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CAPÍTULO II



 

 Quando se lida com algué m do porte de Cazalet, as formalidades oficiais parecem se resolver num mí nimo de tempo e com um mí nimo de esforç o. Assim, a permissã o de trabalho e de residê ncia na Espanha foi logo providenciada pelo inspetor de polí cia e Ricki logo viu chegar o dia de partir com seu novo empregador para a casa dele em Andaluzia.

 Os dias extras em Toledo foram adorá veis. Teve tempo de escrever uma longa carta a seu pai e conheceu os amigos de don Arturo que moravam na cidade. Tinham-na convidado para a merienda em companhia de don Arturo no belo pá tio da casa. Apesar de nã o compreender o lindo castelhano que falavam, ela adorou a dignidade e a hospitalidade deles. Pertenciam à velha aristocracia espanhola e a grande amizade por don Arturo reforç ava ainda mais a impressã o de que seu novo patrã o era realmente importante.

 Ricki sentia-se apreensiva, excitada, e ao mesmo tempo decidida a fazer aquele emprego funcionar. Na verdade, era algo que sempre desejara: cuidar de algué m que realmente precisasse dela, num ambiente inteiramente novo.

 — A estâ ncia é bem grande — tinha-lhe contado don Arturo —, e tenho vá rias outras fazendas, administradas por outras famí lias que há muitas geraç õ es trabalham em terras dos Cazalet. Na Inglaterra deve haver um sistema semelhante, nã o?

 Ouvindo isso, ela tinha se lembrado das histó rias contadas por seu pai sobre as antigas famí lias de Kerry e Mayo, que nã o tinham tí tulos, mas cujas raí zes se perdiam na turbulenta histó ria da Irlanda. Ali, na Espanha, as velhas culturas també m se perpetuavam, e Arturo de Cazalet devia ser, com certeza, o patrono da pequena comunidade em que vivia.

 Na noite anterior à partida, Ricki teve um sonho estranho. Viu-se na direç ã o de um carro que corria velozmente. De repente os freios se quebraram e o veí culo precipitou-se encosta abaixo para uma inevitá vel destruiç ã o. Despertou suada e assustada.

 O sonho permanecera em sua cabeç a enquanto se banhava e vestia. Podia ser associado ao desastre sofrido por seu futuro paciente. Mas ela sentia també m que o sonho podia ser uma espé cie de aviso. Essa idé ia paralisou no ar a mã o com que penteava os cabelos: seria um aviso para frear uma aç ã o que poderia levá -la a um perigo iminente?

 Deparando com seu rosto espantado no espelho, ela riu de si mesma. A estranha e misteriosa atmosfera de Toledo devia estar influenciando sua imaginaç ã o. Assim que saí sse dali nã o mais pensaria em Arturo de Cazalet vestindo escuras roupas medievais, de espada na cinta, envolto nas dobras de um manto. Diabo ou santo? O rosto dele continuava tã o misterioso para ela quanto no primeiro momento em que vira aqueles olhos negros que talvez escondessem segredos.

 Terminou de pentear-se e reafirmou para si mesma que ele era apenas um homem preocupado com o sobrinho doente. Fechou as malas e foi até a janela. Algumas mulheres de vé us pretos estavam a caminho da missa matinal. Um leiteiro vertia leite na jarra de um freguê s; sentia-se no ar o cheiro de pã o quente da padaria da esquina e os sinos das muitas igrejas de Toledo enchiam a manhã de sons.

 Ricki respirou fundo e sentiu um arrepio de apreensã o. Arturo de Cazalet deixava-a um pouco nervosa. Mas, se nã o tivesse cruzado com ele, já estaria de volta à Inglaterra. Em vez disso, estava agora prestes a penetrar no coraç ã o da Espanha, atravé s das planí cies da Andaluzia até a Granja de Ia Valle.

 — A hospitalidade dos espanhó is é ú nica no mundo — tinha-lhe dito algué m, ao saber que ela ia passar fé rias ali —, mas você tem de danç ar conforme a mú sica deles.

 Essas palavras poderiam tornar-se verdadeiras dependendo do clima que encontrasse na casa de don Arturo. Mas restava sempre a seguranç a de que poderia partir depois do mê s de experiê ncia se as coisas nã o dessem certo. O reló gio do quarto soou. Hora de descer. Ia tomar o café da manhã com seu novo patrã o antes de iniciar a longa viagem de carro. Abotoou o casaco do conjunto verde-oliva que usava sobre uma blusa branca de seda, deu uma ú ltima olhada no espelho e desceu, carregando sua mala.

 Don Arturo a esperava na sala de jantar, elegante em seu terno risca-de-giz, a gravata cinza-escura impecá vel sobre a camisa cinza-clara engomada.

 — Buen dia, srta. O’Neill — disse, conduzindo-a a uma mesa. Serviram-se de melã o. — Sinto informar que a polí cia ainda nã o conseguiu encontrar sua bolsa. Minha boa amiga, a condessa, me informou ontem, ao jantar, que uma mulher se sente perdida sem uma bolsa grande onde possa levar suas coisas. Na cadeira a seu lado há um pacote que ela lhe mandou de presente. Você poderá escrever da estâ ncia depois, agradecendo, pois agora nã o temos tempo de passar por lá para fazê -lo pessoalmente.

 Ricki pousou a colher cheia de melã o, virou-se e viu a seu lado um grande embrulho de papel pardo. A condessa de Quintalar, que ela tinha conhecido dias antes, havia lhe mandado uma linda bolsa de couro marroquino, com alç a longa e um grande fecho, preso na parte da frente.

 — Nã o posso aceitar! — exclamou, deliciada.

 — Acho que pode, sim. — Ele sorriu. — A condessa ficaria muito ofendida se recusasse. Ela diz que já nã o é jovem nem muito ativa e ficaria satisfeita em saber que a bolsa estaria sendo ú til a uma jovem dinâ mica.

 — Ela é muito gentil — disse Ricki, examinando os desenhos em relevo do couro. — Nã o quero que ela me ache ingrata e vou cuidar do presente com todo o carinho.

 — É tã o forte que pode lhe servir como uma boa arma de defesa na pró xima vez que encontrar um ladrã o. — Don Arturo sorriu e continuou: — Sempre que sentir vontade de sair em suas expediç õ es, é melhor levá -la com você. A Andaluzia é ainda muito selvagem, sabe? Existem cavernas nos morros, onde vivem os gitanos e os vaqueros rú sticos, que poderã o nã o entender muito bem que uma mocinha inglesa perfeita-mente respeitá vel saia vagando sozinha. Na Andaluzia só as moç as de uma certa classe saem sozinhas. Nó s, do sul, ainda respeitamos velhas tradiç õ es, sabe?

 — Farei o possí vel para ser uma verdadeira señ orita. — Os olhos de Ricki brilhavam. — Conte-me mais sobre a Andaluzia, señ or. Deve ser fascinante.

 — Sob muitos aspectos é ainda tã o bá rbara e misteriosa quanto nos dias de dominaç ã o mourisca. Os mouros construí ram palá cios tã o coloridos e intrincados quanto os de Bagdá. Naquela é poca se chamava Betica, mas ainda hoje é cheia de superstiç õ es. Tudo o que acontece é um sinal, uma maldiç ã o ou um milagre. — Levantando os olhos de seu prato de ovos com presunto, ele tinha o ar de um sarraceno. — Nó s, que cultivamos oliveiras, ainda temos muitas crendices que, para os outros, podem parecer pagas.

 — Nã o se esqueç a de que sou irlandesa por parte de pai — disse Ricki, passando manteiga no pã o. — Em partes remotas da Irlanda ainda correm superstiç õ es e crendices: os espí ritos dos velhos chefes assombrando os pâ ntanos, murmú rios no vento, vultos na neblina da manhã... Todo paí s antigo se prende a seu passado.

 Seguiu-se um pequeno silê ncio. Quando Ricki levantou os olhos, deparou com o olhar intenso de don Arturo. Os olhos dele perturbavam nã o apenas pela forç a que emanavam, mas porque ele parecia capaz de. Cobrir com uma cortina os pró prios pensamentos enquanto tentava ler os pensamentos alheios.

 Ele sabe que me assusta um pouco, pensou Ricki. E me acha meio infantil. Que estranho encontro... Somos tã o diferentes e, no entanto, nos parecemos.

 — Poucos visitantes possuem aquele algo mais, aquela afinidade especial pela verdadeira Espanha dos espanhó is, mas acho que você tem isso — disse, servindo-se de mel.

 — Obrigada, señ or. — Ricki sorriu, mas ele nã o retribuiu.

 — Nã o é um elogio — disse ele, mordendo o pã o com mel. — O piropo é um elogio gracioso que os jovens do sul inventaram para seduzir as mulheres. É superficial e nã o deve ser levado a sé rio. Lembre-se disso quando encontrar os jovens sulinos.

 — O señ or é sulino — ousou dizer.

 — Minha mã e era de Castela e eu me pareç o com ela. Meu irmã o se parecia mais com meu pai. Mas seu filho Jaime tem a reserva e a discriç ã o do sangue de Castela. Poderia ser meu filho.

 Ele falava com sua costumeira firmeza, mas Ricki percebeu que se ressentia de nã o ser o verdadeiro pai do menino. De alguma forma, pressentia que tinha havido algo entre don Arturo e Conquesta, a falecida mulher de seu irmã o.

 — Quem ficou com Jaime durante a sua ausê ncia? — perguntou. Parecia-lhe que aquela famí lia era toda masculina, sem nenhuma daquelas primas e tias dominadoras governando a casa como matriarcas tí picas da Espanha.

 — O menino ficou com o capataz-chefe e a mulher dele, Sophina. Ela é ó tima e tem muitos filhos. Todos moleques. Mas, mesmo puxando-lhes as orelhas, ela os adora tanto quanto ao ó leo de oliva. — Ricki notou o lampejo nos olhos dele enquanto falava. — O ó leo de oliva é a maior riqueza do camponê s e, na Andaluzia, a oliveira é mais preciosa que as vinhas. As olivas Cazalet sã o famosas. Nã o para comer, mas para a produç ã o de ó leo. Nossas terras parecem ter algo especial que torna as oliveiras escuras. E quanto mais escura a á rvore, mais frutos produz. Vou lhe contar uma das nossas superstiç õ es que você vai gostar. — Deu um daqueles sorrisos fugazes e continuou: — Acima da porta do grande depó sito de barris de ó leo, os trabalhadores dependuram sempre um ramo de gengibre. É para afastar os maus espí ritos que podem entrar no ó leo e torná -lo ranç oso.

 — É interessante. É como ter uma espiga de milho na casa, para garantir o pã o na mesa. — Ricki sorriu. — E parece funcionar, uma vez que o azeite de Cazalet é tã o famoso. Sabe, acho que vou gostar da Andaluzia.

 — Espero que sim — disse, inclinando a cabeç a, muito sé rio.

 Ricki teve uma idé ia maluca: sentiu vontade de despentear aqueles cabelos escuros tã o compostos, só para ver como don Arturo reagiria a um pouco de emoç ã o. Como seria, debaixo daquela firmeza tã o contida, aquele aristocrata orgulhoso que respeitava as superstiç õ es de sua terra, que era cortê s como um cavalheiro medieval de Castela, reservado e desenvolto como os picos das Sierras nevadas que se estendiam até as planí cies ensolaradas da Andaluzia?

 Ele se levantou da mesa, mas ela demorou um pouco mais, passando batom. Pintura de guerra, pensou, divertida, pois o novo emprego tinha muito de desafio.

 Dez minutos depois saí am da pensã o, recebendo as honras do dono do lugar. Ricki acomodou-se na perua, preparada para a longa viagem atravé s do campo. A seu lado, a figura esguia, sombria e viril do novo patrã o. Baixou os olhos para a mã o que ligava o motor: os dedos longos, as unhas cuidadas, pê los escuros cobrindo o pulso firme debaixo do punho engomado da camisa. Ricki sentiu-se repentinamente atingida por aquela estranha intimidade e agarrou-se à bolsa nova que tinha ganho da condessa. Agora nã o podia mais desistir. O carro deslizou pelas sombras da Calle de Torres e penetrou na praç a ensolarada. Era o iní cio de sua jornada para a fazenda dos Cazalet.

 As manhã s espanholas sã o douradas e frescas e, uma vez na estrada, don Arturo passou a correr mais. A perua era um veí culo só lido, atravessando incó lume os buracos da pavimentaç ã o, e Ricki sentia-se relaxada ao deslizarem pela paisagem.

 Don Arturo fazia-lhe as honras, como guia turí stico, contando-lhe histó rias e identificando os lugares interessantes. Sua maneira aristocrá tica nã o tinha nada a ver com a camaradagem dos ingleses, mas ele tinha o dom da discriç ã o, tí pico dos latinos. Apesar de interessada, Ricki suspeitou novamente que ele a estava tratando como crianç a. Mas nã o se importou. Gostava daquela voz profunda, baixa.

 Ao passarem pelas ruí nas de um antigo castelo, Ricki quis descer para dar uma olhada e ele concordou, parando o carro. Encostado à parede em ruí nas, contou a Ricki sobre as batalhas dos cavalheiros contra os mouros, um charuto entre os dedos, os cabelos despenteados pela brisa. Mesmo sem fechar os olhos, Ricki podia vê -lo vestindo uma armadura, montando um belo cavalo, os olhos brilhando, diabó licos, atrá s do elmo. Arturo de Cazalet parecia pertencer à quela é poca.

 Retornaram ao carro e viajaram por mais uma hora até que o calor tornou-se muito forte. Pararam entã o numa tasca sombreada por um caramanchã o, para almoç ar. Ricki estava com sede, mas nem teve de pedir nada: assim que a garç onete aproximou-se da mesa, ele pediu horchatas geladas. Ricki apanhou o copo com ambas as mã os, deliciada com o frescor da bebida.

 — Espero que você resista ao calor do sul — disse, notando os cabelos molhados dela em redor da testa. — A granja é bem protegida do sol, pois está localizada no fundo de um vale, mas a Andaluzia é uma terra muito quente. À s vezes, sopra o solam, um vento quente que os camponeses dizem ser como o há lito de um dragã o. De fato, o ar fica parecendo fogo, perturbando as emoç õ es e descontrolando as pessoas.

 — Este calor é adorá vel para algué m acostumado ao frio da Irlanda e da Inglaterra.

 — Mas você está pá lida... — disse ele, impaciente.

 — Oh, nã o. Nã o se preocupe com a minha palidez, señ or. Tenho pele de irlandesa. Era considerada muito bonita no sé culo passado, mas agora está meio fora de moda. A gente agora prefere um lindo bronzeado.

 — Entendo — disse. E riu.

 Ricki arregalou os olhos. Entã o ele sabia rir! Mas seu riso parecia um tremor subterrâ neo, algo que fora mantido trancado durante anos. Ela desviou os olhos, examinando as outras pessoas que comiam no restaurante. Eram fazendeiros tostados de sol, olhos penetrantes debaixo de velhos chapé us de feltro. Alguns a examinavam com franca curiosidade. Ela sabia que seu ar pá lido e magro devia chamar atenç ã o pelo contraste com as formas mais cheias das moç as espanholas que serviam as mesas. Ela tinha ouvido dizer que os espanhó is antiquados gostavam das mulheres mais gordinhas.

 Ricki e seu patrã o descansavam à sombra da parreira, saboreando o gaspá ctio — uma deliciosa sopa fria espanhola — e depois omeletes com carne e legumes, encerrando a refeiç ã o com uma belí ssima salada de frutas.

 — Quer café? — perguntou don Arturo, sorrindo do abandono com que ela saboreara a comida.

 — Quero, sim. Toda essa comida e o calor estã o me dando sono, mas eu nã o quero dormir para nã o perder a entrada em Andaluzia.

 — Estou tentando me lembrar o que se sente quando se é assim tã o jovem quanto você — disse ele, depois de pedir o café.

 — Seus cabelos ainda nã o estã o brancos, don Arturo — rebateu —, e as suas juntas nã o estalam quando o señ or entra e sai do carro.

 — A idade nã o se conta pelos anos — respondeu. — A maioria dos espanhó is na casa dos trinta anos já está bem casada e acomodada, criando os filhos.

 — E o que o impede de se casar? — disse ela sem pensar. Levou a mã o à boca, mas era tarde demais. Aquela frase, que pareceria inocente na Inglaterra, tinha outro peso na Espanha.

 O café chegou e ela agarrou o copo, embaraç ada. Largou-o imediatamente, sacudindo a mã o queimada no ar.

 — Você é muito impulsiva — disse ele devagar. — Brincar com fogo pode queimar os dedos. Tenha mais cuidado daqui para a frente.

 O calor de seus dedos se espalhou por todo corpo e ela decidiu controlar as palavras dali em diante. Ele era duro e firme e nã o permitia que se passasse dos limites.

 

 Meia hora depois retomaram a viagem. Ele corria muito e a paisagem transformava-se num mero borrã o. Ricki olhava fixamente para a frente, incomodada com aquele homem quieto e sombrio a seu lado. Agora lamentava tê -lo encontrado e aceitado o trabalho. Era bastante ó bvio que alguma mulher devia ter ferido o orgulho dele e, agora, todas as mulheres do mundo tinham de pagar por isso. Ricki nã o tinha mais dú vidas. Em sua mente, tinha certeza de que ele desprezava o casamento porque Conquesta, a Bellí ssima, tinha escolhido o irmã o e nã o ele, Arturo. E a pobre moç a nem tinha tido tempo de aproveitar a vitalidade sulina de Leandro de Cazalet... Era como se aquele romance tivesse ido amaldiç oado.

 Sombras se alongavam pelos campos quando atravessaram as altas Sierras. As mã os morenas e viris já nã o apertavam tã o forte a direç ã o do carro e don Arturo diminuiu a velocidade.

 — Bem-vinda à Andaluzia, srta. O’Neill.

 Ricki cerrou os dentes, sem saber se ria ou chorava diante daquela cortesia arrogante, depois de horas de silê ncio gelado. Quis responder, dizendo que nã o precisava ser gentil. Mas se calou. Ele havia insinuado que ela era apenas a fisioterapeuta, e Ricki tinha entendido e nã o ia mais sair da linha.

 — Aquelas montanhas sã o as Sierras? — perguntou com voz fria. Sabia muito bem a resposta. Eram as Sierras: montanhas pontiagudas que pareciam fechar-se sobre sua liberdade à medida que o carro deslizava sob elas.

 Um arrepio de apreensã o percorreu-lhe a espinha quando notou os cactos que apontavam seus galhos verde-acinzentados para o cé u. Havia palmeiras altas e frondosas, e rochas que brilhavam sob o sol.

 — O campo logo ficará menos deserto e mais pastoral — disse don Arturo, percebendo a apreensã o e o silê ncio dela. — Olhe lá!

 A encosta da montanha estava coberta por um grande rebanho de ovelhas lanudas.

 — Há ovelhas de todas as cores! — exclamou Ricki.

 — É devido à s vá rias cores do solo — explicou. — O solo tinge-lhes a lã.

 Ricki virou para trá s, olhando pela janela a amplidã o das planí cies, a figura imó vel do jovem pastor no meio do rebanho pastando à sua volta e os picos azuis fechando a paisagem ao longe. O carro fez uma curva e uma nuvem de poeira escureceu tudo. Ricki afundou-se no banco, consciente de ter visto uma amostra da verdadeira Espanha — aquela mistura de bucó lico e selvagem.

 De fato, entravam agora numa regiã o mais fé rtil e Ricki viu homens e mulheres com grandes chapé us de palha trabalhando o campo. Vacas avermelhadas pastavam placidamente, algumas com pá ssaros pousados nos flancos. Mulas e jumentos passavam pelo carro, carregados de lenha ou de legumes, e Ricki pô de ver de perto os primeiros andaluzos. Homens baixos, á geis, tostados pelo sol, com olhos brilhantes e escuros. Usavam um camisã o rú stico, perneiras e aqueles chapé us de feltro muito velhos, aos quais levavam os dedos num cumprimento respeitoso, sem nunca tirá -los. Esses trabalhadores da terra eram caballeros de coraç ã o, sentiam-se iguais aos caballeros reais e nunca eram subservientes. Ricki gostou deles. Achou que tinham a forç a e o encanto dos galeses. Deviam ser violentos, mas alegres també m e suas mú sicas e lendas deviam ser poé ticas.

 O carro passou pela ruí na de um velho moinho d'á gua. À s margens do regato coaxavam sapos, numa sinfonia noturna. As sombras da noite caí am arroxeadas quando finalmente chegaram à terra dos Cazalet: ricas plantaç õ es de aveia, trigo e cevada; tabaco, milho e cravo-da-í ndia. E havia os pomares de amoras e as oliveiras! Alas e alas de oliveiras negras recortadas contra o cé u, retorcidas, velhas, produzindo o ó leo vital dessa terra de vales e planí cies.

 Um vilarejo e uma igreja recortaram-se subitamente contra uma planí cie poeirenta e, ao chegarem mais perto, Ricki pô de observar as casas caiadas suspensas à beira de um precipí cio rochoso ao fundo do qual alargava-se um grande vale coberto de densa vegetaç ã o.

 Imaginou como seria viver numa daquelas casas e sorriu para si mesma, sentindo o coraç ã o disparar. Estavam chegando ao fim da viagem. A vila ficou para trá s e os faró is iluminavam agora a estradinha de terra que descia pela encosta rochosa. Logo ouviu-se o rumorejar de uma corredeira, as á guas caindo com forç a, e Ricki abandonou-se à sensaç ã o estranha e quase fatalista de deslizar noite adentro em direç ã o a um destino incerto, guiada pelo homem moreno, de perfil duro, sentado a seu lado.

 — Estamos quase chegando à estâ ncia — disse ele. — Você deve estar muito cansada...

 Concordou que a viagem tinha sido cansativa, mas sentiu na voz dele que o seu cansaç o nã o o interessava realmente. Olhou para o escuro da noite lá fora e deparou com seu pró prio rosto refletido no vidro da janela. Tinha os olhos arregalados como uma crianç a que quer ir para a cama, que quer algué m carinhoso para ajeitar os lenç ó is e dar um beijo de boa-noite. Tempos passados, de uma infâ ncia que nã o volta mais... E entã o, de repente, como o toque gelado da mã o de um fantasma, ocorreu a Ricki a idé ia de que devia ter sido naquela estradinha que o desastre fatal de Conquesta e Leandro tinha ocorrido.

 Don Arturo mudou a marcha e Ricki sentiu um frio na barriga enquanto o carro deslizava estrada abaixo. Nã o percebeu que ela o encarava, mas parecia que a dor e a tensã o dele a tinham tocado. Ricki suspirou, aflita.

 — A estrada é ruim no escuro, mas eu a conheç o muito bem — disse secamente. — Olhe, viramos aqui para a estrada da granja.

 Ricki relaxou as mã os que apertavam a bolsa, mas seu coraç ã o ainda batia muito forte. Don Arturo lanç ou-lhe um breve olhar. A penumbra interior do carro acentuava suas maç ã s salientes, as faces encovadas, as pequenas rugas em torno dos olhos. Aqueles olhos absolutamente negros, sem nenhum traç o de qualquer outra cor.

 — Acho que você já adivinhou que foi naquela estradinha que meu irmã o e a mulher perderam a vida, nã o? — Suas narinas se dilataram com a emoç ã o. — O que você nã o sabe é que Leandro tinha resolvido dar um passeio com a mulher e o filho em um dos meus carros. No dia anterior eu já tinha notado um defeito nos freios, mas ele nã o sabia disso. Eu estava ausente, visitante outra fazenda. Se eu estivesse em casa... — concluiu a frase com um gesto expressivo.

 — Sente-se culpado pelo acidente? — perguntou Ricki.

 — Nã o posso evitar. Eu devia ter lembrado que Leandro costumava tratar minhas coisas como se fossem dele.

 Palavras amargas e muito significativas, pensou Ricki. Os faró is iluminaram de repente os muros externos da granja, e ela respirou, aliviada. Atravessaram um enorme pá tio de pedra com lampiõ es de ferro batido que iluminavam fracamente as formas dos pré dios ao redor do pá tio e, ao longe, a fachada da grande mansã o ibé rica. A atmosfera parecia ao mesmo tempo fascinante e reclusa para algué m que ia viver e trabalhar ali.

 Cã es ladraram e um homem saiu correndo de uma casinhola de pedra ao lado do portã o de entrada. Vinha vestindo um casaco de botõ es dourados.

 — Patró n — exclamou —, achamos que o señ or só ia chegar de manhã. Será que o meu Benedito entendeu errado o seu telegrama?

 — Nã o. Eu é que resolvi nã o parar no caminho e vir direto para casa. Como estã o as coisas, Marco?

 Don Arturo tinha saí do do carro e ajudava Ricki a descer. Ela pisou o chã o de cascalho e continuou sentindo a forç a da mã o dele na sua, mesmo depois de ele a ter largado. Marco era um guarda jurado da importante famí lia e vestia uniforme marrom, botas altas e um chapé u de abas largas. Examinando Ricki com olhos curiosos, assegurou a don Arturo que o menino tinha estado muito bem durante sua ausê ncia.

 — Graç as ao bom Dió s — respondeu don Arturo, seco. Tocando ligeiramente o braç o de Ricki, colocou-a debaixo da luz da lanterna de ferro e a apresentou: — Esta é a srta. O’Neill. De agora em diante é ela quem cuidará do menino.

 — Bem-vinda à granja, señ orita. — O inglê s de Marco era carregado, mas compreensí vel.

 Don Arturo tinha contado a Ricki que, quando seu pai ainda era vivo, havia passado dois anos na Inglaterra estudando administraç ã o, e Marco e a mulher tinham ido com ele para cuidar do apartamento e cozinhar.

 — Já de volta, señ or? — disse a mulher grande e morena, saindo depressa da casa da guarda, o avental engomado oscilando a cada passo, os cabelos negros brilhando à luz do lampiã o. Ricki nã o se surpreendeu ao vê -la curvar-se numa reverê ncia, Toda a sua aparê ncia combinava com o cená rio adequado a formalidades diante do senhor esguio, moreno e autoritá rio. Era um mundo diferente, quase um sé culo diferente. Ali o passado feudal ainda estava vivo.

 A mulher era esposa de Marco, Sophina, e foi logo conversando enquanto entravam para a granja atravé s de um alto arco de pedra. Ricki notou que a casa tinha vá rios andares, cada um deles com a sua pró pria varanda à s quais se chegava por meio de escadas de ferro batido. A borda do teto imenso cobria todas as varandas para garantir a sombra nos dias de muito sol.

 Ricki sentiu-se perdida e diminuta no grande hall de entrada da casa. Do alto abobadado pendiam candelabros de latã o que nã o estavam acesos. A luz vinha de lamparinas presas em nichos das paredes. No centro havia uma grande mesa com pernas de madeira entalhada, rodeada de cadeiras de espaldar alto. E, diante dela, uma enorme lareira, como uma caverna, ladeada por mesetas de pedra que serviam, nos tempos antigos, de assento aos meninos encarregados de girar os espetos dos assados.

 A grande sala era algo ameaç adora, mas fascinante. O chã o era de ladrilhos e num canto havia um mesa de leitura sobre a qual ficava um grande livro encadernado em couro, no qual, supunha Ricki, deviam estar registrados os nascimentos, casamen-tos e mortes da antiga linhagem Cazalet.

 Ricki estava tã o absorta na contemplaç ã o da sala que se assustou ao ouvir a voz de don Arturo.

 — Sophina vai levá -la ao seu quarto, srta. O’Neill — disse com um sorriso no olhar. — E depois servirá o jantar. Você pode comer no quarto, pois vejo que está muito cansada. Devo me desculpar pela viagem tã o longa e cansativa.

 — Nã o há de quê. Sei que o senhor devia estar muito ansioso para voltar para seu sobrinho, señ or. E comer no quarto vai ser ó timo.

 Don Arturo conduziu-a atravé s da sala até a escadaria. Ricki viu no chã o, gravado nos ladrilhos, o mesmo escudo quê ele usava no anel.

 — Olhe! — deixou escapar como se ambos fossem turistas diante de uma novidade.

 — Interessa-se por essas velharias? — perguntou ele. — Isso pertence à minha famí lia há muitos anos. Está vendo? É um falcã o em campo de í ris e um cisne pequeno, e representa as mulheres de outras famí lias que se casam com os falcõ es Cazalet. A famí lia se iniciou com um certo Marius Cazalet, marujo das costas inglesas que se cansou de vagar e resolveu se estabelecer na Andaluzia e cultivar oliveiras. Igual à queles outros colonizadores que resolveram vir para cá e fundar grandes bodegas.

 — Fascinante! — disse Ricki, admirada. Era uma surpresa descobrir que aquela famí lia de falcõ es havia sido fundada por um inglê s. Sentiu uma fagulha atravessar o olhar de don Arturo e disse: — Deve ser uma imensa responsabilidade chefiar uma famí lia tã o antiga. O senhor é um elo vivo com o passado!

 — E isso me pesa muitas vezes. — Sua voz era seca. — Desejo-lhe buenas noches, srta. O’Neill. Espero que durma bem e que o silê ncio do campo nã o a perturbe. Os outros fisioterapeutas eram muito urbanos e achavam difí cil se acostumar com o silê ncio e com o pio das corujas.

 — Eram homens, nã o? — perguntou Ricki.

 — Sim — disse, olhando o rosto fino dela. — Esta é a primeira vez que Jaime vai ter uma fisioterapeuta. Acho que vai gostar da surpresa.

 — Espero que sim. — Ricki cruzou os dedos para dar sorte, murmurou um boa-noite e subiu as escadas com Sophina. A criada gostava de uma boa conversa e comentou a temporada que passou em Londres junto com seu marido, cuidando de don Arturo.

 — Os ingleses sã o tã o tí midos — disse, rindo. — Eu me divertia muito, à s vezes. Sã o tã o diferentes de nó s, espanhó is.

 — Alguns espanhó is també m sã o muito reservados — comentou Ricki, pensando em seu patrã o.

 — Ah, mas a gente nã o se esconde atrá s de um jornal no ô nibus ou no trem. A gente conversa, senorita. A gente está sempre interessada na vida dos outros. — Sophina examinou a figura frá gil de Ricki e comentou: — Será que você agü enta o menino? É tã o magrinha!

 — Tratar de doentes é a minha profissã o — disse, firme. Ainda nã o sabia se gostava ou nã o daquela mulher com ares de cigana. Só o nome dela já evocava carroç õ es e ritmos agitados de danç as pagas.

 Os quartos da estâ ncia eram todos em ní veis diferentes, com escadas que subiam e desciam, e Ricki já se sentia completamente perdida quando finalmente Sophina abriu uma porta e disse que aquele era seu quarto.

 — A criada vai trazer um brasero. À noite sempre esfria por causa das neves das Sierras. Vou lhe mostrar o banheiro. Quer dar uma espiadinha no nino?

 — Posso? — perguntou Ricki, curiosa sobre seu paciente. — Mas nã o quero acordá -lo.

 — Está dormindo pesado. Tivemos de dar a ele um sedativo, pois o coitadinho ficou inquieto quando soube que o patró n ia voltar — disse Sophina, conduzindo Ricki pelo corredor.

 — Deve ter ficado excitado! — Ricki sorriu. — Don Arturo deve ser um verdadeiro pai para ele.

 — Señ orita — disse Sophina com os olhos misteriosos de uma bruxa —, eu gostaria que isso fosse verdade, mas Jaimito nã o gosta nada do tio. Eles nã o se dã o bem. É uma pena. — Ela abriu uma porta mostrando um banheiro antiquado com uma banheira de ladrilhos azuis.

 Entã o, don Arturo e o sobrinho nã o se davam bem. O menino nã o gostava do homem que se sentia parcialmente culpado pelo trá gico acidente e que trazia sempre em mente o fato do irmã o, Leandro, se apossar de suas coisas. Fossem elas carros ou mulheres, disse Ricki para si mesma.

 — Este é o quarto do nino. — Sophina introduziu Ricki no quarto suavemente iluminado por uma lâ mpada de mesa. — Ele tem pesadelos à noite e nã o seria bom despertar na escuridã o. Tem uma cara linda, nã o? Puxou os pais — disse Sophina, curvando-se sobre a crianç a e projetando uma grande sombra na parede.

 Jaime de Cazalet era mesmo uma bela crianç a, de traç os refinados e sobrancelhas escuras arqueadas sobre os olhos fechados. O cabelo escuro estava despenteado pelo sono inquieto e mostrava a mesma linha do cabelo do tio. Nã o parecia uma crianç a problema, mas os cantos dos lá bios estavam tensos e os punhos cerrados sobre o lenç ol... como se se agarrasse a uma mã o amiga. A mã o da mã e? Ele parecia viver ainda o momento em que os freios falharam e o carro se precipitou pela estradinha da montanha.

 — Será que nã o tem nenhum brinquedo macio para dormir com ele? — murmurou Ricki.

 — Já é muito grande para isso, señ orita — disse Sophina com desdé m. — Esse menino já tem a cabeç a de um adulto.

 — Mas olhe como ele se agarra aos lenç ó is. — Ricki se preocupava com aquele sinal de tensã o. — Um brinquedo macio poderia ajudá -lo a dormir mais tranqü ilo.

 — É, eu notei mesmo que na Inglaterra as crianç as levam para a cama esses brinquedos de lã — disse Sophina, tolerante, mas sem se importar muito. — É costume de você s. As crianç as espanholas nã o ligam para essas coisas.

 Ricki abriu a boca para responder, mas decidiu se calar. Nã o queria se desentender com Sophina e, no momento em que começ asse a cuidar de Jaime, poderia lhe dar um brinquedo macio e deixar ao menino a decisã o de aceitar ou nã o o conforto de dormir com ele.

 Saindo do quarto, Ricki sentiu pena por Don Arturo nã o ter conseguido conquistar a confianç a e afeiç ã o do sobrinho.

 — Os pais de Jaime eram felizes? — perguntou.

 — Ay, Dió s mio, felicidade é uma palavra cheia de muito sentidos. Você ainda nã o amou nenhum homem, nã o?

 Ricki sacudiu a cabeç a, sentindo o sangue subir-lhe à s faces.

 — O amor é doce, mas amargo també m. Isso você ainda vai aprender quando encontrar o seu homem. Dona Conquesta e o marido resolveram ser felizes, mas isso foi a morte para o nosso velho patró n e transformou em pedra o coraç ã o do irmã o mais velho. Aquela felicidade era amaldiç oada desde o começ o! — Sophina dobrou os dedos em forma de chifres e tocou a madeira em seguida, murmurando algo em espanhol. Estavam diante de um retrato de algum nobre antigo, vestido de roxo, com gola rendada, ostentando os olhos negros dos Cazalet.

 — Dona Conquesta devia ter casado com don Arturo — prosseguiu Sophina. — O arranjo foi feito quando ela tinha dezesseis anos e ele vinte e um. O velho patró n e o pai de dona Conquesta queriam unir as duas famí lias e isso, é claro, tinha de ser feito pelo filho mais velho. O noivado durou cinco anos. Mas algumas semanas antes do casamento, dona Conquesta fugiu com o pró prio irmã o de don Arturo para se casarem. Leandro era muito bonito, tinha mel na voz. O choque matou o velho patró n. A honra das casas espanholas é uma coisa muito importante, mas, em vez de punir o casal, don Arturo resolveu perdoar os dois quando soube que Conquesta ia ter uma crianç a. Madre mia, o que ele teve de agü entar! Mas ela era daquelas que enfeitiç am os coraç õ es dos homens. Assim é na Espanha, señ orita, as emoç õ es sã o mais afloradas.

 — É uma histó ria trá gica — murmurou Ricki. — Sinto por don Arturo. Mas ele ainda é jovem. Certamente se casará um dia.

 — Alguns homens perdem a confianç a nas mulheres, mas outros chegam a perder todo o desejo de amar outra vez. Don Arturo já nã o precisa se casar para dar um herdeiro à famí lia. Tem Jaime. Verdade que o menino nã o pode andar, mas você veio para cuidar disso, nã o é? — Sophina deixou Ricki na porta de seu quarto e partiu. — Vou mandar o jantar, srta. O’Neill. Buenas noches.

 — Boa noite, Sophina. Obrigada por me mostrar o menino.

 Ricki entrou para o quarto e fechou a porta silenciosamente. O brasero tinha sido trazido e queimava na lareira. Ela sentou-se diante dele e examinou o ambiente. Havia uma cama de mogno com dossel, um gigantesco guarda-roupas entalhado, vá rias poltronas estofadas com brocado dourado combinando com as cortinas e uma penteadeira cheia de gavetas. Sobre ela um grande espelho em forma de escudo, toalha de renda creme debaixo de um par de vasilhas de porcelana pintadas com cenas de danç a flamenca, combinando com os castiç ais, e ao lado uma caixa de latã o redonda, com pezinhos curtos, que servia para guardar pequenos objetos.

 Era um quarto grande, cheio de sombras que pousavam sobre a mobí lia escura. As cortinas voejaram e, apesar de Ricki saber que era apenas o vento entrando pela janela aberta, aquele pequeno movimento a assustou. Aquela fazenda no vale era um repositó rio de memó rias. Ali um homem e um menino jaziam presos numa trama obscura, tecida por fantasmas.

 Haviam trazido uma jarra de á gua quente e uma bacia de porcelana com um sabonete de azeite de oliva. Ricki lavou-se, depois abriu a mala, vestiu o pijama e começ ou a arrumar suas roupas. A roupa de baixo numa gaveta, os poucos vestidos e blusas dependurados no enorme armá rio. Tudo parecia tã o pequeno e isolado quanto ela pró pria naquele quarto imenso.

 Deitou-se e ouviu um toque na porta. Um criado magro, de meia-idade, entrou trazendo a bandeja com seu jantar. Tinha olhos escuros e impenetrá veis. Aproximou-se da cama e acomodou-lhe a bandeja sobre os joelhos.

 — Grá cias — disse Ricki, tí mida.

 O homem inclinou a cabeç a, disse boa-noite em espanhol e saiu levando consigo a impressã o de que o patró n devia estar louco, trazendo uma mulher tã o jovem para cuidar do menino. Ricki sorriu para si mesma, satisfeita, quando provou o delicioso ensopado de coelho. Tinha plena consciê ncia de que sua aparê ncia era de uma garota de uns dezesseis anos, mas isso poderia ser uma vantagem no tratamento com Jaime. Ele nã o a veria como um adulto e talvez se sentisse confiante para ser seu amigo.

 Ricki comeu devagar, saboreando cada bocado daquela comida campestre que lembrava a sua infâ ncia, quando vivia com os pais na Irlanda. Limpou os lá bios e colocou a bandeja no criado-mudo.

 Apagou a luz e deslizou para baixo dos lenç ó is perfumados. No carro, tinha se ressentido com don Arturo, mas agora sentia pena por seu sobrinho Jaime.

 Estava ansiosa para começ ar o trabalho e decidida a fazer todo o possí vel para afastar as sombras daquele rostinho triste. As corujas piavam no vale, seus olhos ficaram pesados e Ricki adormeceu.

 

 Cerca de uma hora depois despertou sobressaltada, sentindo um toque gelado no rosto e no braç o esquerdo que estava fora dos lenç ó is. Sentou-se na cama, olhando a escuridã o cheia de sons do reló gio e do bater de seu coraç ã o. Riscou um fó sforo e acendeu o lampiã o. O verniz dos mó veis brilhava, mas as sombras nã o se iluminavam completamente.

 O que teria tocado seu subconsciente, despertando-a? Passeou o olhar pelo quarto e fixou as grandes dobras de brocado que cobriam a janela.

Os panos se estufavam, depois murchavam novamente e ela tentou convencer-se de que era apenas o vento da noite enfunando a cortina naquelas formas que pareciam um corpo...

 Por outro lado, podia ser algué m que tivesse subido do pá tio! Havia as escadas de ferro e a varanda lá fora... Nã o adiantava ficar pensando, tinha de ir verificar. Saiu da cama e atravessou o quarto, num esforç o. Atrá s da cortina havia um par de venezianas que abria para a varanda. E uma delas estava aberta!

 Ricki parou um momento, agarrada à cortina, arrepiada pelo frio que entrava da noite. Depois, controlando-se, fechou rapidamente as venezianas e voltou para a cama. Mas nã o tinha vontade de apagar a luz, mesmo sabendo que a casa era bem guardada e que fantasmas nã o existiam.

 — Oh! — gritou quando um gato cinzento saltou para a cama, o pê lo arrepiado e os olhos verde-esmeralda fixos em seu rosto. — Seu diabinho! Entã o era você!

 O gato ronronou e começ ou a amassar o seu roupã o com as garras. Ricki deu risada, pensando que ele era o estranho que havia entrado do pá tio como um fantasma cinzento. Saiu da cama novamente, levantou o animalzinho, abriu a porta e colocou-o no corredor. Ele virou-se para entrar correndo de novo, mas ela o expulsou. O gato sumiu nas sombras do corredor.

 Uma lamparina brilhava ainda na parede oposta do corredor, diante do quarto de Jaime, e Ricki encostou-se à porta de seu quarto, pensando nas coisas que Sophina havia dito sobre a mã e do menino. Bonita demais, o tipo que enfeitiç a os coraç õ es dos homens... Agora, ela e o marido estavam mortos e o filho invá lido... Trí plice tragé dia provocada pelo carro do homem com quem devia ter-se casado!

 De repente, soaram passos. Ricki virou-se rapidamente e viu quem se aproximava pelo corredor: pense no diabo que ele aparece!

 Voltou rapidamente para dentro de seu quarto, esperando que don Arturo nã o a tivesse visto. Mas ele parou diante da porta dela, abrindo-a de leve.

 — Nã o está conseguindo dormir, srta. O’Neill?

 — Um gato... entrou em meu quarto — gaguejou ela. — Acabo de pô -lo para fora.

 — Um gato? — perguntou, arqueando as sobrancelhas e passeando o olhar pelo quarto dela. — Tem medo de gatos?

 — Nã o gosto que durmam em minha cama — respondeu, consciente de que nã o podia demonstrar medo naquele momento, pois o gato persa nã o era nada diante do que teria de enfrentar. Sabia agora que se encontrava na casa de um homem que tinha todas as razõ es do mundo para nã o confiar nas mulheres.

 — Melhor voltar para a cama — disse ele, consultando o reló gio. — É mais de meia-noite.

 — A hora das bruxas — sorriu, nervosa. — Gatos, bruxas... esta sua casa estimula a imaginaç ã o, señ or.

 — Pode ser. Mas nã o se deixe dominar pela imaginaç ã o. — Inclinou a cabeç a morena e saiu para o corredor. — Mais uma vez, buenas noches, señ orita.

 — Buenas noches, señ or. — Fechou a porta e encostou-se a ela. Ali ficou um longo instante, o coraç ã o batendo descompassado. Haveria naquelas palavras alguma espé cie de aviso?

 



  

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