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CAPÍTULO III



 

Ricki despertou com o ruí do da porta se fechando. Virou a cabeç a sonolenta e viu que a bandeja do jantar da noite anterior tinha sido substituí da por um copo com alç a. Sentou-se na cama e pegou o copo. Estava cheio de chocolate quente temperado com canela e coberto com creme de leite. Ricki gostava do sabor doce-amargo do chocolate espanhol, mas preferia começ ar o dia com uma boa xí cara de chá.

 Olhou em torno. Os fantasmas da noite passada tinham sido banidos pela luz do sol. Ouvia os ruí dos da fazenda lá embaixo, no pá tio, e assim que terminou de tomar o chocolate vestiu o penhoar, calç ou os sapatos de toureiro que comprara para usar como chinelos e foi até a janela. Olhou atravé s da grade trabalhada em ferro batido e entremeada com os galhos de uma trepadeira. Por alguma razã o sentia-se presa, aprisionada por Don Arturo de Cazalet!

 Essa impressã o ia se desfazer à luz do dia. Abriu as persianas e saiu para a varanda. Lá embaixo o pá tio estava cheio de homens e meninos ocupados, atrelando cavalos à s carroç as, tocando galinhas, espantando hordas de vacas para os pastos, compondo um quadro rú stico, agitado e colorido da vida andaluza.

 Depois de um delicioso banho quente, Ricki vestiu uma blusa cor de pê ssego com saia xadrez. Começ ava a pensar no café da manhã quando ouviu um toque e a porta se abriu. Sophina entrou com uma bandeja onde havia pã o fresco, dois ovos quentes das galinhas da granja e mel produzido ali mesmo.

 — Que lindos ovos, escuros... — Ricki sorriu, sentando-se à mesinha junto da janela. — Assim, vou ficar mal acostumada.

 — Ordens do patró n: tratar bem a señ orita. — Sophina serviu o café, pousou o bule e virou-se. — Agora vou ver o nino.

 — Ele já sabe que estou aqui? — perguntou Ricki, mexendo o aç ú car no café. Nã o tinha gostado de saber que o patró n mandara tratar bem a señ orita. Era empregada contratada e nã o esperava nenhum tratamento especial.

 — Jaimito sabe que vai ter um novo terapeuta, mas o patró n pediu para nã o contar que era uma moç a inglesa. Quer fazer-lhe uma surpresa. — Sophina foi até a porta e voltou-se, examinando Ricki com seus maliciosos olhos ciganos. — Acho que ele vai achar a señ orita uma crianç a, como ele. Vai pensar que está aqui para brincar e nã o para cuidar dele.

 — Talvez seja isso que ele precise... — disse Ricki, quebrando a casca de um ovo — algué m para brincar.

 — Veremos! — A voz de Sophina soou como um desafio.

 — Pelo que sei, parece que os outros fisioterapeutas nã o deram certo — disse Ricki. Mas sentiu imediatamente nos olhos da guardesa que nã o devia ter dito aquilo. Nã o se diz algo assim a uma experiente mã e espanhola sem torná -la sua inimiga! Ricki sentiu que devia ter mordido a pró pria lí ngua.

 — Vou acordar o menino e servir o café da manhã. Pelo menos disso acho que sou capaz! — Sophina sacudiu o avental e saiu, fechando a porta com firmeza.

 Ricki deixou-se ficar um longo instante encarando o bule de café, depois encolheu os ombros e continuou a comer. O sol estava brilhando e sua natureza nã o era pessimista. Poré m, antes de ir para o quarto de Jaime, prendeu entre os dedos o amuleto que seu pai lhe havia dado ao levá -la para a Inglaterra, abandonando o lugar e as pessoas que amava em crianç a.

 — É um amuleto de viagem — tinha dito seu pai, prendendo a corrente em seu pescoç o. — A vida é uma longa viagem e você vai descobrir que de vez em quando haverá encruzilhadas em que terá de escolher uma estrada ou outra. Nada, nem ningué m, pode nos indicar a direç ã o a seguir e só a sorte ou o azar é que nos fará escolher. Você e eu somos verdadeiros gaé licos, Ricki. Mergulhamos de cabeç a, sem pensar nas conseqü ê ncias. Por isso estou lhe dando este amuleto. Para que um pouquinho de sorte esteja sempre com você quando precisar.

 O amuleto era um trevo de prata que Ricki usava permanentemente no pescoç o. Tinha o há bito de tocá -lo sempre que precisava de proteç ã o. E naquele momento fazia-a lembrar-se do pai. Que diria ele, o querido Tynan O’Neill, quando lesse a carta e soubesse que ela estava na Espanha, trabalhando como fisioterapeuta do sobrinho de um senhor de terras andaluz?

 Diante da porta de Jaime parou um instante, respirou fundo, abriu e entrou...

 — Meu Deus! — exclamou. Havia uma metade de melã o caí da numa poç a de chocolate, biscoitos e talheres espalhados pelo tapete. A bandeja e o copo haviam sido recolhidos e estavam sobre a mesa-de-cabeceira. Detrá s da cama do menino, don Arturo a encarava com suas feiç õ es rijas como se fossem de pedra.

 — Bom dia, srta. O’Neill! — Indicou com um gesto a confusã o pelo chã o. — Eu esperava que Jaime fosse recebê -la bem, mas, como pode ver, atirou a comida pelo chã o e agora nã o quer tomar banho e vestir-se.

 Nã o havia medo nem desafio nos olhos do menino encarando Ricki. Era um olhar vazio e desinteressado. Ele virou o rosto, o perfil moreno recortado contra a fronha alva. Nã o dava ouvidos à s palavras á speras do tio e tampouco se importava com a " surpresa" que Ricki seria.

 — Vamos — disse don Arturo, curvando-se sobre o menino, a boca tensa e nervosa. — Vamos, nã o é muito cortê s tratar assim a nova enfermeira. A srta. O’Neill vai pensar que você é um bebezinho mimado e nã o um señ orito de famí lia espanhola. Chico, vou colocá -lo sentado e você vai dizer buenos dias à señ orita. Vamos!

 As mã os de dedos finos estavam a ponto de agarrar o menino quando Ricki as deteve pela manga.

 — Seria melhor deixar-me sozinha com Jaime — sugeriu Ricki ousadamente. — Podemos nos conhecer à nossa maneira.

 Don Arturo endireitou-se e encarou-a, carrancudo.

 — Acha que a minha presenç a é a causa do problema?

 Ricki mordeu os lá bios e nã o respondeu. Era difí cil sustentar aquele olhar negro e penetrante. Don Arturo entortou os lá bios num sorriso, compreendendo o silê ncio dela.

 — Tem razã o, srta. O’Neill — disse, firme. — Acho que minha presenç a nã o é querida neste quarto. Muito bem, eu saio. Estou certo de que você conseguirá se aproximar de Jaime.

 Virou-se e marchou para a porta, curvando-se irô nico para ela antes de sair. Ricki respirou fundo, sentou-se à beira da cama, ao lado da figurinha rí gida de seu paciente.

 — Devo confessar que estou desapontada com a recepç ã o que me deu, Jaime. O que é? Nã o gosta da idé ia de ter algué m para conversar? Aposto que eu sei muito mais histó rias que os outros enfermeiros. Gosta de histó rias? — perguntou, tocando-lhe o ombro de leve.

 Ele evitou o toque, afastando o ombro, mas Ricki sentiu que nã o havia agressividade no gesto. Com gestos carinhosos virou-o de frente na cama.

 — Meu nome é Ricki. — Sorriu. — Será que você consegue pronunciar?

 O menino apenas piscou os cí lios longos e manteve a boca fortemente fechada. Ricki nã o insistiu. Caminhou até uma estante cheia de livros e notou, interessada,, que vá rios deles eram em inglê s: Histó rias das Cruzadas, A Bruxa de  mbar, A Casa de Asgard, A Conquista do Peru. Livros de letras grandes, pró prios para crianç as. Pegou um volume de Don Quixote e folheou deliciada as ilustraç õ es de Doré. O livro estava desbeiç ado, denotando muito uso. Deparou com o desenho de Don Quixote e seu gorducho escudeiro Sancho Panç a atacando um moinho. Deu uma gargalhada.

 — Já leu este livro, Jaime? — perguntou, retornando para a beira da cama e mostrando o volume.

 Ele resistiu um pouco, depois sacudiu a cabeç a.

 — Aposto que já sabe ler — disse ela. — Mas esta. ediç ã o é em inglê s e acho que deve ser meio difí cil para você entender todas as palavras. Um dia vamos lê -lo juntos. Tem partes muito engraç adas.

 — É do meu tio — murmurou ele. — Todos esses livros eram dele quando crianç a.

 — Ah, nã o me diga que é por isso que você nã o quer lê -los? Ele deve ter se divertido com eles e agora deseja o mesmo a você!

 Sua voz soava muito mais leve do que o que realmente lhe ia pela cabeç a. Ricki sentia que a antipatia que Jaime sentia pelo tio era algo mais sé rio que um capricho de crianç a. Sabia que ia ter de lidar nã o apenas com à s feridas fí sicas daquela crianç a bela e geniosa. Sentiu-se ligeiramente irritada, mas conseguiu controlar-se.

 — Eu tenho uma teoria sobre livros — disse. — Acho que eles ficam ainda mais interessantes quando já foram lidos e relidos por outras pessoas. Um livro novinho parece sempre meio duro e engomado e o tempo todo a gente fica tomando cuidado para nã o amassar as pá ginas e nã o deixar cair farelos de bolacha no meio das pá ginas...

 Jaime encarou-a, solene como uma corujinha, e aos poucos seus lá bios relaxaram.

 — Você é engraç ada — observou.

 — É, acho que sou — admitiu ela.

 — E seu cabelo é da cor das uvas maduras — acrescentou o menino.

 — E eu que achava todos os espanhó is muito galantes — disse ela, imitando a voz do pai. — Cabelo de uvas e a cara, entã o, deve ser de limã o.

 Jaime enrugou o rosto e por um breve instante sorriu, como se nã o estivesse acostumado a isso.

 — Acho que você é um gnomo — disse ele. — Sã o criaturas das florestas e sabem fazer encantos.

 — Gnomo, hein? — disse, imitando a pronú ncia do menino. — Bom, como dizem lá na Irlanda, as melhores amizades começ am com um bom soco no nariz. Agora, que tal ir para o meu quarto e tomar café lá enquanto eu limpo isto aqui?

 — Eu... eu nã o posso andar, señ orita. — E seu rosto se entristeceu outra vez.

 — A gente pega um tá xi — disse ela, sorrindo. Rolou a cadeira de rodas até a cama e com gestos seguros colocou-o sentado nela.

 Jaime a encarou com grandes olhos arregalados, como se nunca ningué m tivesse brincado assim com ele.

 — O que é um tá xi? — perguntou.

 — É um carro de aluguel que leva a gente onde a gente quiser. A bailes, a banquetes, ao cinema... — E continuou enumerando coisas aparentemente tolas, mas que faziam tanto sentido naquele momento. Levou-o ao quarto dela, tocou a campainha de serviç o e, quando um criado atendeu, pediu um ovo quente, pã o. manteiga e frutas.

 — Houve um pequeno acidente — desculpou-se, quando o homem trouxe a bandeja. — Jaimito derrubou a bandeja sem querer.

 Mas o criado, Alvarez, nã o pareceu acreditar. O menino sorriu e contou-lhe em espanhol o que tinha acontecido.

 — Por los puercos de San Antô nio! — exclamou Alvarez, sacudindo as mã os no ar. — Quê demô nio!

 — Ele disse que eu sou um demô nio — traduziu Jaime.

 — E está certo, rapaz. Sabia que existem milhares de crianç as que nunca comeram biscoitos nem chocolate? — disse ela, sacudindo o guardanapo. Colocou-o rio pescoç o de Jaime e descobriu um estranho objeto dependurado de uma corrente em seu pescoç o. — O que é isso, Jaime? — perguntou, examinando a peç a.

 — Meu amuleto contra doenç as — disse ele. — Foi bento por uma bruxa cigana que mora numa caverna nas montanhas.

 — Bruxas nã o existem! Quem foi que lhe deu isso? — Ricki era supersticiosa, mas achava que havia limites para tudo.

 — Sophina. Ela disse que ia me ajudar a andar de novo — respondeu, encarando Ricki com seus olhos enormes. — As bruxas existem, Ricki. Elas voam no meio das nuvens quando tem tempestade. Mas eu... eu nã o tenho medo de tempestade.

 — A tempestade molha a terra e é boa para as colheitas. Por que é que você nã o molha os " guerreiros" no ovo, Jaime? Eu sempre faç o isso quando nã o tem ningué m olhando.

 — É. Fica gostoso — disse ele, mergulhando o pã o na gema do ovo: — É o jeito inglê s?

 — Isso. O jeito inglê s — respondeu, distraí da. Ricki pensava naquele amuleto pagã o que Sophina havia pendurado no pescoç o do menino. A recuperaç ã o de Jaime nã o dependia nem de milagre nem de poderes da magia negra, mas, se ele fosse levado a acreditar nisso, nunca faria o esforç o fí sico e mental necessá rio para se livrar daquela cadeira de invá lido e caminhar sobre os pró prios pé s. Ela nã o podia chegar ao ponto de tirar o amuleto, mas Jaime ia ter de ser convencido de que a magia de uma bruxa

nã o ia conseguir curá -lo. Talvez ela mesma pudesse inventar alguma má gica para o tratamento. Dizer que a lâ mpada de raios infravermelhos era um olho má gico, por exemplo.

 — Agora os guerreiros atacam o castelo — murmurava ele, brincando sozinho. Com a colher esmagou a casca do ovo em pedacinhos. — E agora eles destroem tudo. Olé, a Casa dos Cazalet está destruí da!

 Ricki sentiu-se gelar ao ouvir o menino dizer aquilo. Seus dedos tremiam ao descascar uma laranja.

 — Eis os despojos de guerra — disse, estendendo os gomos ao menino. — Tê m de ser eliminados. Mas será que um cavalheiro Cazalet nã o tinha de atacar os castelos dos inimigos, em vez do seu pró prio?

 — Foi o castelo do señ or tio que eu destruí. Nã o gosto dele e nem desta casa — disse, com uma expressã o nada infantil nos olhos escuros.

 — Jaime! — Ricki estava chocada com a calma com que ele tinha dito aquilo. — Isso é muito feio de dizer. É uma ingratidã o. Seu tio gosta de você, sabia? E você devia tentar ser amigo dele. Por que é que nã o gosta dele?

 — Porque nã o — respondeu a crianç a. — E quando eu puder andar de novo vou sair desta casa e vou ser vaquero como era o meu pai.

 — Seu pai nã o era um vaquero — respondeu ela. — Era um caballero, igual a seu tio.

 — Meu pai montava a cavalo no rancho do meu avô — disse o garoto, os olhos brilhantes enfatizando ainda mais a semelhanç a com o tio. — Eu queria morar lá, mas don Arturo me faz ficar aqui porque ele sabe que nã o gosto.

 — Nã o acho que seja verdade, Jaime.

 Ricki estava perturbada com o ninho de vespas que inventara com aquelas histó rias de cavaleiros, castelos e inimigos. Tinha de cuidar da lí ngua.

 — Seu avô vive muito longe da estâ ncia? — perguntou. Agora tinha de ir até o fim e saber de tudo, se é que pretendia ajudar de alguma forma aquela criaturinha de olhos imensos.

 Descobriu que o avô do menino tinha um rancho vale acima, famoso pelos touros de tourada que criava e pelos vaqueros mais valentes. Conversaram sobre o assunto durante uma hora, enquanto ela submetia o menino a alguns exercí cios leves para testar sua musculatura. O acidente havia atingido seriamente alguns discos da espinha, que haviam sido operados a tempo. A espinha dorsal estava enfraquecida e Jaime nunca seria o vaquero que tanto sonhava, mas nã o parecia haver nenhuma razã o de ordem fí sica para ele nã o voltar a andar. Ele andaria de novo, resolveu Ricki para si mesma, dando um beijinho no ombro moreno do menino.

 — Você me beijou! — disse ele, arregalando os olhos, surpreso.

 — Beijei sim — respondeu, enquanto vestia nele a camisa listrada e a calç a curta. — Nã o vá me dizer que você é daqueles que nã o gostam de um beijinho.

 — Nã o — disse, pensativo. — Até que é gostoso.

 O coraç ã o de Ricki doeu ao surpreender no rosto do menino um toque de tristeza: ele devia estar-se lembrando dos beijos de sua mã e.

 — Muito bem, vaquero, eu vou descer para dar uma olhada por aí. Quer vir comigo? Podemos chamar Alvarez para carregar a cad... o cavalo até lá embaixo.

 — Nã o. Eu quero ficar aqui! — exclamou, decidido. Batia as mã os na guarda da cadeira, nã o como uma crianç a que quisesse acreditar que estava num cavalo de montaria, mas como um adulto, consciente de que era uma cadeira de rodas. Começ ou a falar rapidamente em espanhol. — Vou ficar aqui em cima e desenhar, Ricki. Prefiro ficar aqui — disse finalmente, em inglê s.

 Porque ali em cima seria mais difí cil de cruzar com o tio, pensou Ricki. Nã o pô de conter um suspiro, pensando no que ia ter de enfrentar naquela casa: remorsos passados e ó dios presentes.

 — Quer ficar desenhando aqui no meu quarto, naquela mesinha perto da janela? — perguntou.

 — Seria ó timo, Ricki. — Acariciou o braç o dela e olhou-a nos olhos. — Pensei que só os gatos tinham olhos verdes.

 — Ah, mas eu sou um gato — murmurou ela, empurrando a cadeira de rodas. — Sou um gato manso e sem rabo.

 Deixou-o rindo diante da janela e foi até o quarto dele apanhar os cadernos de desenho e os lá pis. Aproveitou para folhear o caderno e encontrou alguns daqueles desenhos de que o tio já havia falado. Eram tristes, amadurecidos, refletindo um trauma profundo e inesquecí vel.

 — Que tal desenhar uma coisa assim, Jaime? — Ela sentou-se à mesa e rabiscou durante alguns minutos. O resultado foi uma espé cie de carneiro com chifres subindo por umas pedras.

 — É um demô nio-carneiro! — Jaime riu. — Você desenha umas coisas esquisitas, Ricki.

 — É, você já disse que eu era engraç ada — disse Ricki, dando-lhe um soquinho carinhoso no queixo. — Que tal fazer uns bichos e uns vaqueros para mim, hein?

 — Precisa mesmo. Para você saber o que é um vaquero quando encontrar um por aí. E um carneiro també m — acrescentou, rindo.

 Que bom! Está aprendendo a rir, pensou Ricki.

 — Ah! Quase ia esquecendo! — Correu até a bolsa que estava na penteadeira. — Comprei uns doces para você em Toledo.

 — Quando Sophina esquece alguma coisa ela diz que a cabeç a dela é que nem uma peneira — disse Jaime, olhando os sacos de papel que Ricki tirara da bolsa. — O que é?

 — Olha aí, uns porquinhos de aç ú car e estes caramelos verdinhos. Estes aqui nã o sã o para engolir, você tem de chupar devagarinho.

 — Vou comer um destes — disse o menino, mordendo o rabo de um porquinho cor-de-rosa. — Estes aqui sã o gostosos e engraç ados. Mi gradas, mi tata.

 — Que quer dizer? — Arregalou os olhos verdes para ele, a bochecha estufada com uma bala.

 — Minha babá.

 O menino mergulhou timidamente o rosto no caderno de desenho e Ricki sentiu um nó tia garganta. Despediu-se e partiu para explorar o imenso e movimentado pá tio lá embaixo.

 O pá tio circundava toda a grande casa e Ricki queria encontrar algum lugarzinho agradá vel e tranqü ilo onde Jaime pudesse tomar sol. Nã o era bom para ele ficar tanto tempo dentro de casa e ela teria todas as manhã s em companhia do menino, uma vez que depois da siesta ele tomava aulas particulares com um certo señ or Andrè s.

 Segundo don Arturo lhe contara, ele era um artista que ganhava a vida como tutor de vá rias crianç as, filhas dos senhores de terra locais. Era da Andaluzia e tinha sido amigo do pai de Jaime.

 Ricki estava muito curiosa sobre aquele amigo de Leandro e desconfiava que ele podia ser responsá vel pela profunda antipatia que o menino sentia pelo tio.

 O pá tio tinha um forte cheiro de feno e os ruí dos variados dos animais da fazenda. Ricki descobriu um nicho na parede com uma velha imagem da Madona e uma fenda de pedra na parede que havia servido aos filhos da famí lia para afiar as espadas.

 Apesar do clima de tragé dia, havia certo encanto naquela fazenda do vale. Vá rias espé cies de pá ssaros faziam seus ninhos nos telhados e os pombos arruinavam nos grandes bebedouros de pedra perto dos currais. Jacarandá s, loureiros e trepadeiras floridas atenuavam a severidade da granja e a colunata em arcos que circundava a casa tinha um ar de mosteiro, lembrando um pouco as construç õ es á rabes.

 Ricki nã o resistiu e foi investigar a antiga torre de vigia que servia agora de armazé m de depó sito, cheia de sacos de grã os e sementes, blocos de alfafa e montes de feno seco, usado como combustí vel. Um enorme cachorro levantou a cabeç a quando Ricki olhou para dentro da porta e parecia tã o feroz que ela teve de se esforç ar para nã o sair correndo quando ele veio farejar seus pé s. Mas assim que falou algumas palavras o cã o baixou as orelhas, balanç ou o rabo e mostrou que era manso.

 O cachorro caminhou ao lado dela pelo vasto depó sito até uma portinhola em arco numa parede rú stica de pedra. A fechadura estava dura pelo desuso, mas a porta finalmente cedeu e abriu-se para uma espé cie de pomar meio abandonado. As á rvores frutí feras estavam secas, os caminhos de pedra cobertos de mato e os bancos e abrigos de pedra cheios de musgo.

 — O que é que temos por aqui, Sancho? — perguntou ela a seu companheiro canino.

 Levada pela curiosidade começ ou a passear pelo pomar, esquecendo-se de fechar a porta. Sentia-se como a menina que ousou penetrar no territó rio do terrí vel dragã o, que todos temiam. E que, no final das contas, tinha um coraç ã o de ouro.

 Quebrou uma haste de verbena — a planta má gica — e atravessou uma rede de galhos secos chegando a um tanque de ladrilhos no fundo do jardim. Parecia a piscina abandonada de alguma ninfa com a á gua coberta de folhas secas e pequenas flores flutuantes.

 A piscina era suficientemente grande para se nadar e, no entanto, tinha sido absolutamente abandonada. Era rodeada de plataformas de pedra onde se podia tomar sol, se as á rvores fossem podadas. O que seria aquilo entre as folhas? Ricki percebeu uma beirada de telhado por entre o emaranhado de folhas e galhos. Atravessando aquele labirinto, descobriu uma pequena casa, adorá vel, as paredes cobertas de alto a baixo com conchas do mar formando desenhos. Havia um arco de entrada decorado com conchinhas ainda menores e lá dentro uma fresca penumbra que fazia lembrar cavernas marí timas. Hesitou em entrar, mas Sancho, o cachorro que ela tinha acabado de batizar, tomou a iniciativa e ela o seguiu, temerosa.

 Lá dentro havia uma mesa de ferro, cadeiras combinando e duas janelinhas que deixavam entrar muito pouca luz por causa das á rvores excessivamente frondosas. Viu uma prateleira cheia de vasos de cerâ mica nos quais as plantas haviam morrido por falta de á gua. As almofadas estavam em farrapos e a poeira do chã o devia estar cheia de insetos.

 Ricki voltou para o ar livre, temerosa de ter despertado insetos, morcegos e eventuais fantasmas.

 Ali ficou algum tempo, olhando a casa de conchinhas e a piscina, tentando entender por que tinham sido abandonadas, quando sentiu o cachorro empinar as orelhas. Algué m se aproximava. Sentiu-se tensa, ainda imersa naquele misté rio, e quando se voltou deparou com don Arturo caminhando em sua direç ã o.

 A roupa preta e as sobrancelhas negras carregadas acentuavam sua expressã o de fú ria. E um tremor a percorreu quando ele se pô s diante dela.

 — O que faz aqui? — indagou. — Seu lugar é ao lado de meu sobrinho. Foi contratada para cuidar dele e nã o para passear pela granja como uma turista!

 — Nã o precisa me dizer o que já sei, don Arturo. — Sentiu-se enrubescer até as orelhas. Nã o gostava de ser repreendida como uma crianç a e a raiva dele apenas aumentava a dela. — Nã o precisa se preocupar. Nã o vou negligenciar os deveres para os quais sou paga, señ or. Estou apenas procurando um lugar tranqü ilo onde Jaime possa tomar sol e fazer exercí cios. O quarto dele nã o é adequado para isso e o senhor mesmo me autorizou a estabelecer um sistema de trabalho, sem interferê ncias.

 — Correto — disse ele, os olhos ainda brilhando. — Concordo que o menino precisa de sol e de ar fresco, mas isso nã o responde a minha pergunta. O que faz aqui, señ orita? Este lugar nã o serve para crianç as.

 — A porta nã o estava trancada — respondeu, sentindo o sangue incendiar-lhe as faces e o coraç ã o saltar dentro do peito. — Sinto muito se estou invadindo territó rio proibido, mas, se isto aqui é alguma espé cie de jardim do Barba-azul, seria melhor trancar aquela porta.

 — Você é bem impertinente, mocinha. — Suas narinas se apertavam e dilatavam e ele enfiou as mã os nos bolsos como se quisesse controlar a pró pria violê ncia. — Você tem a audá cia da sua raç a, srta. O’Neill, e essa é a ú nica razã o que a desculpa por estar aqui. Nada há que lhe interesse, como pode ver. Este lugar está em ruí nas e vou mandar emparedar aquela porta de entrada.

 — Mas tem uma piscina e aquela casinha tã o agradá vel — protestou Ricki. — Uma limpeza e uma reforma poderiam...

 — Isso está fora de cogitaç ã o! — disse rudemente, as faces encovadas. — A Caseta Conchilla, como era chamado este jardim, é apenas abrigo de ratos e morcegos. E a piscina gasta á gua demais. Estamos numa terra quente e seca, srta. O’Neill, nã o na Inglaterra. Quando chove aqui, a á gua da chuva evapora antes mesmo de chegar ao chã o.

 — O señ or economizaria á gua se eu dissesse que seria muito importante Jaime aprender a nadar? — Quando estava com raiva ou com medo, os olhos de Ricki ficavam verdes como esmeraldas, brilhando em seu rosto fino. O medo e a raiva já tinham passado, mas ela ainda estava excitada pela idé ia que tinha tido ao ver a piscina.

 — A flutuaç ã o na á gua dá enorme seguranç a à s pessoas que perderam o uso das pernas. Deslocar-se pela pró pria forç a, dentro da á gua, reforç a a autoconfianç a. Alé m disso, aumenta a forç a muscular. Acredite, señ or, uma piscina seria inestimá vel para a recuperaç ã o de Jaime.

 — Nenhum dos outros fisioterapeutas jamais mencionou isso — disse don Arturo sem mudar de tom nem de expressã o.

 — Talvez nã o se importassem o bastante...

 — Ou quem sabe nã o tiveram coragem, nã o? — Don Arturo encarou Ricki por um longo instante. — É um pedido difí cil, srta. O’Neill. E ousado. Reabrir este lugar...

 — Emparedar as memó rias é o mesmo que alimentar fantasmas — Ricki ousou dizer, ciente de que tinha despertado os fantasmas de Conquesta e Leandro. — Jogue fora as lembranç as junto com o lixo que se acumulou na caseta. Verá que o lugar há de voltar à vida com o riso de Jaime. Eu juro, señ or.

 — Você é muito convincente. E sabe, como uma bruxa, que o menino é o meu ponto vulnerá vel. — Silenciou enquanto olhava longamente em torno e voltou a encarar Ricki. — Devo preveni-la de que nã o é de bom grado que concordo com seu pedido. Mas vou fazê -lo, por causa da crianç a.

 — Muito obrigada, señ or. Tenho certeza de que nã o vai se arrepender quando vir os progressos de Jaime.

 — Se a piscina é importante, Jaime a terá. — Nã o havia nenhuma emoç ã o na voz dele, mas, como se temesse revelar seus sentimentos, desviou os olhos escuros. — Sabe que meus criados nã o vã o gostar nada de ter de limpar a casa e a piscina? Para eles este lugar traz mala suerte.

 — Estou certa de que mudarã o de idé ia quando as á rvores estiverem podadas e o sol penetrar aqui novamente. Agora parece um jardim de fantasmas, assustador!

 — No entanto, os fantasmas nã o a assustaram — disse devagar, encostando-se a um tronco de á rvore. — Se me lembro bem, há um ditado que diz que os puros de coraç ã o podem passar até mesmo atravé s do fogo, sem se queimar.

 — Isso eu nã o gostaria de tentar — disse ela, rindo.

 — Seu coraç ã o nã o é puro o bastante? — brincou ele. — Acha que seu temperamento forte e sua forç a de vontade a tornam inferior aos anjos, nã o?

 — Isso mesmo — respondeu, mas nã o sabia bem o que pensar daquela observaç ã o. Ele pró prio era bem temperamental e cheio de forç a de vontade, alé m de ser mais orgulhoso que Lú cifer! Examinou aquele rosto moreno que estudava a caseta e um verso de Keats cruzou-lhe a mente: " Tudo o que me lembra dela, atravessa-me como uma espada".

 Naquele momento, como se sentisse perigo na atmosfera, o cachorro voltou-se para Ricki e rosnou. Ela inclinou-se para agradá -lo, mas don Arturo interrompeu o gesto.

 — Como regra geral, nã o agradamos os cachorros aqui na estâ ncia. Eles servem para guardar a casa e os rebanhos e esse animal podia tê -la mordido, pois ainda nã o a conhecia.

 Ricki voltou o rosto para don Arturo e sentiu nos olhos negros uma fagulha de curiosidade.

 — Será que nada consegue abalar esse seu coraç ã o britâ nico? — perguntou ele.

 — Hoje em dia as mulheres já nã o desmaiam de medo... nem de ratos, nem de homens.

 — Ratos ou homens talvez nã o a perturbem, señ orita, mas acima de sua cabeç a há uma vespa voando agora. Se ela picar esse seu pescoç o tã o branco, garanto que vai doer um bocado. Deve ter vindo da piscina. Fique absolutamente imó vel.

 Don Arturo olhava fixamente o bicho que zunia acima da cabeç a dela e de repente, num gesto brusco e rá pido, agarrou-a e puxou-a de lado, carregando-a no ar. O bicho fugiu voando e ele indicou com um gesto seco que ela seguisse o caminho de pedras coberto de mato.

 Sentindo ainda a pressã o firme das mã os dele, Ricki correu para a porií nhola em arco. O pescoç o tã o branco, como ele tinha dito, estava vermelho agora e ela percebia os passos dele atrá s de si, leves e silenciosos como os de uma pantera. Abriu a porta depressa e sentiu-se aliviada ao sair novamente para o pá tio.

 — Vou correndo contar a Jaime da piscina — disse, sacudindo da saia alguns gravetos secos. — Obrigada por me salvar da picada da vespa. E por reabrir a piscina.

 — Por nada, srta. O’Neill. Se é para o bem de meu sobrinho... Levará uma semana ou mais para limpar tudo aquilo. Vai precisar de mobí lia nova para a caseta, nã o? Pretende fazer uma estufa de plantas?

 — Sim, se for possí vel, señ or. — Sentia-se meio inquieta, mas estava certa de que o sol e os risos de uma crianç a bastariam para afastar os fantasmas da que tinham estado ali por tempo demais, assombrando aquele homem, mantendo-o preso a lembranç as que era melhor esquecer.

 Pediu licenç a e afastou-se depressa, atravessando o labirinto de corredores que conduziam ao seu quarto. Era tudo meio escuro e misterioso, mesmo durante o dia, as janelas de vitrais lanç ando brilhos cor de â mbar, vermelhos e azuis nos retratos severos das mulheres Cazalet, orgulhosamente vestidas de brocado bordado e golas de renda engomada.

 Ricki se aventurou por vá rios quartos antes de encontrar o seu. Um deles continha uma enorme cama de casal que devia ter aterrorizado todas as noivas que entravam para a famí lia. Sorriu, fechando a porta diante daquele leito gigantesco, ornado de tecido escuro e guardado pelos sá tiros, faunos e dragõ es entalhados na madeira. Nossa!, pensou ela, seria preciso estar muito apaixonada para agü entar a primeira noite de nú pcias numa tal câ mara de horrores!

 Jaime ainda estava concentrado no seu caderno de desenhos quando Ricki o abraç ou de leve pelos ombros. O menino levantou para ela um sorriso grave, idê ntico ao do tio. Nã o cometia nunca o erro de desmanchar os cabelos de um garoto, mesmo quando se sentia tentada. Os meninos nã o gostavam disso e o engraç ado é que continuavam nã o gostando, mesmo depois de adultos. Nã o convé m arranhar a dignidade deles, pensou Ricki.

 — Gosta de surpresas? — perguntou, com seu sorriso maroto.

 Ele fez que sim com a cabeç a e seus olhos foram se arregalando à medida que Ricki lhe contava que, dentro de uma semana mais ou menos, teriam uma piscina para brincar e uma caseta onde ele poderia guardar seus livros, cadernos de desenho e lá pis, e até tomar as refeiç õ es, se quisesse.

 — Tio Arturo vai mandar arrumar a caseta e a piscina para nó s. Ele foi muito, muito bonzinho. Isso prova quanto ele gosta de você — disse, apanhando o caderno de desenho.

 Jaime apenas deu de ombros, absolutamente desinteressado pela consideraç ã o do tio.

 — E entã o? Você nã o fica contente? Já pensou como vamos brincar e nos divertir quando a piscina ficar pronta? — perguntou Ricki, tentando esconder sua decepç ã o.

 — Como é que eu posso entrar na á gua, Ricki? Vou afundar! — O menino piscou aqueles olhos enormes e ela teve de se controlar para nã o abraç á -lo. Tinha muita pena dele mas nã o podia agradá -lo muito ainda, porque ele talvez sentisse nisso um apoio à antipatia contra o tio.

 — Afunda, nada — garantiu. — Primeiro você vai usar uma bó ia de borracha; depois, aos poucos, você vai aprendendo, até poder nadar sozinho.

 — Será que eu aprendo a nadar mesmo... mesmo nã o podendo andar?

 — Claro.

 — É uma má gica, entã o — disse ele, maravilhado.

 — Nada disso, rapazinho. Você nã o vai precisar de nenhuma má gica para poder correr e cavalgar. Vai precisar é de forç a de vontade e confianç a em si mesmo. Você acredita em mim, Jaime?

 Encarou o menino, tentando forç ar uma resposta, um desejo de crenç a, mas ele suspirou e desviou os olhos. Procurando nã o se sentir derrotada ainda, Ricki folheou o caderno de desenho. Muitos dos trabalhos mostravam carros capotados e em chamas, com corpos humanos tombados pela estrada como bonecas quebradas. Eram bons desenhos, demonstrando talento, e Ricki percebeu que o menino recebia algum tipo de orientaç ã o artí stica do señ or Andrè s. Mas por que ele estimulava esse tipo de coisa?

 — Por que é que você desenha essas coisas, nenê?

 — Eu nã o sou um nenê — protestou ele.

 — Eu sei. Em espanhol se diria guapo ou mi amigo. É só uma expressã o de afeto, Jaime.

 — Quer dizer que... que você gosta de mim?

 — Isso mesmo... nenê. E agora vamos arrumar esses lá pis e esses papé is e nos aprontar para o almoç o. Quer comer lá embaixo?

 — Nã o! Quero ficar aqui mesmo — disse ele, agitando a cabeç a. — Eu sempre almoç o aqui em cima. E depois da siesta tenho aula com o señ or Andrè s.

 — Ah, o señ or Andrè s! — Os olhos verdes brilharam de curiosidade e irritaç ã o. — Quero muito conhecê -lo.

 Ricki nã o sabia ao certo se aquele homem era jovem ou velho. Nã o podia esperar muito de uma definiç ã o infantil, uma vez que trinta anos parecem idade bastante avanç ada para uma crianç a. Sentiu-se tentada a perguntar para Jaime assim mesmo, mas resolveu esperar e julgar por si mesma.

Seria acertado permitir que esse señ orAndrè s passasse horas diá rias com o menino? Claro que Jaime precisava ser educado, mas Ricki achava que teria sido mais acertado contratar um estranho, em vez de um amigo do falecido Leandro.

 — Você gosta do señ or Andrè s? — perguntou, quando se sentaram para almoç ar.

 — Ele é ó timo, você vai ver. Desenha muito bem e me ensina uma porç ã o de coisas.

 Como, por exemplo, pintar desastres de automó vel, pensou Ricki, abstraí da.

 Terminado o almoç o, Ricki estava acomodando Jaime para a siesta quando Sophina apareceu. A guardesa tinha estado ocupada com a pró pria famí lia durante a manhã e agora ia querer, sem dú vida, preparar Jaime para o cochilo da tarde.

 — Pode ir fazer sua siesta, señ orita. Deixe que eu cuido do nino.

 Relembrando o pequeno atrito que tivera com Sophina pela manhã, Ricki achou melhor nã o discutir.

 — Durma bem, guapo — disse ao sair. — Até mais tarde.

 A estâ ncia modorrava no enorme calor da tarde, mas Ricki sentia-se inquieta demais para dormir. Resolveu descer as escadas. Sem dú vida, isso devia ser uma falta de etiqueta na Espanha: passear durante o tempo da siesta. Mas ela nã o tinha de agir como señ orita, porque nã o era uma.

 Penetrou numa longa sala, muito fresca, com janelas ovais abrindo para o pá tio, cheia de tapetes coloridos espalhados como ilhas pelo assoalho brilhante. Seria a sala de estar? As paredes eram cor de marfim, povoadas aqui e ali por alguns quadros tipicamente espanhó is. Sofá s de vime confortá veis alternavam-se com cadeiras mais formais, o escudo dos Cazalet entalhado nos espaldares altos com suas í ris, falcõ es e cisnes realç ados em cores. Um xale de franjas coloridas decorava o enorme piano de cauda negro e um belo painel azul real fechava a lareira de pedra.

 Ricki olhava em torno devagar e, de repente, topou com a pró pria imagem num espelho emoldurado em ferro batido. Em seus olhos havia uma pergunta: quem naquele casa tocaria aquele piano tã o lindo? Seria don Arturo? Será que algum dia ele a convidaria para ouvi-lo tocar?

 Encolheu os ombros, afastando a idé ia de que ele algum dia fosse lhe demonstrar tamanha intimidade. Encolheu-se numa daquelas poltronas de vime cheias de almofadas e perdeu o olhar atravé s da janela. Lá fora, no pá tio, os ladrinhos brilhantes e os vasos de gerâ nios ardiam ao sol. Logo seus olhos ficaram pesados e ela cochilou.

 Cerca de uma hora e meia mais tarde, acordou assustada, espreguiç ou-se e massageou o pescoç o.

 — Que pena a Bela Adormecida acordar bem na hora em que eu ia lhe dar o beijo tradicional! — falou uma voz alegre, com forte sotaque espanhol.

 Ricki se pô s de pé num salto e notou um homem parado debaixo do arco de entrada da sala. O paletó pendia-lhe dos ombros como uma capa um sorriso compla-cente pairava em sua boca e os olhos castanhos brilhavam.

 — Permita que me apresente — disse ele, avanç ando para ela com um gingado que era uma mistura de bandido com dom-juan. — Meu nome é Alvedo Andrè s. Sou artista e professor de Jaime. Você é a señ orita inglesa, nã o?

 — Srta. O’Neill — respondeu, irritada por ter sido surpreendida enquanto dormia. Isso a colocava em desvantagem. — Jaime fala muito do senhor. Ele... ele o admira muito, nã o?

 — Ah, e você nã o aprova muito isso, hein, srta. O’Neill? — disse, frisando ironicamente o nome dela e examinando-a dos pé s à cabeç a. — Entã o é assim! Em vez de uma senhorita musculosa e masculina, don Arturo foi buscar uma moç a com olhos verdes de bruja.

 — Vamos esclarecer uma coisa desde já, señ or Andrè s. Eu nã o sou verde em tudo. Sou bastante madura com meu trabalho e nã o gosto de intromissõ es. També m nã o gosto de ser paquerada.

 — Você acha que eu ia tentar seduzi-la? — Sorriu, malicioso.

 — Talvez... visto que eu nã o tenho uma vasta musculatura e pareç o suficientemente jovem para ser ingê nua. — Como ainda nã o tinha tido tempo de conhecer o temperamento do homem andaluz, Ricki nã o sabia que sua ousadia despertava na verdade um brilho de interesse naqueles olhos castanhos.

 — A vida na granja vai, enfim, ficar mais interessante. — Sorriu de novo. — Ouvi dizer que as inglesas sã o temperamentais, mas fleumá tí cas. Uma combinaç ã o bem intrigante. Fogo sob o gelo, podendo derreter a qualquer momento.

 — Para quem conhece as inglesas só de ouvir falar, você fala a lí ngua muito bem — observou Ricki, formal.

 — Isso se explica — disse, pegando um cigarro de uma caixa sobre a mesinha e acendendo-o com o isqueiro em forma de cisne. Examinou o cisne antes de depositá -lo de volta na mesa e encarou Ricki, atravé s da fumaç a. — Conheç o os Cazalet desde crianç a. Meu pai era rancheiro em uma das fazendas. E eles cresceram falando as duas lí nguas, porque a avó deles era inglesa.

 — É, don Arturo já me contou. — Ricki sentou-se numa daquelas poltronas em forma de " S", sem saber que aquilo era um dos-a-dos, o sofá dos namorados de outrora.

 Alvedo Andrè s gingou até ela e ocupou o outro assento, de forma que ficavam face a face.

 — A vovó inglesa era professora de mú sica em Madri quando o avô de don Arturo a conheceu. Ele tinha viajado a negó cios e, quando voltou para a granja uma semana depois, trouxe-a com ele, já como sua esposa. — Os olhos brilharam, examinando Ricki. — Muito se fala sobre o noivado espanhol, mas se um homem da Andaluzia se apaixona, nã o perde um minuto para se apossar legalmente de sua amada.

 — Don Arturo nã o demonstra nada de seu lado inglê s — disse Ricki, pensativa.

 — Don Arturo nã o demonstra nada de nada — observou, atirando a cinza no assoalho encerado. — A mã e dele era de Castela e eles ostentam esse orgulho como uma bandeira. Os de Castela sã o frios, comparados com os andaluzos de sangue fervente.

 Um pensamento cruzou a mente de Ricki: don Arturo tinha amado intensa-mente... e, ao que tudo indicava, ainda amava a memó ria de Conquesta!

 — Pode-se respeitá -lo — continuou Alvedo —, mas nã o se pode amá -lo. O irmã o dele, Leandro, era o favorito do pai. Era o menino de ouro, brilhava. Era daqueles que nunca envelhecem, sempre alegres...

 — É, foi mesmo trá gica a morte dele e da mulher — observou Ricki, lembrando-se de algo que tinha lido num livro e que descrevia muito bem as maneiras daquele professor: os espanhó is do sul tinham mais vitalidade que os de outras regiõ es. E eram també m mais vingativos.

 — Você já sabe da histó ria toda? — perguntou Alvedo, semicerrando os olhos. —Don Arturo nã o gosta de falar no assunto, mas Sophina aprecia uma fofoca e sua cabeç a de cigana transforma tudo em grandes dramas.

 — Sei que Conquesta foi noiva de don Arturo e que você e o pai de Jaime eram muito amigos. Foi o que me contaram — respondeu Ricki, consciente de que aquele homem talvez escondesse ó dio por trá s da fachada de respeito a don Arturo.

 — Isso mesmo. Leandro e eu tí nhamos a mesma idade. Gostá vamos das mesmas coisas... Havia poucos como ele. Tinha o talle bizarro, como se diz por aqui, era galante, sedutor. Poucas mulheres resistiam a ele.

 — Mas você nã o acha errado ele ter tirado a noiva do irmã o do jeito que tirou? — perguntou Ricki, sem pensar.

 Alvedo respirou fundo e esticou os braç os pelo encosto da poltrona.

 — Tudo o que se tira de um Cazalet tem o seu preç o. Leandro pagou, nã o pagou?

 — Mas o desastre foi acidental! — exclamou Ricki. — Um acidente puro e simples, e nã o um castigo do destino.

 — Quem falou em destino? — disse ele, abaixando a voz, dramá tico. — Um homem muito orgulhoso perde a sua noiva adorada. Tã o linda, na verdade, que ela precisava se mover e falar para se saber que era humana. Parecia mais uma pintura, uma figura de Goya, ou de Renoir. Conquesta era uma obra-prima e a granja ia ser a sua moldura... O hall de entrada com seus painé is de madeira escura, esta sala de estar, a caseta de conchas onde ela brincava entre as rosas, rindo porque a gente tentava jogá -la na á gua. Era como um gato que odeia a á gua mas adora o sol, os reflexos de ouro brincando nos cabelos escuros...

 Levantou-se de repente e foi até a lareira apagar o cigarro. Quando se virou, Ricki o viu emoldurado pelo painel azul. Era um homem bonito, mas que nã o se destacaria numa multidã o. Nada tinha daquele enorme orgulho dos Cazalet, nem daquela forç a fí sica e mental que distinguia Don Arturo... e que talvez o tornasse algo assustador!

 — Na é poca, e ainda hoje se comenta isso, correram rumores. Que estranha coincidê ncia Leandro e a mulher terem morrido justamente no carro de don Arturo. Estranha demais para ser um acidente puro e simples como você diz.

 Os olhos do jovem espanhol cruzaram com os de Ricki. Ela sentia uma repulsa interior pelas insinuaç õ es do señ or Andrè s, mas lembrava-se agora da primeira impressã o que tinha tido de don Arturo em Toledo: um santo ou um demô nio?

 — Você nã o devia dizer essas coisas — disse devagar, sentindo-se subitamente tensa. — Don Arturo nunca deixou de amar Conquesta e perdoou os dois pelo que tinham feito...

 — Pobre señ orita inglesa — comentou Alvedo, percebendo a tensã o de Ricki. — Você logo vai ver que nó s, espanhó is, ainda somos medievais em nossas emoç õ es. As vinganç as ainda existem e sã o um costume... — Virou-se subitamente, percebendo uma sombra esguia no arco de entrada. Era don Arturo.

 — Buenos tardes, señ or — disse Alvedo, formal. — Está na hora da liç ã o de Jaime.

 O jovem professor partiu e Ricki se viu diante de don Arturo, a cabeç a nublada de dú vidas. Incapaz de encarar aqueles belos olhos escuros, Ricki levantou-se para sair.

 — Conversavam sobre arte? — perguntou com cá ustica ironia.

 — Sim, señ or — mentiu ela, incapaz de admitir a verdade.

 — Muito interessante. — Os lá bios dele curvaram-se num sorriso.

 Ricki estava ciente de que ele sabia que ela e o professor tinham falado sobre ele e sobre os rumores que corriam a seu respeito.

 



  

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