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CAPÍTULO I



 

 Ricki O’Neill sentiu-se envolvida pelo fascí nio de Toledo assim que o ô nibus entrou na cidade e deslizou pelas ruas estreitas, sombreadas por casas de telhados medievais.

 Toledo, uma cidade construí da sobre degraus de pedra, banhada pelas á guas do rio Tagus e debruç ada sobre as sombrias planí cies de Castela, parecia perdida no tempo. Ricki notou que a maioria das casas altas de granito era cercada por pá tios murados. Lances de escadas desgastadas subiam para palá cios quase em ruí nas ou desciam para porõ es escuros com janelas gradeadas, atravé s das quais filtrava-se uma estranha e misteriosa melodia.

 O calç amento de pedra das vielas parecia ecoar ainda os passos de bolas ferradas, e qualquer risada mais alta fazia Ricki pensar em mascarados se preparando para festas, mantos ondulando ao vento, olhos escuros faiscando atrá s de má scaras de veludo. A velha Espana de faca no cinto e um brilho diabó lico no olhar enfeitiç ava ainda a atmosfera de Toledo e despertava em Ricki um desejo de aventura.

 O passeio por essa cidade histó rica, tã o antiga, encerrava suas fé rias na Espanha. Catorze dias que Ricki tinha adorado, apesar dos conselhos de seus amigos na Inglaterra, que achavam uma loucura ela viajar sozinha para um paí s estrangeiro.

 — Viajar sozinha para o exterior? Você deve estar brincando — tinham dito. — Nã o é nada divertido. Alé m disso, você já pensou em todos aqueles " gaviõ es" latinos?

 Poré m, quando Ricki, a Corajosa, resolvia alguma coisa, nada no mundo a demovia da idé ia. E tinha sido muito divertido!

 Agora, sentada a uma mesinha na calç ada, saboreava um café com a testa franzida, mergulhada em pensamentos. Antes de sair de fé rias tinha resolvido abandonar o hospital. A decisã o era fruto nã o de rebeldia, mas da consciê ncia de que nunca conseguiria adaptar-se a uma vida de rotina. Alé m disso, estava cansada das discussõ es com a chefe do departamento de fisioterapia.

 Ricki achava que um bate-papo e umas boas risadas podiam fazer bem aos pacientes durante o tratamento, mas a srta. Hardcastle nã o concordava com isso é vivia chamando sua atenç ã o.

 — Temos de respeitar uma rotina, senã o vira tudo confusã o — dizia. — Agora vamos, faç a a sua querida sra. Brown sair da cabina dos fundos: essa mulher pensa que está veraneando na Costa Brava cada vez que faz o banho de luz ultravioleta nas costas.

 Como gostava dos velhinhos, Ricki defendia o direito que tinham de sonhar. Mas, naquela tarde, compreendeu claramente que nã o queria mais ser dominada pela rotina, nem ter todos os seus pensamentos e aç õ es regulados por um reló gio na parede. Tinha se demitido rapidamente, sem se dar tempo para pensar sobre o assunto. " Quem pensa demais, nã o vai para a frente", costumava dizer o seu pai, que era irlandê s. À s vezes, a ponderaç ã o pode gerar timidez, num momento em que, na verdade, a gente quer é aventura.

 Voltando à realidade, Ricki mordeu o pã ozinho e distraidamente notou que as luzes da praç a começ avam a se acender. Seu pai tinha razã o e, agora que já era fisioterapeuta formada, poderia trabalhar por conta pró pria se quisesse. Seria interessante, sem falar no alí vio de nã o ter de agü entar a srta. " Dureza" chamando-lhe a atenç ã o por deixar os filhos entrarem junto com as mã es nas cabines de tratamento. Mas os coitadinhos ficavam tã o inquietos naquela velha sala de espera...

 Tia Meg e tio Jack tinham suas dú vidas quanto à sua demissã o do hospital, mas, por outro lado, nunca tinham entendido muito bem como ela podia ser tã o completamente diferente da prima Helen. A querida prima Helen, tã o sem imaginaç ã o, incapaz de entender como Ricki conseguia sempre se meter nas maiores confusõ es na escola. Ou como tinha conseguido quebrar o gelo e cair dentro do canal naquele inverno terrí vel. E por que cargas d'á gua tinha participado daquela passeata contra a bomba atô mica com todos aqueles estudantes rebeldes!

 — Se todo mundo ficar sentado no muro piscando para as coisas como gatos preguiç osos, o mundo nã o vai para a frente — respondera Ricki. —E foi divertido. Cantamos canç õ es de protesto, marchando pelas ruas. Lembre-se de que os lí deres eram padres e nã o arruaceiros...

 — O problema, Ricki — disse Helen, afetada —, é que você puxou à quele irlandê s maluco que é o seu pai.

 Ricki limpou o aç ú car dos cantos dos lá bios e sorriu para si mesma, pensando em seu pai. Ele era ator: o alegre e extravagante Tynan O’Neill, eterno sonhador grandiloqü ente, o mago que nunca se acomodava. Dez anos atrá s sua mulher tinha morrido de repente e ele tinha deixado Dublin, levando Ricki para morar com a cunhada, na Inglaterra. Ricki tinha doze anos na é poca e reagiu violentamente à idé ia de se separar do pai. Mas, pela primeira vez na vida, ele foi intransigente.

 — O meio teatral nã o é adequado para se criar uma mocinha — consolou a diante das lá grimas que empapavam seu ombro. — Vamos lá, meu bem, controle a cascata. É melhor para você ficar com a titia inglesa, muito melhor do que viver com um bê bado rebelde como eu.

 —Nã o é, nã o — protestara Ricki. — Ela é toda á gua-com-aç ú car e " lave as mã ozinhas, meu bem". Pai, você nã o pode me deixar aqui com essa gente que eu nem conheç o. Nã o pode!

 Tynan suspirou e abraç ou-a mais forte, pois havia uma profunda ligaç ã o entre ambos.

 — Eles vã o fazer de você uma dama — gemeu ele. — Ricki, meu bem, isso é o que a sua mã e gostaria que eu fizesse: entregá -la aos cuidados da irmã dela.

 Crianç as se adaptam com facilidade e os Grayson a tratavam muito bem, apesar de estranharem à s vezes sua personalidade tã o distinta da filha Helen. Com o correr dos anos Ricki passou a encarar o pai como uma crianç a indomá vel. Vez por outra se encontravam em Londres para almoç ar e assistir alguma coisa juntos, mas nunca se falou em morarem juntos. Tynan prezava demais a pró pria liberdade e Ricki nã o era do tipo de impor suas vontades, nem mesmo ao pró prio pai. Claro que Tynan se preocupava com ela, mas sabia que era feliz à sua maneira. E ela achava que ele deveria ter vivido na é poca pitoresca dos atores itinerantes.

 De repente, deu-se conta de que a praç a de Zocodover tinha se enchido de gente. O passeio noturno estava animado e, olhando o reló gio, viu que já eram quase sete e meia. Nossa, que tarde! Ainda queria visitar a catedral com suas torres gó ticas pairando acima dos telhados da cidade, pois no dia seguinte pela manhã estaria de volta a Madri e nã o teria outra oportunidade.

 Pagou a conta e levantou-se, apanhando a bolsa, mas de repente percebeu que estava ligeiramente deprimida.

 Suas fé rias estavam quase no fim. Atravessou a praç a e enveredou por vielas de calç amento irregular que levavam até a catedral, sentindo cada vez mais nitidamente uma grande tristeza por ter de deixar a Espanha. Gostava do povo, com sua maneira sisuda de sorrir e de sua enorme afeiç ã o pelas crianç as. É claro que havia " gaviõ es", mas, quando um deles atacava, bastava caminhar decidida na direç ã o do primeiro guarda-civil que aparecesse vestindo a inconfundí vel farda verde e chapé u napoleô nico.

 Depois de mais de uma hora, Ricki saiu da catedral, fascinada com a riqueza das esculturas, dos ladrilhos, das Madonas vestidas de brocados preciosos, cheias de jó ias pesadas. As ruelas já estavam escuras, iluminadas apenas pela luz mortiç a dos lampiõ es pendurados nas paredes. As portas e paredes das casas, impenetrá veis, nada revelavam de seus interiores. Ricki logo percebeu que nã o estava conseguindo encontrar a praç a alegre e cheia de gente, mas que, sem querer, tinha perdido o rumo num emaranhado de vielas soturnas.

 Sobressaltou-se e olhou em torno. Alguns gatos brigavam num beco sem saí da e Ricki pulou como se fosse um deles, assustada com o ruí do de uma lata de lixo caindo nas pedras da rua. Virou-se para retornar pelo mesmo caminho, mas seu coraç ã o quase parou: um vulto esguio deslizou sorrateiramente das sombras, parando debaixo da luz amarelada de um lampiã o. Ela entrou em pâ nico. Sabia, por instinto, que o homem era ou um tarado ou um ladrã o que provavelmente a vinha seguindo silenciosamente há algum tempo.

 Ele avanç ou, alongando a pró pria sombra na parede. Ricki se pô s a esmurrar uma daquelas portas pesadas. Mas nã o, era inú til esperar que algué m ouvisse suas frá geis batidas na madeira tã o só lida e, evidentemente, um grito nã o iria despertar nenhuma atenç ã o naquela parte da cidade.

 Ricki virou-se nos calcanhares, sentindo-se encurralada, e fugiu o mais depressa que pô de. Era veloz e estava de saltos baixos. Podia ter escapado, nã o fosse o pâ nico que a fez enveredar justamente pelo beco sem saí da onde os gatos disputavam algumas cabeç as de peixe. Eles fugiram assustados, passando por entre suas pernas, e Ricki soltou um grito ao tropeç ar na lata de lixo virada. Nesse momento sentiu um par de mã os agarrarem seu casaco de camurç a.

 Nunca sentiu tanto medo na vida, mas logo viu que o ladrã o queria mesmo era a sua bolsa e agarrou-se a ela decidida a lutar pelo que era seu. O medo e a raiva davam-lhe forç as. Chutou as canelas dele como uma fera, xingando-o de todos os nomes que sabia. De repente, um empurrã o mais forte atirou-a contra a parede. Gritou, mas a alç a da bolsa foi arrancada de suas mã os. Numa fraç ã o de segundo o ladrã o desaparecia nas sombras, levando a bolsa e deixando-a exausta e abalada.

 — Que boba! — murmurou para si mesma. — Uma verdadeira imbecil! — Lá se ia o ú ltimo dos seus cheques de viagem e mais algum dinheiro em pesetas. Pelo menos tinha tido o bom senso de deixar o passaporte e a passagem de volta trancados na mala, na pensã o. Perdê -los teria sido uma verdadeira catá strofe. Ficar sem dinheiro já ia ser complicado, pois a polí cia jamais recuperaria sua bolsa até o dia seguinte.

 Passado o susto, seguiu na mesma direç ã o do ladrã o. Seu coraç ã o ainda batia acelerado. As fé rias tinham sido perfeitas até aquele momento... e era muito irritante ter de concordar com os amigos quanto aos perigos de viajar sozinha. A ú nica soluç ã o é aprender judô, pensou Ricki, lembrando se da forç a do ladrã o.

 Minutos depois virou uma esquina e viu, aliviada, que tinha chegado a uma rua grande. Parou na calç ada, procurando algué m que pudesse lhe indicar o caminho para a praç a de Zocodover. As luzes de faró is iluminaram sua figura elegante. Voltou-se e um carro parou a seu lado. O motorista enfiou pela janela a cabeç a morena. Ricki fitou por alguns segundos aqueles olhos incrivelmente escuros, mas de repente, tomada de surpresa, assustou-se e atravessou a rua, correndo na direç ã o de uma lojinha.

 Vidros cheios de lí quido verde, marrom e vermelho vivo, brilhavam na vitrina da farmá cia. Agarrou a maç aneta e virou. Inú til, a loja estava fechada. Algué m agarrou-a pelos ombros e virou-a como se ela fosse uma boneca!

 Recortado pelas sombras e pelos reflexos coloridos da vitrina, o rosto do homem era forte e severo. As faces, a forma da testa e dos maxilares pareciam uma pintura de El Greco; a boca era austera, e os cabelos e sobrancelhas eram negros como a noite. Ricki sentiu o coraç ã o disparar e quase perdeu o fô lego: aquele rosto tanto podia ser o de um santo quanto o de um demô nio. Com os nervos já abalados, imaginou o pior!

 — Em algumas partes da Espanha é muito perigoso uma mulher sair sozinha depois do anoitecer — disse ele com voz profunda e sotaque carregado. — Você é turista e deve estar perdida, nã o?

 Imobilizada por aquelas mã os, mas com o coraç ã o ainda aos saltos, Ricki compreendeu, pelo uso correto do inglê s e pelas roupas elegantes, que aquele espanhol nã o era um cafajeste nem um ladrã o. Com voz trê mula admitiu que era turista e estava irremediavelmente perdida.

 — Parece perturbada — disse ele, fixando-lhe os olhos escuros e percebendo seu nervosismo. Sua voz era firme. — O que aconteceu? Algué m a incomodou?

 — Roubaram... minha bolsa — gaguejou —, numa daquelas ruazinhas escuras.

 — Você estava passeando sozinha por aquelas vielas? — Suas narinas se dilataram, e ele tinha um ar reprovador. — Deve ser inglesa, acostumada a fazer tudo o que lhe dá na cabeç a, sem pensar nas conseqü ê ncias.

 Num minuto aquele señ or altivo tinha conseguido dominar Ricki.

 — Eu... eu me perdi ao sair da catedral — justificou-se. — E, é claro, nã o esperava ser seguida no escuro e assaltada!

 — Por mi vida! Uma mulher passeando de noite sozinha é um desafio ao diabo. Por que nã o ficou junto com o resto de seu grupo?

 — Estou viajando sozinha — disse Ricki, muito digna. — Cheguei a Toledo há dois dias e nã o esperava passar por isso, señ or. Até agora seu paí s e quase todas as pessoas foram encantadores.

 — Alé m disso, os ingleses nunca sã o covardes, nã o é? — A boca severa relaxou num sorriso. Nã o era exatamente um sorriso, apenas um ligeiro mover de lá bios, deixando ver o brilho alvo dos dentes. — Se me disser em que hotel ou pensã o está hospedada posso levá -la de carro. Depois teremos de comunicar o roubo à polí cia. Havia muita coisa de valor em sua bolsa?

 —Cheque de viagem e algumas pesetas — respondeu. — Felizmente deixei o passaporte e a passagem na pensã o. Fica na Calle de Torres.

 —Muito bem. Estou em casa de amigos, pertinho da Calle de Torres; posso deixá -la lá. Vamos, señ orita.

 Ele a conduziu até o carro com a mã o em seu ombro. Era uma perua grande com painé is de madeira e estofamento bege. Acendendo a luz interna, o espanhol pousou o cotovelo na direç ã o e passou a examinar Ricki sentada a seu lado. O olhar dele era tã o direto que ela pô de enfrentá -lo sem se embaraç ar. Nã o era uma " cantada". Os olhos dele demonstravam claramente que nã o se interessava por ela como mulher, apenas como uma turista desgarrada que poderia ter evitado problemas se tivesse se compor-tado com o juí zo e a discriç ã o condizentes a uma señ orita.

 Como eram escuros aqueles olhos! Sem se dar conta, Ricki girava na ponta dos dedos o amuleto de viagem que lhe pendia de uma correntinha de ouro ao pescoç o. Seus cabelos eram castanhos, tã o escuros que pareciam pretos. Os olhos verde-musgo iluminavam o rosto fino. Apesar de extremamente feminina, tinha um ar de garoto, de moleque. Havia um toque de timidez agressiva em seu comportamento com os homens. Vestia casaco de camurç a marrom, debruado de verde-vivo, saia marrom e blusa cor de creme, com cinto també m verde. Os sapatos eram baixos, de camurç a marrom.

 " Filha de peixe, peixinho é ", e Ricki tinha herdado de Tynan 0'NeilI e de sua mã e inglesa uma rara mistura de traç os: a boca era delicada mas temperamental, e traduzia claramente sua personalidade.

 — Você me parece muito jovem para viajar sozinha pela Espanha — comentou ele. — Seus pais devem achá -la mais ajuizada do que você realmente é, a julgar pela demonstraç ã o de hoje.

 — Acontece que já tenho idade para votar. — Seu tom de voz era tã o altivo quanto seu porte. — Minha mã e já morreu, mas meu pai sabe que nã o precisa se preocupar comigo. Devia ter feito meu turismo durante o dia, concordo, mas vou deixar Toledo amanhã de manhã e queria muito visitar a catedral.

 — E a beleza da igreja a fez esquecer as horas, nã o foi? — Os olhos do espanhol brilharam, divertidos. — Você deve ter ficado sem dinheiro, nã o?

 — Ainda tenho o suficiente para pagar a pensã o; está escondido dentro de um pé de meia na minha mala — revelou. — Minha passagem de ô nibus até Madri já está paga, mas vou ter de fazer um empré stimo no consulado inglê s para pagar o navio que atravessa o canal para a Inglaterra.

 — Fala como algué m que nã o tolera a idé ia de depender de um homem. — Havia um toque de ironia em sua voz acentuado pelo sotaque carregado. — A independê ncia nã o deve ser a maior qualidade de uma mulher.

 — Sim, señ or, já percebi que aqui na Espanha quem canta mais alto é sempre o galo. — Os olhos de Ricki brilharam. — Isso talvez seja o normal, mas quando uma moç a escolhe uma profissã o que até poucos anos atrá s era exclusivamente masculina, acaba se acostumando a resolver tudo sozinha. E a gostar disso!

 — Ah, agora estou curioso. — Um brilho de interesse surgiu em seus olhos. — Onde trabalha?

 — Num hospital, señ or.

 — Muito interessante — disse, examinando com o olhar as mã os finas e sem jó ias dela. — Trabalho de homem, hein? Será que você é massagista?

 —Nã o só como també m — disse, admirada com a perspicá cia dele. — Sou fisioterapeuta.

 Ele respirou fundo, depois ligou o motor e uma certa estranheza emudeceu a ambos por alguns instantes. Com o rabo dos olhos Ricki examinou aquele nariz latino, arrogante, e o lá bio inferior cheio e sensual.

 — Ainda nã o me apresentei — disse ele de repente. — Meu nome é Arturo de Cazalet e mais vá rios outros tí tulos que você acharia muito confusos. Agora, por favor, diga-me como se chama.

 Ricki arregalou os olhos, examinando de alto a baixo aquele perfil. Tudo o que seus amigos super-protetores tinham dito dos homens latinos veio-lhe subitamente à cabeç a. Estava sentada no carro de um latino que, apesar de toda a boa aparê ncia e tí tulos de distinç ã o, podia muito bem ser um danado de um " gaviã o"!

 — Nã o... nã o creio que seja necessá rio me apresentar — disse friamente. — Olhe, já estamos chegando à praç a de Zocodover. Pode me deixar aqui...

 — Você vai se perder novamente... — brincou ele. — Esqueç a essas bobagens que está pensando. Perguntei seu nome, señ orita, porque tenho a intenç ã o de convidá -la para jantar e discutir um problema meu.

 — Realmente, señ or, eu... — Ricki nã o sabia o que pensar.

 — É, señ orita, realmente! — disse ele entre sé rio e brincalhã o. — Meu problema é com uma crianç a. E agora que sabe, acho que pode relaxar e parar de resistir. Vencer a resistê ncia de uma mulher é estimulante, mas requer o clima certo e disposiç ã o. Poré m, no momento, minha mente está ocupada com o problema de que falei. Seu nome, por favor!

 Ricki disse seu nome, respondendo à autoridade tã o prontamente quanto em seus dias de colegial. Ele repetiu o nome com um forte sotaque e examinou-a com um rá pido olhar.

 — Tem nome de homem — observou, parando o carro no estacionamento da pensã o dela.

 — Bem, o nome correto é Verô nica. Mas desde crianç a me chamam de Ricki. Eu era muito moleque, sabe?

 — Sei. — Novamente seus lá bios finos curvaram-se num ligeiro sorriso. — Verô nica é um nome interessante. Nã o sei se sabe, mas é assim que se chama um dos passes das touradas. Um passe complexo e ousado. Você també m parece ser assim: veio sozinho para a Espanha e nã o sentiu medo de vagar pelas vielas de Toledo.

 — Señ or Cazalet — disse Ricki, encarando-o ruborizada —, quem é o senhor, afinal, e o que quer de mim?

 — Possuo estâ ncias de oliveiras e criaç ã o de carneiros na Andaluzia — respondeu. — Poré m, nã o acho que este carro seja o lugar adequado para continuar-mos a conversa. Vamos entrar. Enquanto eu peç o o jantar e comunico à polí cia o roubo, você pode se lavar em seu quarto.

 Trata-me como crianç a, pensou Ricki, entrando na pensã o. O dono inclinou-se para don Arturo, e prontamente fez surgir um telefone. Batendo palmas ruidosas, convocou os garç ons para tomarem o pedido daquele nobre andaluz que aceitava todas aquelas atenç õ es com a suave naturalidade de algué m acostumado a elas.

 Meia hora depois Ricki desceu de seu quarto usando um vestido branco, pregueado, de mangas curtas e cinto verde combinando com os sapatos. A mesa tinha sido cuidadosamente arranjada numa alcova que mais parecia um nicho na parede. Don Arturo a esperava para comunicar que já tinha informado o roubo da bolsa à polí cia local. Seriam necessá rios vá rios dias para prender o ladrã o e, sem dú vida, ele teria tempo de gastar as pesetas e encontrar algum escroque que lhe trocasse os cheques de viagem. Don Arturo insistiu em saber se havia algo de valor na bolsa.

 — Um estojo de maquilagem decorado com trevos de jade — lamentou Ricki. — Seria possí vel encontrá -lo?

 — Talvez, srta. O’Neill. O inspetor de polí cia virá aqui mais tarde e você poderá dar a descriç ã o dos objetos perdidos. Enquanto isso, señ orita, sente-se, por favor. — Indicou o lugar com suas mã os finas e fortes como as das pinturas de El Greco, e Ricki deslizou para o banco junto da parede. Pensou em seus amigos na Inglaterra: iam ficar muito impressionados quando lhes contasse que jantara com um verdadeiro nobre andaluz que tinha lhe pedido conselhos sobre o filho.

 Enquanto ele falava com o garç om, Ricki aproveitou para examiná -lo: o terno cinza-chumbo era impecá vel e havia um cravo cor de vinho na lapela. Estranho que ele precisasse se aconselhar com uma desconhecida! Ele pareceu impressionado quando ela contara que era fisioterapeuta. Talvez o filho dele estivesse em convalescenç a ou se recuperando de algum acidente e ele quisesse discutir com ela os sintomas para ter uma opiniã o abalizada. Era possí vel, mas imprová vel, pois os mé dicos espanhó is eram

bons e este homem parecia suficientemente rico para consultar os melhores. Poré m, sua experiê ncia no hospital havia-lhe ensinado que, quando se trata de filhos, os pais querem sempre saber as opiniõ es de todos.

 Arturo de Cazalet tinha dito que possuí a estâ ncias, portanto seu herdeiro deveria significar muito para ele. Ou talvez precisasse apenas de algué m para conversar, pois em seu rosto moreno e orgulhoso havia um ar de tristeza... ou seria amargura?

 Subitamente seus olhares se encontraram e ela baixou os olhos imediatamente. Notou que ele tinha no dedo um anel de sinete em forma de escudo e que suas abotoaduras eram de ouro. O escudo era prova de que ele pertencia a alguma famí lia tradicional e importante. Ricki ficou ainda mais confusa: o que um hidalgo tã o sofisticado poderia esperar de uma turista jovem e inexperiente como ela?

 — Parece curiosa, srta. O’Neill. Deve estar querendo saber por que a convidei para jantar. A resposta é simples, mas nã o deve ter-lhe ocorrido... Ah, nosso vinho! Vai ajudá -la a relaxar.

 A garrafa verde-escura vinha envolvida numa fina rede prateada e Ricki sorriu, encantada, os olhos brilhando, a cor das faces acentuada.

 — Meu pai diria que essa garrafa conté m o orvalho da manhã — disse. — Ele é irlandê s e tem um pouco de poeta.

 — Entã o é por isso que eu sentia em você um jeito das pessoas de Jerez — disse ele. — Há muitos anos algumas famí lias irlandesas se estabeleceram ali e até hoje os seus descendentes tê m olhos verde-musgo e esses reflexos negros nos cabelos. Estranho como nó s nos parecemos com o vinho: trazemos em nó s o aroma e o sabor das vindimas anteriores, nã o acha, señ orita?

 Inclinou a cabeç a e ela sorriu timidamente, comparando aquela conversa sofisticada com a de seus companheiros usuais: jovens rudes, alguns colegas de profissã o, os jogadores de futebol que moravam perto de seus parentes em Hendon.

 — Salud, señ orita de los ojos grandes! — disse ele, levantando o copo com um floreio. Beberam juntos. — É s bueno?

 — Muyfino, señ or — disse ela com o pouco espanhol que havia aprendido nos discos. Tinha conseguido entender que a chamava de " senhorita de olhos grandes", e pensou: Meu Deus, o que será que ele quer?

 — Ah, entã o você aprendeu um pouco de espanhol! — disse ele.

 O garç om serviu o primeiro prato: filé s de linguado recheados com uvas moscatel ao molho. Havia pratos separados com vegetais: batatas miú das, ervilhas e cenouras na manteiga. Desde crianç a, Ricki adorava cenouras e aquelas eram pequenas e doces.

 Ricki achou graç a quando ela e seu acompanhante tentaram pegar a pimenta ao mesmo tempo. Ele sorriu e estendeu-lhe o vidro.

 — Nã o, don Arturo! — disse com seu primeiro sorriso espontâ neo da noite. — A pimenta esquenta e é perigosa.

 — Será que olhos verdes já nã o sã o um sinal de perigo? — Um brilho divertido cruzou-lhe o olhar enquanto se servia do tempero. — O grã o da pimenta é pequeno, mas tempera o jantar inteiro. Ditado espanhol, señ orita.

 Ricki notou a ligeira ironia e perguntou-se se o outro estava insinuando ser ela o tempero do jantar dele.

 A comida estava muito melhor que no almoç o, o que a fez pensar que o cozinheiro tinha caprichado especialmente para aquele cliente especial.

 Ela encerrou a refeiç ã o com uma salada de frutas frescas, enquanto ele comia uma fatia de queijo forte.

 — Essas excursõ es de ô nibus devem ser muy malas, nã o? Uma mistura de paisagens, cheiros e sons, que deve ser muito confusa à s vezes. Você chegou a visitar o Museu do Prado em Madri?

 — Eu nunca deixaria passar essa oportunidade — respondeu ela. — Gosto sobretudo das pinturas de Murillo e de Goya.

 — Murillo era da Andaluzia por isso sua pintura é tã o quente. El Greco é perturbador. Nã o dá para olhar suas pinturas com calma, nã o? Você gosta das coisas quentes, alegres, encantadas. É bem evidente que a vida ainda nã o a tocou de verdade, apesar de ter uma profissã o e de já ter idade para votar. — Os olhos escuros brilharam.

 — Aprecio a profundidade das pinturas de El Greco, mesmo sentindo que sã o atormentadas — defendeu-se ela. — Nã o sou assim tã o infantil.

 — Nã o seja tã o defensiva a respeito da sua idade — disse ele. — A juventude é o melhor momento da vida e tenho certeza de que você deve ter adorado o teatro de marionetes do Parque El Retiro.

 Ricki suspirou. Como podia ser tã o transparente para os olhos daquele homem? Era evidente que ele conhecia o mundo e as coisas que podiam fazer uma mulher rir ou chorar.

 — Don Arturo — disse, mexendo o café e inclinando a cabeç a. — Por que me convidou para jantar?

 Sentiu o olhar escuro dele penetrá -la e fixou na mente aquele rosto feroz, refinado e amargo. Parecia saí do diretamente de uma tela de El Greco, faltando apenas as golas e punhos de renda e um brilho do aç o de Toledo para completar o quadro de uma personalidade aguda e á gil. Sentiu um pequeno arrepio e, na pausa que se seguiu, podia ouvir o tique-taque do reló gio antigo na parede e as conversas das outras mesas.

 — Con su permiso? — perguntou ele, tirando do bolso um charuto.

 — Esteja à vontade. Eu gosto do aroma — respondeu, nervosa.

 Ele acendeu o fino charuto com gestos firmes, recostou os ombros retos na parede de madeira da alcova, a cabeç a morena envolta em fumaç a.

 — Nó s, latinos, acreditamos muito nas maquinaç õ es do destino. Você nã o, srta. O’Neill?

 — Eu... eu tendo a ser supersticiosa.

 — Entã o vai concordar comigo. Acho uma sorte que eu, no momento em que preciso de uma fisioterapeuta, esteja em Toledo ao mesmo tempo que você. E, mais ainda: que estivesse passando no meu carro no exato momento em que você surgia da penumbra das vielas. Me parece que foi o destino que arranjou o nosso encontro, nã o pode haver outra explicaç ã o.

 Fez-se outra pausa silenciosa. Ricki nã o sabia o que pensar e, quando recobrou a voz, falou um pouco alto demais:

 — Precisa de um fisioterapeuta... Eu?

 — Sim, você. Por muitas razõ es, srta. O’Neill.

 Os olhos dele de repente pareciam de aç o: já tinha decidido o que queria. Ricki ficou tensa. Queria levantar e fugir, mas a mã o dele pousou sobre a dela, os dedos finos fecharam-se sobre seu pulso e ela se sentiu presa.

 — Você disse gostar da Espanha e do povo espanhol. Nã o tem nenhuma ligaç ã o pró xima com seu pai, senã o ele nã o teria deixado você viajar sozinha. A crianç a de que falei també m tem essas qualidades e creio que vai gostar de você. Teve muita experiê ncia com crianç as em seu trabalho?

 — Sim, tratei de muitas crianç as — disse. —Mas, don Arturo, o que me pede é impossí vel. Eu nã o posso ficar aqui e cuidar de uma crianç a absolutamente desconhecida...

 — Permita-me falar sobre o menino. — Os dedos finos se apertaram em seu punho. Ela nã o tinha escolha, teria de ouvir. — Estou certo que, depois de ouvir a histó ria de Jaime, seu coraç ã o falará mais alto. Minha estâ ncia é muito interessante. E na Andaluzia nã o crescem ervas daninhas, como diz o ditado.

 — Fala do solo ou do coraç ã o, señ or Cazalet?

 A pergunta saiu sem pensar. Ela sabia que a resposta poderia ser irô nica ou cortante, mas em vez disso ele se recostou na cadeira e semicerrou os olhos. Havia um ar de perigo em seu rosto, como um homem que se sentiu tocado em sua armadura. Ricki percebeu estar tratando com um homem que nã o admitia recusas. As discussõ es com mulheres, se é que havia outras mulheres, eram como poeira que devia ser espanada.

 — Jaime é meu sobrinho — disse secamente. — Isso já deve ser um ponto a favor dele, pois você estava achando que era meu filho, nã o? Tem sete anos de idade. Há dois anos sofreu um acidente de carro, em que seus pais morreram, e desde entã o está preso a uma cadeira de rodas. Seus pais eram meu irmã o Leandro e a mulher, Conquesta. Foi um milagre o menino ter sobrevivido, pois sofreu graves ferimentos na espinha. Dizem os mé dicos que talvez possa voltar a andar, mas até agora nã o há sinal disso. Se Deus fizer outro milagre, talvez volte a ser como as outras crianç as.

 Don Arturo cerrou os dedos da mã o esquerda, como se quisesse prender seu desejo. Seus olhos vagaram pela fumaç a do charuto.

 —A fé remove montanhas. Mas por alguma razã o, nó s, a famí lia dele, nã o conseguimos dar-lhe incentivo para se livrar de sua cadeira de invá lido. Se houvesse outras crianç as, uma irmã zinha, de preferê ncia, o menino nã o se sentiria tã o só em seu mundo de sofrimento. É claro que há outras crianç as na estâ ncia, mas sã o os filhos dos camponeses, que gostam de brincadeiras agitadas e rudes. Para Jaime resta apenas ser como um bebê num carrinho. Ele costumava chamar su mamita, a mã ezinha, mas isso já passou e agora gasta todo o seu tempo desenhando e colorindo as figuras.

 Um suspiro escapou de seus lá bios severos. Ricki sentiu-se tocada.

 — Nã o sã o desenhos alegres, señ orita. Mostram carros acidentados e pessoas feridas ou mortas. Tento motivá -lo a desenhar os animais da fazenda. Levo-o ao pomar quando as á rvores estã o floridas, na esperanç a de que essa beleza possa apagar o horror que está gravado em sua mente. Mas é inú til. Ele vive trancado em seu pró prio mundo, povoado de entes queridos mortos. Meu irmã o, pai do garoto, era um homem fascinante, e Conquesta, sua mulher, era muito bonita. Meu irmã o a chamava de Bellí ssima.

 Don Arturo esmagou o charuto no cinzeiro como se ele tivesse se tornado amargo. E continuou, controlando-se:

 — Meu sobrinho precisa de tratamento e de exercí cios que só podem ser aplicados por uma pessoa especializada. Já contratei vá rios fisioterapeutas nestes oito meses, desde que Jaime saiu do hospital, mas todos eles acabaram enjoados com a vida numa fazenda distante da cidade. O ú ltimo deles foi embora há quinze dias e vim para Toledo em busca de um novo. Mas ao chegar ao seu hotel, ele já tinha partido para outro emprego em Barcelona, deixando um recado em que cancelava o compromisso. Fiquei irritado e resolvi dar uma volta de carro para acalmar. Foi quando meus faró is iluminaram uma jovem turista que parecia perturbada. — Fez uma pausa, apertando os olhos, e concluiu, irô nico: — O perigo atrai as mulheres, como o queijo atrai o rato.

 — Nã o, nã o é verdade — protestou ela. — Eu apenas me perdi.

 — E eu a encontrei — disse, examinando com seus olhos agudos a ponta de tristeza no olhar dela. — Você, srta. O’Neill. pode dar a meu sobrinho tudo o que ele precisa. Está capacitada a ajudá -lo fisicamente e possui certas qualidades juvenis que poderã o ajudá -lo a sair de seu mundo de sombras. Por favor, aceite minha proposta e seja a compañ era de meu sobrinho.

 O pedido soava como uma ordem, pois ele nã o estava acostumado a pedir nada. Ricki teve de se esforç ar para agü entar o olhar fixo dele. Como recusar? E como fugir ao pró prio instinto de enfermeira e de mulher, quando havia uma crianç a que precisava de ambas? E agora, livre do emprego no hospital, podia perfeitamente aceitar o posto. Seu coraç ã o escolhia a crianç a, mas Ricki temia o homem diante dela.

 Havia nele uma arrogâ ncia que nunca tinha enfrentado antes. Ele representava um sistema feudal que atribuí a aos fazendeiros espanhó is um poder absoluto sobre seus empregados.

 — Entendo seu problema, don Arturo, e a histó ria do menino me emociona — disse. — Mas parto da Espanha amanhã e lamento nã o ter tempo para pensar em sua proposta...

 — Nã o gosto de evasivas — disse ele, irritado. — Você sente o fascí nio da Espanha, a originalidade deste meu paí s. E o salá rio é mais do que satisfató rio. Por que a hesitaç ã o? Algum noivo na Inglaterra que nã o pode ser abandonado?

 — Nã o, nã o é isso. Seria precipitado aceitar uma proposta de algué m que conheç o há apenas algumas horas...

 — Posso provar que sou don Arturo de Cazalet y Aguinarda e nã o um monstro qualquer que quer arrastá -la para as trevas — disse ele com humor. — O inspetor de polí cia pode me reconhecer e tenho amigos morando aqui perto que me conhecem há anos.

 —Por favor — Ricki corou —, nã o duvido de sua identidade, nem de sua sinceri-dade...

 — Entã o do que dú vida, señ orita? Acha que eu nã o seria um patrã o agradá vel? Deve estar acostumada a diretores de hospital que sã o rí gidos com a disciplina. Eu nã o seria tã o mau assim. Jaime ficaria sob sua inteira responsabilidade e eu nã o iria interferir em nada do que decidisse para ele. Acho mesmo que você teria muito mais liberdade na Granja de Ia Valle do que em qualquer hospital.

 Era perspicaz e quase a convencia, mas Ricki sentia que o homem diante dela trazia no sangue uma forç a que dizia: " Seja livre, mas pague o preç o! " Sua cortesia era fascinante e havia mesmo certa magia em seu sorriso, mas Ricki nã o conseguia acreditar que ele fosse confiar os cuidados de seu sobrinho inteiramente a uma mulher. E sua esposa? As mulheres de famí lias espanholas tradicionais eram famosas por serem muito dominadoras.

 — Os olhos verdes ainda estã o enevoados por perguntas — disse ele, servindo-lhe bebida. — Agora, prove isto. É ura conhaque destilado em meu paí s e põ e fogo nas veias. Depois, pergunte o que quiser.

 — O senhor deve ser muito dedicado a seu sobrinho — disse, provando a bebida. — Nã o tem filhos?

 — Nã o seria adequado a um homem ter filhos antes de ter uma esposa — disse secamente. — Você estava pensando em como seria a minha esposa e se se daria bem com ela, nã o?

 Ricki corou violentamente, mas achou que era conseqü ê ncia do conhaque. Ele riu de suas faces vermelhas.

 — Estranho como as inglesas, que sã o capazes de viajar sozinhas para o estrangeiro, ainda possam corar. As mulheres espanholas tê m uma espé cie de seguranç a interior que as impede de corar, mas sã o incapazes de enfrentar inspetores de alfâ ndega, câ mbio de moeda estrangeira, reservas em hoté is e turismo indepen-dente, sem ter algué m para conversar e se apoiar. Admiro sua iniciativa, srta. O’Neill, mas diga-me, você gosta mesmo de ficar sozinha e de contar apenas consigo mesma?

 — Uma moç a que trabalha tem de ser independente. Ainda mais num hospital...

 — E você pretende continuar trabalhando em hospitais?

 — Bem — disse devagar —, é uma maneira de adquirir experiê ncia. Mas confesso que gostaria de mudar. Creio que para um espanhol deve parecer estranho uma moç a querer ter uma carreira. Mas é muito ú til. É algo só lido em que se pode confiar. Quer dizer, nem sempre o casamento pode dar tudo aquilo que se espera.

 — Fala de coisas materiais? — disse ele, bebendo o conhaque.

 — Quero dizer que o casamento deveria bastar. Mas isso nã o acontece mais hoje em dia. Em meu paí s, pelo menos, Nã o sei como é aqui na Espanha.

 — Na Espanha també m — disse com um toque de ironia. — Se o casamento nã o tem uma só lida base de tolerâ ncia e compreensã o, ele desmorona. Os espanhó is, poré m, nunca se apressam em casar. A pressa talvez seja a razã o principal do fracasso. Nó s damos tempo ao tempo. O que é, sem dú vida, o melhor caminho para se começ ar uma sociedade. Inclusive esta que estamos discutindo. Srta. 0'NeilI, gostaria de passar um mê s na Andaluzia? Teria tempo de descobrir se nosso modo de vida e nosso clima lhe convé m. E, se sentir falta da vida da cidade...

 — Isso é o que menos me preocupa — disse ela, rindo. — A vida no campo me atrai muito. Quando era crianç a, fazia longos passeios pelas planí cies da Irlanda com meu pai. A gente empinava um enorme papagaio e colhia buquê s de flores para minha mã e. E perdi tudo isso quando mamã e morreu e fui morar com meus tios na Inglaterra — concluiu com um suspiro.

 — É um tesouro inestimá vel poder levar na memó ria recordaç õ es de algué m jovem e alegre — murmurou don Arturo. — Entende agora por que desejo o mesmo para Jaime?

 Ricki assentiu com a cabeç a, emocionada com suas palavras. Para uma crianç a é importante ter companhia e també m atenç ã o dos adultos. Mas don Arturo devia ser ocupado demais com as coisas da estâ ncia para poder brincar com o sobrinho. Pobre menino! A tensã o emocional da solidã o devia estar atrasando sua recuperaç ã o.

 Olhou para o tio do menino sentado do outro lado da mesa, ao mesmo tempo fascinada e temerosa diante da possibilidade de trabalhar para ele. Era um homem dominador que desafiava sua independê ncia juvenil. Sabia que poderia haver conflitos com ele, se aceitasse o trabalho.

 — Mas há um problema, señ or. Eu nã o falo espanhol tã o bem quanto o senhor fala inglê s.

 — Acha estranho um espanhol falar o inglê s fluentemente? — perguntou com um meio sorriso. — É costume na minha famí lia criar os filhos falando duas lí nguas. Há muitos anos temos negó cios com paí ses de lí ngua inglesa. Alé m disso, eu e Jaime temos sangue inglê s. Minha avó era inglesa, srta. O’Neill. E o menino foi criado por uma babá inglesa també m.

 — O menino fala inglê s? — perguntou Ricki, surpresa.

 — Claro que sim. Quando crescer ele vai trabalhar comigo e terá de viajar para o estrangeiro... — Don Arturo suspirou e fez um gesto expressivo. — Está vendo como falo? Sempre me esqueç o da possibilidade dele nã o se recuperar e ser incapaz de participar dos negó cios. A capacidade de andar existe, mas sua forç a de vontade está bloqueada. A pessoa certa, srta. O’Neill, poderia despertá -la.

 — Acha que sou essa pessoa, señ or? — disse, sé ria, encarando o rosto altivo e severo.

 — Eu espero que sim...

 Ricki respirou fundo... Podia tentar o emprego. Se nã o se desse bem com o lugar ou com as pessoas, don Arturo nã o iria prendê -la em seu vale.

 — Muito bem, señ or — disse, decidida. — Vamos tentar por um mê s e ver o que acontece.

 — Você poderá partir sem remorsos se nã o gostar da Granja de Ia Valle — disse ele depois de estudá -la por um longo instante com a cabeç a ligeiramente inclinada. — Aí vem o inspetor de polí cia para falar do roubo da bolsa. Seja generosa com o seu sorriso irlandê s, señ orita, pois o inspetor poderá ser de grande ajuda nas formalidades necessá rias ao seu trabalho na Espanha.

 Seu trabalho na Espanha! Ricki sentiu o coraç ã o apertar-se de angú stia e de excitaç ã o.

 Quando finalmente retirou-se para seu quarto, estava ainda apreensiva. A despedida de don Arturo ressoava em seus ouvidos. O que iria acontecer? A crianç a parecia ser muito infeliz e ela nã o podia deixar de sentir que as sombras que pesavam sobre Jaime nublavam també m o coraç ã o de seu tio.

 Seria acertado partir para uma fazenda da Andaluzia acompanhada de um homem que trazia nos olhos escuros e no sorriso tã o grave aquele peso de amargura?

 



  

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