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CAPÍTULO III



O ar estava tã o quente como se tivessem aberto a porta de um grande forno, quando Carla desembarcou do

aviã o com os outros passageiros. Com passos rá pidos, caminhou até o saguã o do aeroporto.

Lá fora, numa fila de tá xis, os motoristas falavam muito e sorriam, exibindo brilhantes dentes postiç os de

prata. Eram muitos, aguardando os fregueses que se dirigiam para o centro de Casablanca.

Carla pegou a mala e a frasqueira e se plantou em frente ao pré dio, suando em bicas e consciente de que a

meia de ná ilon da perna esquerda estava desfiada. Usar meias naquele clima era um absurdo e ela invejou uma jovem

nigeriana, que, ao seu lado, esperava por um tá xi. Parecia tã o fresca e descansada em seu vestido longo e folgado de

algodã o colorido, com uma abertura lateral que ia até a coxa! Alguns homens que transitavam por ali a olhavam como

se ela fosse uma miragem. Mas ningué m prestava atenç ã o em Carla, que tinha escondido os cabelos com um lenç o e

usava enormes ó culos de sol, tapando os olhos verdes. Só esperava nã o ser invisí vel à pessoa que tinha a incumbê ncia

de conduzi-la até a estaç ã o ferroviá ria.

O telegrama dizia que um carro estaria esperando por ela, mas os minutos se passavam e ningué m aparecia.

Até o estacionamento pegado ao aeroporto ficou vazio. Todos os passageiros daquele vô o já tinham tomado seu

rumo. Só ela havia sobrado.

Carla começ ou a ficar ansiosa e arrependida de ter concordado com aquela louca aventura. Abrigou-se à

sombra de uma estranha palmeira, que mal a protegia do sol. Sentia muita sede.

O calor, a impaciê ncia e o cansaç o já estavam se tornando insuportá veis, quando uma sombra movimentou-se

a seu lado. Olhou rapidamente para cima e chegou a engolir em seco de surpresa, ou melhor, de susto.

Um homem alto e forte, com incrí veis olhos azuis e sobrancelhas negras retintas, olhava-a atentamente. Na cabeç a,

O Califa do Deserto Violet Winspear

levava um shemagh branco, atado por finas cordas, e vestia uma tú nica de linho entreaberta no peito moreno,

culotes pretos e botas, que lhe davam o aspecto de um domador de tigres.

Antes que Caria pudesse controlar seus impulsos, já tinha recuado dois passos, afastando-se daquela

estranha figura, como se estivesse sendo acuada por um assaltante.

Os olhos azuis a fitaram, percorrendo-lhe a roupa amassada pela viagem e depois retomando para o rosto.

Parecia fazer uma aná lise da sua aparê ncia.

Talvez ele tivesse notado o seu defeito no pé, e Carla sabia, por experiê ncia pró pria, o quanto aquilo podia

impressionar mal a um homem. Principalmente um homem tã o imponente quanto aquele á rabe.

— Presumo que seja a srta. Innocence. Estou certo?

Ao fazer a pergunta, esboç ou uma expressã o de desdé m e Carla notou que ele falava um inglê s perfeito, mas

com uma entonaç ã o ameaç adora e impaciente.

— Sou eu quem irá acompanhá -la a estaç ã o para tomar o trem até Beni Zain — anunciou ele.

— É o emissá rio de Sidi Kezam Zabayr? — perguntou Carla, para se certificar de que estava falando com

algué m realmente confiá vel.

Podia ser que ela nã o fosse o tipo dele, mas circulavam muitas histó rias sobre mulheres brancas, viajando

sozinhas, que haviam sido raptadas por malfeitores. E sumido para sempre no deserto. Alguma coisa naquele homem

lhe abalava os nervos e a fazia se manter na defensiva.

— Nã o sou um mercador de escravas brancas, se é isso que a preocupa — disse ele, num tom sarcá stico. —

Sei de tudo a seu respeito, mas, francamente, você está longe de ser o que eu imaginava para uma dama de

companhia de duas jovens isoladas.

— Você é bem audacioso para um simples criado! — revidou Carla, com raiva. — Se veio até aqui para levarme

até o trem, cumpra logo a sua tarefa e vá cuidar de sua vida!

— A moç a é també m temperamental! — O tom de voz era de gozaç ã o. — Outra caracterí stica pouco

recomendá vel para o cargo que pretende ocupar. Kezam Zabayr nã o está sendo muito prudente em recomendá -la ao

nosso amo. Só posso concluir que você foi a ú nica inglesa a se candidatar.

— Devo ter sido mesmo a ú nica maluca!

Carla ergueu o queixo tã o bruscamente que os ó culos quase caí ram sobre seu nariz. Recompô s-se com um

gesto de té dio estudado. Já estava ficando saturada com os comentá rios mordazes daquele homem. Poré m, o ar

imponente dele nã o deixava de condizer com sua atitude. Ele era muito alto, tinha maxilares voluntariosos, a pele

morena e o queixo com uma fenda que parecia ter sido cortada a machado. Só os olhos azuis destoavam do conjunto.

Talvez algum de seus antepassados fosse fruto de uma aventura amorosa de um dos cruzados de Ricardo Coraç ã o

de Leã o com uma dama sarracena. Aquele era um rosto pagã o. Isto lhe pareceu uma aná lise perfeita.

— Se sou mesmo a ú nica candidata vinda das ilhas Britâ nicas, é porque a maioria das inglesas tem mais juí zo

do que eu — continuou Carla, depreciativa. — Nã o sei onde eu estava com a cabeç a quando tomei aquele aviã o ontem

à noite, para vir participar de um leilã o de escravas.

— É assim que você chama essa seleç ã o? Nota-se que andou dando asas à imaginaç ã o. Diga-me uma coisa,

roumia, se suspeitava que fosse assim, por que nã o ficou em Londres, em vez de arriscar-se a ser ví tima de

intenç õ es malé volas de bé rberes como eu? Ou nã o resistiu à fascinaç ã o que os homens selvagens do deserto

exercem sobre as mulheres civilizadas das grandes cidades?

— Você deve estar brincando... Por acaso, pensa que vim para o Marrocos em busca de algum sheik que me

seqü estre à forç a e me carregue para a sua tenda?

Ele apenas lanç ou-lhe um olhar enigmá tico e Carla teve vontade de lhe virar as costas e ir embora. Nã o

estava mais suportando aquele homem, que olhava para as pessoas como se elas fossem transparentes e nã o

conseguissem ocultar nenhum segredo que ele nã o desvendasse.

— De fato, você nã o foi ajuizada em vir para cá, roumia. Já vi algumas das outras candidatas e elas sã o bem

mais velhas e experientes do que você. A nã o ser que esteja querendo se expor a ser violentada

Carla levou um choque e ficou pá lida. Teria entendido bem o que ele dissera?

— Nã o vá desmaiar, minha pombinha! Você nã o está acostumada com tanto sol. É melhor que me acompanhe

antes que caí a no chã o como uma camé lia murcha.

O desconhecido segurou Carla pelo braç o com firmeza, ergueu a mala do chã o e começ ou a atravessar a rua

em direç ã o a uma limusine preta. Ele andava depressa e, para acompanhá -lo, Carla deixou patente que mancava.

Tã o logo ele abriu a porta traseira do carro, ela se deixou cair sobre o assento. A mala foi posta a seu lado

O Califa do Deserto Violet Winspear

e, depois de ter fechado a porta, aquele bé rbere insolente foi se sentar no lugar do motorista. Logo deu a partida.

Carla só recuperou o fô lego quando a limusine começ ou a andar.

— Deixe-me descer! Eu nã o vou com você!

— Se sair com o carro em movimento, vai se machucar seriamente. E eu nã o quero entregar uma mercadoria

danificada ao califa. — O homem disse isso ao entrarem numa alameda jardinada, com palmeiras enfileiradas, tais

como silenciosas e bem disciplinadas sentinelas.

— Mudei de idé ia — insistiu Carla. — Nã o vou tomar trem algum! Eu quero voltar para casa!

— É um pouco tarde para mudar de idé ia. Alé m do mais, estou cumprindo ordens. E você nã o desejaria que eu

levasse uma reprimenda do meu feroz patrã o, nã o é verdade?

— Adoraria que levasse! — retrucou ela, agressiva. — E agora volte com este carro para o aeroporto.

— Poupe o seu fô lego. Nã o existe nada menos atraente do que uma mulher exaltada e suada. Passe um pouco

de pó -de-arroz nesse nariz e se acalme.

— Quanta arrogâ ncia! Eu nã o vim para cá para ser julgada por você, que deve ser do tipo que aprecia aquelas

bailarinas de danç a do ventre. Já lhe disse que nã o vou tomar esse maldito trem. Nã o pretendo continuar com essa

palhaç ada nem por mais um minuto!

— Fui prevenido de que você era... Bem... Um pouco difí cil, mas nã o pensei que fosse tanto — disse ele,

enquanto passavam por um aglomerado de casas que pareciam cubos de aç ú car reluzindo ao sol. — Esse é o grande

problema das mulheres dos paí ses ditos desenvolvidos. Elas nunca sabem se querem dominar ou ser dominadas. Se

topam com um homem fraco, sentem-se frustradas. Se o homem for autoritá rio, logo entram em luta contra ele.

Pelo menos, essas bailarinas da danç a do ventre sentem-se satisfeitas em agradar a seu pú blico, e tê m mais

dignidade em sua arte do que as mulheres europé ias quando se metem a imitar as danç as africanas nos clubes

noturnos.

Carla nunca se sentira tã o furiosa na vida. Sua vontade era esbofetear o rosto daquele homem. Pouco se

importava se levasse uma surra em troca. Ela até que merecia um castigo pela doidice que havia cometido vindo para

o Marrocos. Se estivesse viva, sua avó iria ficar uma fera. E até aprovaria que Carla levasse uma boa reprimenda.

Tã o logo chegassem à estaç ã o, ela tomaria um tá xi de volta para o aeroporto e embarcaria no primeiro aviã o

que saí sse para Londres. Estava decidido. Nesse momento, lembrou-se que o dinheiro que tinha na carteira nã o dava

nem para pagar a metade da passagem aé rea. Seu coraç ã o quase parou. Toda a excitaç ã o que sentira ao se meter

naquela aventura evaporou. Afundou no banco de veludo, cheia de medo e desespero.

Era bem-feito ter que ouvir todas aquelas crí ticas de um bá rbaro petulante que arrasava com seu orgulho

britâ nico. Como poderia censurá -lo? Se ele a tomava por uma leviana, uma cavadora de ouro, só podia censurar a si

mesma.

O petulante rapaz, na qualidade de um dos empregados do califa, estava se arriscando muito com aquele tipo

de comentá rio. Arriscando? Que risco? Ele devia saber, tã o bem quanto ela, que o todo-poderoso Zain Hassan bin

Hamid iria descartá -la como se ela fosse uma migalha de pã o sobre a mesa de um banquete.

Afinal, ela fora levada até ali apenas para preencher as exigê ncias da seleç ã o — mulheres de todas as raç as

e cores — e sua pele clara representava os espé cimes femininos das ilhas Britâ nicas.

Tirou os ó culos e passou uma camada de pó compacto sobre o nariz, aproveitando a parada da limusine num

sinal de trâ nsito,

— Por uns tempos você vai achar nosso clima insuportá vel — disse o motorista.

Era a primeira vez que ele a via sem o escudo dos ó culos escuros. Carla o olhou, desafiadora.

— Nã o pretendo ficar por aqui tanto tempo assim. Nó s dois sabemos que nã o serei a escolhida. Digamos que

eu vim para o Marrocos só para dar um passeio diferente.

— Na nossa terra, costumamos dizer que nã o é aconselhá vel ler o livro antes de abri-lo. Você está encarando

esta viagem como se estivesse passando fé rias. Na verdade, nunca teve intenç ã o de se tornar uma dama de

companhia. Ou desistiu de seus propó sitos depois que soube que iria trabalhar para um bé rbere?

— Você faz perguntas demais para um mero motorista. Nã o tenho obrigaç ã o de ficar respondendo. O sinal já

está verde! Toque para frente!

— Para a estaç ã o ferroviá ria? — caç oou ele. — Será que chegou à triste conclusã o de que está falida e nã o

pode pagar a passagem de volta? Ora, vamos, srta. Innocence! Sei de tudo a seu respeito. Você nã o tem alternativa

senã o submeter-se ao que chama de " leilã o de escravas".

Carla estava mesmo num beco sem saí da. Pensava nisso quando o carro chegou à estaç ã o. Ele saiu do

O Califa do Deserto Violet Winspear

automó vel e foi abrir a porta traseira.

— Venha. O nosso trem sai dentro de poucos minutos.

Ela continuou imó vel. O bé rbere lhe estendeu o braç o e a puxou com forç a para fora.

— Você está me machucando! — protestou Carla. Ele tinha uns modos prepotentes, uma tal frieza de

coraç ã o, que ela se sentia mais ressentida do que com o pró prio Peter Jameson. — Já fui manequim profissional —

disse, com orgulho. — Tive amigos à s dú zias e nã o admito ser tratada como uma prostituta!

— Entã o foram eles que a magoaram tanto. — Largou-lhe o braç o. — Desculpe se eu també m a machuquei,

sem querer.

— Pois eu acho que você sente prazer em machucar os outros. O que quis dizer com nosso trem? Nã o me

diga que vou ter que viajar com você até Beni Zain...

— Vai. E, se nã o se apressar, a viagem terá que ser feita no lombo de um camelo. Por acaso achou que iria

viajar sozinha? Lembre-se de que nã o estamos na sua Inglaterra. Vamos, depressa!

Carla teve de aceitar o pedido. Ou melhor, a ordem. Andando o mais rá pido que seu pé defeituoso lhe

permitia, caminhou até a plataforma, onde o trem estava prestes a sair. Chegaram quando o guarda-trilhos levava o

apito à boca para dar o sinal de partida.

— Vamos logo — apressou-a com seu acompanhante, alç ando-a pela cintura e colocando-a no vagã o.

Pouco depois, estavam entrando num dos compartimentos da primeira classe.

— Teremos que ficar juntos durante todo o percurso? Vai ser uma viagem e tanto... — ironizou Carla.

— Fico contente que pense assim! — ele redobrou o sarcasmo.

— Nã o será luxo demais para um criado viajar de primeira classe? Aposto que está tirando vantagem do seu

patrã o.

— E por que nã o? — Ele sacudiu os ombros largos e musculosos. — Se um homem é tã o imbecil que pensa em

contratar uma ex-modelo para dama de companhia das irmã s, merece ser explorado. Ele nã o deve estar em seu juí zo

perfeito, nã o acha?

— Você está sendo muito desrespeitoso para com seu patrã o — disse Carla, sentindo a maciez daquele

assento confortá vel e o refrigé rio do ar-condicionado. Sob certo aspecto, nã o podia condenar aquele demô nio

atrevido por ter conforto. Mas, mesmo assim, nã o pô de refrear a tentaç ã o de fazer pilhé ria. — Se eu reportasse

tudo o que está dizendo a Sidi Kezam Zabayr, que, pelo que pude entender, tem um relacionamento muito estreito

com o Califa, você se veria em maus lenç ó is.

Diante daquela observaç ã o, ele se pô s a rir descaradamente. Nã o de uma forma alegre, mas sim contida,

cí nica e desdenhosa.

— Alé m de ser tola, você també m é maldosa? Saiba que, aqui, a palavra de uma mulher vale menos do que um

grã o de areia do deserto.

— Deve ser uma maravilha viver num paí s onde as mulheres só se sentem seguras e respeitadas se

conseguem presentear seus consortes com um filho do sexo masculino. — Ao contra-atacar, Carla lhe enviou um

olhar de desprezo, embora por dentro estivesse com muito medo. Mesmo antes de viajar já sabia que, naquela parte

do mundo, os homens eram senhores absolutos. — Zain Hassan bin Hamid é um dé spota, nã o? E assim mesmo você

está querendo mostrar poder, como se ele nã o tivesse nenhuma ascendê ncia sobre a sua pessoa. Aposto que banca o

valentã o só comigo. Com ele, você deve ser tã o subserviente como todos os demais servidores dele.

— Quanto está valendo essa aposta? — perguntou o bé rbere, mais zombeteiro do que nunca. — Está mesmo

pensando que eu rastejo perante quem quer que seja?

— Você é um lacaio pago por ele, nã o é? Recebe ordens e cumpre as tarefas que ele lhe dá. Assim como, por

exemplo, me buscar no aeroporto. Comigo você pode ser arrogante e malcriado. Porque, a seu ver, eu nã o passo de

uma mulher. Mas se o califa é tã o poderoso quanto Kezam Zabayr deu a entender, com ele você deve ser bastante

servil. Um potentado é uma espé cie de divindade aos olhos do seu povo, nã o é mesmo? Agora, aos meus olhos você

nã o passa de um reles criado dele. Só gostaria de saber o que você faria se eu fosse a felizarda escolhida para o

cargo, e pudesse, portanto, conviver com o califa. Acho que ele deve ser suficientemente humano para dar ouvidos

à s denú ncias de uma mulher, e també m acho que ele nã o gostaria de saber que um dos seus servos se comporta com

tanta petulâ ncia e irreverê ncia.

Nunca em sua vida Carla tinha ameaç ado algué m, nem quando era modelo e vivia num ambiente altamente

competitivo, um verdadeiro vale-tudo, e nem mesmo Peter havia conseguido levá -la a um ponto tã o extremo. Aquele

á rabe a tirava do sé rio. Fazia com que ela levasse à s ú ltimas conseqü ê ncias o secular antagonismo entre os dois

O Califa do Deserto Violet Winspear

sexos.

Nesse momento, o trem entrou num tú nel escuro e os olhos dele pareciam dois tiç õ es acesos sob o shemag

branco.

— Confesse. Você, agora, gostaria de me matar com um punhal — disse o bé rbere. Quando o trem saiu

novamente para a claridade do dia, ele continuou: — Apesar de tudo, você tem certas caracterí sticas que poderã o

ser do agrado do califa. Talvez ele seja um dé spota, como você diz, mas nem por isso aprecia pessoas bajuladoras e

servis.

— Verdade? — Nã o obstante a raiva que sentia, Carla nã o podia deixar de notar as linhas incrivelmente bem

traç adas daquela boca dominadora, nem a expressã o altiva daqueles olhos azuis. Certamente, o azul dos olhos dele

era uma heranç a gené tica dos cruzados, em suas passagens clandestinas pelos haré ns sarracenos. — Pois eu pensei

que os homens de seu paí s preferissem que as mulheres se mantivessem de joelhos o tempo todo, muito amorosas e

lâ nguidas, felizes de serem macios capachos para os pé s de seus senhores.

— Nã o me diga que acredita em tudo o que essas escritoras feministas frustradas relatam em seus

romances. Se os sheiks do deserto passassem o tempo todo reclinados nos divã s, junto de mulheres lâ nguidas e

amorosas, como você diz, as regiõ es que eles governam se transformariam num caos e sofreriam um colapso

econô mico. Eles pró prios enfraqueceriam seu cará ter e sua forç a fí sica. — Ele sorriu diante do quadro que acabava

de descrever e esticou as longas pernas. — É evidente que você tem muita curiosidade em saber como é Zain

Hassan. Por isso vou contar um pouco. A maneira de ser dele, bint, nã o é precisamente igual à de seus compatriotas,

e suas preferê ncias nã o se amoldam à s dos outros homens da tribo. O que o torna poderoso e respeitado é a dureza

e firmeza de seu cará ter. Os bé rberes admiram essas qualidades e exigem que um lí der seja assim. Um homem

vulnerá vel e complacente nã o conseguiria manter a unidade e coesã o de seu povo. Logo a tribo se dispersaria pelas

cidades, adquirindo há bitos nã o-condizentes com a vida do deserto. O povo de Beni Zain pertence ao sol e à s

estrelas, ao vento e à chuva. As crianç as de Beni Zain sã o filhas dos elementos da natureza e é missã o do califa

manter a tradiç ã o. Ele é o mestre e guardiã o do seu povo.

— Um mestre que jamais abdica do seu chicote!

— Mesmo assim, nã o deixa de ser uma missã o excitante e importante para um homem.

0 acompanhante de Carla tinha olhos perturbadores, que revelavam uma grande forç a interior. Era

compreensí vel que o califa tivesse um homem desses ao seu serviç o, algué m que nã o se deixava intimidar por nada.

— Está tã o certa assim, srta. Innocence, de que a sua presenç a nesse trem é apenas uma mera brincadeira,

em vez de ser o caminho que a está levando ao seu destino? Maktoub, como dizemos no deserto. Nó s acreditamos

que tudo está escrito e nenhuma de nossas aç õ es é executada em vã o. Pense nisso. Acha que estaria aqui, longe de

sua pá tria, sem uma finalidade? Acha que sofreu uma quebra traumatizante em sua rotina de vida sem nenhum

motivo? Você deve estar em dú vida se estou dizendo tudo isso apenas por suposiç ã o, ou se andei tirando

informaç õ es sobre o que levou uma jovem inglesa a responder a um anú ncio tã o incomum, nã o é verdade?

— Quer dizer que sabe realmente tudo a meu respeito?

Carla sentiu-se ressentida e vasculhada, como se lhe tivessem arrancado o vé u com que cobria o rosto, à

maneira das mulheres á rabes. Aquele homem devia ser algo mais do que um servo, um motorista. Talvez um

ajudante-de-ordens do califa, algué m de sua inteira confianç a, para saber tanto sobre o passado dela.

A maneira como ele a estava observando lhe deu a sensaç ã o de estar nua diante de seus olhos. Ela o odiou

por isso.

— Acredita mesmo que iriam trazê -la para cá, sem nenhuma investigaç ã o? Tudo bem. Mas é estranho uma

mulher bonita como você correr atrá s de um emprego como esse. O que foi que aconteceu afinal? Por que está aqui?

Está fugindo de alguma coisa? É uma bonequinha de luxo, que tem medo de ser apenas uma mulher?

— Seus comentá rios nã o tê m propó sito. Para sua informaç ã o, eu nã o sou uma bonequinha de luxo.

— Mas um certo cavalheiro achou que era...

— Você sabe mesmo de tudo, nã o é?

Carla cravou as unhas no couro da bolsa, furiosa por ele saber que, por trá s daquela má scara de audá cia,

desenvoltura e autoconfianç a, havia uma pobre moç a insegura, uma crianç a enjeitada, e nã o uma mulher vivida e

corajosa.

Ela apontou seu pé defeituoso. E, escolhendo as palavras, disse:

— Mas se tivesse sabido " disso" antes, nã o estaria aqui, nã o é verdade? Como vai explicar ao seu Senhor

todo-poderoso que os assessores dele viajaram quilô metros para buscar uma mercadoria danificada? Sim, porque eu

O Califa do Deserto Violet Winspear

nã o manco só porque torci o tornozelo. Isso que você está vendo é um defeito e nã o tem remé dio. E eu nã o acredito

que seu amo queira incluir em seu estoque de escravas uma mulher manca. Como vai se sair dessa? Seu emprego de

ajudante-de-ordens vai estar em perigo, nã o vai?

Se Carla pensava causar ao rapaz algum abalo, enganou-se redondamente. Ele apenas olhou para o seu pé

esquerdo e advertiu, calmamente:

— Sua meia de ná ilon está desfiada. Está tã o mal de vida que nã o pode comprar outro par?

— Vá para o diabo que o carregue! — explodiu Carla, vermelha de có lera. — Pensando bem, acho que você e

seu patrã o sã o farinha do mesmo saco. Igualzinhos.

— Kezam Zabayr bem que me advertiu de que você tinha uma lí ngua afiada. Mas ele estava tã o empolgado

com a sua beleza que preferiu ignorar seu temperamento intempestivo.

— Como você s agem num caso desses em Ben Zain? Talvez de forma parecida com a que castigam as

adú lteras, mandando cortar a lí ngua. Nã o é assim?

— No seu caso, até que seria uma boa soluç ã o — disse ele, com um sorriso sarcá stico.

Durante sua carreira de modelo profissional, Carla havia aprendido a nã o ficar encabulada. Afinal,

freqü entemente se submetia a platé ias exigentes. Muitas vezes, abarrotada de homens. Mas naquele momento era

diferente. Era, sem dú vida, uma verdadeira invasã o à sua privacidade.

— Nã o precisa se assustar — ponderou ele. — Nesses casos, nó s ensinamos as mulheres a se manterem em

seus devidos lugares.

— Debaixo de seus calcanhares! Se pensa que vai poder me subjugar, terá uma bela surpresa! Vou me

rebelar até a ú ltima gota do meu sangue!

— Nã o duvido nada, mas acontece que você nã o me foi destinada, bint. É o califa quem deverá dar a palavra

final.

— Ele nunca me escolherá. Já lhe disse: eu sou aleijada. — Carla odiava aquela palavra. Era horrí vel. Doí a

muito no seu orgulho de modelo cobiç ada. Uma crueldade do destino, pensou consigo mesma.

— Eu a observei quando saiu do Aeroporto de Casablanca. Notei que mancava, mas assim mesmo você está

aqui, viajando comigo para Beni Zain.

— Você nã o é o califa — replicou ela, ainda colé rica. — Só ele pode decidir se andar mancando é importante

ou nã o.

— E se fosse eu a decidir? Que tal? É uma hipó tese fascinante. O que você faria se fosse colocada ao lado

de mais seis candidatas, de todas as nacionalidades, para que eu desse a minha palavra final? Teria um ataque de

nervos?

— Eu me jogaria agora debaixo desses trilhos!

— Seria uma infantilidade. Nenhum homem merece que um corpo belo seja estraç alhado sob as rodas de um

trem. Talvez você até gostasse de ser minha kadine. Muitas mulheres que compartilharam de minha tenda no

deserto gostaram. E muito.

— Nã o duvido nada, mas nã o tenho qualquer ambiç ã o de entrar para o seu time. Prefiro tentar com o pró prio

califa. E nã o com os seus subalternos.

— Tem tanta certeza assim de que vai agradar ao califa? Você tem um rosto encantador. E é certo que sabe

disso. Mas, em nosso paí s, dizemos que a beleza só é perfeita quando é plá cida e tranqü ila como a á gua de uma lagoa.

— Lá vem você com suas poesias. Entã o, é esse o tipo que o califa quer para fazer companhia à s irmã s? Uma

mulher bela de ser vista, mas quieta e sem movimento como uma á gua parada?

— Você adora expressar as suas opiniõ es, nã o é? — perguntou o bé rbere, com um sorriso enigmá tico, no

momento em que ouviram uma batida na porta do compartimento. — Entre — ordenou ele.

O homem de tú nica branca que apareceu à porta começ ou a falar em á rabe e Carla nã o entendeu uma

palavra. Ainda assim notou que o outro tratava seu acompanhante com extremo respeito.

Ele respondeu no mesmo idioma e o homem fez uma reverê ncia, antes de desaparecer no corredor.

— Mehmed vai nos trazer um lanche. Você deve estar com fome. — E olhou-a inquisitivamente, com aqueles

olhos incrí veis que contrastavam com o moreno da pele e os â ngulos retos e má sculos do rosto.

— Confesso que estou faminta. Quem era aquele homem?

— Um membro da comitiva que está viajando conosco para Beni Zain. Na Inglaterra, você s provavelmente

diriam que Mehmed é um mordomo. Só que esse é també m muito eficiente empunhando uma carabina. Nã o deve

esquecer, srta. Innocence, que estamos no deserto e que, atrá s de cada duna, de cada rochedo, pode estar

O Califa do Deserto Violet Winspear

escondido um inimigo. Pode ser uma fera. Ou entã o, um homem. Sempre há perigo. — Ao terminar a frase, apontou o

braç o em direç ã o à janela, num gesto de demonstraç ã o.

Carla notou que ele trazia no dedo um anel antigo, com uma insí gnia gravada.

— É curioso... — disse ela, meditativa. — Sempre pensei que o deserto fosse um enorme lenç ol de areia, mas

é mais do que isso. O deserto me parece algo vivo, que respira e vibra, assim como, o mar.

— Você é muito perceptiva para uma jovem que passou uma vida fú til, entrando e saindo de salõ es de beleza.

Mulheres bonitas, em geral, tê m cabeç as ocas.

— Certos homens pensam que uma mulher, para ter alguma inteligê ncia, precisa ter a cara de um cavalo.

— Os cavalos nã o sã o tã o inteligentes assim — retorquiu ele, com a seguranç a de um conhecedor. — Eles sã o

treinados intensivamente, mas, muitas vezes, nã o correspondem à s expectativas.

— Como no caso das mulheres bonitas?

Conversando sobre cavalos, Carla lembrou-se de Grey Lady, que a atirara de encontro à quele tronco de

á rvore. Nunca mais teria coragem de cavalgar. De maneira alguma. Mesmo que o mé dico a tivesse aconselhado.

Carla nã o olhava diretamente para aquele bé rbere alto e irô nico, que devia gozar da confianç a total do

califa. Poré m, ela sentia os olhos azuis mirando-a insistentemente, De vez em quando, nã o resistia à tentaç ã o e

lanç ava um olhar para a tú nica entreaberta, que mostrava aquele peito forte e moreno.

Por alguns minutos os dois ficaram em silê ncio, apenas trocando olhares esparsos. Até que Mehmed

reapareceu com uma cesta contendo umas iguarias, uma garrafa té rmica de café e uma grande variedade de frutas,

inclusive apetitosas tâ maras secas. Era realmente um mini banquete, e Carla nã o pô de deixar de comentar:

— Pelo visto, você gosta de se cuidar, hein?

— Quando se viaja de trem, tudo é agradá vel. Mas as coisas sã o diferentes quando é preciso viajar no dorso

de um camelo. Nesse caso, a refeiç ã o é feita ao ar livre, à sombra de algum rochedo. Entã o, esta saborosa salada de

queijo e pimentõ es pode acabar coberta de grã os de areia e moscas-varejeiras.

Carla chegou até a sentir um embrulho no estô mago, mas continuou comendo com o mesmo apetite. Aquele

bé rbere nã o iria lhe tirar o prazer de comer um lanche tã o gostoso.

— Fico satisfeito em ver que você nã o é dessas mulheres fricoteiras, que só ficam beliscando a comida,

como passarinhos — disse ele. — As pessoas devem saber apreciar as boas coisas que Alá nos concede. A vida é para

ser vivida plenamente, sem as pesadas grades das convenç õ es e preconceitos.

— Você tem orgulho da vida que leva, dá para se perceber.

— Eu seria um idiota, bint, se nã o me aproveitasse da vantagem de ser muito í ntimo do califa.

— O que quer dizer bint? — ela quis saber, pois ele quase sempre chamava assim. — Você diz isso como se

fosse algo pejorativo. Sei que nã o simpatiza comigo, mas. . .

— Quer dizer apenas “garota” — ele a interrompeu. — Só isso. Você ainda é uma garotinha em muitos

sentidos. Kezam me contou que, inclusive, é uma flor que nã o foi colhida.

— Uma flor o quê? — Arrependeu-se de ter perguntado, pois, mesmo sem conhecer o sentido daquela

expressã o, intuiu o que ele queria dizer, e ficou rubra até o ú ltimo fio de cabelo. — Você sabe demais! — disse,

antes que ele respondesse. — Creio que tudo que eu falei naquela bendita entrevista é do seu conhecimento. Você s

tomam informaç õ es por tabela? Por que seu amo nã o se inteira pessoalmente desses detalhes? Isso seria mais uma

amolaç ã o para ele?

— Mais uma amolaç ã o? — ele repetiu a pergunta.

— O califa també m deixa a seu cargo a procura de mulheres para a cama dele? Como você nã o me parece um

eunuco, devo chegar à conclusã o de que os gostos de ambos sã o semelhantes. Por certo, você deve ter livre trâ nsito

no haré m do califa.

— Quem sabe? Ainda bem que você é uma bint inocente e ingê nua, senã o nã o teria se arriscado a vir para um

lugar onde, até bem pouco tempo, os prisioneiros eram jogados à s feras. Depois suas cabeç as decapitadas eram

penduradas nos palá cios dos tiranos. E tem mais: os mercados de escravas eram pú blicos e as mulheres mais bonitas

eram resgatadas a preç o de ouro. Mas os há bitos, no fundo, nã o mudaram muito. Este é um reduto da barbá rie, onde

os ú ltimos corsá rios sarracenos levantaram seus kasbahs. Jamais se esqueç a disso.

— Se pensou em me seqü estrar, nã o vai lucrar muito com isso — disse Carla, provocadora. — Nã o tenho

ningué m na Inglaterra que tenha interesse em me resgatar das mã os de um bá rbaro como você.

— Nem aquele cavalheiro inglê s?

— Muito menos ele. — Carla nã o pô de evitar de baixar os olhos para o pé defeituoso. — Eu nã o significo mais

O Califa do Deserto Violet Winspear

nada para ele. E vice-versa.

— Entã o, quer dizer que você é sozinha e que ningué m dará pela sua falta depois que deixar de freqü entar

os lugares onde era conhecida? Veio para o Marrocos sem informar a ningué m sobre o seu paradeiro?

— Nã o estava com disposiç ã o para fazer confidê ncias, e o pouco que andei dizendo foi taxado de loucura. As

pessoas conhecidas alertaram que eu iria me meter em encrencas. — Carla interrompeu-se bruscamente ao se dar

conta de que aquele bé rbere desconhecido parecia muito contente com as encrencas em que ela poderia se meter.

Instintivamente, levou a mã o à garganta, sentindo um sufoco e tomando a consciê ncia de que nunca deveria

ter confessado que ningué m sabia que ela estava no Marrocos. E havia escolhido para as suas confidê ncias

justamente aquele homem, que parecia tã o mal-intencionado.

— Posso ler em seus olhos, srta. Innocence, que está arrependida por nã o ter dado ouvidos aos seus

conhecidos.

Havia um sorriso sarcá stico em sua boca quando ele se inclinou sobre ela, como que brincando com o terror

estampado nos olhos verdes.



  

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