vantagem de cair na areia — comentou Carla, com dificuldade, tentando

desatar o nó que fechava a sua garganta.

— Desta vez você nã o será jogada para fora da sela — disse ele. — Vamos! Coloque a mã o no pescoç o de

Firebird e faç am amizade,

— Eu... Eu nã o posso!

Carla começ ou a recuar, de costas, sem se dar conta de que ia de encontro ao garanhã o preto que o

cavalariç o ainda segurava pelas ré deas. O cavalo empinou, relinchando, e ela se virou justo a tempo de ver aqueles

dois cascos mortí feros no ar, prestes a pisoteá -la. Ficou petrificada, imó vel, mas, numa fraç ã o de segundo, duas

mã os poderosas a arrebataram, acabando com o perigo.

Já a salvo, as mesmas mã os a sacudiram pelos ombros e ela ergueu os olhos, entre assustada e chocada,

vendo aquelas pupilas azuis que a perfuravam como dois estiletes.

— Você está querendo quebrar o pescoç o? Eu estava sendo otimista demais, esperando que algué m como

você se comportasse sensatamente.

— Algué m como eu? É isso mesmo! Sou uma idiota de uma inglesa branquela que caiu na sua armadilha e nã o

está achando a saí da. Mas acabarei encontrando, posso garantir! Enquanto ainda houver tempo, tenho esperanç a de

me livrar das suas garras.

— Tempo? O que nã o lhe falta é tempo, pois o deserto é eterno, e assim permanecerá até o final dos

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sé culos. Agora, vamos. Já está mais calminha?

— Ora! Largue-me! — desvencilhou-se de El Zain com surpreendente facilidade, sem notar que era ele quem

afrouxava o aperto. — Pois vou mostrar a você e a toda a sua raç a do que é capaz esta inglesa branquela!

Corajosa, andou até Firebird e montou num só impulso, com uma agilidade surpreendente.

Já na sela, sentiu-se muito à vontade, pois, com o pé defeituoso amparado pelo estribo, readquiriu a

confianç a na elegâ ncia de sua postura. Ainda estava atô nita com que tinha acabado de fazer, quando uma risada

ecoou junto dela.

— Bravo! Que filho sensacional nó s dois vamos ter, Carla! Um garoto de olhos cor de turquesa, orgulhoso,

obstinado e valente! Oh, sim — ele continuou. — Porque os ingleses sã o um povo valente, nã o é mesmo?

— Você deve saber melhor do que ningué m...

Os olhos azuis examinaram, apreciativos, a maneira segura e altiva como ela se mantinha na sela, segurando

as ré deas com firmeza, as costas eretas, a cabeç a erguida.

Peter Jameson dizia que ela era uma boa amazona, mas naquele tempo sua postura elegante era uma

conseqü ê ncia natural de seu trabalho como manequim. Agora, precisava lutar contra o medo e o espectro da dor!

Quando deixaram o palá cio para trá s e Carla viu a amplidã o do deserto, sob a luz difusa do alvorecer, nã o

pô de deixar de exclamar:

— Lindo!

Zain Hassan ouviu o comentá rio e logo virou a cabeç a para observar a maneira extasiada como ela olhava

para aquele interminá vel mar de areia.

— É uma beleza ilusó ria, Carla. Dentro de uma hora tudo estará mudado e o deserto ficará insuportá vel

quando o sol estiver no alto. Foi por isso que fiz questã o de sairmos bem cedo: para que você pudesse admirar a

face mais bela do deserto, sob o sol nascente. Fico contente que você o tenha apreciado.

— Pensei que a seus olhos o deserto tivesse todas as virtudes, e, no entanto, você o chamou de ilusó rio.

— E é. O deserto é imprevisí vel. Assim como um tigre... Ou uma mulher. À s vezes, tal como agora, é acessí vel

e hospitaleiro, mas, em outras ocasiõ es, quando o vento varre estas areias sem fim, se torna cruel e agressivo. Mas

basta que o vento amenize, e a noite o cubra com seu manto estrelado, para que ele volte a ser um belo espetá culo.

Ergueu o rosto moreno para o sol, que ainda nã o estava tó rrido, e Carla notou o quando ele venerava aquela

regiã o. Podia até compará -la a um tigre, mas a verdade o que nã o a temia. Zain Hassan tinha verdadeira paixã o por

aquele espaç o infinito. O deserto nem mesmo era silencioso, pois se ouvia um constante ulular, como se ele fosse

povoado de fantasmas,

— Nã o vai me perguntar por que comparei o deserto com uma mulher? — Havia uma expressã o matreira e

provocante naqueles olhos.

— É que o deserto é temperamental — respondeu ela. — Ele tanto pode ser amoroso, como malé volo. Nã o sou

tã o boba assim, El Zain. Sei que as mulheres sã o criaturas extremistas.

— Ou amam ou odeiam, nã o é mesmo? Ou sorriem ou mordem.

— O que nã o quer dizer que os homens sejam uns santinhos — ela emendou.

— Que olhos você tem, Carla! Lindos como um campo de hortelã. Na nossa lí ngua, dizer isso é um grande

elogio.

— Seu povo també m nã o diz que, quando a boca destila mel, é porque está pronta para morder?

Carla fazia ironia; no fundo, poré m, sentia-se lisonjeada. Mas estaria ele usando a mesma tá tica de Peter,

enredando-a com falsos elogios?

— Prefiro quando você me atormenta com as suas ferroadas, El Zain. Nã o confio nada nessa sua fala mansa.

É só outro dos seus truques para que eu caia na sua rede!

— Como você é desconfiada, Carla. Pensei que aqui, sozinhos, nesta paz toda, poderí amos chegar a um bom

relacionamento.

— Nunca poderei chegar a um acordo com você. Reconheç o que sou uma britâ nica temperamental. E você é

um bé rbere arrogante. Para nó s nã o existe um ponto de encontro, mesmo que no seu caso... — Interrompeu a frase

bruscamente, ao se lembrar das recomendaç õ es do sheik para nunca mencionar o fato de ele ser meio inglê s. — As

paralelas nunca se encontram, nã o é assim que dizem por aí?

— Dizem isso? E, no entanto, estamos aqui unidos, Carla. Os dois hemisfé rios estã o juntos, e nã o é a

primeira vez que isso acontece. Quer dizer que você andou fazendo perguntas a meu respeito? Era, inevitá vel, mas

esse é um assunto que nã o discuto com ningué m, nem mesmo com você. O essencial é que pertenç o a esta regiã o de

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corpo e alma. Faç o parte do deserto como os falcõ es que cortam os ares, como as palmeiras que afundam suas

raí zes no solo, como as á guias que derrubam as tartarugas sobre as pedras para devorarem suas ví sceras.

— Posso constatar que você pertence ao deserto — disse ela. — Sei que é vital para você ser o comandante

supremo de sua tribo. Mas já pensou em mim? Já me levou em consideraç ã o como pessoa?

— Eu a considero apenas como uma mulher. Se isso lhe parece arrogâ ncia, que assim seja. Quando vi a sua

fotografia, quis conhecê -la pessoalmente. Podia acontecer que, debaixo daquela aparê ncia de rainha, houvesse uma

boneca desmiolada, fú til e sem personalidade. Nesse caso, eu a teria despachado de volta, sem maiores problemas.

Mas você tem cará ter, tem opiniã o pró pria, e eu gosto disso. O deserto nã o será um entrave para você, desde que

procure conhecer as suas vá rias faces. E ele tem infinitos aspectos, tal como você, bint. Só posso encará -la como

saiyd Carla, que, traduzido para o seu idioma, quer dizer princesa Carla.

O coraç ã o dela deu um salto quando ele disse aquilo. Era inacreditá vel que, pela uniã o com Zain Hassan, ela

seria elevada a tal posiç ã o. Quando fosse sua esposa, se transformaria automaticamente numa princesa marroquina.

Em vez de calç ar o sapatinho de cristal que Peter Jameson lhe oferecera um dia, teria à sua disposiç ã o um

sapatinho de ouro. Mas ela tinha medo de calç á -lo.

— Nã o creio que eu possa ser uma boa esposa para você. Se, ao menos, tivé ssemos algo em comum! Mas

somos totalmente diferentes. Você foi criado para ser um dirigente, E eu sou de uma famí lia de classe operá ria de

Londres. Nã o sou uma lady, como talvez pense.

— Uma lady, Carla, é uma mulher que tem grande respeito por si mesma como ser humano e abre seu

caminho na vida, sem violar seu corpo ou abrir mã o de seus princí pios morais.

— No entanto, você me chamou de mercená ria, que só liga para as coisas materiais. Se fosse assim, eu o

agarraria com unhas e dentes, com todo o seu poder e sua riqueza!

— Todavia, você foge de mim, como o diabo da cruz — ele caç oou..

— Melhor teria sido se você se fizesse passar por uma ordiná ria interesseira. Teria se livrado de mim

facilmente, pois eu lhe proporcionaria todos os meios para sair de Marrocos. Quando a chamei de mercená ria, foi

por provocaç ã o, para que pudesse provar que nã o era. No momento em que você atirou aquela jó ia preciosa no chã o,

seu destino foi selado.

— Selado? Quer dizer que você me forç ará a esse casamento, mesmo contra a minha vontade?

— Exatamente.

Carla olhou em volta, desesperada, em busca de uma saí da, de um caminho que a levasse para longe dele.

— Nã o faç a isso. Você poderia partir a galope por aí, sem rumo, mas o deserto está cheio de beduí nos

malandros. Prefere cair nas mã os deles, do que nas minhas?

Instintivamente, ela olhou para aquelas mã os que seguravam as ré deas — morenas, fortes e impecavelmente

limpas. Lembrou-se das carí cias que elas lhe tinham leito, com perí cia e sensualidade.

Uma sensaç ã o de queimaç ã o percorreu lodo o seu corpo e a gota d'á gua que lhe caiu no rosto pareceu-lhe

gelada.

— Será que vai chover? — perguntou, enquanto enxugava a gota de chuva, que parecia uma lá grima

escorrendo por sua face.

— Conforme lhe disse, Carla, o deserto é imprevisí vel. É melhor voltarmos, antes que caia um aguaceiro.

— Oh, eu nã o ligo para a chuva — disse ela, rindo. — Os ingleses estã o acostumados a se molharem.

— É que você nunca enfrentou uma tormenta no deserto. Que tal um galope, para experimentar a velocidade

de Firebird?

Foi um desafio que Carla aceitou. Os dois cavalos partiram numa corrida desenfreada, cortando o vento e a

chuva, que, agora, caí a pesada.

Chegaram ao kasbah ensopados e arquejantes.

— Odeio tempestades — disse ele, inesperadamente.

— Pois eu pensei que as achasse excitantes.

Nunca antes Carla vira aqueles olhos azuis tã o melancó licos e sombrios.

— Meu filho morreu durante uma tormenta, sob o estrondo de um trovã o. — Os dedos que seguravam o

chicote ficavam brancos, tã o fortemente ele o apertou. — Nã o suporto esse som cavernoso!

Carla sentiu-se impelida a consolá -lo, mas o cavalariç o tinha chegado e El Zain lhe entregou a montaria,

retirando-se em seguida, sem ao menos convidá -la a entrar.

Era um alí vio e ao mesmo tempo uma frustraç ã o ter que tomar seu café sozinha. Ele só queria a sua

O Califa do Deserto Violet Winspear

companhia, a sua presenç a, para uma ú nica finalidade: gerar um filho, e só a levara para cavalgar porque gostava de

gente corajosa e ficara irritado com o medo que ela havia demonstrado. Mas, naquela manhã, Carla mudara sua

imagem. Fora, de fato, valente.

El Zain poderia começ ar a admirá -la. Talvez um dia pudesse até chegar a gostar dela.

Era a esperanç a que toda mulher esconde dentro do coraç ã o...



  

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