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CAPÍTULO V



A estranha construç ã o era feita de pedras calcá rias de formatos irregulares, amontoadas umas sobre as

outras, formando vá rios blocos. Dava a impressã o de ser o castelo de um mago, uma casa encantada, dentro da qual

histó rias misteriosas de toda espé cie deviam acontecer.

Pelas altas paredes, erguiam-se trepadeiras, como se fossem cobras verdes subindo até os telhados.

Era o kasbah de Zain Hassan bin Hamid, senhor supremo de Beni Zain, comandante e chefe de uma vasta

regiã o. Um homem extravagante, rico e totalitá rio a ponto de mandar publicar um anú ncio numa revista inglesa e

promover um leilã o de mulheres, para o qual ela, Carla, acabara se inscrevendo.

Um camelo a tinha trazido até Beni Zain, mas Carla sentia-se aturdida, como se tivesse sido transportada

por um tapete má gico.

Olhou ao redor, pelo pá tio descomunal, e depois para seu acompanhante. Ele nã o havia mentido. Seguira as

ordens do califa e aquela arrogâ ncia toda nã o passava de um blefe. Afinal, ele també m se dobrava sob o facã o do

chefe supremo.

Mas mesmo no kasbah ele nã o perdera a imponê ncia, nem o porte viril e altivo de comandante. Notando que

Carla o observava, comentou:

— Missã o cumprida! E você, que pensava que eu tinha outras idé ias a seu respeito...

Com efeito, Carla já nã o o temia, pois o conhecia. Mas que dizer do califa, ainda um estranho? Que

surpresas o todo-poderoso da tribo bé rbere lhe reservaria?

Nã o me deixe sozinha! Estou morta de medo e sei que a qualquer momento você irá embora, sem sequer se

despedir desta boboca que o acompanhou até aqui, teve vontade de dizer. Mas engoliu as palavras, com receio de

parecer ridí cula e inoportuna. Ele cumprira direito sua tarefa e agora merecia “um repouso de guerreiro” nos braç os

das mulheres cor de mel de sua pró pria raç a.

— Nã o é preciso arregalar os olhos desse jeito, como se a sua cabeç a fosse rolar. Tudo que vã o fazer é levá la

para a ala onde ficam as escravas e deixá -la por lá até que seja solicitada. Você pediu por isso, nã o pediu?

— Mas nã o pedi para que me fosse jogado na cara, a toda hora, que fui uma dé bil mental! Fale sé rio. O que

O Califa do Deserto Violet Winspear

vai acontecer agora? Algué m vai tomar conta de mim?

— Sim. Você será levada para o haré m e lhe darã o uma fatima para ficar à sua disposiç ã o. Par sua

informaç ã o, fatima quer dizer escrava. Porque está tremendo tanto?

E, num gesto inesperado, abraç ou-a pela cintura com o longo chicote que trazia atado ao pulso, puxando-a

para perto e baixando sobre seu rosto aqueles olhos azuis, belos e expressivos. Mesmo que nunca mais visse, Carla

jamais esqueceria aquele olhar.

— Nã o tente se debater, pois o couro poderá cortá -la — ele advertiu, e continuou, com ar malicioso: —

Nunca se sabe. Se o califa nã o a quiser, talvez eu possa dar um bom lance pela " moç a de olhos verdes"!

— Você nã o pode fazer isso! — protestou Carla, com medo, sentindo o atrito do chicote atravé s da leve seda

da blusa. — Se ele nã o me aprovar, vou ser mandada de volta para casa. Foi o que me prometeram.

— Promessas nem sempre sã o cumpridas...

— O que quer dizer com isso?

— Ainda nã o se deu conta, srta. Innocence, da imprudê ncia de ter dito que nenhum dos seus amigos e

conhecidos sabe do seu paradeiro?

— Significa que você poderá me manter aqui, contra a minha vontade?

— Já aconteceu com outras mulheres, e há um ditado que diz que " a histó ria se repete". Nunca ouviu dizer

que ao norte da Á frica pode-se obter um bom preç o por uma mulher europé ia? Na verdade, todos os homens da

tribo apreciam mulheres europé ias. Mas você é jovem, virgem e tem cabelos da cor do ouro, maravilhosos.

Carla estava apavorada. Ele dissera uma verdade terrí vel, que só agora ela encarava de frente. Tinha ouvido

boatos de que naquelas regiõ es existia o comé rcio de escravas brancas, e que muitas moç as europé ias haviam

desaparecido, sem que nada pudesse ser feito. Alguns dos raptores usavam e abusavam das moç as, para depois as

venderem para as casas de prostituiç ã o.

— Pode tremer à vontade, bint. Aprenda a liç ã o, para nunca mais ser levada por um impulso inconseqü ente,

com o risco de cair sob o domí nio de um homem que nem conhece.

— Você é um demô nio de crueldade!

Avanç ou para ele, de punhos fechados, mas ele apertou mais o laç o, e ela gritou.

— Sinta o meu chicote e se lembre sempre da minha advertê ncia.

Em seguida, desapertou o laç o e se dirigiu para trá s de umas palmeiras, de onde surgiu Mehmed. Apó s

trocar com ele breves palavras em á rabe, desapareceu nas sombras.

— Siga-me! — disse Mehmed.

Carla nã o teve outro remé dio senã o ir atrá s dele pelo labirinto do kasbah. Por fim, atravessaram um enorme

portã o de jacarandá, que dava para uma escada em cí rculos. Ela sentiu-se como uma prisioneira que ia ser trancada

em alguma torre, e seu medo se confirmou quando entraram num quarto apertado, bem no topo da escada. O cô modo

tinha um formato circular e era rodeado de pequenas janelas, cujas venezianas eram de madeira recortada como

uma renda.

Carla olhou em torno, em parte fascinada por aquela pitoresca arquitetura, em parte amedrontada,

relembrando as coisas terrí veis que aquele sataná s de olhos azuis andara dizendo.

Fincou as unhas nas palmas das mã os para controlar o nervosismo que sentia ao pensar que estava ali, presa

naquele estranho quarto, à espera do encontro com um homem desconhecido, um homem cujo poder era absoluto

naquele lugar.

Mehmed depositou a mala ao lado de uma cama ampla e retirou-se pela porta ovalada.

Carla ficou nervosa, na expectativa de ouvir uma chave girando na fechadura, que a trancaria ali dentro. Mas

seu receio nã o tinha fundamento. O kasbah ficava bem no coraç ã o do deserto, e, se ela tentasse fugir, o má ximo

que poderia fazer seria percorrer as ruelas intrincadas e os becos sem saí da, que formavam a cidadela, semelhante

a uma enorme colmé ia. Fora daquele lugar, só a esperavam as areias escaldantes do deserto.

Por enquanto, o melhor era conformar-se com aquele quarto amplo e fresco. O teto era decorado com

rosetas douradas. A iluminaç ã o era feita por meio de lampiõ es de vidro azul, pintados com os mesmos arabescos das

venezianas e suspensos ao teto por correntes. No chã o, espalhavam-se tapetes de lã tecidos à mã o, nos mais

variados padrõ es e cores. Um armá rio e uma penteadeira estavam encostados à parede, e mesinhas baixas de é bano

e enormes almofadõ es de couro tranç ado nas cores azul, vermelho e dourado tinham sido espalhados pelo quarto.

Nem acredito que estou num lugar desses! Disse Carla para si mesma, olhando, assustada, para todo aquele

deslumbramento.

O Califa do Deserto Violet Winspear

Sentindo a garganta seca, procurou em torno até que viu uma garrafa de cristal contendo um lí quido rosado.

Sem titubear, encheu um copo. Experimentou um gole e chegou a fechar os olhos de satisfaç ã o. Era delicioso! Pelo

sabor, devia ser um suco de damasco, com umas gotas de limã o, adoç ado com mel. Virou o copo como uma crianç a

gulosa. Bebeu até a ú ltima gota.

Depois de saciar a sede, tudo à sua volta lhe pareceu menos terrí vel. Entre dois panos pendurados nas

paredes, viu uma arca cravejada de taxas douradas. Nã o se conteve: sua curiosidade foi mais forte do que tudo.

Abriu a tampa e um perfume de sâ ndalo se espalhou pelo ambiente.

Dentro da arca, encontrou uma variedade de trajes orientais, manufaturados com tecidos finí ssimos —

sedas, veludos e gazes. Tirou de dentro uma tú nica de seda e um casaquinho de veludo verde tã o macio quanto o pê lo

de um gato angorá. Levou-os de encontro ao corpo. Eram lindos!

Aquela arca continha um enxoval completo, com peç as dignas de uma princesa. Por que estariam naquele

quarto? Teriam sido postas ali para que ela as usasse?

Recolocou a tú nica e o casaquinho no lugar e fechou a tampa. Mesmo que aquelas roupas fossem tentadoras,

afinal, ela era uma moç a inglesa e nã o podia perder a pró pria identidade vestindo-se como uma odalisca. Já tinha

feito bobagens demais, permitindo ser trazida até aquele lugar distante pelo arrogante ajudante de ordens do

califa.

Soltou um gritinho ao tropeç ar num daqueles almofadõ es espalhados pelo chã o. Seu tornozelo ainda estava

fraco e dolorido pela viagem, e ela caiu sentada sobre o pufe, cerrando os dentes de dor e chorando, com dó de si

mesma.

Ficou ali por algum tempo, sem ter noç ã o das horas, pois seu reló gio de pulso tinha parado durante a

travessia do deserto. Começ ou a bocejar, desconfiando que naquele lí quido havia algum outro ingrediente, alé m de

damascos, limã o e mel. O que teriam posto naquela bebida? Seria algum entorpecente? A sonolê ncia era irresistí vel.

Nã o! Nã o queria se entregar ao sono. Mas seu corpo cedeu involuntariamente e Carla acabou se deitando num

dos tapetes.

Maktoub: as mã os do destino! Pois bem, vou me entregar à quelas mã os, pensou, ao se abandonar ao sono que

a dominava. Ao menos teria uma cara melhor quando chegasse a hora de ser apresentada ao califa.

Ao esticar a perna esquerda para acomodá -la melhor, percebeu que já nã o estava mais deitada no chã o, e

sim, em cima da cama.

Será que caí ra num sono tã o rá pido e profundo que nem percebera? Seu coraç ã o começ ou a bater,

descompassado. Quem teria entrado ali? Será que aquele homem alto, de olhos azuis, ficara observando-a enquanto

dormia, esperando que acordasse para dizer que iria ser escolhida para ser a companheira... Dele mesmo?

Mas o quarto redondo estava vazio e as luzes dos lampiõ es azuis estavam acesas.

Lá fora, a escuridã o era completa. Deviam ter colocado algum comprimido naquela bebida rosada para ela

dormir tantas horas seguidas e ser transportada para a cama sem se dar conta.

Voltou a ter medo e, erguendo-se do leito, começ ou a procurar, muito aflita, pelos sapatos que algué m

retirara de seus pé s. Encontrou-os a um canto da cama e os calç ou apressadamente. Depois abriu a porta do quarto.

Apoiando-se no corrimã o, começ ou a descer a escada, sentindo uma ligeira vertigem. Ao chegar lá embaixo,

atravessou as arcadas que davam para o pá tio. Nã o tinha intenç õ es de fugir, mas precisava encontrar algué m para

perguntar o que iria acontecer com ela.

Ao chegar ao ú ltimo arco, notou um clarã o vermelho e um murmú rio de vozes grossas, que soavam de forma

diferente aos seus ouvidos europeus.

Escondeu-se por trá s de uma coluna, e ficou olhando o pá tio, procurando suster a respiraç ã o para nã o ser

percebida.

Uma enorme fogueira ardia ao lado de uma arena, onde dois lutadores muito fortes, de peito nu, lutavam sob

as vistas de um grupo de homens que formavam uma platé ia barulhenta.

Eu devia ter adivinhado, murmurou ela para si mesma, ao ver aquele gigante erguer o adversá rio com os

braç os musculosos, reluzentes de suor, e jogá -lo em cima de um acolchoado.

Quando o vencido caiu estendido, o vencedor colocou um pé em cima de seu peito, numa atitude de triunfo.

Por todos os lados, as vozes gritaram:

— El Zain, baraka, baraka!

Carla nã o podia acreditar em seus pró prios ouvidos nem em seus olhos, mas era verdade. O homem que saí ra

vitorioso da luta corpo a corpo olhou em volta, atendendo à aclamaç ã o, e soltou uma risada muito conhecida dela. Em

O Califa do Deserto Violet Winspear

seguida, saiu de arena e, apanhando uma ampla capa, jogou-a por cima de seus ombros.

Carla sentiu-se pregada ao chã o, muito assustada, e, apesar dele vir caminhando em sua direç ã o, nã o

conseguiu dar um passo.

Estava vivendo um verdadeiro pesadelo, rememorando todos os desaforos que dissera à quele homem

durante a viagem pelo deserto, o homem que, tudo indicava, era o pró prio califa!

— Entã o, nã o teve paciê ncia de me esperar? Precisou vir à minha procura? Como é? Dormiu bem?

— Puseram alguma droga naquela bebida, nã o foi? — perguntou Carla. E pensar que ela havia feito tantos

comentá rios indiscretos sobre sua vida e sua maneira de ser. Mais do que nunca, odiou aquele bá rbaro que a

enganara. — Você gosta de jogos sujos, hein, El Zain? Tanto no que se refere a uma mulher, quanto ao que considera

ser um entretenimento para os homens de sua tribo.

— Gosto de fazer troç as e de luta livre. Preciso de distraç õ es como qualquer um. Charadas sã o uma das

diversõ es preferidas dos orientais, e eu sou oriental até a raiz dos cabelos.

Enquanto andavam, Carla pô de notar o vigor dos mú sculos do antebraç o e sentir o odor má sculo que emanava

daquele corpo ainda marcado, em alguns pontos, pelas mã os do lutador vencido.

Lembrou-se de tudo o que fora dito sobre o califa: que ele comandava seu povo com grande forç a; que já

tivera uma esposa; que, logo apó s o nascimento dele, sua mã e fora estrangulada, pois o filho que gerara, com aqueles

olhos azuis, era uma prova de sua infidelidade.

Por que o haviam poupado? Teria seguido o mesmo destino da mã e se fosse uma menina?

— Você é mesmo um enigma — disse ela, diante daquelas reflexõ es.

— Ambos somos. Venha. Preciso tomar um banho e trocar de roupa. Você vai jantar comigo, nos meus

aposentos.

— Antes de mais nada, quero saber de uma coisa. Afinal, vou ficar aqui? O que vai acontecer comigo?

— Claro que vai ficar! Sobre isso, nã o resta a menor dú vida — disse ele, decidido.

— Quer dizer que vou ser a dama de companhia das suas irmã s? É isso?

— A dama de companhia já foi escolhida. É a viú va de um mé dico egí pcio, uma mulher bem mais culta e

preparada do que você, bint, que poderá enriquecer a inteligê ncia daquelas duas garotas.

— E eu?

Carla se encostou a uma das colunas, sentindo o coraç ã o saltar em seu peito.

— Você? — Ele deslizou a mã o pelos cabelos loiros, até as orelhas, causando-lhe um arrepio. — Você, minha

pequena mercená ria... Você vai ser minha esposa.

Carla deu um pulo, como se tivesse sido baleada, e ficou sem fala quando ele a segurou pelo braç o e começ ou

a percorrer aquele labirinto de arcadas e corredores, Por fim, conseguiu balbuciar:

— Eu... Ora... Pare de brincadeiras comigo. Você... Você pode manipular seu povo à vontade, mas... Mas

acontece que eu sou inglesa!

— Nã o é uma sorte? É justamente o que eu quero. Misturar um pouco de sangue inglê s ao meu, para gerar um

filho com as qualidades de ambas as raç as: frieza, coragem, inteligê ncia e vigor fí sico. E com a vantagem de que

você é uma mulher temperamental e voluntariosa, com a qual terei prazer de lutar, e nã o um objeto passivo, feito

apenas para ser acariciado.

— Você deve estar louco varrido! — respondeu Carla, com rebeldia e audá cia. — Como poderá casar-se

comigo contra a minha vontade?

— Aqui, em Beni Zain, eu posso fazer o que bem entendo.

Ao dizer isso, a forç ou a entrar atravé s de uma porta que dava para uma espé cie de salinha, que nã o tinha

nenhum mó vel, com apenas uma fonte de má rmore ao centro.

Havia outra porta para alé m da fonte, e Carla percebeu que era a entrada para o apartamento particular

dele. Só entraria ali à forç a, se ele a puxasse pelos cabelos, como no tempo das cavernas!

— Ah, você també m gosta de uma luta corpo a corpo!

Num segundo, ele a imobilizou, prendendo seus braç os por trá s das costas. Carla nã o pô de fazer nenhum

movimento e seus olhos verdes lanç aram chispas de ó dio.

— Eu o detesto! — gritou. — Você é o diabo em pessoa, mas nã o pense que tenho medo, como os outros.

Prefiro me atirar do alto do telhado a cair nos seus braç os!

Mas aqueles braç os eram poderosos demais, e ela se conscientizou de que suas palavras, suas intenç õ es, sua

inteira liberdade poderiam ser anuladas pela forç a e vontade daquele homem.

O Califa do Deserto Violet Winspear

Foi com voz suplicante que perguntou:

— Por quê? Por que logo eu, El Zain?

— Qualquer um poderia pensar que você está querendo elogios. É bem verdade que neste momento você está

parecendo um trapo. Mas esses olhos de jade, essa pele tã o suave, esses cabelos cor de ouro, nã o valem nada?

Preciso mesmo esclarecer por que eu quero que seja a minha kadine? — E olhou para ela como se a quisesse engolir

viva.

— Mesmo do jeito que eu sou? Sou aleijada, El Zain. Ando mancando e estou longe de ser a perfeiç ã o que o

senhor de Beni Zain pretende que eu seja.

— No Oriente, temos um ditado, bint. Dizemos que nada deve ser perfeito para nã o provocar a inveja do

diabo. Os dois magní ficos tapetes de Bokhara que você tem sob seus pé s possuem uma falha em sua textura. Esses

lampadá rios mouriscos que você vê sobre sua cabeç a, cada um deles tem um vidro trincado. Esses painé is de

damasco que estã o pendurados nas paredes podem parecer deslumbrantes, mas alguns dos fios de prata e ouro

foram partidos propositalmente. Somos um povo supersticioso, bint.

— Eu també m! — disse ela, fitando diretamente aqueles olhos azuis, para que ele entendesse que, há pouco,

ela se sentira nua, pois o olhar dele continha muito desejo.

Ele inclinou a cabeç a, de um jeito irô nico, como se estivesse aceitando sua acusaç ã o.

— Nã o faz a mí nima diferenç a o que você pensa ou deixa de pensar de mim. O que sei é que você nã o foi

muito prudente quando mandou aquela fotografia junto com a carta, candidatando-se ao emprego do anú ncio. A foto

foi despachada para mim, em Casablanca, e eu logo me apressei em mandar uma mensagem ao meu emissá rio. Quer

saber que mensagem era essa? Pois bem. Eu mandei dizer: " Verifique se ela é virgem". Kezam Zabayr é um homem

experiente para esse tipo de avaliaç ã o, e me garantiu que você tinha um corpo intocado, apesar de sua mente estar

danificada pela ambiç ã o do dinheiro.

— Você! Seu demô nio maldito! Você e seus assassinos, planejando tudo na surdina! Mas nã o pense que vai se

sair bem dessa! Eu tenho amigos que vã o dar pela minha falta. E começ arã o a fazer investigaç õ es.

— Pode ser que com o tempo sua ausê ncia seja notada, srta. Innocence. Mas, até lá, já será a esposa de Zain

Hassan. E nã o haverá mais nada a fazer. Nã o existe lei que possa tirar você da minha custó dia. A nã o ser que seus

amigos queiram entrar em guerra comigo.

— Você está delirando! Entã o acredita mesmo no seu poder absoluto?

— É melhor que você també m comece a acreditar, bint. Eu nã o desperdiç o meu fô lego com causas perdidas.

Nosso casamento, em termos, já é um fato consumado. Seu vestido de noiva já está sendo feito e suas jó ias estã o

sendo escolhidas. Você terá aulas sobre as palavras que deverá pronunciar durante a cerimô nia. E um dos anciõ es da

tribo vai lhe ensinar as frases em á rabe. Estou sendo suficientemente claro?

— Nã o quero escutar mais nada!

Num gesto infantil, Carla tapou os ouvidos com as mã os, o que nã o impediu que ouvisse a risada estrondosa,

no instante em que ele a ergueu do chã o, como se ela fosse uma pluma, e a levou até um gigantesco divã, com

almofadas negras e douradas.

— Se pretende desmaiar, pelo menos terá mais conforto assim. De fato, você tem todo o jeito de ser

virgem. É assim que eu quero. Nunca teria um filho com uma mulher que tivesse sido usada por outros homens.

Carla ficou estupefada.

— Entã o, consegui ludibriar o seu emissá rio? Ele acreditou mesmo em mim, quando eu disse que era virgem?

Claro que eu tinha um amante! Pensa que nã o andei dormindo com o meu noivo?

Ele a agarrou brutalmente pelos cabelos e lhe segurou a cabeç a, fazendo que, com isso, ela nã o pudesse

evitar de fitar seus olhos azuis.

— As armas de uma mulher sã o sempre traiç oeiras. Mas eu posso tirar a prova de sua falsidade agora

mesmo, bint. Posso provar que você é tã o pura quanto minhas duas irmã s adolescentes, que passaram suas vidas

trancadas num haré m.

— Mas eu nã o vivi uma vida vigiada — ela argumentou. — Para começ ar, nasci num bairro pobre e super

habitado de Londres. E depois fui trabalhar numa profissã o que obriga a um constante contato com homens. E vivia

sendo assediada por admiradores que me ofereciam presentes e dinheiro. Você mesmo disse que tenho um cará ter

mercená rio.

— O que eu digo, bint, é que você está se enredando numa teia de mentiras. Quer que tire a limpo isso agora

mesmo? Quer? — Ao dizer isso, ele colocou um joelho sobre o divã e começ ou a se deitar sobre ela.

O Califa do Deserto Violet Winspear

A sensualidade daquele homem era sufocante, Exalava por todos os poros de seu corpo moreno e forte.

Carla se retraiu como um animal acuado, cheia de terror.

— Nenhuma mulher realmente vivida ficaria com esse olhar aterrorizado — disse ele, seguro de si.

— Um bá rbaro! Isso é o que você é!

Carla teve desprezo por si mesma ao sentir que seus lá bios tremiam. Nunca, ningué m a tinha acovardado

tanto quanto aquele bé rbere atrevido. Até as dores do acidente com o cavalo ela havia suportado com coragem.

— Que garotinha mais boba! Eu poderia levar minha ameaç a até as ú ltimas conseqü ê ncias. Mas você ficaria

desonrada, nã o é mesmo? Pelo menos, com o casamento a sua virtude nã o será manchada. Olhe só! Você está

corando! — Soltou uma sonora gargalhada. — Você fica vermelha só de sentir minhas mã os, só de me ver de peito nu!

E pensar que, no Ocidente, as praias vivem cheias de homens seminus. Aqui no deserto as coisas mudam de figura.

Tudo tem mais intensidade, mais emoç ã o. Quando oramos, sentimos no fundo da alma cada palavra que dizemos;

quando lutamos, o fazemos com desprendimento, sem temer a morte; quando fazemos amor, podemos prolongar o

momento por uma noite inteira ou por toda a eternidade. Mas, se formos desonrados, nã o teremos mais razã o para

viver.

Agora, as mã os dele a seguravam pela nuca e Carla só encontrou um meio para se livrar daquele contato,

— Kezam Zabayr me contou que você é viú vo. O que aconteceu com sua mulher? Por acaso arrumou um

amante e você a mandou executar?

Um silê ncio assustador pairou no ar. O mesmo silê ncio que antecipa o bote mortí fero de um leopardo. Em vez

de retirar a mã o, ele começ ou a lhe apertar a garganta, como se quisesse estrangulá -la,

— Eu seria capaz de matar qualquer outra pessoa que dissesse uma coisa dessas! Mas você foi trazida para

cá com uma finalidade e nã o quero desperdiç ar tanto trabalho e tempo à toa! — Zain Hassan abrandou o aperto e

continuou: — Sim, eu tive uma esposa, a minha doce e amada Farah! Ela estava com apenas dezessete anos quando

nos casamos. Era linda, esbelta, com a pele cor de mel e olhos que pareciam amê ndoas. Era a minha alegria de viver,

minha felicidade! Mas dizem que a felicidade plena nã o é deste mundo e ela morreu ao dar à luz o nosso filho. Seu

ú ltimo desejo foi ser sepultada nas areias do deserto, junto ao kasbah. Quando galopo num cavalo até a exaustã o, ou

luto corpo a corpo com um companheiro, ou mesmo decido ter algué m como você, é para preencher a falta que ela me

faz. — Ele se levantou do divã. — Se eu casasse novamente com uma mulher bé rbere, ela me traria recordaç õ es

dolorosas do tempo em que Farah me olhava amorosamente com aqueles olhos de gazela. Ela morreu há doze anos.

Parece uma eternidade!

Carla levou a mã o à garganta, os olhos fixos naquela má scara de sofrimento.

— Se você ao menos tivesse um filho... — começ ou a dizer, mas ele a interrompeu.

— Eu tive um filho, bint. Ele tinha apenas quatro anos quando, brincando na areia, foi picado por um

escorpiã o. Ele era tã o lindo e adorá vel quanto a mã e! O veneno atingiu diretamente a veia e o menino morreu nos

meus braç os. Foi enterrado ao lado da mã e, para que ficassem juntos e eu pudesse ter perto de mim os dois seres

que mais amei na vida acima de você, roumia. Você será minha e conceberá outro filho para a gló ria de Beni Zain.

Estamos entendidos?

Nem por um segundo Carla duvidou da veracidade daquela histó ria incrí vel.

Há muitos anos passados, ele havia enterrado seu coraç ã o junto com uma moç a chamada Farah, e agora

queria casar-se novamente apenas para ter outro filho, um varã o que pudesse imperar futuramente sobre a tribo,

mas que nunca seria amado como aquele menino de quatro anos que morrera tragicamente, enquanto brincava na

areia. Aquele segundo casamento seria apenas uma conveniê ncia polí tica.

— Nã o! — Carla se revoltou. Sua intenç ã o era gritar, mas a negativa foi apenas um sussurro. — Nã o, por

favor! — suplicou, escondendo o rosto entre as mã os.

— Por que nã o? — disse ele, implacá vel. — Você me contou que nã o pode continuar com a sua carreira, e eu

poderei lhe proporcionar um padrã o de vida e uma posiç ã o social ainda mais altos do que o cavalheiro inglê s lhe iria

dar. Era por isso que você ia se casar com ele, nã o era? Para se tornar uma mulher rica e de projeç ã o social. Nã o se

esqueç a de que sou o chefe supremo de Beni Zain, e a mulher que eu escolher para esposa terá criados e, se

desejar, sua pró pria guarda de seguranç a, para poder ir aonde quiser. Poderá até ir passear na Medina e cultivar

amizades femininas. De uma certa forma, Carla, você terá sua pró pria vida.

— Nã o! — Dessa vez ela gritou abertamente. — Nã o desejaria ser sua esposa, nem que você fosse o ú ltimo

homem sobre a Terra!

— Porque sou um bé rbere? Porque sou um homem com pele e crenç a diferentes das suas? Porque, aos seus

O Califa do Deserto Violet Winspear

olhos, nã o passo de um bá rbaro?

— Nã o é por nada disso. É somente porque eu nã o amo você.

— Nem eu te amo, bint — disse ele, com igual desprezo. — O que tem isso a ver com o nosso negó cio? Porque

esse casamento nã o passa de uma transaç ã o comercial, onde cada um dos só cios levará a sua vantagem. Você terá

boas roupas, jó ias, conforto; e eu, um filho varã o. Sempre admirei sua raç a e quero que ele tenha sangue inglê s nas

veias. Foi para isso que você veio cair em minhas mã os!

Em suas mã os! Aquelas trê s palavras a apavoraram mais do que tudo, e ela se atirou para fora do divã, sem

sequer se preocupar com a fraqueza do pé defeituoso, numa tentativa frustrada de alcanç ar a porta.

— Nã o faç a isso comigo! — pediu, suplicando, quando ele a reteve. — Você nã o entende? Como poderia ter

um filho seu, se nã o sinto nada por você?

— É só se entregar nos meus braç os e me conhecer mais intimamente, como nunca conheceu a nenhum outro

homem — disse El Zain, intencionalmente.

— Você nã o tem coraç ã o!

— Nisso você tem razã o, bint. Meu coraç ã o jaz num tú mulo, enterrado nas areias do deserto. Mas você é

bela e excitante, e o restante do meu corpo ainda está intacto.

— Você é um monstro e tenho certeza de que nã o hesitaria em me bater se eu começ asse a gritar.

— Tenho outro sistema para tratar de mulheres histé ricas!

— Casamento nã o é a palavra adequada para aquilo que você quer. A palavra certa é libertinagem!

— Eis uma palavra sonora! Mas, se eu quisesse ser apenas libertino, nã o teria proposto casamento. Você é

contraditó ria, mulher! — Deu um puxã o em Carla de encontro ao seu peito e lhe sussurrou ao ouvido: — De minha

parte, a perspectiva de gerar um filho com você nã o tem nada de desagradá vel. E eu até poderia lhe ensinar a sentir

um certo prazer em ser a minha kadine.

— Preferia ser estraç alhada pelas garras de um tigre! — E, num gesto impensado, Carla arranhou as costas

nuas dele. O sangue escorreu.

— Sua pequena shaitana! — ele anunciou, de dentes cerrados. — Sente-se melhor agora?

— Eu me sentiria melhor se tivesse uma faca para cravar-lhe no peito!

— De nossa uniã o só poderá sair um filho homem. Agora, tenho certeza. Na pró xima lua cheia os anciõ es de

Beni Zain testemunharã o nossas bodas. Você ficará linda em seu traje nupcial, bordado a prata, levando uma tiara

de pé rolas nesses seus cabelos de ouro. Tenho dever de dar ao meu povo o futuro Hassan bin Hamid. E posso

garantir-lhe que será um dever muito prazeroso! Meu sol do deserto... Minha alva camé lia dos Jardins de Alá...

Minha escrava branca! — As palavras eram doces, mas o tom, zombeteiro,

— Fugirei para o deserto, nem que seja para ser devorada pelos abutres!

— Deste momento em diante, até que se torne minha mulher, um guarda ficará vigiando sua porta dia e noite

— advertiu ele.

— Seu traidor, mentiroso, que me enganou o tempo todo! Mereç o o nome que tenho. Sou mesmo uma

inocente. Acreditei até que você fosse um dos criados do califa!

— Você presumiu isso por conta pró pria. Pensou que eu fosse um servo, um motorista, um ajudante de

ordens, um procurador e até o alcoviteiro do califa. Espero nã o ter errado a seqü ê ncia.

— E ficou rindo à s minhas custas, esse tempo todo!

— Foi você quem pediu por isso.

— Até parece que foi por minha culpa que fiquei inutilizada para a profissã o, e que, por necessidade,

respondi à quele falso anú ncio.

— O anú ncio nã o tinha nada de falso, bint. Era até muito autê ntico, e seu ú nico erro foi mandar sua

fotografia no envelope. Nã o pude resistir à tentaç ã o de conhecer o original.

Ao dizer isso, os longos dedos morenos deslizaram pelo rosto de traç os perfeitos, numa suave carí cia, mas

Carla nã o se deixou enternecer.

— Você é um sá dico! — esbravejou,

— Eu sou Zain Hassan bin Hamid, a espada vigilante do meu povo. Se posso dominar uma tribo inteira de

homens sem medo, se posso matar a faca um leopardo do deserto, se posso combater meus ferozes inimigos, por

que nã o poderei domar uma tigresa como você?

— Se ainda se pergunta, é porque nã o tem muita certeza.

— Pois eu tenho certeza de que você gostará de ser domada por mim. Mesmo que nã o me aprecie muito,

O Califa do Deserto Violet Winspear

saberei como lhe dar prazeres nunca antes experimentados.

Suspendeu-a suavemente do chã o e, com extremo cuidado, a deitou sobre o divã.

— Agora vou tomar um banho, bint. Fique aí, quietinha, e nã o se atreva a tentar escapulir durante a minha

ausê ncia. Tenho dois guardas postados no vestí bulo, e sinto muito lhe informar que eles nã o a deixarã o sair daqui. —

Dito isso, ele desapareceu por um cortinado que levava à sala de banho.

Ela devia estar sonhando! Aquilo era um pesadelo ou uma alucinaç ã o?

Infelizmente, era a realidade, e Carla afundou a cabeç a entre as almofadas, soluç ando.

Oh, meu Deus! Como poderia se casar com um estranho, um bá rbaro, um homem sem coraç ã o como Zain

Hassan bin Hamid? Algué m que só queria procriar com uma mulher para ter um herdeiro?

O pior é que essa mulher era ela!

Era inacreditá vel!... Mas, apesar disso, precisava acreditar.

Amaldiç oou aquele demô nio de olhos azuis e amaldiç oou a imprudê ncia que cometera por ter aceitado aquela

passagem aé rea que a trouxera para o seu inferno!



  

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