Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





CAPÍTULO V



 

 Don Arturo indicou uma cadeira redonda estofada e Ricki sentou-se, murmu-rando um agradecimento. Sentia o olhar dele sobre ela e passeou os olhos por todos os objetos da sala evitando ter de fixar aquele olhar perturbador. Viu uma mesa de jogo em mogno entalhado, uma estatueta sobre a lareira que mostrava uma menina com um dragã o enrodilhado a seus pé s, a caixa de cigarros em prata batida que os dedos longos de don Arturo abriram e tornaram a fechar. E, sobre o braç o da cadeira dele, um livro encadernado, aberto.

 Ricki sorriu nervosa enquanto ele acendia o cigarro. Don Arturo vestia um robe de veludo cotelê e mostrava uma firme decisã o quando se sentou, cruzando as pernas.

 — Talvez pudesse servir o café, srta. O’Neill. Sei que as mulheres ficam nervosas quando os homens mexem com coisas frá geis como xí caras de porcelana.

 — Você s, espanhó is, parecem gostar muito de interpretar as mulheres — disse em tom casual. — Quer aç ú car, señ or, ou mel?

 — Mel, señ orita. Como bom espanhol, gosto de doces — disse, irô nico. — O jovem Alvedo estava demonstrando nossa interpretaç ã o das mulheres quando eu os interrompi hoje à noite?

 — Creio que já tirou suas pró prias conclusõ es, señ or.

 — Talvez — disse don Arturo, tomando o café. — Mas tome cuidado. Aquilo que para você talvez nã o passe de uma brincadeira para espantar o té dio, talvez signifique algo mais sé rio para um andaluz temperamental.

 — Estou certa de que Alvedo é sofisticado demais para se deixar abalar por algué m como eu — disse Ricki suavemente.

 — Mas outras pessoas por aqui sã o mais antiquadas — prosseguiu ele, direto. — E devo aconselhá -la a escolher melhor os lugares para essas demonstraç õ es de afeto.

 Ricki quase engasgou com o café. Don Arturo, com seu ar de falcã o, estava tã o imbuí do da pró pria altivez que ela se sentia no dever de se defender, de mentir, apenas pelo compromisso de defender o romantismo.

 — Quando duas pessoas se amam — explicou —, pouco se importam com o que ocorre em torno. É como se estivessem numa ilha deserta.

 — Entã o deve ter sido um choque quando eu entrei galopando nessa ilha deserta e quebrei o encanto. Entendo agora o seu olhar ferino.

 — Sim, foi isso — concordou ela. — Quer mais café, señ or?

 — Nã o, obrigado — disse ele, pousando a xí cara na mesa.

 Ricki percebeu entã o a dureza de seu perfil, revelando severidade e uma ponta de sofrimento. Aquele jogo de provocaç õ es nã o era nada divertido e ela se sentia tensa. Lembrou entã o que don Arturo a havia surpreendido nos braç os de Alvedo exatamente nas Lá grimas do Diabo. E ele devia estar achando de enorme mau gosto ter escolhido exatamente aquele lugar para um beijo.

 Encarou-o, impotente, sem saber como consertar aquela falsa impressã o que havia criado tolamente.

 — Temos convidados amanhã, srta. O’Neill — disse ele em tom de ordem. — E gostaria que jantasse conosco.

 Ricki deve ter demonstrado surpresa, pois ele completou em seguida:

 — Nã o precisa se preocupar. Nã o se trata de um jantar de negó cios — disse, rindo. — Don Enrique Salvadori vai trazer as irmã s.

 — O avô de Jaime? — perguntou, aliviada.

 — Exatamente. O abuelito de Jaime. Ele quer conhecer a enfermeira de seu neto e estou certo de que gostará dele. As irmã s també m sã o muito agradá veis. Sã o gê meas, solteiras, e tã o parecidas que é impossí vel distinguir uma da outra. Só que uma é frá gil e feminina e a outra direta e perspicaz. — Os dentes brancos brilharam num sorriso que fez os olhos negros parecerem quase infantis. — Usam sempre vestidos compridos de seda preta com jabô s de renda. Já imaginou? Parecem saí das de um livro de Jane Austen.

 — Quem foi que lhe deu Jane Austen para ler, señ or? Sua avó inglesa?

 — Deve ter sido uma surpresa para você saber que tenho tanto sangue inglê s, nã o? — perguntou, olhando-a dentro dos olhos.

 — Sim. Sua aparê ncia e suas maneiras sã o tã o espanholas! — disse ela, desviando os olhos. — Tento imaginar sua avó nesta enorme casa espanhola e me pergunto se ela nã o terá nunca se rebelado contra a reclusã o quase moná stica daquela é poca.

 — Ela e meu avô eram muito felizes. Ela veio de boa vontade para a vida moná stica, como você diz. Era amor perfecto.

 Um verdadeiro amor para a mocinha inglesa que tinha vindo viver na casa do vale... a casa dos Cazalet sobre a qual nã o pairavam, naquele tempo, as sombras de hoje.

 — Diga-me uma coisa, srta. O’Neill. — Ele apagou o cigarro e cruzou as mã os finas entre os joelhos. — Passei vá rias vezes pelo quarto de Jaime, à noite, e a ouvi cantando para ele. Tentei compreender as palavras. Sã o estranhamente belas.

 — Oh... — murmurou, corando ligeiramente. — À s vezes canto para ele em gaé lico. A famí lia de meu pai vivia no interior da Irlanda e aprendi com eles um pouco da lí ngua.

 — As crianç as tê m ouvidos muito apurados, nã o é mesmo? — Um ligeiro sorriso abrandava a voz dele. — Quando era crianç a aprendi a gostar de mú sica e minha avó me ensinou a tocar piano.

 —É, eu queria mesmo saber quem é que tocava aquele piano da sala de estar. — Ricki retribuiu o sorriso, notando a mudanç a que havia se operado nele. Falava da avó e da pró pria infâ ncia. Uma vaga suavidade quebrara a rigidez de sua expressã o e ela sentia que isso se devia ao susto provocado pelo tombo de Jaime.

 — Você acha esta casa assustadora? — perguntou. — Tem muitos corredores, muitos retratos antigos, tapetes e mobí lias que estalam durante a noite...

 — Nã o esqueç a das corujas, señ or — completou, rindo. — É antiga, mas acho-a fascinante.

 — Fico contente em saber — disse, encarando-a. — Nó s tí nhamos concordado em romper o contrato caso você achasse a casa isolada demais. É uma sorte você ter se dado bem com Alvedo Andrè s...

 — Alvedo e eu somos apenas bons amigos.

 — Claro, claro — disse ele, inclinando a cabeç a e procurando demonstrar nã o ter interesse na relaç ã o deles. — Esta granja foi construí da durante o impé rio romano, sabia? Você deve ter notado as inscriç õ es em algumas das paredes de pedra originais e no poç o do pá tio principal, nã o?

 — O que eu mais gosto é o clima mourisco — disse ela. — As fontes de azulejos e os bancos do pá tio.

 — É, as cores e os desenhos sã o muito orientais — concordou ele. — Los suspiros de los moros ainda sã o ouvidos em toda a Andaluzia. Os camponeses dizem que os vê em à s vezes, cavalgando na neblina da manhã. Alguns desses livros contê m histó rias fascinantes da é poca da ocupaç ã o moura. As intrigas das cortes bizantinas, as batalhas entre os cavaleiros do castelo e os sheiks, as disputas das belas dos haré ns com os seus senhores... Um mundo colorido e fascinante que você adoraria, nina, se soubesse ler castelhano.

 — Vou aprender um dia.

 — Alvedo adoraria ensiná -la.

 — Talvez.

 Ricki curvou-se, estendendo as mã os para o fogo. Sentia, sem saber bem por que, que nã o ficaria ali o suficiente para aprender castelhano. Os trovõ es ribombavam ao longe, sobre as Sierras, e o eco rolava pelo vale. Os troncos chiavam cada vez que uma gota de chuva caí a pela chaminé.

 Tinha se adaptado à quela casa e sabia que, quando chegasse o momento de partir, sentiria tanto quanto havia sentido deixar o hospital. Viu com o rabo dos olhos seu patrã o pô r-se em pé.

 — Agora, vamos tomar um pouco de vinho que trouxe especialmente da adega.

 Enquanto ele abria a garrafa e servia a bebida, Ricki levantou-se para olhar os quadros nas paredes. Eram cenas espanholas medievais e lembravam os desenhos de Alvedo que ele tinha rasgado. Ele se ressentia do fato de Jaime ter talento para a pintura. Sentia inveja do menino e esse sentimento o tinha levado a correr tanto pela estrada perigosa... O terror daquele momento ainda estava estampado nos olhos de Ricki quando don Arturo se aproximou com os cá lices de vinho. Sentiu que ele tentava ler seus pensamentos.

 — Oh! — Ricki suspirou, provando o vinho lí mpido no cá lice com pé s de prata trabalhada. — Que gosto estranho! É bom. E forte.

 — É vinho de romã s, feito aqui mesmo, na granja. — Ele soma como se pudesse ler o ligeiro temor de Ricki naquele instante. — Um cá lice tã o frá gil com um vinho tã o forte. Beba, srta. O’Neill, beba.

 Ricki obedeceu enquanto ele se afastava até as cortinas vermelhas. O trovã o rolou no cé u e as cortinas se inflaram numa lutada de vento, envolvendo don Arturo como uma chama. Lú cifer!, pensou Ricki. E, para evitar que ele adivinhasse de novo seus pensamentos, voltou-se rapidamente para uma pintura na parede.

 — Que quadro estranho — disse. — Este homem com a escada é um acendedor de lampiõ es?

 — Nã o. É um româ ntico de La Mancha — explicou don Arturo. — Os jovens carregavam escadas para subir à s janelas das donzelas e namorar atravé s das grades. Era um dos velhos costumes româ nticos da Espanha. Acha interessante, señ orita?

 — Tudo que é româ ntico sempre interessa à s mulheres. E a ousadia de sua terra, señ or, o sol quente, o toque de crueldade, a combinaç ã o disso tudo cria um clima propí cio à paixã o.

 — E o amor? — perguntou ele com voz profunda. —A Espanha é considerada como o ú ltimo reduto do amor româ ntico.

 — Sim... o amor româ ntico. Mas do tipo explosivo, como um vulcã o.

 — Mas valerá a pena amar se isso nã o for uma emoç ã o forte e turbulenta? — perguntou. — O amor deve ser perigoso, excitante e, para uma mulher, tem de ser temperado com o medo.

 — Isso soa como uma experiê ncia cruel, don Arturo. — E, sem perceber, os dedos de Ricki apertaram com mais forç a o cá lice de vinho.

 — Dizem que há verdade no vinho. — Ele sorriu, examinando a transparê ncia do licor de romã s. — O amor é conquista e submissã o. Enche de luzes coloridas até as choupanas mais pobres e, se nasce da ilusã o, morre de desilusã o. O amor tem suas raí zes na alma da mulher. E aqui na Espanha se diz que " uma mulher nã o resiste ao amor...

 — ... assim como a mariposa nã o resiste à luz" — completou Ricki, censurando aquela pretensã o masculina de que o amor devia ser a ocupaç ã o principal de todas as mulheres. — Acho um pouco antiquado, señ or, julgar que as mulheres estã o sempre dispostas a serem escravizadas pelas exigê ncias do homem. Quando as mulheres se libertaram de todas aquelas aná guas e espartilhos, libertaram-se també m dessa idé ia masculina de que elas devem ser sempre dominadas. As mulheres de hoje gozam de liberdade e igualdade.

 — Para disputar?

 — Nada disso — prosseguiu Ricki, os olhos verdes brilhando, perigosos. — Para assumir o nosso pró prio lugar no esquema geral das coisas e tentar deter os homens que com suas bombas e seus temperamentos igualmente explosivos vã o acabar estourando tudo.

 — Você é a favor de uma Naç õ es Unidas de mulheres, nã o?

 — Nã o seria má idé ia — disse, empinando o queixo. — Aposto que saberí amos manter a paz melhor que você s, homens. Vinho, mulheres e guerra, é só nisso que você s pensam!

 — Ay Dió s mio! Contratei uma fisioterapeuta para meu sobrinho e acabo descobrindo que tenho nas mã os uma rebelde. Daqui a cem anos, vai estar tudo igual, sabe? Portanto, aproveite agora as coisas adequadas para os sonhos e ideais de uma moç a.

 —Observaç ã o tipicamente masculina — rebateu ela. — É inaceitá vel para você s, homens, a idé ia de uma mulher que nã o pense apenas em vestidos de noiva e filhos!

 — Você nã o percebe, chica — disse, quase divertido —, que mais do que nunca, nesta nossa era tecnoló gica, nó s homens temos de ter algo simples e bá sico em nossas vidas? Nã o? Nada é mais bá sico e fundamental que uma mulher, e, se ela se deixa encantar pela ciê ncia e pelas ambiç õ es polí ticas, termina por perder aquela magia da terra. E nó s, homens, perdemos nossa ú nica â ncora. Atravé s dos sé culos a grande forç a da mulher reside justamente no fato de ela ser a eterna Eva, oferecendo em seus braç os o consolo e a simplicidade de que os homens precisam cada vez que mordem outra vez a maç ã da discó rdia.

 — O senhor faz parecer que tudo está bem, señ or. — Ricki olhou o cá lice que tinha nas mã os. Como tinham chegado a assuntos tã o desconcertantes como o amor, vestidos de casamento, braç os de Eva?

 Suspirou aliviada quando don Arturo mudou o rumo da conversa para algo mais prosaico e pediu um relató rio dos progressos de Jaime. Ouviu, com ar muito sé rio, todo o relato.

 — Sabe, srta. O’Neill — disse com um brilho no olhar —, quem persegue uma carreira é sempre muito impessoal no relacionamento humano, mas você é tã o dedicada a meu sobrinho quanto uma tigresa a seu filhote.

 — Como sabe? — perguntou, sentindo-se enrubescer. — O señ or raramente nos vê juntos.

 — Sei de tudo o que se passa na granja — disse secamente. — Você parece sentir-se culpada. Por quê? Nã o gosta que descubram que é uma mulher afetuosa em vez de uma carreirista sem coraç ã o?

 — Jaime é uma crianç a adorá vel. É fá cil gostar dele... Espero que o señ or nã o se importe com a ligaç ã o que se formou entre nó s.

 — Ele vai se entristecer quando chegar o momento...

 Ricki sentiu aquelas palavras como uma chicotada, pois ela també m ia sentir falta daquela afeiç ã o infantil, do sorriso de grandes olhos graves, da maneira como Jaime se agarrava ao coelhinho que ela tinha feito para ele.

 — Nã o é fá cil para uma mulher, manter-se distante de uma crianç a. E para uma crianç a que passou por muitos sofrimentos é sempre mais fá cil demonstrar afeto e confianç a a um estranho. Jaime é extremamente sensí vel para a idade e as coisas que aconteceram e as pessoas ligadas a elas ainda despertam nele uma grande má goa.

 — Você é muito perspicaz, srta. O’Neill.

 — Sou apenas uma pessoa treinada na arte de cuidar de pessoas doentes. Assim que Jaime puder andar e correr como um menino normal, esquecerá todo o passado...

 — E perdoará o demô nio que provocou a morte da mã e, nã o — O rosto de don Arturo era uma má scara de dor ao dizer essas palavras.

 Ricki encarou-o, examinando as rugas que sulcavam os cantos de sua boca. Já nã o havia trovõ es, nem tamborilar da chuva. A tempestade lá fora tinha passado, mas ali no escritó rio podia-se sentir a tensã o no ar. Ele entã o voltou-se e pousou na mesa o cá lice com um ruí do seco. Subitamente ela percebeu que os comentá rios maldosos se haviam infiltrado em sua cabeç a, e que també m começ ava a ter dú vidas. Dú vidas que nã o tinha sido capaz de esconder.

 — Está ficando tarde — disse, voltando para ela o rosto controlado de sempre, grave, severo e seco. Pegou o cá lice da mã o dela e, ao colocá -lo sobre a mesa, a borda de cristal tocou no outro com um leve tilintar que lembrava o toque dos floretes antes de um duelo. Ele apagou os lampiõ es e atravessaram lado a lado o hall ladrilhado. Ao subirem a escada ela sentiu o leve toque dos dedos dele em seu cotovelo.

 Há algo de estranhamente í ntimo num casal subindo escadas e Ricki tinha consciê ncia disso. O roç ar do veludo no braç o dela, a sensaç ã o quente e forte de uma mã o masculina tocando o cotovelo, o ombro largo pairando vá rios centí metros acima de sua cabeç a. Em que será que ele pensava? Era tã o secreto quando ficava calado.

 — Quando minha mã e veio morar nesta casa — disse ele subitamente ao chegarem no alto da escada —, ela quis trazer alguns pertences de sua casa em Castela. Meu pai concordou e é por isso que agora temos retratos dos Aguinarda nas paredes desta casa andaluza, ao lado dessas armaduras sempre em guarda nos corredores.

 — Don Arturo acompanhou-a até a porta do quarto dela e, antes de entrar, Ricki sentiu vontade de perguntar se eram verdadeiras as histó rias que ouvira. A pergunta estava em seu coraç ã o, mas seus lá bios nã o a conseguiam pronunciar.

 — Buenas noches, señ or — foi tudo o que pô de dizer —, e obrigada pelo convite e pelo vinho de romã s.

 Ricki atravessou as sombras de seu quarto, apanhando na passagem seu robe quentinho que colocou sobre os ombros. Saiu para a sacada que dava para o pá tio. A chuva tinha parado e deixara no ar o cheiro fresco da vegetaç ã o molhada. Sentia uma mistura de medo e fascinaç ã o por aquele homem estranho e sisudo.

 Seguiu com os olhos o vô o incerto de uma mariposa, ouviu um grilo entre as á rvores e o bater inquieto das patas de um cavalo nos está bulos. Talvez fosse aquele corcel cinzento que don Arturo gostava de montar.

 Que homem estranho, imprevisí vel. Entendia agora por que o encontro com ele em Toledo a havia assustado. Tinha pressentido nele abismos perigosos para uma mulher, abismos de solidã o, isolamento e dor.

 Uma frase de Alvedo Andrè s a tinha marcado: " Nó s, espanhó is, temos coraç õ es medievais".

 E ali, na granja, Ricki havia descoberto que isso era verdade. Aquela velha casa ibé rica aprisionava o passado, situada como estava num vale onde falcõ es faziam seus ninhos nas rochas, onde riachos escondidos brilhavam ao sol como vidro quebrado, onde as flores cresciam entre os troncos de velhas oliveiras. A granja dormitava ao sol diurno com a graç a de um tigre e velava de noite com olhos de á guia...

 — E você, garota — disse Ricki a si mesma —, tem imaginaç ã o demais. Já para a cama. Amanhã tem de estar bonita para o jantar!

 Na manhã seguinte Ricki nã o conseguiu esconder de Jaime a notí cia de que seu avô vinha jantar na granja. Ele passou o dia todo excitado e quando chegou a hora de descansar ainda estava falando sem parar. Será que o abuelito ia subir para vê -lo? E as tias Rosina e Beatriz? Tia Rosina era mais carinhosa...

 Ricki garantiu que eles subiriam, sim, mas que agora ele tinha de ser um bom muchacho e ir para a cama imediatamente.

 — Mas eu nã o consigo dormir! Tenho mais é vontade de sair danç ando por aí.

 — Engraç adinho! Já dormir — disse, rindo e brincando. — Juro pela minha honra trazer vovô e as titias para uma visita mais tarde. Agora durma. Eu ainda tenho de tomar banho e me vestir. Nã o posso chegar atrasada.

 — Tem medo do patró n? — perguntou Jaime em voz baixa. — E se eu pedir para o meu avô levar a gente embora com ele?

 — Nada disso. Don Arturo nã o é nenhum monstro.

 O menino finalmente adormeceu e Ricki passou para seu quarto. Escolheu seu melhor vestido, o verde, de decote canoa, que deixava à mostra seus ombros jovens. No espelho, seu reflexo à luz dos lampiõ es a agradou. Escolheu um lenç o de chiffon e desceu a escadaria.

 Enquanto descia viu don Arturo parado no fim dos degraus. Seria mero acaso? Sua figura esguia ficava ainda mais majestosa no terno formal, as abotoaduras de ouro acrescentando um toque de sofisticaç ã o.

 — Os espanhó is só sã o pontuais para touradas — disse sorrindo, ao acompanhar Ricki até a sala de estar. — Gostaria de um pouco de vinho enquanto esperamos don Enrique, srta. 0'Nè ill? Você deve estar um pouco nervosa por causa desse encontro com os parentes de Jaime.

 Ela aceitou e caminhou até a lareira. O fogo estava aceso e diante do painel azul vivo sentia-se leve e muito feminina com seu vestido mais bonito.

 — Este vinho nã o é de romã s, srta. O’Neill. É apenas um xerez que certamente nã o despertará em sua cabeç a os assuntos tã o desconcertantes da noite passada.

 Os olhos dele brilhavam e Ricki nã o conseguia pensar em algo capaz de abalar aquela dureza.

 — Você parece considerar-me diferente dos outros homens — observou secamente don Arturo.

 — Bem, o señ or é meu patrã o.

 — Estou certo de que a minha posiç ã o de patrã o nada tem a ver com a imagem que você faz de mim. — Examinou-a com os olhos escuros, entregando-lhe o cá lice de xerez. — Será que pareç o tã o diferente dos outros homens?

 Ela sentiu vontade de rir diante daquela pergunta. Aquele porte altivo e majestoso nã o era comum e, alé m disso, ningué m no mundo tinha aqueles olhos tã o escuros, magné ticos e profundos.

 — Você é uma crianç a estranha, evasiva — murmurou don Arturo.

 — Nã o, nã o sou crianç a! — protestou ela, ciente de que os olhos negros examinavam seu decote, que talvez nã o fosse considerado discreto pelos padrõ es espanhó is. — Pareç o infantil?

 — Parece encantadora. O verde do vestido combina com seus olhos e contrasta com seu cabelo. Mas com licenç a. Estou ouvindo o carro de don Enrique que chega.

 Ele se afastou e saiu da sala e Ricki encontrou novamente o seu reflexo no espelho barroco. Devia sentir-se lisonjeada pelos elogios de don Arturo, mas sabia que ele estava apenas querendo dizer que a " crianç a" estava adequadamente vestida para a ocasiã o.

 A sala de jantar era grande, com tapeç arias de Pastrana nas paredes, estatuetas ibé ricas sobre pedestais e uma mobí lia de madeira cor de vinho. Os candelabros mouriscos com inú meras lamparinas acesas pendiam do teto ornado de pinturas e Ricki pô s-se a imaginar que deviam ser despojos de alguma batalha que os cruzados da famí lia Aguinarda tinham vencido contra os mouros.

 Don Enrique Salvadori era um velho ainda muito vigoroso, com o rosto bronzeado emoldurado por cabelos brancos e um tapa-olho do lado esquerdo que lhe dava um certo ar de pirata antigo.

 — Parece fascinada com o teto mourisco, srta. O’Neill — disse ele, gentil.

 — Surpreende-me essa paixã o pela beleza num povo tã o bá rbaro.

 — Achei mesmo que era isso o que estava pensando — disse ele, sorrindo. — Mas a beleza e a crueldade andam de mã os dadas, sabe?

 Ricki notou a reaç ã o viva de don Arturo diante dessa observaç ã o, mas o velho nã o se deu conta.

 — A dominaç ã o mourisca sobre a Andaluzia — prosseguiu ele, servindo-se de pimenta — influenciou nã o apenas a arquitetura mas també m nosso temperamento. Nó s, espanhó is, adoramos a beleza, mas gostamos també m de touradas! — E os olhos dele pousaram nos ombros expostos à Ricki.

 — Enrique — disse tia Beatriz, que era a mais dominadora das velhas gê meas —, a srta. O’Neill nã o está interessada em touradas. Os ingleses acham a tourada muito cruel, nã o é mesmo, srta. O’Neill?

 — Sim, acho que sim — admitiu ela.

 — É, mas mesmo assim os turistas ingleses nunca perdem uma boa corrida de toros quando estã o em Barcelona ou em Sevilha — continuou Don Enrique.

 — Devem ser levados pela curiosidade. Nã o consigo imaginar um inglê s apreciando um esporte tã o bá rbaro e desigual — respondeu Ricki.

 — Nada desigual, nina! — Don Enrique riu alto. — Os touros sã o criaturas fortes, destemidas e matreiras. Do outro lado, uma espada e um homem, protegido apenas por um mero pedaç o de seda contra aquelas armas terrí veis e recurvadas que el toro tem na cabeç a.

 — Mas o matador nunca está sozinho, como o touro — rebateu Ricki.

— Tem todo um grupo de picadores e os pobres cavalos para distrair a atenç ã o do touro.

 — Ah, o cavalo! — zombou don Enrique. — Entã o é o cavalo na arena que perturba os ingleses, hein? Nã o gostam de ver o coitadinho exposto ao perigo de um puntago?

 — E quem pode gostar? — continuou Ricki. — Cortam até as cordas vocais deles para que nã o possam relinchar.

 — É, é uma pena — concluiu o velho, lanç ando um olhar zombeteiro para don Arturo do outro lado da mesa. — Você estava certo, Arturo, esta é das bravas.

 Ricki ficou muito surpresa com esse comentá rio, mas nã o ia demonstrar que tinha sido atingida. O que é que ele queria dizer, afinal? Que ela era uma mulher que nã o se deixava dominar? Como latino, o velho devia achar isso muito irritante.

 — Como os homens sã o crué is! — exclamou, como se quisesse prosseguir a conversa.

 — Acha que nã o há crueldade nas mulheres? — perguntou don Arturo num tom de voz que era uma chicotada. — A señ orita tem mesmo uma enorme auto-estima.

 — Arturo — disse tia Rosina, golpeando-o no punho como o leque —, que falta de gentileza! Basta olhar para a enfermeira de Jaime para ver como é bondosa. Tem olhos lindos!

 — Mas verdes, como os de um tigre — concluiu ele.

 Ricki voltou o olhar para ele e nã o pô de evitar um brilho de animosidade nas pupilas verdes. Don Arturo evidentemente percebeu isso e cinicamente levantou o cá lice de vinho num brinde, demonstrando que sentia por ela exatamente a mesma coisa.

 Depois de servida a sobremesa, que don Enrique recusou, ele começ ou a conversar com Ricki sobre uma das tapeç arias que pendiam da parede. Era uma cena da batalha de Lepanto, com galeõ es espanhó is atacando galeras turcas, o brilho do sol batendo em longas filas de remos, armaduras e espadas, os emblemas de Castek tremulando ao vento.

 Enquanto ouvia a descriç ã o, Ricki pensava se o velhinho estava sendo tã o gentil apenas para consolá -la da agressã o de don Arturo. O velho rancheiro talvez tivesse també m se ressentido, pois tinha sido a filha dele quem demonstrara a don Arturo a crueldade feminina!

 O longo jantar, tã o tipicamente espanhol, chegou ao fim. As duas tias foram com Ricki para a sala de estar, mas os homens ficaram à mesa para fumar e tomar um cá lice de manzanilla, uma aguardente forte, tradicional na Espanha.

 — Foi uma enorme surpresa saber que Arturo tinha trazido uma moç a inglesa para cuidar de Jaime — disse a dura tia Beatriz, mexendo o café e examinando Ricki sem disfarç ar. — Ele é um homem muito difí cil de conhecer e quase impossí vel de se conviver, à s vezes.

 — Nã o nos vemos muito — disse Ricki num tom leve e casual de conversaç ã o. — Com Jaime, é claro, nã o houve nenhum problema. É uma crianç a adorá vel e já somos grandes amigos.

 — Existe alguma possibilidade de ele voltar a andar, srta. O’Neill? — perguntou tia Rosina suavemente. — Acho que a infelicidade de Arturo se deve em grande parte ao problema do pequeno. Como bom tio, quer vê -lo sã o, correndo como os outros meninos. Se Arturo nã o se casar, Jaime será o pró ximo chefe desta granja e, portanto, a preocupaç ã o é natural...

 — Mana, você é româ ntica demais — disse tia Beatriz. — Arturo é homem. Nã o é como você, que ficou casada com uma lembranç a.

 — Você nunca gostou de Juan Leparos, nã o é, Beatriz? — disse tia Rosina corando e brincando com o broche de ouro que trazia no vestido preto. — E eu sei que foi você quem ajudou a mandá -lo embora do rancho.

 — Era um vaqueiro comum — disse a outra com desdé m. — Você nã o teria sido feliz com ele.

 — Mais feliz que uma velha sem filhos — rebateu tia Rosina com um toque de rancor. — E agora nã o estaria casada com uma lembranç a, como você diz.

 — Nã o, mesmo. Seria apenas uma viú va de marido vivo. Quando o seu vaqueiro se cansasse dessas suas maneiras refinadas ia acabar procurando companhia nos café s, e você sabe disso, mana.

 Tia Rosina baixou os olhos e Ricki nã o pô de deixar de sentir pena da velhinha tã o suave, cujo romance com um vaqueiro tinha sido atrapalhado pela irmã dominadora e menos atraente. As duas eram extremamente semelhantes, mas aquela ponta de rigidez tornava Beatriz sempre menos interessante que a irmã.

 — O que achou desta parte da Andaluzia, srta. O’Neill? — tia Beatriz fazia perguntas diretas e ficava esperando a resposta como uma á guia. — Sendo inglesa deve achar difí cil se acostumar aos nossos extremos de temperatura.

 E aos extremos de temperamento, pensou Ricki.

 — Adoro o sol — disse Ricki, sorrindo. — Nã o sei se já soube, mas don Arturo concordou em reformar a piscina e a caseta para a gente. Os exercí cios aquá ticos serã o excelentes para Jaime.

 — A piscina e a caseta vã o ser abertas de novo? — exclamou tia Beatriz, trocando um olhar surpreso com a irmã gê mea. — Foi muito inteligente de sua parte persuadir Arturo a fazer isso. O filho de Leandro brincando justamente no lugar onde toda essa tragé dia começ ou! Suponho que você já deve ter ouvido alguma versã o da histó ria, mas foi lá que o velho señ or Cazalet encontrou o bilhete de despedida de Conquesta e teve um ataque cardí aco.

 Ricki murmurou que sim e numa fraç ã o de segundo toda a seqü ê ncia de acontecimentos atravessou sua mente, dando-lhe uma medida exata da extensã o da tragé dia dos Cazalet.

 — Quando sugeri a don Arturo que reabrisse aquele lugar — disse, tentando controlar-se —, nã o fazia idé ia de que seu pai tinha sofrido o ataque exatamente ali. Ele nã o me disse nada...

 — Nã o tem perigo deixar Jaime entrar na á gua? — perguntou tia Rosina, nervosa.

 — Nenhum — garantiu Ricki —, pois eu estarei com ele o tempo todo. Alé m disso, Jaime usará uma bó ia. Vai adorar a á gua. Nã o há com que se preocupar.

 — E difí cil nã o se preocupar, srta. O’Neill — disse tia Beatriz, carrancuda. — O menino escapou da morte no carro do tio e nã o seria nada bom que a enfrentasse de novo na piscina de Arturo — disse, voltando a cabeç a e levando um dedo aos lá bios, pois a porta da sala se abrira e os dois senhores avanç avam até elas.

 — Ele é um verdadeiro artista com a capa — proclamava don Enrique. — Faz a verô nica com uma ousadia que nã o vejo há muitos anos, deixa os chifres do touro tocarem a seda vermelha!

 — Já vi uma verô nica mais ousada — disse don Arturo, lanç ando um olhar significativo a Ricki. Passou por ela e foi se encostar ao má rmore negro da lareira. — E entã o, tias, aprovam a escolha da enfermeira de Jaime? Ela é como você s esperavam?

 — É muito jovem, Arturo — disse tia Beatriz com um gesto de ombros —, e você sabe que, na minha opiniã o, um homem seria melhor para o menino. Por que foi que você resolveu assim de repente empregar uma moç a?

 Fez-se uma pausa incô moda. Don Arturo limitou-se a levantar as sobrancelhas arrogantes e don Enrique salvou a situaç ã o, falando do alto da cadeira onde se havia instalado.

 — Beatriz, você está azedando com a idade. E Rosina está melando — disse, impaciente. — O menino precisa de uma mulher jovem a seu lado. Algué m com quem ele possa cantar e chorar e que lhe dê o afeto que lhe dava a mamita.

 Ricki sentiu faltar-lhe o ar e nã o conseguiu evitar um olhar a don Arturo. Ele parecia bastante controlado, mas as chamas de seu temperamento forte iluminavam seu perfil, revelando-se na tensã o com que apertava os lá bios.

 — Enrique... — disse tia Rosina, abanando-se nervosa com o leque. — Acho que deví amos convidar Jaimito e a srta. O’Neill para passar uns dias no rancho. Podí amos ir até Sevilha. Acho que eles iam adorar uma visita ao Alcazar.

 — Gostaria de visitar nosso rancho, srta. O’Neill? — perguntou Don Enrique. — Nã o seria cansativo para o menino?

 Sem saber o que responder, Ricki achou melhor perguntar a don Arturo. Voltou o rosto para ele, olhando-o interrogativamente.

 — Se acha que Jaime pode viajar — disse ele, percebendo a indecisã o dela —, por favor, aceite o convite.

 A voz dele era fria e distante, mas ela adoraria conhecer o rancho dos Salvadori e a mudanç a de ambiente certamente faria bem a Jaime.

 — Seria adorá vel — disse. — E agradeç o muito o convite.

 — Vamos visitar as tiendas, srta. O’Neill — disse o velho espreguiç ando-se, satisfeito, um charuto oloroso entre os dedos. — O lugar onde se testam os touros. Você vai gostar. Nã o é nada cruel com os animais. Alé m disso, vou fazer setenta anos e daremos uma festa. A moç a inglesa vai aprender a danç ar a Angelina.

 — Já ouvi falar. — Ricki sorriu, simpatizando ainda mais com o velhote de cabeç a branca e tapa-olho. — É uma espé cie de quadrilha, nã o?

 — Isso mesmo. E é alegre como o primeiro amor, nina — contou, entusiasmado, derrubando cinza do charuto no paletó de seda e ignorando a censura da irmã Beatriz. — Fazem-se as rodas, os rapazes e moç as se alternando nas posiç õ es, a mú sica começ a e olé!, a gente danç a. Arturo, vá para o piano e toque uma mú sica de Angelina para a srta. O’Neill.

 — Gostaria de ouvir? — perguntou don Arturo, encarando Ricki.

 — Muito, señ or. Eu adoro mú sica.

 — Entã o eu toco!

 Fez um gesto, como se lhe fosse indiferente ela gostar ou nã o de mú sica, e caminhou para o piano. Ricki acompanhou-o com o olhar, pensando que ele era o homem mais frio e mais defendido que já conhecera na vida. O que será que os Salvadori pensavam dele, de verdade? Será que se preocupavam pelo fato de don Arturo ser o tutor legal do menino? Parecia possí vel, a julgar pelas maneiras de tia Beatriz.

 Don Arturo correu os dedos pelo teclado como se precisasse exercitá -los depois de longo tempo sem tocar. Logo soou a mú sica enchendo o ar de seu compasso primitivo. Don Enrique marcava o ritmo com palmas, incentivando Ricki a imitá -lo, mas ela sentia vergonha daqueles olhos negros e irô nicos de seu patrã o. Pô s-se a imaginar se aquele xale de seda que pendia do piano teria pertencido à avó inglesa. Quase podia ver a cena. Arturo ainda menino, sentado sobre uma pilha de partituras para alcanç ar as teclas, aprendendo as escalas e olhando de vez em quando para a avó, buscando aprovaç ã o.

 — Arturo vai tocar agora uma canç ã o que a avó dele adorava — disse tia Rosina, assustando Ricki sem querer. — Ela també m era inglesa. Como você.

 — Conheç o essa canç ã o — respondeu Ricki baixinho.

 — Entã o cante para nó s — pediu tia Rosina.

 — Oh, nã o! — disse em voz alta demais, despertando a atenç ã o de don Arturo.

 — Vamos lá, nã o seja tí mida — disse por cima do piano. — Já ouvi você cantar antes.

 — Mas aquilo era diferente. — Corou fortemente diante dos olhares da famí lia Salvadori.

 — A srta. O’Neill acha que vamos ser mais duros do que Jaime, em nossa crí tica — brincou ele. — Os ingleses sã o uma raç a incrí vel, nã o?

Os homens ousam o diabo nos campos de batalha e as mulheres sã o as mais inteligentes do mundo. Mas nenhum deles pode suportar a idé ia de serem surpreen-didos em alguma atitude sentimental. Preferem parecer frios do que apaixonados.

 — É preferí vel ser reservado do que frio de verdade! — disse Ricki, tentando vingar-se de Arturo.

 — Nunca desafie um espanhol... — disse ele, encarando-a com as sobrancelhas levantadas — se nã o estiver preparada para enfrentar as conseqü ê ncias.

 Ricki ficou remoendo as implicaç õ es dessas palavras até que ele terminou de tocar e levantou-se, fechando a tampa do piano.

 — Pronto, já fiz o meu papel nesta festa — disse, levantando-se.

 — Mas eu sei que você tocava horas e horas quando Irena Marcos vinha para cá — disse tia Beatriz. — Ela inspirava mais do que nó s, nã o é, Arturo?

 — Você s sã o sempre estimulantes, tia. Mas Irena é uma cantora excepcional e é sempre um prazer acompanhá -la.

 — No piano e em outros lugares també m — insinuou tia Beatriz, intrigante, mencionando a belí ssima cantora lí rica portuguesa que visitava a granja de vez em quando e que Sophina já havia mencionado a Ricki em outra ocasiã o. — Irena virá para a granja?

 — Eu nã o me surpreenderia se o carro dela entrasse pelos portõ es qualquer dia desses — disse don Arturo, impessoal. — Aceitam agora um pouco de café e conhaque?

 — Seria ó timo antes de a gente ir embora — disse don Enrique, examinando Ricki com seu olho perscrutador.

 — Fins de festas sempre me deixam meio triste — lamentou tia Rosina.

 A irmã rebateu imediatamente dizendoque era infantil apegar-se a prazeres já terminados. Ricki, porem, compreendia o sentimento de tia Rosita e sorriu para ela.

 — Logo, logo, vamos ter a minha festa lá no rancho — disse don Enrique, consolando Rosina. — Vai ser divertido preparar tudo. E para nó s, velhos, vai ter a novidade da presenç a de Jaime e da srta. O’Neill.

 — Jaime vai ficar entusiasmado quando eu contar — disse Ricki. — Su abuelito é a coisa mais importante do mundo para ele.

 Formou-se imediatamente um silê ncio pesado. Ela tinha escolhido mal as palavras e mordeu os lá bios, nervosa. Foi um alí vio quando Alvarez entrou, trazendo o carrinho de café. Tia Beatriz servia as xí caras enquanto tia Rosina falava sem parar, tentando aliviar a tensã o que se havia formado. Quando don Arturo parou ao lado de Ricki ela sentiu os olhos dele queimando sobre ela, mas nã o ousou encará -lo.

 Pensava se, inconscientemente, nã o teria desejado magoá -lo... Se é que ele havia se magoado.

 Antes de irem embora as tias quiseram dar uma olhadinha em Jaime que estava, é claro, de olhos bem abertos. Ricki deixou as gê meas uma de cada lado da cama, mimando o menino, e desceu correndo para avisar don Enrique que ele estava acordado.

 — Ah, entã o vou subir para conversar um pouco com ele — disse o velho, satisfeito, correndo para as escadas e subindo os degraus, de dois em dois.

 Ricki observava-o pensando que ele devia parecer um pirata quase legendá rio para o neto adorado, quando a voz de don Arturo soou a seu lado.

 — Está imaginando por que é que Jaime vive aqui comigo em vez de morar no rancho do avô, nã o?

 — Porque o señ or é o seu tutor perante a lei — disse, voltando-se lentamente e encarando-o. — Mas, em termos de saú de e cuidados, Jaime talvez se sentisse mais feliz na companhia do avô.

 — Jaime é um Cazalet — disse ele, firme. — Aqui é o seu lugar, na granja.

 — Mas, señ or, se uma crianç a é infeliz... Oh, nã o quero dizer que Jaime seja maltratado. Ele recebe todo conforto e atenç ã o, mas as crianç as sã o diferentes e... e, da mesma forma que os adultos, tê m també m os seus preconceitos e manias...

 — Entendo tudo isso e agradeç o sua preocupaç ã o pelo menino. Mas nã o voltarei atrá s em minha decisã o — disse, arrogante.

 — Señ or...

 — Perde seu tempo, srta. O’Neill. Sei perfeitamente o que estou fazendo e devo acrescentar que a señ orita se deixa levar pelo coraç ã o. Jaime seria mimado em excesso naquele rancho, com as tias fazendo todas as suas vontades. Antes de mais nada, quero criar um homem, srta. O’Neill, um homem com senso de responsabilidade.

 — Mas... vai deixar que eu o leve visitar o rancho? — perguntou, sentindo-se esmagada pela vontade fé rrea daquele homem.

 — Nã o sou um monstro num castelo, señ orita. E, quando faç o uma promessa, nã o costumo quebrá -la.

 Ela corou ligeiramente e o nervosismo do momento fez com que derrubasse o lenç o de chiffon que tinha na mã o. O pano fino oscilou no ar e caiu sobre o escudo de pedra do chã o do hall e que representava o sí mbolo familiar dos Cazalet.

 Era uma boa desculpa para escapar dos olhos negros de don Arturo e ela se abaixou. Mas ele abaixou-se també m e seus olhares se encontraram e suas mã os se tocaram ao tentarem juntos apanhar o lenç o. Ricki retirou a mã o, como se tivesse tocado numa chama, e pô s-se de pé com o coraç ã o aos saltos. Achou que tinha sido por se levantar depressa demais, mas no fundo sabia bem a verdadeira razã o!

 Era uma mistura de medo e fascinaç ã o... Era impossí vel negar que aquele homem possuí a o magnetismo sutil dos nobres de antigas e orgulhosas dinastias. Ela sabia també m que enfrentava um homem implacá vel, que jamais voltaria atrá s numa resoluç ã o!

 Os Salvadori desceram do quarto de Jaime e Alvarez trouxe-lhes os agasalhos. Don Enrique aproximou-se e cochichou para Ricki.

 — Contei para Jaimito que você vai levá -lo nos visitar. Os olhos dele brilharam! Ficou assanhadí ssimo.

 Ricki sorriu pensando em como aquele velho rancheiro era tã o mais juvenil que don Arturo, que tinha menos da metade da idade dele. Acompanhou don Enrique até o pá tio onde seu enorme carro esperava com os faró is acesos. O ar da noite estava frio e Ricki cruzou os braç os para se esquentar enquanto conversava com o avô de Jaime.

 — O chico tem paixã o pelos vaqueiros e eu prometi que eles vã o fazer um rodeio quando ele vier ao rancho. Que pena...

 O velho rancheiro interrompeu-se com um suspiro e virou-se para ver se as irmã s já estavam prontas. Ricki levou um susto quando as franjas sedosas caí ram sobre seus ombros. Era o lindo xale de seda que estava sobre o piano que don Arturo ajeitou sobre seus ombros, dizendo que ela podia se resfriar se ficasse ali no frio sem agasalho.

 Ela agradeceu baixinho e desejou em seu coraç ã o que nã o existisse sempre aquela nota ferina nas coisas que ele lhe dizia. De que será que ele nã o havia gostado? Do vestido, ousado demais? Ou do fato de ela ter-se dado tã o bem com don Enrique?

 Don Arturo beijou as mã os das gê meas e ajudou-as a subir para o carro.

 Don Enrique aproximou-se de Ricki e beijou as costas de sua mã o, piscando o olho malicioso de pirata.

 — Se eu fosse ainda o caballero da minha juventude, srta. O’Neill, beijaria a palma de sua mã o.

 — É mesmo? — perguntou ela, topando o jogo e sorrindo. — Um beijo na palma da mã o é mais significativo?

 — Na Espanha é muito significativo. Somos um povo sutil, nina, e os nossos caminhos até o coraç ã o sã o muito mais impiedosos do que pode imaginar.

 — Um beijo na palma da mã o nã o me parece impiedoso — disse, brincando.

 — Entã o é porque nunca recebeu esse beijo de um espanhol. O que se pode dizer com esse beijo é mesmo demais para essas suas orejas diminutas. E, agora, fique com esse misté rio...

 Durante todo esse jogo Ricki estava consciente do olhar irô nico de Don Arturo e dos olhos duros de tia Beatriz. Finalmente a velhota nã o se conteve mais.

 — Nã o se esqueç a da sua idade, Enrique! Esse ar gelado faz mal para os ossos. Vamos logo — disse ela, pendurada na janela do carro.

 — Estou indo, minhas tortolas, estou indo! — E, voltando-se para Don Arturo, declarou com firmeza: — O menino está muito melhor, hombre. Nã o tenho dú vidas de que você o confiou à s mã os da pessoa certa.

 Ricki sentiu uma onda de prazer diante da sinceridade do velho. Ficou ali parada, um sorriso ainda pregado nos lá bios, olhando o carro se afastar. Ajeitou as dobras do xale que don Arturo havia colocado sobre seus ombros e ia se virar para entrar quando um pá ssaro cantou entre as á rvores, debaixo do cé u estrelado da noite. Era o primeiro rouxinol que ouvia na Espanha.

 — Que lindo... e um pouquinho triste! — disse baixinho.

 — Como a vida... e como o amor — respondeu ele com voz grave.

 Ricki prendeu a respiraç ã o e virou-se para entrar. Mas a virada rá pida a fez tropeç ar numa saliê ncia do calç amento e ela quase caiu. As mã os firmes e quentes dele a ampararam. Don Arturo a puxou contra o peito, apertando os braç os nus dela debaixo das franjas do xale. Ricki sentiu que o coraç ã o queria saltar-lhe pela boca, pois ele parecia disposto a provar, aqui e agora, que nã o se deve desafiar um espanhol.

 Apertou-a mais, como se fosse uma boneca que podia partir ao meio, se quisesse. Levantou o rosto dela, apoiando o dedo em seu queixo e examinando seus olhos. Nã o havia nem mesmo a sombra de um sorriso nos lá bios dele, mas Ricki notou algo vivo e vibrante nos olhos escuros.

 — Está cansada por causa da festa, ou perdeu a coragem, agora que está sozinha comigo? — disse ele em voz baixa.

 Ela sentiu vontade de rir na cara dele, de dizer que nã o tinha medo dele, mas nunca antes tinha estado tã o pró xima daquele corpo forte e flexí vel, envolto em misté rio que o ar perfumado da noite e o canto do rouxinol só faziam acentuar. Mergulhou naqueles olhos negros tã o intoleravelmente pró ximos dos seus... se ele quisesse, poderia beijá -la.

 — Tem medo de que eu a beije? — perguntou ele, rindo,

 — Oh, nã o! — Aquela ironia foi como um jato de á gua fria no rosto dela, que pulsava quente e tenso. — Tenho consciê ncia de que o señ or quer apenas me assustar...

 — Nã o se esqueç a, nina, de que foi você quem tropeç ou e eu a toquei apenas para evitar que caí sse. Será que mereç o toda essa desconfianç a?

 — Don Arturo, ningué m pode afirmar que o senhor seja um homem fá cil de entender. E eu, como mulher, prefiro terra firme do que areia movediç a.

 — Entã o é isso que sou para você? Areia movediç a? — As mã os dele agarraram-na mais forte um momento, depois a soltaram. — Como você é jovem! Sempre me esqueç o de que os ingleses demoram mais para amadurecer.

 Ele afastou um passo para que ela entrasse na casa. Ricki entrou rapidamente e ele a seguiu.

 — Buenas noches, señ or — disse formalmente, tirando o xale e entregando-o a ele. — Obrigada por uma noite muito interessante.

 — Buenas noches, srta. O'Neill! Para mim també m a noite teve os seus momentos...

 Ela nã o conseguiu evitar encará -lo ao ouvir isso, mas os olhos negros estavam mais impenetrá veis do que nunca e Ricki ficou sem saber se ele estava sendo sincero ou cí nico. Atravessou depressa o hall, os saltos batendo ruidosamente nos ladrilhos do chã o. Ao subir as escadas, seu ú nico pensamento era a visita que ela e Jaime fariam ao rancho dos Salvadori.

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.